A PSICANÁLISE NOS LIMITES DA LITERATURA UM ESTUDO...
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UNIVERSIDADE DE BRASILIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
A PSICANLISE NOS LIMITES DA LITERATURA
UM ESTUDO SOBRE A OBRA DE RAYMOND ROUSSEL
ANA JANAINA ALVES DE SOUZA
Braslia, DF Brasil, 2007
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UNIVERSIDADE DE BRASILIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
A PSICANLISE NOS LIMITES DA LITERATURA
UM ESTUDO SOBRE A OBRA DE RAYMOND ROUSSEL
ANA JANAINA ALVES DE SOUZA
Dissertao apresentada ao Instituto
de Psicologia da Universidade de
Braslia para obteno do ttulo de
Mestre em Psicologia Clnica e
Cultura.
Orientadora: Tania Rivera, Doutora
Braslia, DF Brasil, 2007
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Souza, Ana Janaina Alves de.
A psicanlise nos limites da literatura: Um estudo sobre
a obra de Raymond Roussel / Ana Janaina Alves de Souza.
113 f.
Dissertao (mestrado) - Universidade de Braslia.
Departamento de Psicologia Clnica. Braslia, 2007.
rea de concentrao: Psicologia
Orientador: Tania Rivera.
1. Psicologia. 2. Psicanlise. 3. Literatura
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UNIVERSIDADE DE BRASILIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Esta dissertao de mestrado foi aprovada pela seguinte comisso examinadora:
________________________________________________
Presidente: Tania Rivera, Doutora
________________________________________________
Membro: Daniela Scheinkman Chatelard, Doutora
________________________________________________
Membro: Edson Luiz Andr de Sousa, Doutor
Braslia, DF Brasil, 2007
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Agradecimentos
Agradeo s minhas irms, Luisa e Letcia, pelo entusiasmo sempre renovado
e cheio de frescor por meus projetos. Agradeo ao Tio Marcus, pelo virtuoso dilogo
mantido desde sempre; e, com muito carinho, Susana, pela torcida incansvel, e,
mais que isso, por compartilhar este amor inescapvel literatura.
professora Tania Rivera, por ter aceitado orientar-me e por ter-me
apresentado obra de Raymond Roussel um generoso presente pelo qual sou
imensamente grata. Agradeo as preciosas sugestes e, especialmente, a sugesto
certeira do ttulo deste trabalho. Gostaria de agradecer tambm aos colegas do
grupo de orientao pela disposio em acompanhar meu trabalho e,
especialmente, a Marcela Almeida e Claudia Feres por terem sustentado duas raras
qualidades no difcil momento que escrever uma dissertao ou uma tese: alegria
e delicadeza.
Agradeo aos supervisores do atendimento realizado no CAEP: professor
Luis Monnerat Celes e, novamente, professora Tania Rivera este trabalho, mesmo
que terico, no poderia prescindir da aproximao com a clnica psicanaltica.
Reservo um agradecimento carinhoso ao professor Jean-Jacques Chatelard,
que me ofereceu luz no labirinto dos textos rousselianos e se despedia, ao fim de
todas as nossas aulas, com um vigoroso Courage!. Grande parte das proposies
aqui apresentadas sobre a obra de Raymond Roussel surgiu de nossas discusses
e toda as sugestes foram inestimveis para este trabalho, especialmente as lies
sobre o verso pseudo-alexandrino de La Doublure.
Gostaria de agradecer Maria Luiza Gastal pela companhia neste percurso
que, de outra forma, poderia ter sido muito mais solitrio.
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Agradeo aos amigos que se fizeram presentes neste caminho: Luiz Coimbra,
Pedro Gontijo, Cristina Queiroz, Rodolfo Alencar, Bruno Arajo, Matias Monteiro.
Agradeo a reviso rigorosa feita por Piero Eyben e, com muito carinho, aos colegas
do Ateli de Literatura nossas discusses apuraram minha compreenso da
literatura, das questes da linguagem e tambm da prpria psicanlise.
Agradeo ao CNPq pelo apoio financeiro que tornou este trabalho possvel.
E agradeo especialmente ao Roger, por motivos vrios e incontveis: a f
inabalvel neste projeto de mestrado e nesta dissertao, a generosidade, o amor.
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vii
A Jos Rodrigues de Souza
In memoriam
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RESUMO
SOUZA, A. J. A. A psicanlise nos limites da literatura: um estudo sobre a obra
de Raymond Roussel. 2007. 114 f. Dissertao (Mestrado em Psicologia Clnica e
Cultura) Instituto de Psicologia, Universidade de Braslia, Braslia, 2007. Esta
dissertao analisa a obra do escritor francs Raymond Roussel, tendo como ponto
de partida a proposio de Michel Foucault de que a literatura seria um locus de
transgresso, onde os limites da linguagem so postos em xeque. No livro pstumo
Comment jai crit certains de mes livres (1935), Raymond Roussel apresentou seu
procedimento de escritura, que deu origem aos romances Impressions dAfrique
(1910) e Locus Solus (1914). O procedimento envolve o uso da sinonmia e da
homofonia, a decomposio de termos e a suspenso do significado, tendo como
resultado uma literatura que busca especificamente tornar as palavras desenhos de
rbus. O mtodo de escrita de Roussel nos d ensejo a pensar as relaes
traadas pela psicanlise entre palavra e coisa, de um lado, e linguagem,
inconsciente e memria, de outro. Sua frase, em mim, a imaginao tudo, se
contrape chamada psicobiografia, possibilitando uma reflexo sobre o encontro
entre arte e psicanlise. Ao final deste trabalho, percebe-se que a obra de Raymond
Roussel permanece enigmtica tal como o umbigo do sonho resiste interpretao.
Seu procedimento de criao insiste na quebra e destruio do sentido, na
impossibilidade de ligao. Confrontada com o tal texto, a psicanlise no procura
um sentido fixo, que desvende a obra, mas a produo de novas palavras que
venham estranhar o texto e a prpria psicanlise.
Palavras-chave: Literatura, Psicanlise, Raymond Roussel, Linguagem
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ix
ABSTRACT
SOUZA, A. J. A. The psychoanalysis on the limits of literature: a study of
Raymond Roussels work. 2007. 114 f. Dissertation (Masters degree in Clinic
Psychology and Culture) Institute of Psychology, University of Brasilia, Brasilia,
2007. This dissertation analyses the work of the French writer Raymond Roussel,
starting from the proposal of Michel Foucault that literature is a locus of
transgression, where the limits of language are questioned. In Comment jai crit
certains de mes livres (1935), published after his death, Raymond Roussel presented
his writing method, which has originated his others books Impressions dAfrique
(1910) and Locus Solus (1914). This procedure involves the use of synonymy and
homophony, the decomposition of terms and the suspension of meaning, creating a
literature that seeks specifically to transform words in pictures of rbus. Roussels
writing method invites us to think about the relations brought by psychoanalysis, first,
between word and things, and second, between language, memory and the
unconscious. His statement in me imagination is all opposes to the so called
psychobiography, which enables a reflection about the encounter of art and
psychoanalysis. At the end of this study, we realized that the work of Raymond
Roussel remains as enigmatic as the navel of dream resists to interpretation. His
creation procedure insists in the breaking and destruction of meaning, in the
impossibility of connection. Faced with such text, psychoanalysis does not seek a
single meaning, which unravels the whole work, but the production of new words that
questions not only the text but the psychoanalysis itself.
Key words: Literature, Psychoanalysis, Raymond Roussel, Language
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x
NDICE
INTRODUO .................................................................................................... 2
CAPTULO 1: A Gramtica Invisvel de Raymond Roussel ................................. 9
1.1. Foucault: loucura, literatura, linguagem .......................................................... 9
1.2. A gramtica invisvel de Raymond Roussel ................................................... 15
CAPTULO 2: Palavra-imagem-coisa ................................................................ 35
2.1. Pillard/Billard e o Nachtrglichkeit ................................................................ 43
2.2. O endereo do sapateiro e a palavra tomada como coisa .............................. 50
CAPTULO 3: Fulguraes do Eu ..................................................................... 58
3.1. E como ler Raymond Roussel?... ................................................................. 71
3.2. Fulguraes do Eu ...................................................................................... 82
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 90
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................... 96
NDICE DE IMAGENS ...................................................................................... 103
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No descomeo era o verbo. S depois que veio o delrio do verbo. O delrio do verbo estava no comeo, l onde a criana diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criana no sabe que o verbo escutar no funciona para cor, mas para o som. Ento se a criana muda a funo de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que voz de poeta, que a voz de fazer nascimentos O verbo tem que pegar delrio.
Manoel de Barros, O livro das ignoras O moderno desdenha imaginar.
Stphane Mallarm
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2
INTRODUO
Depois do filsofo e do religioso, A literatura [que] nos fornece o terceiro
tipo de buscador da verdade: o amante (Garcia-Roza, 1998, p. 18). O filsofo busca
a verdade por estar perplexo diante do mundo e estabelece critrios, como a no-
contradio, para diferenciar aquilo que verdadeiro do que enganoso.
Diferentemente do filsofo, o religioso busca a verdade em seu prprio interior,
porque acredita que o caminho para Deus tambm o caminho da verdade.
Mas quem este amante? o ciumento sob a presso das mentiras do
amado (2003, p. 14), nos diz Deleuze em seu estudo sobre Proust. O amante nos
mostra que a verdade crivada de mentiras e que a mentira se ilumina interiormente
pela verdade. O protagonista de la Recherche du Temps Perdu desconfia de
Albertine, sua amante, acha que ela o engana, procura artifcios que a faam
revelar-se. Mas a verdade, aqui, no a adequao entre discurso e realidade, mas
o efeito de encontros que se do ao acaso (Garcia-Roza, 1998, p. 18).
Tambm quem se arrisca pela literatura se envolve numa busca amorosa
em que procura menos verificar a relao de conformidade entre a linguagem e o
mundo caso seja possvel separar estes dois do que ouvir os espaos vazios que
se tecem entre as palavras. Trata-se de denunciar imposturas da linguagem tal
como o amante ciumento quando questiona a amada em suas mentiras, em seus
jogos duplos, naquilo onde sua palavra no se sustenta a decifrao do discurso
de Albertine gesto de amor e de desconfiana, decifrao ertica e tormento da
linguagem.
