A Punicao Na Religiao Crista

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A PUNIÇÃO NA RELIGIÃO CRISTÃ: SUA POSSÍVEL IMPLICAÇÃO NO COMPORTAMENTO VERBAL DISFUNCIONAL ENTRE OS PARCEIROS AMOROSOS Silvia Motta Cugnasca Psicóloga As narrativas bíblicas se iniciam com Adão e Eva e uma série de relatos dramáticos que ilustram a condição pecaminosa do Ser Humano e do seu desejo de se rebelar contra Deus. Adão e Eva desobedecem a seu Deus, comendo o fruto proibido; a punição por este ato de desobediência original foi a perda da imortalidade e a expulsão do Paraíso. Mais tarde, o mundo inteiro é destruído por um grande dilúvio, em decorrência da punição aplicada por Javé (Deus) à Humanidade pecadora, do qual se salvam apenas Noé, patriarca bíblico virtuoso, e sua família, juntamente com casais de todos os animais da Terra. Noé torna-se assim a garantia de uma nova aliança entre Javé e uma Humanidade renovada (Gênesis, 1: 6-9). A Torre de Babel, construída pelos descendentes de Noé, é derrubada, pois representa a tentativa humana de chegar até o Céu (Gênesis, 11: 9). Sodoma e Gomorra, cidades dominadas pelas tentações e pelo pecado, são aniquiladas por um cataclisma provocado por Javé (Gênesis, 19: 24-25). Nesses trechos bíblicos, observa-se o contingente coercitivo para o uso da punição que permeia os comportamentos classificados como “pecaminosos”. Gaarder e cols. (2000) descrevem que durante a travessia do deserto, Javé deu a Moisés, no Monte Sinai, as duas tábuas da lei com os Dez Mandamentos, aos quais o povo israelita deveria obedecer. Dessa forma, foi firmado um pacto – na verdade, uma imposição – segundo o qual os israelitas deveriam reconhecer a existência de um só Deus, e em troca seriam Seu povo escolhido. Receberiam Sua ajuda e Seu apoio, desde que cumprissem o que lhes cabia no acordo e obedecessem às leis de Javé. Nos Dez Mandamentos reconhecem-se regras de convivência social que privilegiam a vida em grupo e condenam as práticas individuais que visam a obtenção do reforço imediato, cujas conseqüências são, porém, prejudiciais ao grupo – além disso, tais práticas constituíam-se ameaças que poderiam levar à dissolução do grupo enquanto cultura. Esses autores também citam os livros proféticos (Neviim), que contêm as falas dos profetas (Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze profetas menores), através dos quais a palavra e a vontade de Javé se manifestavam. Segundo esses profetas, se o povo não vivesse segundo as exigências feitas por esse Deus justo, Ele iria distribuir Seu julgamento e aplicar Seu castigo. É notável a ameaça constante do uso de punição caso haja qualquer manifestação de contra-controle e de não submissão às regras e contingências. O Judaísmo forneceu as bases para o surgimento do Cristianismo, que em seu início questionou alguns preceitos daquela religião, mas assimilou o discurso mítico contido no Velho Testamento e muitos outros preceitos, dentre eles o uso de punição. Assim, podemos entender o Cristianismo como uma religião derivada do Judaísmo. Há dois mil anos o Cristianismo permeia a história, a literatura, a filosofia, a economia, a arte e a arquitetura na Europa, sendo a religião que caracteriza a vida ocidental. E as escrituras sagradas atestam que o ser humano tem papel de destaque na criação divina: “Antropólogos, filósofos, cientistas e escritores, todos tiveram e têm idéias diferentes sobre a natureza do homem, e todas as religiões têm sua própria concepção de humanidade. O ponto vital para um cristão é que o homem não foi criado a esmo, como se fosse um subproduto; até mesmo as histórias da criação enfatizam que a humanidade é resultado da vontade e do poder de Deus. Isso indica, para a crença cristã, o valor do indivíduo. A humanidade tem um pai comum em Deus, e já que cada um de nós foi criado por ele, somos todos igualmente preciosos” (Gaarder e cols., 2000, pág. 137). Partindo dessa premissa, pode-se perguntar: por que o advento da punição é utilizado para “educar” o homem, se somos produto da criação divina, pela vontade de

