A PSICANÁLISE NOS LIMITES DA LITERATURA UM ESTUDO...

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    UNIVERSIDADE DE BRASILIA

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    A PSICANLISE NOS LIMITES DA LITERATURA

    UM ESTUDO SOBRE A OBRA DE RAYMOND ROUSSEL

    ANA JANAINA ALVES DE SOUZA

    Braslia, DF Brasil, 2007

  • ii

    UNIVERSIDADE DE BRASILIA

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    A PSICANLISE NOS LIMITES DA LITERATURA

    UM ESTUDO SOBRE A OBRA DE RAYMOND ROUSSEL

    ANA JANAINA ALVES DE SOUZA

    Dissertao apresentada ao Instituto

    de Psicologia da Universidade de

    Braslia para obteno do ttulo de

    Mestre em Psicologia Clnica e

    Cultura.

    Orientadora: Tania Rivera, Doutora

    Braslia, DF Brasil, 2007

  • iii

    Souza, Ana Janaina Alves de.

    A psicanlise nos limites da literatura: Um estudo sobre

    a obra de Raymond Roussel / Ana Janaina Alves de Souza.

    113 f.

    Dissertao (mestrado) - Universidade de Braslia.

    Departamento de Psicologia Clnica. Braslia, 2007.

    rea de concentrao: Psicologia

    Orientador: Tania Rivera.

    1. Psicologia. 2. Psicanlise. 3. Literatura

  • iv

    UNIVERSIDADE DE BRASILIA

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    Esta dissertao de mestrado foi aprovada pela seguinte comisso examinadora:

    ________________________________________________

    Presidente: Tania Rivera, Doutora

    ________________________________________________

    Membro: Daniela Scheinkman Chatelard, Doutora

    ________________________________________________

    Membro: Edson Luiz Andr de Sousa, Doutor

    Braslia, DF Brasil, 2007

  • v

    Agradecimentos

    Agradeo s minhas irms, Luisa e Letcia, pelo entusiasmo sempre renovado

    e cheio de frescor por meus projetos. Agradeo ao Tio Marcus, pelo virtuoso dilogo

    mantido desde sempre; e, com muito carinho, Susana, pela torcida incansvel, e,

    mais que isso, por compartilhar este amor inescapvel literatura.

    professora Tania Rivera, por ter aceitado orientar-me e por ter-me

    apresentado obra de Raymond Roussel um generoso presente pelo qual sou

    imensamente grata. Agradeo as preciosas sugestes e, especialmente, a sugesto

    certeira do ttulo deste trabalho. Gostaria de agradecer tambm aos colegas do

    grupo de orientao pela disposio em acompanhar meu trabalho e,

    especialmente, a Marcela Almeida e Claudia Feres por terem sustentado duas raras

    qualidades no difcil momento que escrever uma dissertao ou uma tese: alegria

    e delicadeza.

    Agradeo aos supervisores do atendimento realizado no CAEP: professor

    Luis Monnerat Celes e, novamente, professora Tania Rivera este trabalho, mesmo

    que terico, no poderia prescindir da aproximao com a clnica psicanaltica.

    Reservo um agradecimento carinhoso ao professor Jean-Jacques Chatelard,

    que me ofereceu luz no labirinto dos textos rousselianos e se despedia, ao fim de

    todas as nossas aulas, com um vigoroso Courage!. Grande parte das proposies

    aqui apresentadas sobre a obra de Raymond Roussel surgiu de nossas discusses

    e toda as sugestes foram inestimveis para este trabalho, especialmente as lies

    sobre o verso pseudo-alexandrino de La Doublure.

    Gostaria de agradecer Maria Luiza Gastal pela companhia neste percurso

    que, de outra forma, poderia ter sido muito mais solitrio.

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    Agradeo aos amigos que se fizeram presentes neste caminho: Luiz Coimbra,

    Pedro Gontijo, Cristina Queiroz, Rodolfo Alencar, Bruno Arajo, Matias Monteiro.

    Agradeo a reviso rigorosa feita por Piero Eyben e, com muito carinho, aos colegas

    do Ateli de Literatura nossas discusses apuraram minha compreenso da

    literatura, das questes da linguagem e tambm da prpria psicanlise.

    Agradeo ao CNPq pelo apoio financeiro que tornou este trabalho possvel.

    E agradeo especialmente ao Roger, por motivos vrios e incontveis: a f

    inabalvel neste projeto de mestrado e nesta dissertao, a generosidade, o amor.

  • vii

    A Jos Rodrigues de Souza

    In memoriam

  • viii

    RESUMO

    SOUZA, A. J. A. A psicanlise nos limites da literatura: um estudo sobre a obra

    de Raymond Roussel. 2007. 114 f. Dissertao (Mestrado em Psicologia Clnica e

    Cultura) Instituto de Psicologia, Universidade de Braslia, Braslia, 2007. Esta

    dissertao analisa a obra do escritor francs Raymond Roussel, tendo como ponto

    de partida a proposio de Michel Foucault de que a literatura seria um locus de

    transgresso, onde os limites da linguagem so postos em xeque. No livro pstumo

    Comment jai crit certains de mes livres (1935), Raymond Roussel apresentou seu

    procedimento de escritura, que deu origem aos romances Impressions dAfrique

    (1910) e Locus Solus (1914). O procedimento envolve o uso da sinonmia e da

    homofonia, a decomposio de termos e a suspenso do significado, tendo como

    resultado uma literatura que busca especificamente tornar as palavras desenhos de

    rbus. O mtodo de escrita de Roussel nos d ensejo a pensar as relaes

    traadas pela psicanlise entre palavra e coisa, de um lado, e linguagem,

    inconsciente e memria, de outro. Sua frase, em mim, a imaginao tudo, se

    contrape chamada psicobiografia, possibilitando uma reflexo sobre o encontro

    entre arte e psicanlise. Ao final deste trabalho, percebe-se que a obra de Raymond

    Roussel permanece enigmtica tal como o umbigo do sonho resiste interpretao.

    Seu procedimento de criao insiste na quebra e destruio do sentido, na

    impossibilidade de ligao. Confrontada com o tal texto, a psicanlise no procura

    um sentido fixo, que desvende a obra, mas a produo de novas palavras que

    venham estranhar o texto e a prpria psicanlise.

    Palavras-chave: Literatura, Psicanlise, Raymond Roussel, Linguagem

  • ix

    ABSTRACT

    SOUZA, A. J. A. The psychoanalysis on the limits of literature: a study of

    Raymond Roussels work. 2007. 114 f. Dissertation (Masters degree in Clinic

    Psychology and Culture) Institute of Psychology, University of Brasilia, Brasilia,

    2007. This dissertation analyses the work of the French writer Raymond Roussel,

    starting from the proposal of Michel Foucault that literature is a locus of

    transgression, where the limits of language are questioned. In Comment jai crit

    certains de mes livres (1935), published after his death, Raymond Roussel presented

    his writing method, which has originated his others books Impressions dAfrique

    (1910) and Locus Solus (1914). This procedure involves the use of synonymy and

    homophony, the decomposition of terms and the suspension of meaning, creating a

    literature that seeks specifically to transform words in pictures of rbus. Roussels

    writing method invites us to think about the relations brought by psychoanalysis, first,

    between word and things, and second, between language, memory and the

    unconscious. His statement in me imagination is all opposes to the so called

    psychobiography, which enables a reflection about the encounter of art and

    psychoanalysis. At the end of this study, we realized that the work of Raymond

    Roussel remains as enigmatic as the navel of dream resists to interpretation. His

    creation procedure insists in the breaking and destruction of meaning, in the

    impossibility of connection. Faced with such text, psychoanalysis does not seek a

    single meaning, which unravels the whole work, but the production of new words that

    questions not only the text but the psychoanalysis itself.