Este amante, vigilante das trapaas da linguagem, proceder, no campo
psicanaltico, a uma busca semelhante: na anlise, a palavra pronunciada
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contraposta palavra no dita, a palavra denegada simtrica palavra afirmativa,
at chegarmos palavra recalcada que salta, inadvertidamente, dos lbios de um
analisando aflito. Que mecanismos de engano, encontro, verdade e equvoco
movimentam o interior da linguagem?
O tema desta dissertao a obra do francs Raymond Roussel, escritor
escandalosamente fracassado em seu tempo, como ele mesmo qualifica no livro
pstumo Comment jai crit certains de mes livres (1935), o que no o impediu,
entretanto, de produzir vrios romances, aventurar-se no teatro e na poesia, at sua
morte em 1933, numa insistncia que muitos consideram francamente patolgica (o
escritor foi tratado por Pierre Janet durante vrios anos).
Mesmo que tenha fascinado os surrealistas e ningum menos que Marcel
Duchamp comente a importncia, para sua prpria trajetria, de ter assistido
adaptao de Impressions dAfrique para o teatro (Duchamp, 1994), a obra de
Roussel teria que esperar at os anos 60 para voltar baila das discusses
acadmico-literrias, a partir dos estudos de Michel Foucault. Trata-se de um
momento na trajetria de Foucault em que o inquietavam os mecanismos de
produo dos discursos, a relao entre dizeres, saberes e poderes, no que ser
chamado, posteriormente, de Arqueologia do Saber. Entre as vrias proposies
feitas ento, uma surge a ns com maior brilho, a de que a literatura um locus de
transgresso onde os limites mesmos da linguagem so postos em xeque,
estabelecendo uma relao entre literatura e loucura, de um lado, e literatura e
morte, de outro. Na literatura, algo que estava oculto, opaco no uso cotidiano da
linguagem, se revela.
Tambm a psicanlise, em seu estudo do inconsciente, tem se havido com
os limites da linguagem, com as incertezas da nomeao, com o hiato entre palavra
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e coisa. Sobre isso, uma afirmao se fez constante na obra freudiana: no
inconsciente, aquilo que prprio da coisa se torna prprio da palavra. Tal
proposio surge no estudo Os Chistes e sua Relao com o Inconsciente (Freud,
1905/1969) e em A Psicopatologia e a Vida Cotidiana (Freud, 1901/1976); invertida
quando Freud descreve a fala do esquizofrnico a estranheza do sintoma da
esquizofrenia se deve ao fato de haver uma predominncia do que tem a ver com
as palavras sobre o que tem a ver com as coisas (1915/1996, p. 206). J a metfora
do bloco mgico vai aproximar linguagem e inconsciente, aliando a estes a memria,
ao apresentar o aparelho psquico como camadas especializadas, onde na terceira,
uma prancha de cera equivalente ao inconsciente, traos mnmicos so marcados,
criando uma escrita que pode se revelar sob certa luz (Freud, 1925/1976). preciso
ter em vista, entretanto, que as colocaes de Freud no buscam estabelecer uma
teoria ou filosofia da linguagem subjacente teoria psicanaltica. Seu interesse pela
linguagem atravessado de ponta a ponta e circunscrito por sua preocupao
quanto ao uso da palavra na clnica. Lembremos que, no por acaso, a psicanlise
conhecida, desde Anna O., como talking cure (Breuer & Freud, 1893-1895/1974).
O procedimento de escritura de Raymond Roussel, apresentado no livro
pstumo, busca revelar algo do funcionamento da linguagem, ao escolher a
semelhana fontica entre palavras, em detrimento de seu significado, como origem
de seus livros. A literatura rousseliana muito especfica: as imagens de
Impressions dAfrique e Locus Solus, resultado das associaes do mtodo de
escrita, so quase inimaginveis; e La Doublure, seu romance de estria, um
desgastante atentado contra o verso alexandrino, numa prosa potica s avessas.
Desconcerto, estranheza e angstia abatem o leitor enquanto o estilo de Roussel se
mantm lmpido, erudito e distanciado.
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Dividimos este estudo em trs captulos. O primeiro uma apresentao das
proposies de Michel Foucault sobre a linguagem, a literatura e a loucura,
enquanto um fenmeno lingstico, assim como uma apresentao de suas
proposies sobre a obra de Roussel. Tambm neste captulo, analisamos o
procedimento de escritura apresentado em Comment jai crit certains de mes livres
(Roussel, 1935).
No segundo captulo, fazemos um estudo de La Doublure, obra da juventude
de Roussel, em que a linguagem utilizada de maneira a criar um texto intrigante:
trata-se de um poema narrativo ou de uma prosa em versos? Qual a diferena entre
estes? Analisamos ainda a proposio freudiana de que, no inconsciente, as
palavras so tratadas como coisa, alm de identificar, na teoria psicanaltica, uma
aproximao entre linguagem, inconsciente e memria.
No terceiro captulo, faz-se uma anlise dos romances Impressions dAfrique
(Roussel, 1963) e Locus Solus (Roussel, 1963/1979), buscando caracterizar o efeito
destas narrativas sobre o leitor. Utilizamos o texto de Freud, O Estranho
(1919/1996), como baliza para um possvel sentimento de estranhamento
despertado por estas obras. Buscamos, neste captulo, analisar as tambm
proposies de Freud no texto Escritores Criativos e Devaneios (1908/1976),
contrapondo-as afirmao de Raymond Roussel: chez moi limagination est tout 1
(Roussel, 1935, p. 27).
Construmos nosso trabalho a partir das colocaes de Michel Foucault
sobre loucura e literatura, seguindo seu texto em direo obra de Raymond
Roussel at encontrarmos a psicanlise, com suas proposies sobre palavra, coisa,
inconsciente, memria e linguagem. Antes de realizar uma aproximao entre as
1 em mim, a imaginao tudo (Esta e as tradues seguintes so nossas.)
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proposies freudianas e a obra do escritor francs, preciso ter em vista que as
relaes entre arte e psicanlise tm sido bastante profcuas, desde o marco de
1900, A Interpretao dos Sonhos, mas igualmente tensas. Freud afirma, em
Delrios e Sonhos na Gradiva de Jensen (1907/1969) que [os escritores criativos]
esto bem adiante de ns, gente comum, no conhecimento da mente, j que se
nutrem de fontes que ainda no tornamos acessveis cincia (p. 18). O teatro de
Sfocles se apresenta como fiador da universalidade do complexo de dipo (Freud,
1900/1999), o conto O Homem da Areia usado para circunscrever o conceito do
Unheimliche (Freud, 1919/1996) e o processo de criao ponto de partida para o
desenvolvimento da teoria dos trs tempos da fantasia (Freud, 1908/1976). A
psicanlise tambm ressoa no campo das artes e um dos mais expressivos
movimentos artsticos do sculo XX, o Surrealismo, via em Freud um padrinho,
mesmo que relutante, e no inconsciente uma poderosa fora no processo de criao
(Rivera, 2002).
Entretanto, se a arte e os artistas so vistos como aliados muito valiosos
da psicanlise (Freud, 1907/1969, p. 18), no raro, a obra de arte aproximada de
uma formao sintomtica, um substituto infantil, mera elaborao de uma fantasia
pessoal de seu autor. Ou, ainda, vista como no mais que uma ilustrao de
conceitos psicanalticos, uma confirmao de suas hipteses que avana tambm
sobre a biografia de um artista, fazendo obra e autor deitarem-se num div
imaginrio e criando o que se convencionou chamar de psicobiografia.
Or, que trouvons-nous dans la littrature analytique concernant le travail de
lartiste ? Les motivations de la cration sont mises sur le compte dun
mcanisme de dfense ou dune formation de compromis, dune
complaisance narcissique ou dune issue hors du narcissisme, dune activit
ftichiste ou dune sublimation russie, dune conqute de lautonomie
(re)productrice contre le pre ou dune soumission au pre, dun refuge dans
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7
le sein maternel ou dune revanche contre la mre, etc.2 (Bellemin-Nol,
1978, p. 52)
A colocao de Bellemin-Nol soa exagerada e, obviamente, no pode ser
generalizada, mas pode nos servir de alerta. No h ou no deveria haver por
parte do psicanalista, o desejo de explicar ou desvendar um texto atravs de uma
interpretao. Diz Lacan: Quanto psicanlise, estar pendurada no dipo em nada
a habilita a se orientar no texto de Sfocles (Lacan, 1971/2003, p. 16). Um dilogo
entre psicanlise e literatura deve resistir s tentaes de uma psicobiografia ou de
uma aplicao de conceitos psicanalticos, e manter a possibilidade de que ambas
se espantem de vez em quando, se afastem, como conseqncia do prprio
movimento de atrao que as aproxima resposta ao campo imantado entre uma e
outra. reas obscuras necessariamente se mantm e a psicanlise deve resguardar
os pontos nebulosos ou ambguos de um texto, em vez de atravess-los pela luz de
algum suposto saber.
Lacan afirma que psicanlise e literatura fazem fronteira, que se esbarram e
partilham um terreno comum que se tenta delimitar (1971/2003). Buscamos, com
este trabalho, apontar que a leitura psicanaltica de uma obra de arte possvel e se
sustenta pelo modo como a psicanlise delineia a natureza do inconsciente. No
inconsciente, restos de palavras, restos de coisas traos que, por conta de sua
natureza de sobras, exigem leitura. A visada psicanaltica sobre a literatura deve ter
em vista que uma interpretao, ao decifrar, no esgota, mas cifra novamente. A
escrita de Roussel vem nos lembrar os limites da interpretao, os limites da
linguagem e da literatura portanto, os limites da prpria psicanlise. O enigma,
ento, reverbera, com Roussel, sobre a psicanlise, no lado da psicanlise, uma vez
2 Ora, o que encontramos na literatura analtica sobre o trabalho do artista? As motivaes da criao so
reputadas a um mecanismo de defesa ou a uma formao de compromisso, a uma complacncia narcisista ou a uma origem fora do narcisismo, a uma atividade fetichista ou a uma sublimao bem sucedida, a uma conquista
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8
que, tratando-se de literatura, Moby Dick lio mxima: no fim das contas, a baleia
vai para onde quiser ir (Eco, 2003).
da autonomia (re)produtiva contra o pai ou de uma submisso ao pai, de um refgio no seio maternal ou de uma vingana contra a me, etc.