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A PUNIÇÃO NA RELIGIÃO CRISTÃ: SUA POSSÍVEL IMPLICAÇÃO NO COMPORTAMENTO VERBAL DISFUNCIONAL

ENTRE OS PARCEIROS AMOROSOS

Silvia Motta Cugnasca Psicóloga

As narrativas bíblicas se iniciam com Adão e Eva e uma série de relatos

dramáticos que ilustram a condição pecaminosa do Ser Humano e do seu desejo de se rebelar contra Deus. Adão e Eva desobedecem a seu Deus, comendo o fruto proibido; a punição por este ato de desobediência original foi a perda da imortalidade e a expulsão do Paraíso. Mais tarde, o mundo inteiro é destruído por um grande dilúvio, em decorrência da punição aplicada por Javé (Deus) à Humanidade pecadora, do qual se salvam apenas Noé, patriarca bíblico virtuoso, e sua família, juntamente com casais de todos os animais da Terra. Noé torna-se assim a garantia de uma nova aliança entre Javé e uma Humanidade renovada (Gênesis, 1: 6-9). A Torre de Babel, construída pelos descendentes de Noé, é derrubada, pois representa a tentativa humana de chegar até o Céu (Gênesis, 11: 9). Sodoma e Gomorra, cidades dominadas pelas tentações e pelo pecado, são aniquiladas por um cataclisma provocado por Javé (Gênesis, 19: 24-25). Nesses trechos bíblicos, observa-se o contingente coercitivo para o uso da punição que permeia os comportamentos classificados como “pecaminosos”.

Gaarder e cols. (2000) descrevem que durante a travessia do deserto, Javé deu a Moisés, no Monte Sinai, as duas tábuas da lei com os Dez Mandamentos, aos quais o povo israelita deveria obedecer. Dessa forma, foi firmado um pacto – na verdade, uma imposição – segundo o qual os israelitas deveriam reconhecer a existência de um só Deus, e em troca seriam Seu povo escolhido. Receberiam Sua ajuda e Seu apoio, desde que cumprissem o que lhes cabia no acordo e obedecessem às leis de Javé. Nos Dez Mandamentos reconhecem-se regras de convivência social que privilegiam a vida em grupo e condenam as práticas individuais que visam a obtenção do reforço imediato, cujas conseqüências são, porém, prejudiciais ao grupo – além disso, tais práticas constituíam-se ameaças que poderiam levar à dissolução do grupo enquanto cultura.

Esses autores também citam os livros proféticos (Neviim), que contêm as falas dos profetas (Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze profetas menores), através dos quais a palavra e a vontade de Javé se manifestavam. Segundo esses profetas, se o povo não vivesse segundo as exigências feitas por esse Deus justo, Ele iria distribuir Seu julgamento e aplicar Seu castigo. É notável a ameaça constante do uso de punição caso haja qualquer manifestação de contra-controle e de não submissão às regras e contingências.

O Judaísmo forneceu as bases para o surgimento do Cristianismo, que em seu início questionou alguns preceitos daquela religião, mas assimilou o discurso mítico contido no Velho Testamento e muitos outros preceitos, dentre eles o uso de punição. Assim, podemos entender o Cristianismo como uma religião derivada do Judaísmo.

Há dois mil anos o Cristianismo permeia a história, a literatura, a filosofia, a economia, a arte e a arquitetura na Europa, sendo a religião que caracteriza a vida ocidental. E as escrituras sagradas atestam que o ser humano tem papel de destaque na criação divina:

“Antropólogos, filósofos, cientistas e escritores, todos tiveram e têm idéias diferentes sobre a natureza do homem, e todas as religiões têm sua própria concepção de humanidade. O ponto vital para um cristão é que o homem não foi criado a esmo, como se fosse um subproduto; até mesmo as histórias da criação enfatizam que a humanidade é resultado da vontade e do poder de Deus. Isso indica, para a crença cristã, o valor do indivíduo. A humanidade tem um pai comum em Deus, e já que cada um de nós foi criado por ele, somos todos igualmente preciosos” (Gaarder e cols., 2000, pág. 137).