    Key words: Literature, Psychoanalysis, Raymond Roussel, Language

  • x

    NDICE

    INTRODUO .................................................................................................... 2

    CAPTULO 1: A Gramtica Invisvel de Raymond Roussel ................................. 9

    1.1. Foucault: loucura, literatura, linguagem .......................................................... 9

    1.2. A gramtica invisvel de Raymond Roussel ................................................... 15

    CAPTULO 2: Palavra-imagem-coisa ................................................................ 35

    2.1. Pillard/Billard e o Nachtrglichkeit ................................................................ 43

    2.2. O endereo do sapateiro e a palavra tomada como coisa .............................. 50

    CAPTULO 3: Fulguraes do Eu ..................................................................... 58

    3.1. E como ler Raymond Roussel?... ................................................................. 71

    3.2. Fulguraes do Eu ...................................................................................... 82

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 90

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................... 96

    NDICE DE IMAGENS ...................................................................................... 103

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    No descomeo era o verbo. S depois que veio o delrio do verbo. O delrio do verbo estava no comeo, l onde a criana diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criana no sabe que o verbo escutar no funciona para cor, mas para o som. Ento se a criana muda a funo de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que voz de poeta, que a voz de fazer nascimentos O verbo tem que pegar delrio.

    Manoel de Barros, O livro das ignoras O moderno desdenha imaginar.

    Stphane Mallarm

  • 2

    INTRODUO

    Depois do filsofo e do religioso, A literatura [que] nos fornece o terceiro

    tipo de buscador da verdade: o amante (Garcia-Roza, 1998, p. 18). O filsofo busca

    a verdade por estar perplexo diante do mundo e estabelece critrios, como a no-

    contradio, para diferenciar aquilo que verdadeiro do que enganoso.

    Diferentemente do filsofo, o religioso busca a verdade em seu prprio interior,

    porque acredita que o caminho para Deus tambm o caminho da verdade.

    Mas quem este amante? o ciumento sob a presso das mentiras do

    amado (2003, p. 14), nos diz Deleuze em seu estudo sobre Proust. O amante nos

    mostra que a verdade crivada de mentiras e que a mentira se ilumina interiormente

    pela verdade. O protagonista de la Recherche du Temps Perdu desconfia de

    Albertine, sua amante, acha que ela o engana, procura artifcios que a faam

    revelar-se. Mas a verdade, aqui, no a adequao entre discurso e realidade, mas

    o efeito de encontros que se do ao acaso (Garcia-Roza, 1998, p. 18).

    Tambm quem se arrisca pela literatura se envolve numa busca amorosa

    em que procura menos verificar a relao de conformidade entre a linguagem e o

    mundo caso seja possvel separar estes dois do que ouvir os espaos vazios que

    se tecem entre as palavras. Trata-se de denunciar imposturas da linguagem tal

    como o amante ciumento quando questiona a amada em suas mentiras, em seus

    jogos duplos, naquilo onde sua palavra no se sustenta a decifrao do discurso

    de Albertine gesto de amor e de desconfiana, decifrao ertica e tormento da

    linguagem.

    Este amante, vigilante das trapaas da linguagem, proceder, no campo

    psicanaltico, a uma busca semelhante: na anlise, a palavra pronunciada

  • 3

    contraposta palavra no dita, a palavra denegada simtrica palavra afirmativa,

    at chegarmos palavra recalcada que salta, inadvertidamente, dos lbios de um

    analisando aflito. Que mecanismos de engano, encontro, verdade e equvoco

    movimentam o interior da linguagem?

    O tema desta dissertao a obra do francs Raymond Roussel, escritor

    escandalosamente fracassado em seu tempo, como ele mesmo qualifica no livro

    pstumo Comment jai crit certains de mes livres (1935), o que no o impediu,

    entretanto, de produzir vrios romances, aventurar-se no teatro e na poesia, at sua

    morte em 1933, numa insistncia que muitos consideram francamente patolgica (o

    escritor foi tratado por Pierre Janet durante vrios anos).

    Mesmo que tenha fascinado os surrealistas e ningum menos que Marcel

    Duchamp comente a importncia, para sua prpria trajetria, de ter assistido

    adaptao de Impressions dAfrique para o teatro (Duchamp, 1994), a obra de

    Roussel teria que esperar at os anos 60 para voltar baila das discusses

    acadmico-literrias, a partir dos estudos de Michel Foucault. Trata-se de um

    momento na trajetria de Foucault em que o inquietavam os mecanismos de

    produo dos discursos, a relao entre dizeres, saberes e poderes, no que ser

    chamado, posteriormente, de Arqueologia do Saber. Entre as vrias proposies

    feitas ento, uma surge a ns com maior brilho, a de que a literatura um locus de

    transgresso onde os limites mesmos da linguagem so postos em xeque,

    estabelecendo uma relao entre literatura e loucura, de um lado, e literatura e

    morte, de outro. Na literatura, algo que estava oculto, opaco no uso cotidiano da

    linguagem, se revela.

    Tambm a psicanlise, em seu estudo do inconsciente, tem se havido com

    os limites da linguagem, com as incertezas da nomeao, com o hiato entre palavra

  • 4

    e coisa. Sobre isso, uma afirmao se fez constante na obra freudiana: no

    inconsciente, aquilo que prprio da coisa se torna prprio da palavra. Tal

    proposio surge no estudo Os Chistes e sua Relao com o Inconsciente (Freud,

    1905/1969) e em A Psicopatologia e a Vida Cotidiana (Freud, 1901/1976); invertida

    quando Freud descreve a fala do esquizofrnico a estranheza do sintoma da

    esquizofrenia se deve ao fato de haver uma predominncia do que tem a ver com

    as palavras sobre o que tem a ver com as coisas (1915/1996, p. 206). J a metfora

    do bloco mgico vai aproximar linguagem e inconsciente, aliando a estes a memria,

    ao apresentar o aparelho psquico como camadas especializadas, onde na terceira,

    uma prancha de cera equivalente ao inconsciente, traos mnmicos so marcados,

    criando uma escrita que pode se revelar sob certa luz (Freud, 1925/1976). preciso

    ter em vista, entretanto, que as colocaes de Freud no buscam estabelecer uma

    teoria ou filosofia da linguagem subjacente teoria psicanaltica. Seu interesse pela

    linguagem atravessado de ponta a ponta e circunscrito por sua preocupao

    quanto ao uso da palavra na clnica. Lembremos que, no por acaso, a psicanlise

    conhecida, desde Anna O., como talking cure (Breuer & Freud, 1893-1895/1974).

    O procedimento de escritura de Raymond Roussel, apresentado no livro

    pstumo, busca revelar algo do funcionamento da linguagem, ao escolher a

    semelhana fontica entre palavras, em detrimento de seu significado, como origem

    de seus livros. A literatura rousseliana muito especfica: as imagens de

    Impressions dAfrique e Locus Solus, resultado das associaes do mtodo de

    escrita, so quase inimaginveis; e La Doublure, seu romance de estria, um

    desgastante atentado contra o verso alexandrino, numa prosa potica s avessas.

    Desconcerto, estranheza e angstia abatem o leitor enquanto o estilo de Roussel se

    mantm lmpido, erudito e distanciado.

  • 5

    Dividimos este estudo em trs captulos. O primeiro uma apresentao das

    proposies de Michel Foucault sobre a linguagem, a literatura e a loucura,

    enquanto um fenmeno lingstico, assim como uma apresentao de suas

    proposies sobre a obra de Roussel. Tambm neste captulo, analisamos o

    procedimento de escritura apresentado em Comment jai crit certains de mes livres

    (Roussel, 1935).