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9
CAPTULO 1
A GRAMTICA INVISVEL DE RAYMOND ROUSSEL
[Comment jai crit certains de mes livres]
1.1
Foucault: loucura, literatura, linguagem
Discorrendo sobre psicanlise e literatura, Ricardo Piglia (2004) conta que
James Joyce, quando morou na Sua, consultou Carl Jung sobre sua filha,
diagnosticada anteriormente como psictica. O escritor irlands mostra ao ex-pupilo
de Freud os escritos da filha, que ele incentivava e acreditava muito semelhantes
aos seus prprios, fragmentados e poticos. A resposta de Jung a Joyce a
seguinte: S que, onde o senhor nada, ela se afoga. Que semelhana seria esta
vista por Joyce entre seus livros e a escrita de sua filha? Onde este discurso da
loucura mais pesado que a literatura, supe-se afunda, enquanto Joyce se
mantm tona, bom nadador?
A proximidade entre arte e loucura no passou despercebida a Michel
Foucault, que apontou ser justamente na voz de alguns escritores nas quais ele
teria reencontrado a potncia nietzschiana que a experincia da loucura se
manteve viva contra o silenciamento imposto pela psiquiatria, saber-poder que, ao
mesmo tempo que identificou os loucos, tambm construiu a loucura tal como a
conhecemos hoje. Atravs da arte, a loucura pde manter-se viva no imaginrio
ocidental, contra todos os dispositivos de excluso a que foi submetida (o
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asilamento, a marginalizao social, a responsabilizao pelo Estado e o
silenciamento, seja atravs do encarceramento ou da farmacologia):
Nesse contexto, em que a experincia trgica da loucura passou a ser
inserida apenas no territrio obscuro da desrazo, a loucura continuou a ser
plasmada em prosa, verso e cores nas tradies literria e esttica, amputada
e desvalorizada que foi do seu poder de dizer no registro da razo. (Birman,
2001, p. 35)
A experincia crtica da loucura, submetida ao poder de regulao do
discurso da razo, substitui a experincia trgica da loucura experincia porque
no esttica, despossuda de uma essncia; trgica porque impossvel de sntese
ou pacificao.
Seguindo a intuio foucaultiana, nem toda arte e, por conseqncia, nem
toda literatura se presta aproximao que buscamos tecer. Localizamos este
estudo na passagem da episteme clssica para a episteme moderna, quando vrios
escritores comeam a se confrontar com os aspectos tradicionalmente
representacionais da literatura clssica para voltar-se a experimentaes diversas
na linguagem.
Como ato deste novo homem da modernidade, a literatura passa a ser um
espao de intransitividade radical, pura manifestao da linguagem, que no
pretende imitar o mundo, seno afirmar no que difere dos outros discursos
a sua existncia, num eterno retorno a si prpria, ou ao seu prprio
engendramento como ato de escrita. (Kon, 2001, p. 99)
Falamos, ento, de uma certa literatura, difcil de ser delineada e que
parece ter-se dado conta, de forma traumtica, da matria de que feita: a
linguagem. Uma literatura que, mesmo delimitada, se torna infinita por suas dobras,
capaz de recriar-se pela constante infrao de suas prprias normas.
caracterstico da literatura ter se dado sempre (...) como tarefa, precisamente, o
assassinato da literatura (Foucault, 1964/2000, p. 143). Trata-se da eleio da
transgresso de seus limites como trao primordial de uma escritura, onde os
gestos transgressivos variam em sua vastido: o espelhamento, a duplicao, o
-
11
desdobramento, o desmantelamento da linguagem, sua destruio. Como aponta
Alan Stoekl:
It has become a commonplace of criticism to argue that modernist literature
is about language itself. Avant-garde textual practice in some way
fundamentally disrupts quotidian usefulness and precision of language;
behind the faade of utility we find another language, which is the real
realm of modernity. Language becomes a universe unto itself, an absolute
realm that refers to the senselessness of its own origins. 3 (1985, p. 11, grifo
nosso)
A literatura se torna, ento, um espao privilegiado onde a linguagem
sobredetermina o sujeito, como um espao impessoal que atravessa e ultrapassa
uma srie de oposies, entre interioridade e exterioridade, entre eu e mundo.
() a linguagem nem remete a um sujeito nem a um objeto: elide sujeito e
objeto, substituindo o homem, criado pela filosofia, pelas cincias empricas
e pelas cincias humanas modernas, por um espao vazio fundamental onde
ela se propaga, se expande, se repetindo, se reduplicando indefinidamente.
(Roberto Machado, 2000, pg. 113)
O leitor tambm convidado a eleger seus gestos de transgresso.
impossvel no convocarmos, aqui, este contra-heri, como o chama Roland
Barthes:
Fico de um individuo (algum Sr. Teste s avessas) que abolisse nele as
barreiras, as classes, as excluses, no por sincretismo, mas por simples
remoo desse velho espectro: a contradio lgica; que misturasse todas as
linguagens, ainda que fossem consideradas incompatveis; que suportasse,
mudo, todas as acusaes de ilogismo, de infidelidade; que permanecesse
impassvel diante da ironia socrtica (levar o outro ao supremo oprbrio:
contradizer-se) e o terror legal (quantas provas penais baseadas numa
psicologia da unidade!). Este homem seria a abjeo de nossa sociedade: os
tribunais, a escola, o asilo, a conversao, convert-lo-iam num estrangeiro:
quem suporta sem nenhuma vergonha a contradio? Ora, este contra-heri
existe: o leitor de texto, no momento em que se entrega a seu prazer.
(2002, p. 7-8, grifo do autor)
Para Michel Foucault, a literatura ou a literatura sobre a qual ele se
debruou: le noveau roman, Maurice Blanchot, Georges Bataille, Raymond Roussel,
3 Tornou-se lugar comum da crtica afirmar que a literatura moderna tem como tema a linguagem em si mesma.
A prtica textual vanguardista, de certa maneira, rompe fundamentalmente com a preciso e a utilidade cotidianas da linguagem; atrs da fachada do utilitrio, encontramos uma outra linguagem, que o verdadeiro
-
12
Hlderlin, entre outros retoma a experincia trgica da loucura, na qual a desrazo
joga um papel tico/esttico na produo artstica, alm de trazer o selo de uma
articulao entre morte e obra. Pergunta-se o filsofo: como possvel uma
linguagem que mantenha sobre o poema e sobre a loucura um nico e mesmo
discurso? (Foucault, 1962/2001, pg. 189, grifo do autor).
As artes no apenas defendem um modo especfico de insero da loucura
no imaginrio, de circulao de seus contedos, mas a loucura mesma se aproxima
da literatura por outra via, enquanto um fenmeno de linguagem, tal como assinala
Roberto Machado (2000, p. 27). Entre a literatura e a loucura enquanto fato
lingstico se encontra uma experincia essencialmente negativa (Macherey, 1999,
p. XIV), que no exalta a plenitude da linguagem, mas que, ao contrrio, atesta
vrias manifestaes de vazio, ausncia e vacncia: em Blanchot, o corao
silencioso, porm pulsante da linguagem; em Hlderlin, a desapario dos deuses e,
mais alm, a desapario de si; em Roussel, a repetio que esvazia e o rigoroso
projeto de desfacelamento e ressurreio das palavras.
preciso lembrar que a loucura nem sempre foi vista como alienao
mental, passvel de internamento. Anterior a esta excluso, a loucura tinha seu lugar
dentro da comunidade e do imaginrio social, como um espao oracular de
enunciao da verdade (Birman, 2001, pg. 37). A concepo moderna de loucura
resultado de um progressivo caminho de desvalorizao de seu discurso como
incapaz de dizer qualquer verdade, contempornea ao nascimento da tradio
psiquitrica e instituio deste campo de saber. Na obra de Foucault, a loucura
no tomada em sua forma psicopatolgica; trata-se, antes, da loucura em sua
forma ontolgica, por assim dizer, enquanto risco do homem racional: o duplo, o
reino da modernidade. A linguagem se torna um universo em si mesma, um reino absoluto que fala da falta de sentido de suas prprias origens.
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13
negativo, a carcaa da noite (Foucault, 1964/2002, p. 211), que espreita nas
fissuras da razo e nunca deixa de ser, mesmo ao mais sadio dos mortais, uma
possibilidade, um perigo, ainda que uma verdade. A pesquisa de Foucault vai incidir
exatamente sobre a arqueologia da oposio razo-desrazo, de como a razo pde
triunfar e condenar a loucura ao silncio, enterrando um momento anterior em que a
linguagem da loucura e a linguagem sem piedade da no-loucura (Foucault,
1961a/2002, p. 152) se encontravam indiferenciadas. Este gesto de diferenciao,
de estabelecimento de limites esses gestos esquecidos, necessariamente
esquecidos logo que concludos, pelos quais uma cultura rejeita alguma coisa que
ser para ela o Exterior (idem, p. 154) lanam a loucura no misterioso campo do
Outro, o Outro da razo.
Entre razo e loucura instala-se um silncio: o possvel dilogo que as unia
foi perdido nos primrdios da histria, numa linguagem que no reconhecia as
diferenas dentro de si mesma, malevel ainda. Para a historia da razo, estes
infinitos discursos, todos vos em seu sem-sentido, em seus delrios indecifrveis,
possuem alto valor, uma vez que no pode haver na nossa cultura razo sem
loucura (idem, p. 157). sob a recusa da loucura que se constri a razo: pelo
atrito com esta diferena que criamos tanto o sentido quanto o no-sentido. Trata-se,
ento, de um gesto de diferenciao com valor organizativo: sobre ele que
repousa a possibilidade de uma Histria, mesmo que, sob a dialtica desta historia
tese, anttese, sntese , repouse a experincia imvel da loucura.
A linguagem, operada pela loucura, torna-se
() o murmrio obstinado de uma linguagem que falaria sozinha sem
sujeito falante e sem interlocutor, comprimida sobre ela prpria, atada
garganta, desmoronando antes de ter atingido qualquer formulao e
retornando sem brilho ao silncio do qual jamais se desfez. (idem, ibidem)
-
14
Na literatura, os vazios da linguagem so conduzidos compreenso
atravs de um movimento sempre incompleto e sempre necessrio que faz vibrar
de sentido estes espaos. Nas produes discursivas da loucura, estes vazios so
opacos e desintegrados, no podem ser trazidos de volta fala para no dizer,
lngua para no comunicar.
Fazemos parte de uma cultura que aproximou afirmaes to estranhas
uma outra quanto: eu escrevo, eu minto e eu deliro; ou eu sou louco e eu
sou uma besta, eu sou um deus, um signo, uma verdade (Foucault,
1964/2002, p. 218). Quaisquer que sejam as intenes proclamadas pelos autores,
h algo no ato na escritura que resiste por si mesmo, que responde apenas s
necessidades de experienciar a linguagem por parte do escritor. A loucura aprofunda
algo apenas vislumbrado na literatura, de tal forma que a palavra se torna, ento,
destituda de valor ou, num outro extremo, uma moeda de valor excessivo, e,
portanto, perigosa.