Partindo dessa premissa, pode-se perguntar: por que o advento da punição é utilizado para “educar” o homem, se somos produto da criação divina, pela vontade de

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um Deus dito misericordioso? As formas de controle impostas pela religião atestam as dificuldades em lidar com as questões inerentes à natureza humana e isso tem perdurado até a atualidade. Tal aspecto é notável também na história do Cristianismo e na de sua Igreja, que em seu início foram marcados por perseguições e atrocidades. A trajetória histórica do Cristianismo é impressionante – basta que nos lembremos das Cruzadas e do papel exercido pela Inquisição durante a Idade Média. É importante aqui lembrar que a novidade da pregação cristã é justamente a abolição das distinções entre os homens, isto é, o fim das diferenças e desigualdades que seriam apontadas como a principal causa dos conflitos entre os seres humanos, e que contribuiriam para a disseminação de atos pecaminosos, além da existência de um laço entre o amor a Deus e o amor ao próximo.

Os trechos bíblicos citados parecem demonstrar que a religião judaica, e em seguida a religião cristã, por meio de suas instituições e desde os seus primórdios, fizeram uso constante da punição para justificar a sobrevivência de seu povo, assim como a sua própria sobrevivência. Isso parece contrapor-se ao maior ensinamento do Cristianismo – “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”; em todas as pregações de Cristo, a caridade é proclamada como o mandamento-chave, pois não é suficiente amar o próximo; deve-se amar até o inimigo.

Segundo Vandenberghe (2005), a religiosidade é analisada na literatura skinneriana como fazendo parte das práticas culturais. Essas, muitas vezes, permanecem consistentes entre indivíduos através das gerações. Para Glenn (1988), as práticas culturais são conjuntos intertecidos de contingências em que o comportamento e os produtos do comportamento de cada participante funcionam como eventos ambientais com os quais o comportamento de outros indivíduos interage. Em outras palavras, são práticas de indivíduos que dependem das práticas de grupo (Skinner, 2003). Nesse contexto, os modelos parentais, repertório de comportamentos e práticas utilizado pelos pais como estratégias com o objetivo de socializar, controlar e desenvolver valores e atitudes em seus filhos, parecem demonstrar que se espelham em práticas ditadas pela agência religiosa que assegurem a ocorrência de comportamentos virtuosos que possibilitem vantagens para o grupo. Para Skinner (1981), as práticas culturais são selecionadas e moldadas pelas conseqüências que têm para o grupo e as práticas religiosas emergem em função das contingências de sobrevivência das sociedades; este também é o pensamento de Mallot (1988).

A religião defende o cumprimento das regras criadas e impostas pela sociedade. O controle aversivo é, sem dúvida, sancionado em parte porque é compatível com as filosofias dominantes de Governo, Religião, Educação e Economia (Skinner, 2003). A punição sempre esteve presente nas relações humanas e ainda hoje subjaz a regras que beneficiam alguns poucos indivíduos, em detrimento do controle de muitos outros. Seu uso se justifica pelas agências controladoras, dentre elas a religião, que reforça o ser humano a ter comportamentos virtuosos com a premissa de que a punição evitará que ele pratique comportamentos pecaminosos, que produziriam conseqüências aversivas em longo prazo (por exemplo, a ameaça do Inferno). Nota-se que a religião cristã costuma pregar, ou privilegiar, o comportamento controlado por regras para evitar conseqüências aversivas em longo prazo, ao prometer o reforçamento último: a vida depois da morte.