    No segundo captulo, fazemos um estudo de La Doublure, obra da juventude

    de Roussel, em que a linguagem utilizada de maneira a criar um texto intrigante:

    trata-se de um poema narrativo ou de uma prosa em versos? Qual a diferena entre

    estes? Analisamos ainda a proposio freudiana de que, no inconsciente, as

    palavras so tratadas como coisa, alm de identificar, na teoria psicanaltica, uma

    aproximao entre linguagem, inconsciente e memria.

    No terceiro captulo, faz-se uma anlise dos romances Impressions dAfrique

    (Roussel, 1963) e Locus Solus (Roussel, 1963/1979), buscando caracterizar o efeito

    destas narrativas sobre o leitor. Utilizamos o texto de Freud, O Estranho

    (1919/1996), como baliza para um possvel sentimento de estranhamento

    despertado por estas obras. Buscamos, neste captulo, analisar as tambm

    proposies de Freud no texto Escritores Criativos e Devaneios (1908/1976),

    contrapondo-as afirmao de Raymond Roussel: chez moi limagination est tout 1

    (Roussel, 1935, p. 27).

    Construmos nosso trabalho a partir das colocaes de Michel Foucault

    sobre loucura e literatura, seguindo seu texto em direo obra de Raymond

    Roussel at encontrarmos a psicanlise, com suas proposies sobre palavra, coisa,

    inconsciente, memria e linguagem. Antes de realizar uma aproximao entre as

    1 em mim, a imaginao tudo (Esta e as tradues seguintes so nossas.)

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    proposies freudianas e a obra do escritor francs, preciso ter em vista que as

    relaes entre arte e psicanlise tm sido bastante profcuas, desde o marco de

    1900, A Interpretao dos Sonhos, mas igualmente tensas. Freud afirma, em

    Delrios e Sonhos na Gradiva de Jensen (1907/1969) que [os escritores criativos]

    esto bem adiante de ns, gente comum, no conhecimento da mente, j que se

    nutrem de fontes que ainda no tornamos acessveis cincia (p. 18). O teatro de

    Sfocles se apresenta como fiador da universalidade do complexo de dipo (Freud,

    1900/1999), o conto O Homem da Areia usado para circunscrever o conceito do

    Unheimliche (Freud, 1919/1996) e o processo de criao ponto de partida para o

    desenvolvimento da teoria dos trs tempos da fantasia (Freud, 1908/1976). A

    psicanlise tambm ressoa no campo das artes e um dos mais expressivos

    movimentos artsticos do sculo XX, o Surrealismo, via em Freud um padrinho,

    mesmo que relutante, e no inconsciente uma poderosa fora no processo de criao

    (Rivera, 2002).

    Entretanto, se a arte e os artistas so vistos como aliados muito valiosos

    da psicanlise (Freud, 1907/1969, p. 18), no raro, a obra de arte aproximada de

    uma formao sintomtica, um substituto infantil, mera elaborao de uma fantasia

    pessoal de seu autor. Ou, ainda, vista como no mais que uma ilustrao de

    conceitos psicanalticos, uma confirmao de suas hipteses que avana tambm

    sobre a biografia de um artista, fazendo obra e autor deitarem-se num div

    imaginrio e criando o que se convencionou chamar de psicobiografia.

    Or, que trouvons-nous dans la littrature analytique concernant le travail de

    lartiste ? Les motivations de la cration sont mises sur le compte dun

    mcanisme de dfense ou dune formation de compromis, dune

    complaisance narcissique ou dune issue hors du narcissisme, dune activit

    ftichiste ou dune sublimation russie, dune conqute de lautonomie

    (re)productrice contre le pre ou dune soumission au pre, dun refuge dans

  • 7

    le sein maternel ou dune revanche contre la mre, etc.2 (Bellemin-Nol,

    1978, p. 52)

    A colocao de Bellemin-Nol soa exagerada e, obviamente, no pode ser

    generalizada, mas pode nos servir de alerta. No h ou no deveria haver por

    parte do psicanalista, o desejo de explicar ou desvendar um texto atravs de uma

    interpretao. Diz Lacan: Quanto psicanlise, estar pendurada no dipo em nada

    a habilita a se orientar no texto de Sfocles (Lacan, 1971/2003, p. 16). Um dilogo

    entre psicanlise e literatura deve resistir s tentaes de uma psicobiografia ou de

    uma aplicao de conceitos psicanalticos, e manter a possibilidade de que ambas

    se espantem de vez em quando, se afastem, como conseqncia do prprio

    movimento de atrao que as aproxima resposta ao campo imantado entre uma e

    outra. reas obscuras necessariamente se mantm e a psicanlise deve resguardar

    os pontos nebulosos ou ambguos de um texto, em vez de atravess-los pela luz de

    algum suposto saber.

    Lacan afirma que psicanlise e literatura fazem fronteira, que se esbarram e

    partilham um terreno comum que se tenta delimitar (1971/2003). Buscamos, com

    este trabalho, apontar que a leitura psicanaltica de uma obra de arte possvel e se

    sustenta pelo modo como a psicanlise delineia a natureza do inconsciente. No

    inconsciente, restos de palavras, restos de coisas traos que, por conta de sua

    natureza de sobras, exigem leitura. A visada psicanaltica sobre a literatura deve ter

    em vista que uma interpretao, ao decifrar, no esgota, mas cifra novamente. A

    escrita de Roussel vem nos lembrar os limites da interpretao, os limites da

    linguagem e da literatura portanto, os limites da prpria psicanlise. O enigma,

    ento, reverbera, com Roussel, sobre a psicanlise, no lado da psicanlise, uma vez

    2 Ora, o que encontramos na literatura analtica sobre o trabalho do artista? As motivaes da criao so

    reputadas a um mecanismo de defesa ou a uma formao de compromisso, a uma complacncia narcisista ou a uma origem fora do narcisismo, a uma atividade fetichista ou a uma sublimao bem sucedida, a uma conquista

  • 8

    que, tratando-se de literatura, Moby Dick lio mxima: no fim das contas, a baleia

    vai para onde quiser ir (Eco, 2003).

    da autonomia (re)produtiva contra o pai ou de uma submisso ao pai, de um refgio no seio maternal ou de uma vingana contra a me, etc.

  • 9

    CAPTULO 1

    A GRAMTICA INVISVEL DE RAYMOND ROUSSEL

    [Comment jai crit certains de mes livres]

    1.1

    Foucault: loucura, literatura, linguagem

    Discorrendo sobre psicanlise e literatura, Ricardo Piglia (2004) conta que

    James Joyce, quando morou na Sua, consultou Carl Jung sobre sua filha,

    diagnosticada anteriormente como psictica. O escritor irlands mostra ao ex-pupilo

    de Freud os escritos da filha, que ele incentivava e acreditava muito semelhantes

    aos seus prprios, fragmentados e poticos. A resposta de Jung a Joyce a

    seguinte: S que, onde o senhor nada, ela se afoga. Que semelhana seria esta

    vista por Joyce entre seus livros e a escrita de sua filha? Onde este discurso da

    loucura mais pesado que a literatura, supe-se afunda, enquanto Joyce se

    mantm tona, bom nadador?

    A proximidade entre arte e loucura no passou despercebida a Michel

    Foucault, que apontou ser justamente na voz de alguns escritores nas quais ele

    teria reencontrado a potncia nietzschiana que a experincia da loucura se

    manteve viva contra o silenciamento imposto pela psiquiatria, saber-poder que, ao

    mesmo tempo que identificou os loucos, tambm construiu a loucura tal como a

    conhecemos hoje. Atravs da arte, a loucura pde manter-se viva no imaginrio

    ocidental, contra todos os dispositivos de excluso a que foi submetida (o

  • 10

    asilamento, a marginalizao social, a responsabilizao pelo Estado e o

    silenciamento, seja atravs do encarceramento ou da farmacologia):

    Nesse contexto, em que a experincia trgica da loucura passou a ser

    inserida apenas no territrio obscuro da desrazo, a loucura continuou a ser

    plasmada em prosa, verso e cores nas tradies literria e esttica, amputada

    e desvalorizada que foi do seu poder de dizer no registro da razo. (Birman,

    2001, p. 35)

    A experincia crtica da loucura, submetida ao poder de regulao do

    discurso da razo, substitui a experincia trgica da loucura experincia porque

    no esttica, despossuda de uma essncia; trgica porque impossvel de sntese

    ou pacificao.