Lanado em 1963, o livro de Michel Foucault, Raymond Roussel, sobre o
escritor francs tratado por Pierre Janet, se alinha s questes apresentados at
aqui: liames entre literatura e loucura, vazios e limites da linguagem. H, por parte
de Foucault, um desejo de manter parte esta obra que est mais prxima de uma
histria de amor (Macherey, 1999, p. VII). Devemos lembrar que, para Foucault, a
literatura aparentada da morte, encena a morte, joga com ela num labirinto s
vezes, indo ao seu encontro; s vezes, fingindo fugir-lhe. No toa, ento, que
Roussel, com sua obra propositalmente pstuma, em que a morte derrama-se sobre
as pginas como condio mesma de leitura, seja o escritor a quem Foucault
escolhe, com carinho, dedicar um livro inteiro.
-
15
1.2
A gramtica invisvel de Raymond Roussel
Raymond Roussel nasceu em 20 de janeiro de 1877, em Paris, no seio de
uma abastada famlia francesa, do mesmo reduto que os Proust e os Leiris. Sua
me, burguesa rica, orgulhosa de receber artistas em seu salo, estimulava a vida
cultural de seus filhos e inscreveu Roussel, ento com 13 anos, no Conservatrio,
mesmo que o adolescente no fosse especialmente dotado para a msica. apenas
aos dezessete anos que os professores passam a ver nele no mais um aluno
medocre, mas um estudante aplicado e at mesmo promissor. Entretanto, a esta
altura, o futuro escritor j havia tomado uma deciso: a dificuldade em musicar seus
poemas fez com que desistisse da msica e se decidisse definitivamente pela
escrita. 4
As circunstncias da criao de sua primeira obra, La Doublure, so, no
mnimo, bastante inusitadas. Roussel comeou a escrever este livro aos 19 anos e,
convencido previamente da grandiosidade de sua obra, trabalhou sem descanso
para que seu livro estivesse pronto antes de seu vigsimo aniversrio. Durante este
perodo, foi tomado por une sensation de gloire universelle dune intensit
extraordinaire 5 (Roussel, 1935, p. 26). Ao ser lanado, o livro no alcanou o
sucesso esperado e seu autor sofreu uma grave crise nervosa:
Quand la Doublure parut, le 10 juin 1897, son insuccs me causa un choc
dune violence terrible. Jeus limpression dtre prcipit jusqu terre du
haut dun prodigieux sommet de gloire. La secousse alla jusqu provoquer
chez moi une sorte de maladie de peau qui se traduisit par une rougeur de
4 Os dados biogrficos apresentados neste trabalho foram retirados, essencialmente, do livro de Franois
Caradec: Raymond Roussel, Paris: Ed. Fayard, 1997. A no ser em casos especficos, a referncia ser omitida a fim de no tornar o texto cansativo. 5 uma sensao de glria universal de uma intensidade extraordinria
-
16
tout le corps et ma mre me fit examiner par notre mdecin, croyant que
javais la rougeole. De ce choc rsulta surtout une effroyable maladie
nerveuse dont je souffris pendant bien longtemps. 6 (idem, p. 29)
Alguns anos depois, Roussel foi tratado pelo psiquiatra Pierre Janet que, em
seu livro, De lAngoisse lExtase, de 1928, apresentou descries de seu paciente
sob o pseudnimo de Martial, por conta do personagem principal de Locus Solus,
Martial Canterel 7. Causa espanto a Pierre Janet a convico de Roussel sobre o
altssimo valor literrio de suas obras, uma vez que seus livros no so lidos, no
alcanam sucesso e so considerados mesmo insignificantes (Janet, 1928, apud
Roussel, 1935). Anima Martial o sentimento da glria, da predestinao, do prodgio,
a certeza que raios luminosos saem de sua pena e podem iluminar o mundo:
Jarriverai des sommets immenses et je suis n pour une gloire fulgurante.
Cela peut tre long mais jaurai une gloire plus grande que celle de Victor
Hugo ou de Napolon. () Il y a en moi une gloire immense en puissance
comme dans un obus formidable qui na pas encore clat Cette gloire
portera sur tous les ouvrages sans exception, elle rejaillira sur tous les actes
de ma vie (). Aucun auteur na t et ne peut tre suprieur moi ()
Que voulez-vous, il y a des prdestins! () Oui, jai senti une fois que
javais ltoile au front et je ne loublierai jamais. 8 (Janet, 1928, apud
Roussel, 1935, p. 128)
E, mais adiante:
On sent quelque chose de particulier que lon a fait un chef-duvre, que
lon est un prodige () Cette gloire tait un fait, une constatation, une
sensation, javais la gloire () Mais javais beau prendre des prcautions,
des rais de lumires schappaient de moi et traversaient les murs, je portais
le soleil em moi et je ne pouvais pas empcher cette formidable fulguration
6 Quando La Doublure foi lanado, em 10 de junho de 1897, seu insucesso me causou um choque de uma
violncia terrvel. Tive a impresso de ser lanado terra do alto de um prodigioso pice de glria. Este abalo chegou a provocar em mim uma espcie de doena de pele que se caracterizou por uma vermelhido no corpo inteiro e minha me me fez ser examinado por nosso mdico, acreditando tratar-se de sarampo. Este choque teve como conseqncia principal uma assustadora doena nervosa da qual sofri durante muito tempo. 7 Agradecemos a Piero Eyben a observao que Martial pode ser tambm uma referncia ao poeta romano que
trabalhava com epigramas, Marcial. 8 Eu chegarei a grandes cumes e nasci para uma glria fulgurante. Talvez isso tome tempo, mas terei uma glria
maior que a de Victor Hugo ou Napoleo. () H, em mim, uma imensa glria em potncia como num formidvel obus que ainda no explodiu Esta glria estar em todas as minhas obras sem exceo, ela jorrar sobre todos os atos de minha vida (). Nenhum escritor foi ou pode ser superior mim () O que se pode fazer, h aqueles que so predestinados! () Sim, uma vez senti a estrela na fronte e no o esquecerei jamais.
-
17
de moi-mme. () Jai plus vcu ce moment-l que dans toute mon
existence. 9 (idem, p. 129-130)
Rastros desta vivncia de xtase perduraro e Martial, como ele prprio
admite, buscar reviver em suas outras obras esta sensao de soleil moral 10
(idem, p. 130) que lhe acompanhou durante a composio de La Doublure. ao
perceber que seu livro no foi saudado como um estrondoso sucesso que Martial
passou a apresentar sinais de uma vritable crise de dpression mlancolique avec
une forme bizarre de dlire de perscution, prenant la forme de lobsession et lide
dlirante du dnigrement universel des hommes les uns par les autres 11, segundo
diagnstico de Janet (idem, ibidem). Maior que Martial, apenas Julio Verne, a quem
Roussel dedicava uma admirao desmesurada: Il [Julio Verne] sest lev aux plus
hautes cimes que puisse atteindre le verbe humain 12 (Roussel, 1935, p. 26).
O fracasso de La Doublure romance em versos dodecasslabos tem
contraponto no sucesso absoluto de Cyrano de Bergerac, de Edmond Roustand,
futuro entusiasta da obra de Roussel. Diz Michel Leiris: Lchec de La Doublure
marque la fin de la srnit de Roussel 13 (apud Caradec, 1997, p. 51). E o comeo
de sua vida como escritor.
As obras seguintes, Impressions dAfrique, Locus Solus, toile au Front,
Poussire de Soleils, Chiquenaude, Nanon no alcanam melhor resultado.
Impressions dAfrique e Locus Solus foram adaptados para o teatro em 1911 e 1922,
respectivamente o que resultou no apenas num segundo fracasso, mas num
verdadeiro escndalo, com direito troca de ameaas entre partidrios e
9 Sente-se, graas a algo particular, que se realizou uma obra-prima, que se um prodgio () Esta glria era
um fato, uma constatao, uma sensao, eu tinha a glria Mesmo tendo tomado precaues, raios de luz escapavam de mim e atravessavam as paredes, eu carregava o sol em mim e no podia impedir esta formidvel fulgurao de mim mesmo. () Vivi mais naquele momento do que em toda a minha existncia. 10
sol moral 11
verdadeira crise de depresso melanclica acrescida de uma estranha forma de delrio de perseguio, tomando a forma de obsesso e da idia delirante do denigrescimento universal dos homens uns pelos outros 12
Ele [Jlio Verne] alou-se aos mais altos cumes que possa alcanar o verbo humano.
-
18
adversrios do autor e presena da polcia para conter o tumulto em algumas das
apresentaes.
La Doublure composta numa fivre de travail 14 (Roussel, 1935, p. 28) e
os anos seguintes so, segundo Roussel, dedicados uma insatisfatria
prospeco: Cette prospection nallait pas sans me causer des tourments et il mest
arriv de me rouler par terre dans crises de rage, en sentant que je ne pouvais
parvenir me donner les sensations dart auxquelles jaspirais. 15 (idem, p. 29)
apenas aos trinta anos que Roussel afirma ter enfim encontrado seu
caminho atravs da combinao e quebra de palavras, mtodo sobre o qual
falaremos mais adiante. Em 1931, ele envia a seu editor algumas pginas de um
livro que ir se chamar Comment jai crit certains de mes livres Como escrevi
alguns de meus livros , com instrues expressas para a publicao pstuma.
Nesta poca, Raymond Roussel j havia dissipado a maior parte da fortuna herdada
aps a morte de seu pai, financiando a encenao de suas peas ou sustentando
antigos empregados, e estava instalado, junto a Charlotte Duffrene, sua pretensa
noiva h 23 anos, num hotel em Palermo. encontrado morto em seu quarto, por
overdose de barbitricos, no dia 14 de julho 1933, dois dias antes de partir para uma
segunda estadia numa clnica de desintoxicao.
O livro pstumo dividido em quatro partes. Na primeira, Roussel descreve
e exemplifica seu procedimento de escritura, exprime sua fervorosa admirao por
Julio Verne e apresenta alguns fatos de sua vida: as circunstncias da produo de
La Doublure, a recepo de suas peas pelo pblico e pelos crticos, os ttulos de
nobreza que ele apresenta como pertencentes sua famlia, mas que so, na
13
O fracasso de La Doublure marca o fim da serenidade de Roussel. 14
febre de trabalho 15
Esta prospeco no deixava de me causar tormentos e me aconteceu de rolar no cho em crises de raiva, sentindo que no conseguia alcanar as sensaes de arte s quais eu aspirava.