Vários autores conceituam religião como sendo uma teia de significados ligada a práticas morais e espirituais específicas que são geralmente sustentadas por práticas sociais (Vandenberghe, 2005). Também pode ser definida em termos de crenças, rituais e práticas socialmente instituídas, segundo Miller & Thorensen (1999). Schoenfeld (1993) afirma que existem várias definições de religião: para Gaster, religião é “a síntese do pensamento, sentimento e comportamento em que, sob sanção, os homens tentam determinar e articular o seu lugar no esquema das coisas” (pág. 5). Para Buber, “religiosidade é o anseio humano em estabelecer uma viva comunhão com o incondicionado; é o desejo do homem em realizar o incondicionado através de sua obra, e em estabelecê-lo em seu mundo” (pág. 6). Para Reinach, religião seria “uma soma de escrúpulos que impedem o livre exercício das nossas faculdades” (pág. 6). Nesse contexto, é possível observar que a religião é um fenômeno social que surge para que um grupo de pessoas estabeleça controle sobre outros grupos. Tal controle é validado

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por um poder a ela atribuído que vai além daquele exercido pelo homem na vida cotidiana.

“O controle que define uma agência religiosa no sentido mais restrito se deriva de uma apregoada conexão com o sobrenatural, através da qual a agência arranja ou altera contingências que acarretam boa ou má sorte no futuro imediato, ou benção eterna ou danação por vir. Essa agência controladora se compõe daqueles que são capazes de estabelecer sua reivindicação do poder de intervir sobrenaturalmente”. (Skinner, 2003, pág. 384)

A agência religiosa estabelece o controle sobre seus seguidores por meio da promessa de um futuro feliz ou infeliz, contingente a seus comportamentos, qual seja: aquele que se comportar de maneira “correta”, de acordo com seus parâmetros, será reforçado, nesta ou em outra vida; por sua vez, o indivíduo que tiver comportamentos inadequados sofrerá punição. Aqui, o controle coercitivo se dá por meio de reforçamento negativo – a noção de sofrimento eterno, situação extremamente aversiva decorrente da condenação ao Inferno (Skinner, 2003). Pode-se falar, também, de sentimento religioso-espiritual como efeito (privado) das mesmas contingências sociais que mantêm o comportamento religioso (público). Há análises que apontam, porém, que a influência das religiões sobre as sociedades é muito mais abrangente e inclui uma variedade de áreas além da vida espiritual (Vandenberghe, 2005).

“A relação entre a agência (religiosa) e os fiéis, ou entre Deus e o homem, com certeza torna-se mais eficiente sendo caracterizada como relação tão mundana familiar como a existente entre um pai e seus filhos, um rei e seus vassalos, ou um comandante militar e seus homens – (...) as contingências reforçadoras primárias não diferem grandemente das usadas no controle ético e governamental”. (Skinner, 2003, pág. 385)

A caracterização das relações entre religião e fiéis ou entre Deus e o Homem como uma relação similar existente entre pai e filhos possibilita o entendimento e a aceitação de leis, dogmas e regras impostos pela agência religiosa como reguladores do processo de educação dos seres humanos. Assim, surge uma nova questão: os modelos parentais podem se espelhar nas regras estabelecidas pela religião cristã para justificar o uso da punição como critério intrínseco aos processos de educação e aprendizagem?

A complexa relação pais e filhos é extensamente abordada na Bíblia, que estabelece paralelos entre esta e a definição de Deus como Pai de todos. Skinner (2003) enfatiza a caracterização da relação entre Deus e o ser humano pautando-a pelos parâmetros das relações pais e filhos; seu objetivo parece ser o de estabelecer uma relação vertical de controle e poder, a partir de uma autoridade legitimada. A Bíblia reserva o nome de Pai para designar a nova relação que Deus assume para com aqueles que adotou como filhos, ou seja, aqueles que, nascidos do Espírito de Deus, são por Ele guiados (Romanos 8:14-17). A agência religiosa considera que o ser humano, pelo nascimento físico, é descendente de Adão e excluído, pelo pecado, da família de Deus. Pelo batismo, o ser Humano passa a ser membro dessa família, desde que abdique, ao longo de sua vida, do comportamento classificado como pecaminoso, submetendo-se assim às leis e regras religiosas para receber o pleno perdão ou a remissão de seus pecados. Esse é o pré-requisito para ser aceito como filho de Deus (Hebreus 10:17-18; 2º Coríntios 5:21).