    Seguindo a intuio foucaultiana, nem toda arte e, por conseqncia, nem

    toda literatura se presta aproximao que buscamos tecer. Localizamos este

    estudo na passagem da episteme clssica para a episteme moderna, quando vrios

    escritores comeam a se confrontar com os aspectos tradicionalmente

    representacionais da literatura clssica para voltar-se a experimentaes diversas

    na linguagem.

    Como ato deste novo homem da modernidade, a literatura passa a ser um

    espao de intransitividade radical, pura manifestao da linguagem, que no

    pretende imitar o mundo, seno afirmar no que difere dos outros discursos

    a sua existncia, num eterno retorno a si prpria, ou ao seu prprio

    engendramento como ato de escrita. (Kon, 2001, p. 99)

    Falamos, ento, de uma certa literatura, difcil de ser delineada e que

    parece ter-se dado conta, de forma traumtica, da matria de que feita: a

    linguagem. Uma literatura que, mesmo delimitada, se torna infinita por suas dobras,

    capaz de recriar-se pela constante infrao de suas prprias normas.

    caracterstico da literatura ter se dado sempre (...) como tarefa, precisamente, o

    assassinato da literatura (Foucault, 1964/2000, p. 143). Trata-se da eleio da

    transgresso de seus limites como trao primordial de uma escritura, onde os

    gestos transgressivos variam em sua vastido: o espelhamento, a duplicao, o

  • 11

    desdobramento, o desmantelamento da linguagem, sua destruio. Como aponta

    Alan Stoekl:

    It has become a commonplace of criticism to argue that modernist literature

    is about language itself. Avant-garde textual practice in some way

    fundamentally disrupts quotidian usefulness and precision of language;

    behind the faade of utility we find another language, which is the real

    realm of modernity. Language becomes a universe unto itself, an absolute

    realm that refers to the senselessness of its own origins. 3 (1985, p. 11, grifo

    nosso)

    A literatura se torna, ento, um espao privilegiado onde a linguagem

    sobredetermina o sujeito, como um espao impessoal que atravessa e ultrapassa

    uma srie de oposies, entre interioridade e exterioridade, entre eu e mundo.

    () a linguagem nem remete a um sujeito nem a um objeto: elide sujeito e

    objeto, substituindo o homem, criado pela filosofia, pelas cincias empricas

    e pelas cincias humanas modernas, por um espao vazio fundamental onde

    ela se propaga, se expande, se repetindo, se reduplicando indefinidamente.

    (Roberto Machado, 2000, pg. 113)

    O leitor tambm convidado a eleger seus gestos de transgresso.

    impossvel no convocarmos, aqui, este contra-heri, como o chama Roland

    Barthes:

    Fico de um individuo (algum Sr. Teste s avessas) que abolisse nele as

    barreiras, as classes, as excluses, no por sincretismo, mas por simples

    remoo desse velho espectro: a contradio lgica; que misturasse todas as

    linguagens, ainda que fossem consideradas incompatveis; que suportasse,

    mudo, todas as acusaes de ilogismo, de infidelidade; que permanecesse

    impassvel diante da ironia socrtica (levar o outro ao supremo oprbrio:

    contradizer-se) e o terror legal (quantas provas penais baseadas numa

    psicologia da unidade!). Este homem seria a abjeo de nossa sociedade: os

    tribunais, a escola, o asilo, a conversao, convert-lo-iam num estrangeiro:

    quem suporta sem nenhuma vergonha a contradio? Ora, este contra-heri

    existe: o leitor de texto, no momento em que se entrega a seu prazer.

    (2002, p. 7-8, grifo do autor)

    Para Michel Foucault, a literatura ou a literatura sobre a qual ele se

    debruou: le noveau roman, Maurice Blanchot, Georges Bataille, Raymond Roussel,

    3 Tornou-se lugar comum da crtica afirmar que a literatura moderna tem como tema a linguagem em si mesma.

    A prtica textual vanguardista, de certa maneira, rompe fundamentalmente com a preciso e a utilidade cotidianas da linguagem; atrs da fachada do utilitrio, encontramos uma outra linguagem, que o verdadeiro

  • 12

    Hlderlin, entre outros retoma a experincia trgica da loucura, na qual a desrazo

    joga um papel tico/esttico na produo artstica, alm de trazer o selo de uma

    articulao entre morte e obra. Pergunta-se o filsofo: como possvel uma

    linguagem que mantenha sobre o poema e sobre a loucura um nico e mesmo

    discurso? (Foucault, 1962/2001, pg. 189, grifo do autor).

    As artes no apenas defendem um modo especfico de insero da loucura

    no imaginrio, de circulao de seus contedos, mas a loucura mesma se aproxima

    da literatura por outra via, enquanto um fenmeno de linguagem, tal como assinala

    Roberto Machado (2000, p. 27). Entre a literatura e a loucura enquanto fato

    lingstico se encontra uma experincia essencialmente negativa (Macherey, 1999,

    p. XIV), que no exalta a plenitude da linguagem, mas que, ao contrrio, atesta

    vrias manifestaes de vazio, ausncia e vacncia: em Blanchot, o corao

    silencioso, porm pulsante da linguagem; em Hlderlin, a desapario dos deuses e,

    mais alm, a desapario de si; em Roussel, a repetio que esvazia e o rigoroso

    projeto de desfacelamento e ressurreio das palavras.

    preciso lembrar que a loucura nem sempre foi vista como alienao

    mental, passvel de internamento. Anterior a esta excluso, a loucura tinha seu lugar

    dentro da comunidade e do imaginrio social, como um espao oracular de

    enunciao da verdade (Birman, 2001, pg. 37). A concepo moderna de loucura

    resultado de um progressivo caminho de desvalorizao de seu discurso como

    incapaz de dizer qualquer verdade, contempornea ao nascimento da tradio

    psiquitrica e instituio deste campo de saber. Na obra de Foucault, a loucura

    no tomada em sua forma psicopatolgica; trata-se, antes, da loucura em sua

    forma ontolgica, por assim dizer, enquanto risco do homem racional: o duplo, o

    reino da modernidade. A linguagem se torna um universo em si mesma, um reino absoluto que fala da falta de sentido de suas prprias origens.

  • 13

    negativo, a carcaa da noite (Foucault, 1964/2002, p. 211), que espreita nas

    fissuras da razo e nunca deixa de ser, mesmo ao mais sadio dos mortais, uma

    possibilidade, um perigo, ainda que uma verdade. A pesquisa de Foucault vai incidir

    exatamente sobre a arqueologia da oposio razo-desrazo, de como a razo pde

    triunfar e condenar a loucura ao silncio, enterrando um momento anterior em que a

    linguagem da loucura e a linguagem sem piedade da no-loucura (Foucault,

    1961a/2002, p. 152) se encontravam indiferenciadas. Este gesto de diferenciao,

    de estabelecimento de limites esses gestos esquecidos, necessariamente

    esquecidos logo que concludos, pelos quais uma cultura rejeita alguma coisa que

    ser para ela o Exterior (idem, p. 154) lanam a loucura no misterioso campo do

    Outro, o Outro da razo.