-
19
verdade, da famlia de seu cunhado (sua irm era Duquesa dElchingen). A segunda
parte, sob o judicioso titulo de Citations Documentaires16, traz contos, poemas, o
trecho da obra de Pierre Janet, De lAngoisse lExtase, em que Roussel
apresentado como o paciente Martial, alguns artigos sobre xadrez. A terceira parte
apresenta os Textes de Grande Jeunesse ou Textes-Gense17, onde os contos
que deram origem a alguns de seus romances os alguns de meus livros do ttulo
so apresentados. Na quarta parte, Documentos pour Servir de Canevas, textos
incompletos so ordenados do primeiro ao sexto, conforme o desejo de seu autor:
Si je meurs avant davoir termin cet ouvrage et que quelquun veuille le
publier mme incomplet, je dsire que lon supprime le dbut et que lon
commence Premier Document, ci-aprs, et que lon remplace les initiales
par des noms en compltant les blancs et en mettant pour titre gnral :
Documents pour servir de Canevas.18 (idem, p. 264)
na primeira parte do livro de Roussel que seu procedimento de escritura
descrito. Um nico exemplo, utilizado na gnese de Impressions dAfrique, pode nos
servir. Na execuo deste procedimento, Roussel busca duas palavras
foneticamente semelhantes, com apenas uma letra diferente entre elas neste caso,
billard (bilhar, o jogo de sinuca) e pillard (pilhante, no sentido de ladro, aquele que
pilha alguma coisa) so as escolhidas. Tais palavras so inseridas numa mesma
frase:
Les lettres du blanc sur les bandes du vieux billard
e
Les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard
16
Citaes documentais 17
Textos de Grande Juventude ou Textos-Gnese 18
Caso eu morra antes de ter terminado esta obra e algum queira public-la mesmo incompleta, desejo que se suprima o incio e que se comece por Primeiro Documento, este seguinte, e que se substitua as iniciais por nomes, completando os espaos em branco, e colocando, como ttulo geral: Documentos para Servir de Planos (O termo canevas indica o plano de um bordado ou uma talagara tela onde se borda.)
-
20
Entretanto, as palavras repetidas em cada uma das frases so tomadas em
significados distintos, criando conjuntos que diferentes apenas em uma letra ou
fonema tm sentidos absolutamente diversos. Temos, assim, numa traduo
possvel:
As letras de giz nas bandas do velho bilhar
e
As cartas do branco sobre os bandos do velho pilhante
Ou seja, a mudana de uma nica letra, ao fim de uma frase, tem sobre a
mesma um efeito retroativo que desloca seu significado, impondo uma releitura e
enfatizando a relao entre tempo e sentido o significado de uma palavra depende
tambm daquilo que dito depois. Assim, Roussel cria uma histria que comea
com o primeiro conjunto e termina com o segundo. Num momento inicial de seu
procedimento, a primeira frase iniciava textualmente o trabalho, enquanto a ltima
terminava a narrativa, tal como exposto nos Textos-Gnese. Posteriormente, as
frases so utilizadas apenas como direcionamentos da historia, linhas de enredo,
no surgindo diretamente nos livros.
Assim, a primeira frase a que Roussel chegou atravs de seu processo lhe
forneceu a idia de um jogo de adivinhaes em que a resposta escrita, a giz, na
mesa de um bilhar, enquanto a segunda lhe apresenta a situao de um europeu
aprisionado por um selvagem rei africano e que escreve cartas onde conta suas
aventuras.
O procedimento levado adiante em outras associaes. Queue de billard
taco do bilhar lhe forneceu a cauda do manto (robe trane) de Talou VII, o rei
pilhante (le pillard). Tanto o taco como o vestido podem trazer gravados um
monograma, um selo, a marca de seu dono (le chiffre). bandes, Roussel pensou
-
21
em tecidos que tivessem quer ser cerzidos (reprise: cerzidura); reprise, significando
concerto musical, trouxe a Roussel o Jeroukka, epopia cantada pelas hordas de
Talou, que consistiam na repetio reprise de um curto motivo. Pensando em
blanc, Roussel chegou colle a cola branca usada para fixar o papel. A mesma
palavra, colle, uma gria para castigo escolar e lhe forneceu as trs horas de
castigo infligidas ao branco (blanc) Carmichal, por ter errado um trecho da Jerouka
em seu canto.
Este procedimento que chamaremos Procedimento 1 no o nico
empregado por Roussel. Em seu livro, ele apresenta um outro mtodo de escrita,
tambm empregado na criao de seus livros, chamado por ele de procedimento
evoludo: Le procd evolua et je fus conduit prendre une phrase quelconque,
dont je tirais des images en disloquant, un peu comme sil se ft agi den extraire des
dessins de rbus. 19 (Roussel, 1935, p. 20, grifos nossos)
Neste procedimento evoludo Procedimento 2 , algumas frases parecem
ser tomadas enquanto um desafio: como ignorar sentidos j cristalizados como Jai
du bon tabac dans ma tabatire, trecho de uma conhecida msica infantil francesa
e dissolv-lo em outra coisa? Assim, Au Clair de la lune mon ami Pierrot se torna
Eau glaire (cascade dune couleur de glaire explicao do prprio Roussel) de l
lanmone midi negro (Roussel, 1935, p. 20). Deste processo de desarticulao, de
esfacelamento das palavras, nada restar que no isso: desenhos de rbus, rbus
apenas, sem soluo.
19
O procedimento evoluiu e fui conduzido a tomar uma frase qualquer, da qual extraa imagens ao desarticul-la, um pouco como se tratasse de extrair disso desenhos de rbus.
-
22
O mtodo de Roussel parent de la rime, essentiellement un procd
potique 20 (idem, p. 23). Sob ele, nada que se conserva e at o endereo do
sapateiro se converte em outra coisa atravs da semelhana sonora:
Hellstern, 5, place Vndome
Hellstern 5 place Vn/dome
Hlice tourne zinc plat se rend dme 21
Por semelhana fontica, Hellstern deriva em Hlice tourne (hlice gira) e
cinq (cinco) em zinc (zinco); place (praa) se torna plat se (chato ou liso, se) e
Vndome (nome da praa) se torna rend dme (torna22 cpula).
Vejamos um outro exemplo:
Demoiselle pretendant
Demoiselle ritre en dents
Este segundo exemplo combina o trabalho sobre a ambigidade do termo
demoiselle com a decomposio de pretendant em um conjunto de palavras retre
en dents bastante prximo foneticamente. Demoiselle tomado na primeira frase
no sentido de jeune fille, ou seja, de donzela que possui um pretendente
(pretendant) e, na segunda frase, no sentido de hie. Hie um instrumento
antigamente utilizado para a pavimentao de ruas ou aterramentos, num
funcionamento prximo ao de um bate-estacas. Demoiselle tambm o nome com
20
parente da rima, procedimento essencialmente potico 21
A frase original seguinte: Hlice tourne zinc plat se rend (devient) dome; retiramos o termo entre parnteses a fim de que a semelhana fontica ficasse mais evidente. 22
Rendre um verbo notadamente polissmico, podendo ser tomado como: entregar, restituir, fornecer, produzir, realizar, entre outros. O traduzimos como tornar ou tornar-se por conta da indicao do prprio Roussel.
-
23
que Santos Dumont batizou um de seus primeiros modelos de aeroplano, alm de
um sinnimo para liblula (figura 1).
Retre um termo surgido da Guerra dos Trinta Anos, designao militar de
um soldado germnico mercenrio a servio da Frana. O termo utilizado para
designar algum cruel e perverso, que se compraz com o derramamento de sangue.
Dents nos leva a dentes. No h sentido possvel no conjunto que Roussel obtm ao
Figura 1
Gravura de Lebrgue, para o Gaulois de Dimanche, de 2-3 de outubro de 1909,
apud Kerbellec, 1988, p. 84.
-
24
decompor pretendente a uma donzela em Hie (ou bate-estaca) do mercenrio em
dentes.
Como extrair, daqui, uma imagem? Que utilidade pode ter esta de-
composio para a criao de uma obra? At onde se pode seguir o procedimento?
Pareceria tratar-se de uma explorao sem objetivo da linguagem, onde o
significado de cada palavra laboriosamente arruinado, no fosse o rigor com que
Roussel trabalha tais frases para faz-las construir uma imagem, para extrair deste
novo conjunto algo que faa s vezes de sentido.
O procedimento rousseliano no apenas inventivo, mas tambm rigoroso.
No se apia na sorte, no encontro fortuito ou na escrita automtica, como gostariam
os surrealistas; fruto de seu trabalho obsessivo e, no raro, Roussel encontra
impasses em suas operaes fonticas, expresses, tal como demoiselle retre em
dents, que parecem impossveis de serem aproveitadas, as quations de faits23,
segundo a denominao de Robert de Montesquiou (apud Roussel, 1935, p. 23).
Estes novos conjuntos, como hie do mercenrio em dentes, parecem, de certa
forma, refratveis ao sentido, como se as palavras ultrapassassem seus prprios
limites e possibilidades. Refratveis, pelo menos, a um sentido imediato, mas
capazes de, atravs de quebras e reconstrues, ampliar o campo discursivo,
abrindo inesperadas portas dentro da linguagem.
Mesmo que resolvidos logicamente, equacionados, o no-sentido da frase
desdobrada continua insistindo sobre as imagens s quais Roussel chega, criando
um sentimento de desconforto no leitor que tenta compor sua leitura. Eis a imagem
derivada da decomposio de Demoiselle pretendent e do desdobramento de
Demoiselle retre en dents:
23
equaes de fatos
-
25
Nous fmes quelques pas vers un point o se dressait une sorte
dinstrument de pavage, rappelant par sa structure les demoiselles ou hie
quon emploie au nivellement des chausses.
Lgre dapparence, bien quentiremente mtallique, la
demoiselle tait suspendue un petit arostat jaune clair, qui, par sa partie
infrieure, vase circulairement, faisait songer la silhouette dune
montgolfire.
En bas, le sol tait garni de la plus trange faon.