Examinando-se a história da Humanidade, é possível observar que a Religião tornou-se um poderoso controlador do comportamento humano, pela imposição do controle do comportamento por meio de regras e contingências. Vandenberghe (2005) afirma que a visão de Skinner (2003) segue uma linha paralela à do sociólogo Hoffer (1951), que enfatizou os mecanismos de coerção envolvidos no controle que a religião exerce sobre o comportamento humano e o efeito alienador da imposição das prioridades do grupo religioso sobre o indivíduo. Sobre este aspecto, Linehan (1993 apud Vandenberghe, 2005, p. 328) afirma que “quando falamos de sentimento religioso, nos referimos a efeitos encobertos das conseqüências de comportamentos religiosos sobre a pessoa. (...) Muitos indivíduos seguem regras ou agem sob contingências coercitivas, desprezando sua própria sabedoria mais profunda.”

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Os comportamentos que a punição elicia, apesar da obtenção de efeitos desejados em curto prazo por meio de comportamentos tidos como “adequados”, justificam seu uso ainda hoje, mesmo sendo ela validada pela religião, como agência controladora? Honderich (1984, p. 161) escreve a respeito da justificativa moral para o uso da punição:

“Nós (agência controladora) desejamos proteger a sociedade, reformar criminosos, intimidar outrem. Estes fins ou propósitos são ‘moralmente e socialmente desejáveis’, mas eles não podem ser confundidos com a justificativa moral do uso de punição. A justificativa moral da prática é que é merecida. (O argumento dado para esta exclusão dos valores utilitários envolve confusão entre punição justa e punição justificada mencionada acima). Entretanto, nós não somos obrigados a punir por desistência. É antes o caso de que porque os homens merecem isto nós temos o direito de puni-los. (...) Nós não temos dado um argumento para a prática da punição, de um sistema não particular de penalidade. Antes, tem sido dito que temos o direito à prática assim como os homens cometem penalidades tão severas quanto, mas não mais severas do que, eles merecem”.

Como justificativa social para o uso da punição Honderich (1984) considera que: (1) a punição é economicamente preventiva de ofensas; (2) aqueles que são punidos agiram voluntariamente, de maneira que se opuseram a um sistema de ofensas e penalidades conhecido; (3) quem transgride é punido como os outros ofensores; (4) as penalidades equalizam o bem-estar e a angústia com consideração a ofensores e não ofensores; e (5) as penalidades não produzem situações de desigualdade de angústia.

As relações humanas são afetadas pelas práticas culturais que pertencem ao contexto no qual os membros do grupo estão inseridos. Os usos e costumes de um grupo engendram tais práticas e estas são validadas ou não pelas agências de controle, passando posteriormente a serem padrões de comportamento impostos ao próprio grupo. Skinner (2003) dá uma idéia de como a Igreja faz uso sistemático do comportamento de punição ao afirmar que a agência (religiosa) pune o comportamento pecaminoso de um modo que gera automaticamente uma condição aversiva que o indivíduo descreve como um “sentimento de pecado”. A agência então provê a fuga dessa condição aversiva através da expiação ou absolvição, e assim é capaz de fornecer um poderoso reforço ao comportamento piedoso. Também afirma que as agências religiosas mais provavelmente favorecem a censura de filmes, peças e livros, o reforçamento das leis que governam a modéstia na vestimenta, a proibição da venda de bebidas alcoólicas etc., porque tais medidas reduzem as ocasiões para a ocorrência do comportamento pecaminoso. Ressalva ainda que a emoção é usualmente um meio importante de controle religioso e afirma que contingências aversivas produzem o sentimento de culpa:

“Conseqüências aversivas são responsáveis por vários tipos de problemas. (...) Como punição, seus efeitos colaterais podem ser mais severos. (...) é possível suprimir o comportamento de uma maneira diferente, através de condicionamento respondente. A situação em que o comportamento ocorre, ou algum aspecto do próprio comportamento, torna-se aversiva e em conseqüência pode reforçar negativamente formas alternativas de comportamento. (...) Os estados corporais resultantes da ameaça de punição são nomeados de acordo com sua fonte. Quando a punição advém de um igual fala-se em vergonha; quando advém do governo, em culpa; e quando provém de uma instituição religiosa, fala-se em senso de pecado. (...) Contingências aversivas meramente acidentais geram inexplicáveis sentimentos de vergonha, culpa ou pecado; e, então, as pessoas tendem a procurar um terapeuta em busca de ajuda para fugir delas”. (Skinner, 1995, págs. 107-108)

Skinner (2003) ainda discute o efeito do condicionamento respondente sobre o sentimento de culpa e nos lembra que as fortes predisposições emocionais vividas sob um comportamento severamente punido oferecem o principal ingrediente da culpa, da vergonha ou do sentimento de pecado. “Uma condição de culpa ou vergonha não é gerada apenas por comportamento previamente punido, mas por qualquer ocasião externa consistente com esse comportamento. O indivíduo pode sentir-se culpado em

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uma situação na qual foi punido. Podemos controlá-lo pela introdução de estímulos que causem esse efeito”. (Skinner, 2003, págs. 204-205)

Isto posto, observa-se que a religião cristã se configura como uma poderosa agência controladora do comportamento humano, poder que lhe é conferido pelo próprio grupo social, permeando por meio de seus dogmas, leis e regras a formação de hábitos e costumes validados pelo grupo social. A punição demonstra ser um instrumento que garante resultados inicialmente favoráveis para quem a aplica, portanto reforçadores em curto prazo. Seu uso geralmente leva à diminuição ou interrupção do comportamento inadequado ou indesejado, apesar das conseqüências aversivas em longo prazo decorrentes de sua prática, como a raiva, o sofrimento e a dor. Porém dificilmente estabelecerá um aprendizado eficaz, uma vez que o comportamento inadequado persiste porque também é reforçado (Sidman, 2001). Assim sendo, é compreensível o seu uso como um instrumento regulador das relações humanas, especialmente na relação pais e filhos.

Skinner (2003) argumenta que um primeiro efeito da punição seria a supressão imediata do comportamento inadequado. Um segundo efeito seria a obtenção da resposta desejada, o que é geralmente obtido com êxito; entretanto, esse comportamento não se mantém, ou perde seu efeito dentro de pouco tempo, e observa-se que o agente punidor novamente fará uso da punição para obter o mesmo efeito anterior. Ainda chama a atenção especialmente para o que denomina de “o mais importante efeito da punição”, a saber, “o estabelecimento de condições aversivas que são evitadas por qualquer comportamento ‘de fazer alguma outra coisa’” (pág. 206). Assim, podemos dizer que qualquer comportamento que reduza a estimulação aversiva condicionada será reforçado.

Apesar de o uso da punição ser amplamente questionado, os modelos parentais, estruturados por meio dos princípios religiosos, acabam por difundir seu uso como prerrogativa educativa. As agências controladoras geralmente atuam em conjunto, possibilitando assim uma ampliação do controle exercido sobre os indivíduos; é possível, então, pensarmos em uma união entre religião e educação com propósitos óbvios (Skinner, 2003). Assim sendo, esses modelos servirão de base para a formação de seres humanos que, por sua vez, se engajarão em novos relacionamentos e, sucessivamente, transmitirão esses modelos aprendidos a seus descendentes, que muito provavelmente os praticarão em seus relacionamentos futuros. Nesse contexto é plausível se pensar sobre possíveis implicações que o uso da punição, justificada pela religião cristã e utilizada pelos modelos parentais, poderá ter sobre os relacionamentos afetivos, especialmente na relação entre parceiros amorosos e o comportamento verbal inadequado e aversivo entre eles, uma vez que entendemos o comportamento verbal como aspecto fundamental das relações humanas.