    Entre razo e loucura instala-se um silncio: o possvel dilogo que as unia

    foi perdido nos primrdios da histria, numa linguagem que no reconhecia as

    diferenas dentro de si mesma, malevel ainda. Para a historia da razo, estes

    infinitos discursos, todos vos em seu sem-sentido, em seus delrios indecifrveis,

    possuem alto valor, uma vez que no pode haver na nossa cultura razo sem

    loucura (idem, p. 157). sob a recusa da loucura que se constri a razo: pelo

    atrito com esta diferena que criamos tanto o sentido quanto o no-sentido. Trata-se,

    ento, de um gesto de diferenciao com valor organizativo: sobre ele que

    repousa a possibilidade de uma Histria, mesmo que, sob a dialtica desta historia

    tese, anttese, sntese , repouse a experincia imvel da loucura.

    A linguagem, operada pela loucura, torna-se

    () o murmrio obstinado de uma linguagem que falaria sozinha sem

    sujeito falante e sem interlocutor, comprimida sobre ela prpria, atada

    garganta, desmoronando antes de ter atingido qualquer formulao e

    retornando sem brilho ao silncio do qual jamais se desfez. (idem, ibidem)

  • 14

    Na literatura, os vazios da linguagem so conduzidos compreenso

    atravs de um movimento sempre incompleto e sempre necessrio que faz vibrar

    de sentido estes espaos. Nas produes discursivas da loucura, estes vazios so

    opacos e desintegrados, no podem ser trazidos de volta fala para no dizer,

    lngua para no comunicar.

    Fazemos parte de uma cultura que aproximou afirmaes to estranhas

    uma outra quanto: eu escrevo, eu minto e eu deliro; ou eu sou louco e eu

    sou uma besta, eu sou um deus, um signo, uma verdade (Foucault,

    1964/2002, p. 218). Quaisquer que sejam as intenes proclamadas pelos autores,

    h algo no ato na escritura que resiste por si mesmo, que responde apenas s

    necessidades de experienciar a linguagem por parte do escritor. A loucura aprofunda

    algo apenas vislumbrado na literatura, de tal forma que a palavra se torna, ento,

    destituda de valor ou, num outro extremo, uma moeda de valor excessivo, e,

    portanto, perigosa.

    Lanado em 1963, o livro de Michel Foucault, Raymond Roussel, sobre o

    escritor francs tratado por Pierre Janet, se alinha s questes apresentados at

    aqui: liames entre literatura e loucura, vazios e limites da linguagem. H, por parte

    de Foucault, um desejo de manter parte esta obra que est mais prxima de uma

    histria de amor (Macherey, 1999, p. VII). Devemos lembrar que, para Foucault, a

    literatura aparentada da morte, encena a morte, joga com ela num labirinto s

    vezes, indo ao seu encontro; s vezes, fingindo fugir-lhe. No toa, ento, que

    Roussel, com sua obra propositalmente pstuma, em que a morte derrama-se sobre

    as pginas como condio mesma de leitura, seja o escritor a quem Foucault

    escolhe, com carinho, dedicar um livro inteiro.

  • 15

    1.2

    A gramtica invisvel de Raymond Roussel

    Raymond Roussel nasceu em 20 de janeiro de 1877, em Paris, no seio de

    uma abastada famlia francesa, do mesmo reduto que os Proust e os Leiris. Sua

    me, burguesa rica, orgulhosa de receber artistas em seu salo, estimulava a vida

    cultural de seus filhos e inscreveu Roussel, ento com 13 anos, no Conservatrio,

    mesmo que o adolescente no fosse especialmente dotado para a msica. apenas

    aos dezessete anos que os professores passam a ver nele no mais um aluno

    medocre, mas um estudante aplicado e at mesmo promissor. Entretanto, a esta

    altura, o futuro escritor j havia tomado uma deciso: a dificuldade em musicar seus

    poemas fez com que desistisse da msica e se decidisse definitivamente pela

    escrita. 4

    As circunstncias da criao de sua primeira obra, La Doublure, so, no

    mnimo, bastante inusitadas. Roussel comeou a escrever este livro aos 19 anos e,

    convencido previamente da grandiosidade de sua obra, trabalhou sem descanso

    para que seu livro estivesse pronto antes de seu vigsimo aniversrio. Durante este

    perodo, foi tomado por une sensation de gloire universelle dune intensit

    extraordinaire 5 (Roussel, 1935, p. 26). Ao ser lanado, o livro no alcanou o

    sucesso esperado e seu autor sofreu uma grave crise nervosa:

    Quand la Doublure parut, le 10 juin 1897, son insuccs me causa un choc

    dune violence terrible. Jeus limpression dtre prcipit jusqu terre du

    haut dun prodigieux sommet de gloire. La secousse alla jusqu provoquer

    chez moi une sorte de maladie de peau qui se traduisit par une rougeur de

    4 Os dados biogrficos apresentados neste trabalho foram retirados, essencialmente, do livro de Franois

    Caradec: Raymond Roussel, Paris: Ed. Fayard, 1997. A no ser em casos especficos, a referncia ser omitida a fim de no tornar o texto cansativo. 5 uma sensao de glria universal de uma intensidade extraordinria

  • 16

    tout le corps et ma mre me fit examiner par notre mdecin, croyant que

    javais la rougeole. De ce choc rsulta surtout une effroyable maladie

    nerveuse dont je souffris pendant bien longtemps. 6 (idem, p. 29)

    Alguns anos depois, Roussel foi tratado pelo psiquiatra Pierre Janet que, em

    seu livro, De lAngoisse lExtase, de 1928, apresentou descries de seu paciente

    sob o pseudnimo de Martial, por conta do personagem principal de Locus Solus,

    Martial Canterel 7. Causa espanto a Pierre Janet a convico de Roussel sobre o

    altssimo valor literrio de suas obras, uma vez que seus livros no so lidos, no

    alcanam sucesso e so considerados mesmo insignificantes (Janet, 1928, apud

    Roussel, 1935). Anima Martial o sentimento da glria, da predestinao, do prodgio,

    a certeza que raios luminosos saem de sua pena e podem iluminar o mundo:

    Jarriverai des sommets immenses et je suis n pour une gloire fulgurante.

    Cela peut tre long mais jaurai une gloire plus grande que celle de Victor

    Hugo ou de Napolon. () Il y a en moi une gloire immense en puissance

    comme dans un obus formidable qui na pas encore clat Cette gloire

    portera sur tous les ouvrages sans exception, elle rejaillira sur tous les actes

    de ma vie (). Aucun auteur na t et ne peut tre suprieur moi ()

    Que voulez-vous, il y a des prdestins! () Oui, jai senti une fois que

    javais ltoile au front et je ne loublierai jamais. 8 (Janet, 1928, apud

    Roussel, 1935, p. 128)

    E, mais adiante:

    On sent quelque chose de particulier que lon a fait un chef-duvre, que

    lon est un prodige () Cette gloire tait un fait, une constatation, une

    sensation, javais la gloire () Mais javais beau prendre des prcautions,

    des rais de lumires schappaient de moi et traversaient les murs, je portais

    le soleil em moi et je ne pouvais pas empcher cette formidable fulguration

    6 Quando La Doublure foi lanado, em 10 de junho de 1897, seu insucesso me causou um choque de uma

    violncia terrvel. Tive a impresso de ser lanado terra do alto de um prodigioso pice de glria. Este abalo chegou a provocar em mim uma espcie de doena de pele que se caracterizou por uma vermelhido no corpo inteiro e minha me me fez ser examinado por nosso mdico, acreditando tratar-se de sarampo. Este choque teve como conseqncia principal uma assustadora doena nervosa da qual sofri durante muito tempo. 7 Agradecemos a Piero Eyben a observao que Martial pode ser tambm uma referncia ao poeta romano que

    trabalhava com epigramas, Marcial. 8 Eu chegarei a grandes cumes e nasci para uma glria fulgurante. Talvez isso tome tempo, mas terei uma glria

    maior que a de Victor Hugo ou Napoleo. () H, em mim, uma imensa glria em potncia como num formidvel obus que ainda no explodiu Esta glria estar em todas as minhas obras sem exceo, ela jorrar sobre todos os atos de minha vida (). Nenhum escritor foi ou pode ser superior mim () O que se pode fazer, h aqueles que so predestinados! () Sim, uma vez senti a estrela na fronte e no o esquecerei jamais.