Sur une tendue assez vaste, des dents humaines sespaaient de
tous cts, offrant une grande variet de formes et de couleurs. Certaines,
dune blancheur clatante, contrastaient avec des incisives de fumeurs
fournissant la gamme intgrale des bruns et des marrons. Tous les jaunes
figuraient dans le stock bizarre, depuis les plus vaporeux tons paille
jusquaux pires nuances fauves. Des dents bleues, soit tendres, soit fonces,
apportaient leur contingent dans cette riche polychromie, complete par une
foule de dents noires et par les rouges ples ou criards de maintes racines
sanguinolentes.
Les contours et les proportions diffraient linfini molaires
immenses et canines monstrueuses voisinant avec des dents de lait presque
imperceptibles. Nombre de reflets mtalliques spanouissaient et l,
provenant de plombages ou daurifications.
A la place occupe actuellement par la hie, les dents, troitement
groupes, engendraient, par la seule alternance de leurs teintes, un vritable
tableau inachev. Lensemble voquait un retre sommeillant dans une
crypte sombre, vautr mollement au bord dun tang souterrain. Une fume
tnue, enfante par le cerveau du dormeur, montrait, en manire de rve,
onze jeunes gens se courbant demi sous lempire dune frayeur inspire
par certaine boule arienne presque diaphane, qui, semblant servir de but
lessor dominateur dune blanche colombe, marquait sur le sol une ombre
lgre enveloppant un oiseau mort. Un vieux livre ferm gisait ct du
retre, quilluminait faiblement une torche plante droite dans le sol de la
crypte. (Roussel, 1963/1979, p. 28-9)
Numa traduo livre, teramos algo como:
Caminhamos alguns passos em direo a um ponto onde se erguia
uma espcie de instrumento de pavimentao, lembrando, por sua estrutura
as demoiselles ou hies normalmente utilizadas no nivelamento de
caladas.
Leve na aparncia, mesmo que inteiramente metlica, a demoiselle
era suspensa por um pequeno aerstato amarelo claro, que, em sua parte
inferior, alargada circularmente, fazia lembrar a silhueta de um
montgolfire.24
Abaixo, o cho era preenchido da mais estranha forma.
24
Montgolfire um balo gs, no digirvel, criado pelos irmos Montgolfire, no final do sculo XVIII.
-
26
Sobre uma suficientemente vasta extenso do solo, dentes humanos
se espaavam por todos os lados oferecendo uma enorme variedade de
formas e de cores. Alguns, de um branco ofuscante, contrastavam com
incisivos dos fumantes, que formavam uma gama integral de castanhos e
marrons. Todos os amarelos figuravam no bizarro estoque, desde os mais
vaporosos tons de palha s piores matizes flvidas. Dentes azuis, em
nuances suaves ou escuras, participavam desta rica policromia, completada
por vrios dentes negros e pelos vermelhos plidos ou gritantes de
numerosas razes sanguinolentas.
Os contornos e as propores diferiam ao infinito molares
imensos e caninos monstruosos se avizinhavam a dentes de leite quase
imperceptveis. Reflexos metlicos brotavam aqui e ali, provenientes do
chumbo ou do ouro das obturaes.
No local atualmente ocupado pela hie, os dentes, agrupados
estreitamente uns aos outros, engendravam, apenas pela alternncia entre
seus tons, um verdadeiro quadro ainda inacabado. O conjunto evocava um
cruel mercenrio dormitando numa sombria cripta, atascado frouxamente
na borda de um riacho subterrneo. Uma tnue fumaa, nascida no crebro
do adormecido, mostrava, como em sonho, onze jovens que se curvavam ao
meio sob o domnio de um terror inspirado por certa bola area quase
difana que, parecendo servir de alvo ao arrojar dominador de uma pomba
branca, marcava no solo uma leve sombra envolvendo um pssaro morto.
Um velho livro fechado jazia ao lado do mercenrio, iluminado fracamente
por uma tocha plantada direita no cho da cripta.
Seule um fine mosaque lui semblait apte provoquer un difficulteux et
frquent va-et-vient de lappareil 25 (idem, p. 36) e tambm apenas um fino
mosaico apto a unir, conforme determinado pelo procedimento, a hie, o soldado
mercenrio alemo e os dentes. A imaginao do leitor de Locus Solus se exaure
buscando imaginar este bate-estaca voador lanando ao solo dentes que, dispostos
em certa ordem, criam, atravs apenas da alternncia entre suas cores, as infinitas
imagens do sonho de um mercenrio alemo que dorme. A descrio desta
maravilhosa e assustadora mquina, que tem como complemento un curieux
systme permettant dextraire les dents sans aucune souffrance 26 (idem, ibidem),
continua por vrias e vrias pginas, cada uma delas acrescentando novas e
inusitadas caractersticas mecnicas ao invento. O objetivo de seu criador, Martial
25
Apenas um fino mosaico lhe parecia apto a provocar o difcil e freqente vai-e-vem do aparelho 26
um curioso sistema que permite extrair os dentes sem sofrimento algum
-
27
Canterel, chegar a un appareil capable de crer une uvre esthtique due aux
seuls efforts combins du soleil et du vent 27 (idem, ibidem). Ou seja, uma mquina
que, sutilmente estimulada pelos raios solares e pelas mudanas no vento, cria
sozinha seu produto. Ora, impossvel no lembrar-se aqui do prprio procedimento
de escritura de Roussel: uma rigorosa submisso s regras de associao fontica
ser suficiente para criar uma obra. Sugere Patrick Besnier que, apresentando seu
procedimento aos leitores, Roussel gostaria de provar que no era o doente que
todos o acreditavam ser, Mais la rvtation complte nest-elle pas laveu dun ordre
plus fou que lapparent dsordre? 28 (Besnier, 1988, p. 11)
O segundo procedimento , de fato, um procedimento evoludo. Num
primeiro momento, entre billard e pillard, trabalha-se sobre a ambigidade das
palavras, a multiplicidade de significados e suas conseqncias. O sentido
claramente posto em risco, em xeque, mas recuperado atravs do jogo entre os
termos das frases. Neste segundo procedimento, parte-se de uma primeira frase,
que pode variar entre um verso popular at um conjunto aleatrio o que seria mais
aleatrio que um endereo? para se chegar a um outro conjunto de termos ainda
mais arbitrrio. As palavras no so mais respeitadas em sua unidade, mas
quebradas em unidades cada vez menores que, recompostas, aportam em outras
palavras.
Se possvel encaminhar este novo conjunto recuperao de um sentido,
atravs do desdobramento da frase-objetivo em imagens fantsticas, estas mesmas
imagens conservam a marca do sem-sentido de sua origem. Diz Blanchot:
Limage, daprs lanalyse commune, est aprs lobjet : elle en est la suite;
nous voyons, puis nous imaginons. Aprs lobjet vient limage. Aprs
semble indiquer un rapport de subordination. () Mais peut-tre lanalyse
27
um aparelho capaz de criar uma obra esttica graas apenas aos esforos combinados do sol e do vento 28
Entretanto, a revelao completa no a confisso de uma ordem mais louca que a aparente desordem?
-
28
commune se trompe-t-elle. Peut-tre, avant daller plus loin, faut-il
demander : mais quest-ce que limage ? 29 (Blanchot, 1955a, p. 15)
Roussel no cria uma imagem a partir de um objeto, mas parece criar uma
estranha classe de imagens sem objeto. Privilegiando as relaes de homofonia e a
ambigidade das palavras, ele abandona a prerrogativa do sentido na construo de
suas histrias, que passam a ser originadas das frases resultantes do procedimento.
A homofonia, tal como a sinonmia, responde maciamente por equvocos na
linguagem. Poderamos pensar num tecido com regies esgaradas que podem
mais facilmente se romper. Para Foucault, o procedimento de Roussel apenas
possibilita linguagem que se desdobre segundo suas prprias regras e as formas
de sua fontica:
O encantamento no est ligado a um segredo depositado nas dobras da
linguagem por uma mo exterior: ele nasce das formas prprias a essa
linguagem quando ela se desdobra a partir dela mesma segundo o jogo de
suas possveis nervuras. (Foucault, 1962/2001, p. 7)
A leitura de Foucault vai na contramo da leitura realizada pelos
surrealistas, que tomaram Roussel como uma espcie de padrinho de seu
movimento e viam em Comment jai crit certains de mes livres uma obra reveladora
dos segredos de uma escrita misteriosa. risco na literatura de Roussel que,
acreditando se possuir a chave (a revelao do procedimento de escrita), tomar a
obra inteira como uma grande fechadura (Besnier, 1988).
Quatro romances foram gerados a partir deste processo fontico:
Impressions dAfrique, ltoile au Front, Locus Solus e Poussire de Soleils. Em
relao a suas outras obras, diz Roussel: Il va sans dire que mes autres livres : la
Doublure, La Vue et Nouvelles Impressions dAfrique sont absolument trangers au
29
A imagem, seguindo a anlise comum, vem aps o objeto; ela sua continuao; ns vimos e, depois, imaginamos. Aps o objeto vem a imagem. Aps parece apontar para uma relao de subordinao. Mas, talvez, a anlise comum se engane. Talvez, antes de ir mais longe, preciso se perguntar: mas o que a imagem?
-
29
procd 30 (Roussel, 1935, p. 25). Entretanto, se no mesmo preciso dizer que
estes outros livros no foram compostos atravs do procedimento fontico, isso no
quer dizer que estejam livres de questionamento. O enigma do procedimento
rousseliano se espalha, suas dvidas so contagiosas, despertando inquietantes
questes: no haver, ento, outro procedimento, sob estas obras? Que outro
procedimento ser este? possvel adivinh-lo? Lendo Comment jai crit certains
de mes livres (1935), percebe-se que o mtodo apresentado no explica, que a
descrio do processo apenas amplia, como num efeito de espelhos dobrados, um
enigma. Como bem aponta Macherey (1999, p. XXI): O segredo do segredo seria,
portanto que no existe absolutamente segredo, ou melhor, que o segredo, cujo
carter irrisrio impressiona muito, logo que revelado, no oculta nada.
Raymond Roussel desenvolve, em sua literatura, um jogo entre dito e j dito.