Vimos que a agência religião, cuja representante eleita neste estudo é a Igreja Católica Apostólica Romana, cria, legitima e divulga as práticas religiosas através de seus dogmas, leis e regras, especificando contingências e configurando-se como uma agência controladora poderosa. Os membros do grupo denominado católico seguem estas leis, perpetuando as práticas religiosas e contribuindo para a sobrevivência da Igreja. Por sua vez, tais práticas visam a garantir a sobrevivência do grupo e a perpetuação de sua cultura e suas tradições. Neste sentido, o comportamento de tais povos se estabelece pelo controle por contingências culturais ou, mais especificamente, pelo controle do comportamento por regras.

Mencionar comportamento governado por regras é mencionar, ainda que muito brevemente, algo sobre regras. Segundo Matos (2001), regras são estímulos discriminativos de um tipo especial: elas envolvem o comportamento verbal de uma pessoa, a pessoa que emite a regra. Nesse sentido, o estudo do controle por regras deveria envolver uma análise do contexto social do falante (que emite a regra) e do ouvinte (que seguirá ou não tal regra). É justamente a função do ouvinte, como responsável pelo reforço para o falante, que define e coloca o estudo de regras dentro do campo do comportamento verbal. Porém, regras descrevem contingências e, nesse sentido, seu controle sobre o comportamento se dá por contingências. A diferença é que, no caso das regras, o controle ocorre exclusivamente por contingências sociais e os

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participantes dessa relação de controle devem possuir repertórios culturais lingüísticos comuns, isto é, compartilhados, o que dispensa o requisito da modelagem. Skinner (1985) ressalta que regras podem vir em forma imperativa (Faça assim!) ou em forma de descrição (A forma correta de fazer é assim!), e esse formato é irrelevante, pois o que define a regra é a função. Uma regra é uma regra porque é utilizada como tal por uma comunidade verbal, preenchendo funções.

O comportamento verbal não pode ser compreendido como um conjunto de comportamentos com função comunicativa, representativa ou expressiva; a função do comportamento verbal é adaptativa. Ele é modelado e mantido por suas conseqüências no ambiente físico ou social, interno ou externo, público ou privado (Skinner, 1978). O princípio da seleção pelas conseqüências, de acordo com o qual sobrevivem os comportamentos ou as práticas que tornam o indivíduo ou o grupo mais adaptado, deve ser aplicado à compreensão do comportamento verbal. Outro aspecto importante sobre o comportamento verbal é que não existe a necessidade de elementos topográficos na sua definição.

Comportamento verbal é o “comportamento reforçado por intermédio de outras pessoas treinadas especificamente para fazê-lo” (Skinner, 1978). Destaca que é caracteristicamente dinâmico e independe de seu tamanho ou complexidade, apontando que, no comportamento do ouvinte, os estímulos verbais evocam respostas apropriadas a algumas das variáveis que afetaram o falante. Além disso, o comportamento verbal é reforçado por meio de outra pessoa, mas não requer a participação da mesma para a sua execução; aliás, enfatiza que o comportamento verbal não é diferente do comportamento em geral senão por sua característica de ser reforçado pelo intermédio de outras pessoas. Entre os vários conceitos que este autor estabelece, está a noção de que “o comportamento do falante e do ouvinte, juntos, compõem aquilo que podemos chamar de episódio verbal total.” (pág. 17). No episódio verbal, não há nada além do comportamento combinado de dois ou mais indivíduos. O falante pode ser estudado pressupondo-se um ouvinte, e o ouvinte pressupondo-se um falante. As descrições separadas que daí resultam, esgotam o episódio do qual ambos participam.

Dentre os vários operantes verbais presentes no episódio verbal, destacamos o tato e o mando e seu papel no comportamento verbal entre parceiros amorosos. Um tato pode ser definido como um operante verbal no qual uma resposta de uma dada forma é evocada (ou pelo menos fortalecida) por um objeto ou evento particular, ou por uma propriedade de um objeto ou evento. A propriedade característica do tato é, portanto, o controle singular que algum aspecto do ambiente exerce sobre a forma da resposta. Nesse sentido, o tato é o operante verbal que tem uma relação de correspondência (referência) com o mundo externo e, por esta razão, “emerge como o mais importante dos operantes verbais” (Skinner, 1978). O tato especifica uma relação de controle, na qual determinada resposta tem maior probabilidade de ocorrer na presença de determinados estímulos.