  • 17

    de moi-mme. () Jai plus vcu ce moment-l que dans toute mon

    existence. 9 (idem, p. 129-130)

    Rastros desta vivncia de xtase perduraro e Martial, como ele prprio

    admite, buscar reviver em suas outras obras esta sensao de soleil moral 10

    (idem, p. 130) que lhe acompanhou durante a composio de La Doublure. ao

    perceber que seu livro no foi saudado como um estrondoso sucesso que Martial

    passou a apresentar sinais de uma vritable crise de dpression mlancolique avec

    une forme bizarre de dlire de perscution, prenant la forme de lobsession et lide

    dlirante du dnigrement universel des hommes les uns par les autres 11, segundo

    diagnstico de Janet (idem, ibidem). Maior que Martial, apenas Julio Verne, a quem

    Roussel dedicava uma admirao desmesurada: Il [Julio Verne] sest lev aux plus

    hautes cimes que puisse atteindre le verbe humain 12 (Roussel, 1935, p. 26).

    O fracasso de La Doublure romance em versos dodecasslabos tem

    contraponto no sucesso absoluto de Cyrano de Bergerac, de Edmond Roustand,

    futuro entusiasta da obra de Roussel. Diz Michel Leiris: Lchec de La Doublure

    marque la fin de la srnit de Roussel 13 (apud Caradec, 1997, p. 51). E o comeo

    de sua vida como escritor.

    As obras seguintes, Impressions dAfrique, Locus Solus, toile au Front,

    Poussire de Soleils, Chiquenaude, Nanon no alcanam melhor resultado.

    Impressions dAfrique e Locus Solus foram adaptados para o teatro em 1911 e 1922,

    respectivamente o que resultou no apenas num segundo fracasso, mas num

    verdadeiro escndalo, com direito troca de ameaas entre partidrios e

    9 Sente-se, graas a algo particular, que se realizou uma obra-prima, que se um prodgio () Esta glria era

    um fato, uma constatao, uma sensao, eu tinha a glria Mesmo tendo tomado precaues, raios de luz escapavam de mim e atravessavam as paredes, eu carregava o sol em mim e no podia impedir esta formidvel fulgurao de mim mesmo. () Vivi mais naquele momento do que em toda a minha existncia. 10

    sol moral 11

    verdadeira crise de depresso melanclica acrescida de uma estranha forma de delrio de perseguio, tomando a forma de obsesso e da idia delirante do denigrescimento universal dos homens uns pelos outros 12

    Ele [Jlio Verne] alou-se aos mais altos cumes que possa alcanar o verbo humano.

  • 18

    adversrios do autor e presena da polcia para conter o tumulto em algumas das

    apresentaes.

    La Doublure composta numa fivre de travail 14 (Roussel, 1935, p. 28) e

    os anos seguintes so, segundo Roussel, dedicados uma insatisfatria

    prospeco: Cette prospection nallait pas sans me causer des tourments et il mest

    arriv de me rouler par terre dans crises de rage, en sentant que je ne pouvais

    parvenir me donner les sensations dart auxquelles jaspirais. 15 (idem, p. 29)

    apenas aos trinta anos que Roussel afirma ter enfim encontrado seu

    caminho atravs da combinao e quebra de palavras, mtodo sobre o qual

    falaremos mais adiante. Em 1931, ele envia a seu editor algumas pginas de um

    livro que ir se chamar Comment jai crit certains de mes livres Como escrevi

    alguns de meus livros , com instrues expressas para a publicao pstuma.

    Nesta poca, Raymond Roussel j havia dissipado a maior parte da fortuna herdada

    aps a morte de seu pai, financiando a encenao de suas peas ou sustentando

    antigos empregados, e estava instalado, junto a Charlotte Duffrene, sua pretensa

    noiva h 23 anos, num hotel em Palermo. encontrado morto em seu quarto, por

    overdose de barbitricos, no dia 14 de julho 1933, dois dias antes de partir para uma

    segunda estadia numa clnica de desintoxicao.

    O livro pstumo dividido em quatro partes. Na primeira, Roussel descreve

    e exemplifica seu procedimento de escritura, exprime sua fervorosa admirao por

    Julio Verne e apresenta alguns fatos de sua vida: as circunstncias da produo de

    La Doublure, a recepo de suas peas pelo pblico e pelos crticos, os ttulos de

    nobreza que ele apresenta como pertencentes sua famlia, mas que so, na

    13

    O fracasso de La Doublure marca o fim da serenidade de Roussel. 14

    febre de trabalho 15

    Esta prospeco no deixava de me causar tormentos e me aconteceu de rolar no cho em crises de raiva, sentindo que no conseguia alcanar as sensaes de arte s quais eu aspirava.

  • 19

    verdade, da famlia de seu cunhado (sua irm era Duquesa dElchingen). A segunda

    parte, sob o judicioso titulo de Citations Documentaires16, traz contos, poemas, o

    trecho da obra de Pierre Janet, De lAngoisse lExtase, em que Roussel

    apresentado como o paciente Martial, alguns artigos sobre xadrez. A terceira parte

    apresenta os Textes de Grande Jeunesse ou Textes-Gense17, onde os contos

    que deram origem a alguns de seus romances os alguns de meus livros do ttulo

    so apresentados. Na quarta parte, Documentos pour Servir de Canevas, textos

    incompletos so ordenados do primeiro ao sexto, conforme o desejo de seu autor:

    Si je meurs avant davoir termin cet ouvrage et que quelquun veuille le

    publier mme incomplet, je dsire que lon supprime le dbut et que lon

    commence Premier Document, ci-aprs, et que lon remplace les initiales

    par des noms en compltant les blancs et en mettant pour titre gnral :

    Documents pour servir de Canevas.18 (idem, p. 264)

    na primeira parte do livro de Roussel que seu procedimento de escritura

    descrito. Um nico exemplo, utilizado na gnese de Impressions dAfrique, pode nos

    servir. Na execuo deste procedimento, Roussel busca duas palavras

    foneticamente semelhantes, com apenas uma letra diferente entre elas neste caso,

    billard (bilhar, o jogo de sinuca) e pillard (pilhante, no sentido de ladro, aquele que

    pilha alguma coisa) so as escolhidas. Tais palavras so inseridas numa mesma

    frase:

    Les lettres du blanc sur les bandes du vieux billard

    e

    Les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard

    16

    Citaes documentais 17

    Textos de Grande Juventude ou Textos-Gnese 18

    Caso eu morra antes de ter terminado esta obra e algum queira public-la mesmo incompleta, desejo que se suprima o incio e que se comece por Primeiro Documento, este seguinte, e que se substitua as iniciais por nomes, completando os espaos em branco, e colocando, como ttulo geral: Documentos para Servir de Planos (O termo canevas indica o plano de um bordado ou uma talagara tela onde se borda.)

  • 20

    Entretanto, as palavras repetidas em cada uma das frases so tomadas em

    significados distintos, criando conjuntos que diferentes apenas em uma letra ou

    fonema tm sentidos absolutamente diversos. Temos, assim, numa traduo

    possvel:

    As letras de giz nas bandas do velho bilhar

    e

    As cartas do branco sobre os bandos do velho pilhante

    Ou seja, a mudana de uma nica letra, ao fim de uma frase, tem sobre a

    mesma um efeito retroativo que desloca seu significado, impondo uma releitura e

    enfatizando a relao entre tempo e sentido o significado de uma palavra depende

    tambm daquilo que dito depois. Assim, Roussel cria uma histria que comea

    com o primeiro conjunto e termina com o segundo. Num momento inicial de seu

    procedimento, a primeira frase iniciava textualmente o trabalho, enquanto a ltima

    terminava a narrativa, tal como exposto nos Textos-Gnese. Posteriormente, as

    frases so utilizadas apenas como direcionamentos da historia, linhas de enredo,

    no surgindo diretamente nos livros.