Trata-se, no de uma repetio que retoma ou enfatiza, mas de uma repetio que
cria diferena, que pe a linguagem em questo, uma vez que dizer o mesmo se
torna, enfim, dizer algo muito diverso. O procedimento de Roussel acaba por apontar
que o uso das palavras to impreciso que repetir produz diferenas, diferenas to
grandes que possvel criar, atravessar uma histria completa entre duas frases
que, de to semelhantes, se tornaram estranhas uma outra. A duplicao central
em seu mtodo no cria linguagens de superfcie e linguagens subterrneas, mas
emparelha efeitos de linguagem, coloca suas possibilidades lado a lado, apontando
para uma multiplicao infinita. A repetio impede o retorno das coisas de coincidir
com o retorno da linguagem (Foucault, 1963/1999, p. 18). identidade das coisas
sobrepe-se ambigidade das palavras:
30
bvio que meus outros livros: La Doublure, La Vue e Nouvelles Impressions dAfrique so absolutamente estranhos ao procedimento. Entretanto, se so estranhos ao procedimento, mesmo nestes textos Roussel j se utilizava do equvocos da linguagem como matria prima. Vide La Doublure.
-
30
() destruir a identidade das coisas com a ambigidade das palavras,
desfazendo a ligao entre as palavras e as coisas, o signo e o sentido, o
significante e o significado, isso se d por conta de uma repetio que
mostra a falha, a falta da linguagem. (Machado, 2000, pg. 81)
O incontornvel dilema da enunciao que a palavra, por mais que busque
presentificar a coisa, no a coisa ignorado por Roussel, que desobriga a
literatura da representao de uma suposta realidade, e que prefere, a este
compromisso, inserir em seus livros vermes cantores que operam um delgado
mecanismo musical embutido numa carta de tar, esttuas feitas com barbatanas de
baleia que deslizam sobre trilhos de pulmo de bezerro, um adolescente de sangue
esverdeado capaz de entrar voluntariamente num coma, aparelhos to maravilhosos
quanto a hie voadora ou as melodiosas mquinas de tortura criadas em honra do rei
Talou VII, corpos que se tornam instrumentos musicais (uma tbia arrancada se torna
uma flauta, o abdmen cncavo dos membros de uma famlia so verdadeiras
caixas de ressonncia), alm de um colossal diamante em cujo interior um
misterioso liquido mantm suspensa a cabea decepada de Danton e a faz balbuciar
desconexas frases patriticas quando um gato sem plos lhe introduz substncias
ressuscitadoras (Roussel, 1963; Roussel, 1963/1979) : monstruosidades sem
espcies nem famlias (Foucault, 1963/1999, p. 32).
Afinal, diz Roussel: Jai beaucoup voyag. () Or, de tous ces voyages, je
nai jamais rien tir pour mes livres. Il ma paru que la chose mritait dtre signale
tant elle montre clairement que chez moi limagination est tout 31 (Roussel, 1935, p.
27, grifo nosso). A descrio de Martial, feita por Janet, refora esta impresso:
Martial a une conception trs intressante de la beaut littraire, il faut que
luvre ne contienne rien de rel, aucune observation du monde ou des
31
J viajei bastante. () Ora, jamais extra nada de todas estas viagens para meus livros. Me pareceu que isto merecia ser assinalado tanto mostra claramente que em mim a imaginao tudo.
-
31
esprits, rien que des combinaisons tout fait imaginaires : ce sont dj des
ides dun monde extrahumain. 32 (Janet, 1928, apud Roussel, 1935, p. 132)
De suas viagens pela Europa, sia e frica, Roussel no tomou nenhuma
nota e no fez nenhum relato. Apesar de ter desenvolvido um automvel
especialmente para estas viagens um Rolls-Royce com escritrio e dormitrio, que
foi visitado por Benito Mussolini e despertou a curiosidade at do papa , o carro
passava sempre com as cortinas cerradas. Toutes le grandes villes se
ressemblent33, Roussel confidencia, cheio de indiferena, a Pierre Leiris (Caradec,
1997, p. 211).
O procedimento de Roussel pe seus escritos deriva, os ameaa,
insinuando que toda palavra fruto de encontros perdidos, nunca mais
reproduzveis. Quais seriam as palavras-irms? Que palavras este termo, aqui em
Roussel, est a ecoar, reiterar ou negar? Ou, se nada disso ocorre, aps descobrir
que h um procedimento, ser ainda possvel aceitar calmamente sua obra? O
procedimento cria leitores estranhamente inquietos pela suspeita da proximidade de
um mistrio, cuja realidade, entretanto, no afianada por ningum, nem pelo
prprio Roussel. O que revela Comment jai crit certains de mes livres (1935) no
um segredo mstico, encoberto atravs de um engenhoso artifcio, mas um limite,
uma impossibilidade que poderamos chamar, com Foucault, de a rica pobreza das
palavras: Em sua rica pobreza, as palavras sempre conduzem mais longe e
remetem a si mesmas; perdem e se reencontram; elas desfiam no horizonte em
desdobramentos repetidos, mas retornam ao ponto de partida numa curva perfeita
(Foucault, 1963/1999, p. 12).
32
Martial possui uma concepo muito interessante da beleza literria; imprescindvel que a obra no contenha nada de real, nenhuma observao do mundo ou dos espritos; nada mais que combinaes inteiramente imaginrias: so j idias de um mundo extra-humano. 33
Todas as grandes cidades se parecem.
-
32
A palavra no evoca, em sua enunciao, a realidade da coisa, no garante
sua certeza; mas, ao contrrio, numa virada, num gesto rebatedor, que a
linguagem lana sobre as coisas sua falha, sua instabilidade, sua dvida (ou dvida)
essencial, criando um outro espao onde a subordinao da palavra coisa j no
mais existe.
Para Michel Foucault, pensar a ligao entre loucura e literatura, aqui, no
utilizar a vida de Roussel cujo diagnstico, realizado por Janet, se abre como um
leque para abranger melancolia, obsesso e delrio paranico como um fator
explicativo de sua obra ou seu mtodo. Partir da loucura para a obra seria manter
uma oposio e sobreposio da razo contra a loucura, com prevalncia da
primeira. Quando Foucault diz que a loucura ausncia de obra (1964/2002), ele
afirma, entre outras coisas, que se tratam de operaes de linguagem no-
permeveis entre si. A literatura que interessou a Foucault era uma transgresso,
mas a loucura atravessar um limite ltimo, abandonando a linguagem mesma
neste processo.
A megalomania de Roussel, atestada na comparao com Napoleo ou
Victor Hugo, seus infinitos rituais (seu almoo durava exatamente de 12h30 s
17h30, incluindo cerca de vinte pratos), suas fobias (as cortinas cerradas de seu
automvel, o medo de passar por tneis), a mania de limpeza (ele mandava
costurar, em todas as roupas, um pequeno bolso interno onde mantinha um pedao
de pano branco, que marcava cada vez que a pea era usada); tudo isso nada mais
faz que atestar a incorruptibilidade da obra em relao loucura. Trata-se de uma
literatura que encena linguagens arruinadas, mas que se mantm obra, mesmo que
a custo da vida de Roussel, mesmo que ao preo de sua morte:
A loucura desmoronamento total, ruptura absoluta, ao passo que a
linguagem literria a construo desse desmoronamento, na medida em
-
33
que, ao mesmo tempo que fora o rompimento com a obra, s existe como
obra, se apresenta necessariamente como obra. (Machado, 2000, p. 43).
A literatura moderna, ento, buscaria uma aliana com a loucura, no
subordinando-a razo, tal qual na psiquiatria, mas vendo na loucura uma
compreenso diferenciada de linguagem: sua fragilidade, runa e desmoronamento.
O absoluto no-sentido, uma fala que no diz encenada, mas nunca levada a cabo
no exercitar infinito de linguagem (duplicao e reduplicao, espelhamento,
desdobramento) realizado pela literatura.
preciso lembrar que Comment jai crit certains de mes livres um texto
condicionado pela morte, sobre o qual o desaparecimento de Roussel acidente?
suicdio? se derrama como clusula. Em 1933, Roussel j era dependente de
barbitricos e vivia num estado de constante intoxicao e, no dia 02 de julho, aps
uma tentativa de suicdio que o deixou extremamente fraco, ele decidiu voltar
clinica de desintoxicao onde anos antes havia conhecido Jean Cocteau, marcando
sua passagem para o dia 16. Seu corpo sem vida foi encontrado no dia 14 de julho,
em meio a mais de uma centena de frascos vazios, de at oito tipos diferentes de
sedativos, todos catalogados pela polcia de Palermo. A porta de comunicao de
seu quarto com o quarto de sua acompanhante, uma porta que tinha permanecido
aberta durante toda a estadia dos dois no hotel, estava trancada (Foucault, 1997).
O mtodo de Roussel no nos explica sua escritura e tampouco nos d a
receita necessria para novas criaes, mas indica, mesmo que de maneira
precria, uma certa imagem a ser vista. O procedimento ensina o olhar, como uma
dobra dentro de sua literatura, uma mola secreta na base de textos que da se
desdobram, mas cujo mecanismo nunca fica claro. Para isso, necessrio no
apenas a revelao dos procedimentos de criao, mas uma obra necessariamente
-
34
pstuma: Como se o olhar, para ver o que existe para ver, tivesse necessidade da
duplicadora presena da morte. (Foucault, 1963/1999, p. 49).
-
35
CAPTULO 2
PALAVRA-IMAGEM-COISA
[La Doublure]
La Doublure, romance cujo fracasso causou tanto transtorno a Raymond
Roussel, se inicia com o intrigante aviso do autor: Ce livre tant un roman, il doit se
commencer la premire page et se finir la dernire. 34 (Roussel, 1979, p. 6) Ora,
no exatamente isso que se espera de um romance: que seja lido da primeira
pgina at a ltima linha? Que prove cada uma de suas palavras indispensveis
para sua construo e envolva o leitor fazendo da leitura completa um compromisso,
uma exigncia? Entretanto... o que esperar de um romance inteiramente disposto
em versos alexandrinos? Trata-se ainda de narrativa? Prosa ou poema? E onde
mesmo estes dois se diferenciam?
Em quase 200 pginas, La Doublure computa cerca de 5000 versos que,
primeira vista, do a impresso de versos alexandrinos: so estritamente dispostos
em doze slabas (a contagem deve respeitar as regras da diviso silbica do francs,
diferentes do portugus), as rimas se alternam entre termos no feminino e termos no
masculino. Falta, entretanto, a terceira marca lingstica que compe o verso
alexandrino: o seu ritmo. O verso alexandrino clssico segue a diviso 6//6, que
pode se desdobrar em 2/4//2/4, 3/3//3/3 ou at mesmo um esquema 4//4//4, desde
que a localizao das pausas se mantenha constante. importante observar que,
na tradio literria clssica da Frana, o alexandrino aspira perfeio do verso,
tanto foneticamente quanto em seus jogos semnticos. Ele busca realizar, na lngua
34
Sendo este livro um romance, deve-se comear na primeira pgina e terminar na ltima.