O mando é um operante verbal cuja resposta é caracteristicamente reforçada de uma forma, tendo maior probabilidade de ocorrer novamente em função da privação associada a esse reforço, a resposta é controlada por uma operação estabelecedora. No comportamento verbal humano, mandar geralmente é uma ordem de classe superior, no sentido de que um tato recém-adquirido pode ser incorporado em um mando novo. Catania (1999) afirma que uma das primeiras práticas verbais sensíveis a conseqüências ontogenéticas pode ter sido a de dar ordens: o falante diz ao ouvinte o que ele deve fazer. Uma regra enunciada por um falante nada mais é que um operante verbal do tipo descrito por Skinner (1978) como um mando, freqüentemente um mando disfarçado, mas um mando (Matos, 2001).

Na relação amorosa, duas pessoas interagem no sentido de terem uma convivência comum, pautada por alegria, bem-estar, reforçadores, compreensão, entre outros. No entanto, é importante destacar que as pessoas iniciam seu relacionamento trazendo como bagagem um repertório de comportamentos modelados em suas famílias de origem, além de crenças e expectativas estabelecidas em suas vivências, e dessa maneira influenciam uma à outra. O comportamento verbal fornece muitos exemplos nos quais se diz que uma pessoa tem um efeito sobre outra (Skinner, 2003). Diz-se que as

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palavras “simbolizam” ou “expressam” idéias ou significados, os quais são então “comunicados” ao ouvinte. Quando uma revelação envolve comportamentos verbais severamente punidos, a ponto de a sua freqüência tornar-se reduzida ou temporariamente suprimida, os próprios comportamentos verbais tornam-se estímulos aversivos condicionados (Kerbauy, 2002). Esta autora argumenta que provavelmente o condicionamento é do tipo respondente: “o falar sobre o assunto foi seguido de estímulos aversivos iguais ou semelhantes ao momento da aprendizagem relatada, na história de vida. Ouvindo seu próprio discurso, a pessoa é punida porque houve pareamento aversivo anterior.” O próprio contexto da relação amorosa parece favorecer o surgimento de comportamentos verbais que podem tornar a relação aversiva: crítica como resposta a um comportamento emitido pelo parceiro, reclamação sobre determinada conduta do outro, etc.; assim, observamos que o episódio verbal é um processo extremamente complexo. Skinner (2003, p. 338) alerta para as sutilezas daquilo que chama de interação instável, na qual muitos sistemas sociais intercruzados podem ser estáveis, porém outros podem apresentar mudanças progressivas, ao se referir a “um processo ‘autocatalítico’ simples, que se origina de um intercâmbio repetido entre os membros do grupo. (...) Observa-se uma instabilidade quando dois indivíduos se empenham em uma conversa casual que leva a uma discussão com impropérios. O efeito agressivo de um comentário provavelmente é subestimado pelo homem que o faz, e efeitos repetidos geram agressão posterior”.

A punição pode surgir como conseqüência desses comportamentos, em represália a tais comportamentos considerados aversivos. Interessante observar que os comportamentos de punição aplicados ao parceiro amoroso muitas vezes parecem se assemelhar àqueles utilizados pelos pais quando os filhos se comportam de forma a desagradá-los ou contrariar seus propósitos e/ou interesses. Assim, a agência religiosa parece estabelecer controle sobre seus seguidores por meio da promessa de um futuro feliz ou infeliz, contingente a seus comportamentos, que se repete no âmbito da relação amorosa: o parceiro que se comportar de maneira “correta”, de acordo com os parâmetros que o outro parceiro julga corretos e estabelece, será reforçado. Se, entretanto, se comportar de maneira considerada inadequada pelo outro, poderá ser passível de sofrer algum tipo de punição.

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