    Assim, a primeira frase a que Roussel chegou atravs de seu processo lhe

    forneceu a idia de um jogo de adivinhaes em que a resposta escrita, a giz, na

    mesa de um bilhar, enquanto a segunda lhe apresenta a situao de um europeu

    aprisionado por um selvagem rei africano e que escreve cartas onde conta suas

    aventuras.

    O procedimento levado adiante em outras associaes. Queue de billard

    taco do bilhar lhe forneceu a cauda do manto (robe trane) de Talou VII, o rei

    pilhante (le pillard). Tanto o taco como o vestido podem trazer gravados um

    monograma, um selo, a marca de seu dono (le chiffre). bandes, Roussel pensou

  • 21

    em tecidos que tivessem quer ser cerzidos (reprise: cerzidura); reprise, significando

    concerto musical, trouxe a Roussel o Jeroukka, epopia cantada pelas hordas de

    Talou, que consistiam na repetio reprise de um curto motivo. Pensando em

    blanc, Roussel chegou colle a cola branca usada para fixar o papel. A mesma

    palavra, colle, uma gria para castigo escolar e lhe forneceu as trs horas de

    castigo infligidas ao branco (blanc) Carmichal, por ter errado um trecho da Jerouka

    em seu canto.

    Este procedimento que chamaremos Procedimento 1 no o nico

    empregado por Roussel. Em seu livro, ele apresenta um outro mtodo de escrita,

    tambm empregado na criao de seus livros, chamado por ele de procedimento

    evoludo: Le procd evolua et je fus conduit prendre une phrase quelconque,

    dont je tirais des images en disloquant, un peu comme sil se ft agi den extraire des

    dessins de rbus. 19 (Roussel, 1935, p. 20, grifos nossos)

    Neste procedimento evoludo Procedimento 2 , algumas frases parecem

    ser tomadas enquanto um desafio: como ignorar sentidos j cristalizados como Jai

    du bon tabac dans ma tabatire, trecho de uma conhecida msica infantil francesa

    e dissolv-lo em outra coisa? Assim, Au Clair de la lune mon ami Pierrot se torna

    Eau glaire (cascade dune couleur de glaire explicao do prprio Roussel) de l

    lanmone midi negro (Roussel, 1935, p. 20). Deste processo de desarticulao, de

    esfacelamento das palavras, nada restar que no isso: desenhos de rbus, rbus

    apenas, sem soluo.

    19

    O procedimento evoluiu e fui conduzido a tomar uma frase qualquer, da qual extraa imagens ao desarticul-la, um pouco como se tratasse de extrair disso desenhos de rbus.

  • 22

    O mtodo de Roussel parent de la rime, essentiellement un procd

    potique 20 (idem, p. 23). Sob ele, nada que se conserva e at o endereo do

    sapateiro se converte em outra coisa atravs da semelhana sonora:

    Hellstern, 5, place Vndome

    Hellstern 5 place Vn/dome

    Hlice tourne zinc plat se rend dme 21

    Por semelhana fontica, Hellstern deriva em Hlice tourne (hlice gira) e

    cinq (cinco) em zinc (zinco); place (praa) se torna plat se (chato ou liso, se) e

    Vndome (nome da praa) se torna rend dme (torna22 cpula).

    Vejamos um outro exemplo:

    Demoiselle pretendant

    Demoiselle ritre en dents

    Este segundo exemplo combina o trabalho sobre a ambigidade do termo

    demoiselle com a decomposio de pretendant em um conjunto de palavras retre

    en dents bastante prximo foneticamente. Demoiselle tomado na primeira frase

    no sentido de jeune fille, ou seja, de donzela que possui um pretendente

    (pretendant) e, na segunda frase, no sentido de hie. Hie um instrumento

    antigamente utilizado para a pavimentao de ruas ou aterramentos, num

    funcionamento prximo ao de um bate-estacas. Demoiselle tambm o nome com

    20

    parente da rima, procedimento essencialmente potico 21

    A frase original seguinte: Hlice tourne zinc plat se rend (devient) dome; retiramos o termo entre parnteses a fim de que a semelhana fontica ficasse mais evidente. 22

    Rendre um verbo notadamente polissmico, podendo ser tomado como: entregar, restituir, fornecer, produzir, realizar, entre outros. O traduzimos como tornar ou tornar-se por conta da indicao do prprio Roussel.

  • 23

    que Santos Dumont batizou um de seus primeiros modelos de aeroplano, alm de

    um sinnimo para liblula (figura 1).

    Retre um termo surgido da Guerra dos Trinta Anos, designao militar de

    um soldado germnico mercenrio a servio da Frana. O termo utilizado para

    designar algum cruel e perverso, que se compraz com o derramamento de sangue.

    Dents nos leva a dentes. No h sentido possvel no conjunto que Roussel obtm ao

    Figura 1

    Gravura de Lebrgue, para o Gaulois de Dimanche, de 2-3 de outubro de 1909,

    apud Kerbellec, 1988, p. 84.

  • 24

    decompor pretendente a uma donzela em Hie (ou bate-estaca) do mercenrio em

    dentes.

    Como extrair, daqui, uma imagem? Que utilidade pode ter esta de-

    composio para a criao de uma obra? At onde se pode seguir o procedimento?

    Pareceria tratar-se de uma explorao sem objetivo da linguagem, onde o

    significado de cada palavra laboriosamente arruinado, no fosse o rigor com que

    Roussel trabalha tais frases para faz-las construir uma imagem, para extrair deste

    novo conjunto algo que faa s vezes de sentido.

    O procedimento rousseliano no apenas inventivo, mas tambm rigoroso.

    No se apia na sorte, no encontro fortuito ou na escrita automtica, como gostariam

    os surrealistas; fruto de seu trabalho obsessivo e, no raro, Roussel encontra

    impasses em suas operaes fonticas, expresses, tal como demoiselle retre em

    dents, que parecem impossveis de serem aproveitadas, as quations de faits23,

    segundo a denominao de Robert de Montesquiou (apud Roussel, 1935, p. 23).

    Estes novos conjuntos, como hie do mercenrio em dentes, parecem, de certa

    forma, refratveis ao sentido, como se as palavras ultrapassassem seus prprios

    limites e possibilidades. Refratveis, pelo menos, a um sentido imediato, mas

    capazes de, atravs de quebras e reconstrues, ampliar o campo discursivo,

    abrindo inesperadas portas dentro da linguagem.

    Mesmo que resolvidos logicamente, equacionados, o no-sentido da frase

    desdobrada continua insistindo sobre as imagens s quais Roussel chega, criando

    um sentimento de desconforto no leitor que tenta compor sua leitura. Eis a imagem

    derivada da decomposio de Demoiselle pretendent e do desdobramento de

    Demoiselle retre en dents:

    23

    equaes de fatos

  • 25

    Nous fmes quelques pas vers un point o se dressait une sorte

    dinstrument de pavage, rappelant par sa structure les demoiselles ou hie

    quon emploie au nivellement des chausses.

    Lgre dapparence, bien quentiremente mtallique, la

    demoiselle tait suspendue un petit arostat jaune clair, qui, par sa partie

    infrieure, vase circulairement, faisait songer la silhouette dune

    montgolfire.

    En bas, le sol tait garni de la plus trange faon.