-
36
francesa, o que o hexmetro dactlico realizou na poesia pica latina e grega, e
atravessa a obra de grandes mestres franceses, como Baudelaire, Verlaine e Victor
Hugo.
Em La Doublure, prodigiosamente escrito com versos estritamente
dodecasslabos da primeira ltima pgina, o marcado ritmo dos versos
alexandrinos absolutamente ignorado, como podemos ver nos exemplos abaixo:
elle regarde
Le pierrot// dont le masque a lair stupide,/ aux yeux (3 // 7/2)
Froids,// se moque plus delle /avec le srieux (1 // 5/6)
Ironique// et le grand calme /de sa figure, (3 // 5/4)
Que ne pourrait le faire aucune vraie injure. 35
(Roussel, 1979, p. 67)
Roussel utiliza-se tambm de uma inverso extrema, chamada rejet, onde a
estrutura gramatical de um verso termina apenas no verso seguinte. O rejet tambm
atenta contra o ritmo do verso, j que a leitura vai se guiar, naturalmente, pela lgica
gramatical e no pela disposio mtrica. Lido em voz alta, no se adivinha que La
Doublure composto em verso.36 No exemplo apresentado, o sujeito gramatical
apresentado na primeira linha, o verbo composto dividido entre o primeiro e o
segundo verso, e o objeto transitivo direto surge apenas no terceiro verso (termos
grifados):
Il retourne la tte et saperoit quil a
Un peu laiss derrire, quelques pas de l,
Roberte ; et sarrtant 37
(idem, p. 53)
Antecipando os jogos do Oulipo38, Roussel parece fazer da regra de um
texto (a metrificao em doze versos, a alternncia entre rimas femininas e
35
ela olha/O pierr cuja mscara tem o ar estpido, nos olhos/Frios, zomba mais dela com a seriedade/Irnica e a grande calma de sua figura,/Que no lhe pode fazer nenhuma verdadeira injria. 36
Agredeo ao professor Jean-Jacques Chatelard a observao de que La Doublure possui um perfeito contra-exemplo: a traduo da Odissia feita por Victor Brard, entre 1919 e 1923. Apesar de no ser disposta em versos ou possuir qualquer rima, a traduo segue fielmente o ritmo alexandrino, constante ao longo dos cantos do poema. 37
Ele gira a cabea e se percebe que/Deixou um pouco para trs, a alguns passos dali,/Roberte; e, parando
-
37
masculinas) causa de sua criao, a despeito dos estranhos efeitos resultantes
deste artifcio. O verso alexandrino, condio de escritura, fantasticamente forado
para dentro de um romance em prosa, ao mesmo tempo em que negado em sua
potncia: estruturalmente, seu ritmo no respeitado e, semanticamente, as
palavras empregadas no romance no criam metforas matria da poesia, por
excelncia mas descries simplrias: um sabo verde na saboneteira, um homem
com seu guarda-chuva, dilogos diretos banais, etc.
un savon vert,
Dans sa savonnire est encore couvert
De mousse dessche ; en arrire une ponge... 39
(idem, p. 12)
Roberte marque un peu le rythme avec la tte,
Puis regardant Gaspard qui lui demande si
Elle ne se sent pas fatigue, elle aussi
Fait rptr la phrase au milieu du vacarme ;
Elle rpond : Non, non, pas du tout. 40
(idem, p. 85).
Un ne rue
En entrant, puis trottine un peu ; car, au tournant,
Cest lanalcade des Anglaises maintenant
Qui passe ; un homme a son umbrelle trop ouverte
Retourne ; un, plus loin, a sous sa robe verte
Un morceau de pliss qui pend. 41
(idem, p. 106)
Os objetos e sua manipulao recebem mais ateno que a descrio dos
personagens, assim como os encontros fonticos tornam-se mais importantes que o
ritmo alexandrino. Trechos de msicas populares e infantis, cantigas de carnaval so
disseminados aqui e ali, sem que se justifique sua presena no texto. Numa
38
Oulipo Ouvroir de Littrature Potentielle (Oficina de Literatura Potencial) designa um grupo de escritores que se uniram, nos anos 60, em torno de alguns interesses comuns: linguagem, matemtica, anagramas, lcriture contraintes (escrita sob restrio). Seus expoentes mais conhecidos so Raymond Queneau (que chegou a conhecer Raymond Roussel), talo Calvino e Georges Perec, que escreve, em 1969, La Disparition, romance onde a letra e no surge uma nica vez. 39
um sabo verde/Na saboneteira ainda coberto/De espuma ressecada; atrs uma esponja... 40
Roberte marca um pouco o ritmo com a cabea,/ Depois olhando Gaspard que lhe pergunta se/Ela no se sente cansada, ela tambm/ Faz repetir a frase no meio da algazarra,/Ela responde: No, no, de forma alguma.
-
38
antologia de poesia da poca, o seguinte comentrio acompanha trechos de La
Doublure:
[la posie de La Doublure] est infiniment subtile. Elle semble facile, trop
facile mme, puis, tout coup, lon saperoit que lon na pas compris, quil
faut reprendre, quil faut se ressaisir. Elle est lente et pre. Elle stale,
slargit et svapore. 42 (Anthologie de la Nouvelle Posie franaise, [s.d.], apud Caradec, 1997, p. 253)
Doublure, segundo o Larousse, responde por:
1. ttoffe lgre dont on garnit lintrieur dun vtement, le revers dune tenture. 2. Acteur qui en remplace un autre. 43
Forro e substituio de atores, o romance La Doublure se inicia com o
exagerado gesto de um ator que leva sua espada bainha. Antes de terminado o
gesto, o ator treme, a espada recua, a platia comea e cochichar e, depois, a rir. O
riso duplica redouble e Gaspard Lenoir, um substituto medocre que quer tomar o
papel de um ator talentoso, ou seja, um dubl, deixa o palco. Uma moa de nome
Roberte de Blou de Blou, doubler apaixona-se pelo ator e abandona seu amante
para passar o carnaval em Nice junto a Gaspard. Assim, () Gaspard ne se
contente pas de doubler un comdien ; il est aussi la doublure de Paul, lamant en
titre de sa matresse 44 (Caradec, 1997, p. 46).
O casal de amantes passa o carnaval em Nice, at se desentenderem e se
separarem. Roussel descreve detalhadamente a festa e a geografia da cidade, os
carros alegricos, os grupos carnavalescos, suas fantasias e a interao do casal
com os passantes, mediada por jatos de confete lanados de um lado a outro. Entre
a histria principal de Gaspard e Roberte e o desenrolar da festividade, no h
41
Um asno coiceia/Entrando, depois trota um pouco; pois, dobrando a esquina/ a burralcada das Inglesas agora/Que passa; um homem tem seu guarda-chuva bem aberto/ Revirado; um, mais adiante, tem sob sua veste verde/Um pedao franzido que pende. 42
[a poesia de La Doublure] infinitamente sutil. Parece fcil, bastante fcil mesmo, depois, de repente, que percebemos que no compreendemos, que preciso retomar, que preciso recompor-se. Ela lenta e acre. Ela estaciona, se alarga e evapora. 43
1. Tecido leve que guarnece o interior de uma vestimenta, inverso do tecido. 2. Ator que substitui outro. 44
No basta a Gaspard substituir um ator, ele tambm o dubl de Paul, amante oficial de sua amante.
-
39
relao perceptvel, e as imagens vo sucedendo-se umas s outras sem que se
possa estabelecer entre elas um fio narrativo: um aleatrio desfile de fantasias,
carros e carnavalescos, um discurso inteiramente sem [que] espessura percorre a
superfcie das coisas, ajustando-se a elas por uma adaptao nativa, sem esforo
aparente (Foucault, 1963/1999, p. 99).
Eis o que Roussel nos oferece: versos estritamente dodecasslabos, mas de
ritmo desigual; um longo romance-poema sem poesia. No toa que Foucault o
chama de incansvel versificador (idem, p. 121), mas no de poeta. De um lado,
uma poesia que no se faa com lirismo, de outro, uma prosa que no seja livre.
Na anlise de Franois Caradec:
Les alexandrins de La Doublure nous tonnent par labsence complte
dimages ou de poncifs dits potiques . Cest une prose descriptive rime
mais non rythme ce qui ne peut que surprendre de la part dun musicien ,
que ne vient mme pas relever la sonorit des rimes, remarquables par leur
platitude. Cette allure de prose en vers est encore souligne par lirrgularit
des coupes, tel point que ce qui est gnralement dans la posie classique
une exception devient la rgle ().45 (Caradec, 1997, p. 41, grifos nossos)
Na dcada de 1980, foram encontrados textos inditos de Raymond
Roussel. Entre eles estava o poema Les Noces e uma estranha lista de pares de
rimas: branche penche lointain incertain mal assure figure niveau nouveau
verticales gales couleur pleur utile le regards pars ordinaire lunaire clatant
entend 46 (idem, p 65). Lista que, segundo a tese de Franois Caradec, era redigida
previamente por Roussel e mantida mo para ser inserida nos versos que ele
criava (1997). Se tais listas foram de fato utlizadas, no saberemos. Mas bem
possvel que a estranheza de La Doublure seja resultado do uso destes versos
45
Os alexandrinos de La Doublure nos espantam pela ausncia completa de imagens ou de chaves ditos poticos. Trata-se de uma prosa descritiva rimada mas no ritmada o que no deixa de nos surpreender vindo de um msico , que no chega mesmo a dar destaque sonoridade das rimas, notveis por sua insipidez. Esta forma de prosa em versos ainda sublinhada pela irregularidade dos cortes, a tal ponto que aquilo que geralmente exceo na poesia clssica se torna regra (....). 46
ramo inclinado longe incerto mal segura figurada nvel novo verticais iguais cor palidez til ilha olhares esparso ordinrio lunar radioso escuta
-
40
fabricados para caberem numa rima, ao contrrio de uma rima nascida na criao de
um verso.
As regras de escritura vo fazendo distncia entre o autor e seu texto e
Roussel se torna inventor de um engenho (o dodecasslabo como condio de
escritura de um romance no-potico), mas outro a mo do acaso fontico e da
rima, para Roussel; a mo da matemtica e do clculo, para os membros do Oulipo
seu autor. Na insistncia sobre os detalhes materiais das fantasias, dos carros
carnavalescos,