    Sur une tendue assez vaste, des dents humaines sespaaient de

    tous cts, offrant une grande variet de formes et de couleurs. Certaines,

    dune blancheur clatante, contrastaient avec des incisives de fumeurs

    fournissant la gamme intgrale des bruns et des marrons. Tous les jaunes

    figuraient dans le stock bizarre, depuis les plus vaporeux tons paille

    jusquaux pires nuances fauves. Des dents bleues, soit tendres, soit fonces,

    apportaient leur contingent dans cette riche polychromie, complete par une

    foule de dents noires et par les rouges ples ou criards de maintes racines

    sanguinolentes.

    Les contours et les proportions diffraient linfini molaires

    immenses et canines monstrueuses voisinant avec des dents de lait presque

    imperceptibles. Nombre de reflets mtalliques spanouissaient et l,

    provenant de plombages ou daurifications.

    A la place occupe actuellement par la hie, les dents, troitement

    groupes, engendraient, par la seule alternance de leurs teintes, un vritable

    tableau inachev. Lensemble voquait un retre sommeillant dans une

    crypte sombre, vautr mollement au bord dun tang souterrain. Une fume

    tnue, enfante par le cerveau du dormeur, montrait, en manire de rve,

    onze jeunes gens se courbant demi sous lempire dune frayeur inspire

    par certaine boule arienne presque diaphane, qui, semblant servir de but

    lessor dominateur dune blanche colombe, marquait sur le sol une ombre

    lgre enveloppant un oiseau mort. Un vieux livre ferm gisait ct du

    retre, quilluminait faiblement une torche plante droite dans le sol de la

    crypte. (Roussel, 1963/1979, p. 28-9)

    Numa traduo livre, teramos algo como:

    Caminhamos alguns passos em direo a um ponto onde se erguia

    uma espcie de instrumento de pavimentao, lembrando, por sua estrutura

    as demoiselles ou hies normalmente utilizadas no nivelamento de

    caladas.

    Leve na aparncia, mesmo que inteiramente metlica, a demoiselle

    era suspensa por um pequeno aerstato amarelo claro, que, em sua parte

    inferior, alargada circularmente, fazia lembrar a silhueta de um

    montgolfire.24

    Abaixo, o cho era preenchido da mais estranha forma.

    24

    Montgolfire um balo gs, no digirvel, criado pelos irmos Montgolfire, no final do sculo XVIII.

  • 26

    Sobre uma suficientemente vasta extenso do solo, dentes humanos

    se espaavam por todos os lados oferecendo uma enorme variedade de

    formas e de cores. Alguns, de um branco ofuscante, contrastavam com

    incisivos dos fumantes, que formavam uma gama integral de castanhos e

    marrons. Todos os amarelos figuravam no bizarro estoque, desde os mais

    vaporosos tons de palha s piores matizes flvidas. Dentes azuis, em

    nuances suaves ou escuras, participavam desta rica policromia, completada

    por vrios dentes negros e pelos vermelhos plidos ou gritantes de

    numerosas razes sanguinolentas.

    Os contornos e as propores diferiam ao infinito molares

    imensos e caninos monstruosos se avizinhavam a dentes de leite quase

    imperceptveis. Reflexos metlicos brotavam aqui e ali, provenientes do

    chumbo ou do ouro das obturaes.

    No local atualmente ocupado pela hie, os dentes, agrupados

    estreitamente uns aos outros, engendravam, apenas pela alternncia entre

    seus tons, um verdadeiro quadro ainda inacabado. O conjunto evocava um

    cruel mercenrio dormitando numa sombria cripta, atascado frouxamente

    na borda de um riacho subterrneo. Uma tnue fumaa, nascida no crebro

    do adormecido, mostrava, como em sonho, onze jovens que se curvavam ao

    meio sob o domnio de um terror inspirado por certa bola area quase

    difana que, parecendo servir de alvo ao arrojar dominador de uma pomba

    branca, marcava no solo uma leve sombra envolvendo um pssaro morto.

    Um velho livro fechado jazia ao lado do mercenrio, iluminado fracamente

    por uma tocha plantada direita no cho da cripta.

    Seule um fine mosaque lui semblait apte provoquer un difficulteux et

    frquent va-et-vient de lappareil 25 (idem, p. 36) e tambm apenas um fino

    mosaico apto a unir, conforme determinado pelo procedimento, a hie, o soldado

    mercenrio alemo e os dentes. A imaginao do leitor de Locus Solus se exaure

    buscando imaginar este bate-estaca voador lanando ao solo dentes que, dispostos

    em certa ordem, criam, atravs apenas da alternncia entre suas cores, as infinitas

    imagens do sonho de um mercenrio alemo que dorme. A descrio desta

    maravilhosa e assustadora mquina, que tem como complemento un curieux

    systme permettant dextraire les dents sans aucune souffrance 26 (idem, ibidem),

    continua por vrias e vrias pginas, cada uma delas acrescentando novas e

    inusitadas caractersticas mecnicas ao invento. O objetivo de seu criador, Martial

    25

    Apenas um fino mosaico lhe parecia apto a provocar o difcil e freqente vai-e-vem do aparelho 26

    um curioso sistema que permite extrair os dentes sem sofrimento algum

  • 27

    Canterel, chegar a un appareil capable de crer une uvre esthtique due aux

    seuls efforts combins du soleil et du vent 27 (idem, ibidem). Ou seja, uma mquina

    que, sutilmente estimulada pelos raios solares e pelas mudanas no vento, cria

    sozinha seu produto. Ora, impossvel no lembrar-se aqui do prprio procedimento

    de escritura de Roussel: uma rigorosa submisso s regras de associao fontica

    ser suficiente para criar uma obra. Sugere Patrick Besnier que, apresentando seu

    procedimento aos leitores, Roussel gostaria de provar que no era o doente que

    todos o acreditavam ser, Mais la rvtation complte nest-elle pas laveu dun ordre

    plus fou que lapparent dsordre? 28 (Besnier, 1988, p. 11)

    O segundo procedimento , de fato, um procedimento evoludo. Num

    primeiro momento, entre billard e pillard, trabalha-se sobre a ambigidade das

    palavras, a multiplicidade de significados e suas conseqncias. O sentido

    claramente posto em risco, em xeque, mas recuperado atravs do jogo entre os

    termos das frases. Neste segundo procedimento, parte-se de uma primeira frase,

    que pode variar entre um verso popular at um conjunto aleatrio o que seria mais

    aleatrio que um endereo? para se chegar a um outro conjunto de termos ainda

    mais arbitrrio. As palavras no so mais respeitadas em sua unidade, mas

    quebradas em unidades cada vez menores que, recompostas, aportam em outras

    palavras.

    Se possvel encaminhar este novo conjunto recuperao de um sentido,

    atravs do desdobramento da frase-objetivo em imagens fantsticas, estas mesmas

    imagens conservam a marca do sem-sentido de sua origem. Diz Blanchot:

    Limage, daprs lanalyse commune, est aprs lobjet : elle en est la suite;

    nous voyons, puis nous imaginons. Aprs lobjet vient limage. Aprs

    semble indiquer un rapport de subordination. () Mais peut-tre lanalyse

    27

    um aparelho capaz de criar uma obra esttica graas apenas aos esforos combinados do sol e do vento 28

    Entretanto, a revelao completa no a confisso de uma ordem mais louca que a aparente desordem?

  • 28

    commune se trompe-t-elle. Peut-tre, avant daller plus loin, faut-il

    demander : mais quest-ce que limage ? 29 (Blanchot, 1955a, p. 15)

    Roussel no cria uma imagem a partir de um objeto, mas parece criar uma

    estranha classe de imagens sem objeto. Privilegiando as relaes de homofonia e a

    ambigidade das palavras, ele abandona a prerrogativa do sentido na construo de

    suas histrias, que passam a ser originadas das frases resultantes do procedimento.

    A homofonia, tal como a sinonmia, responde maciamente por equvocos na

    linguagem. Poderamos pensar num tecido com regies esgaradas que podem

    mais facilmente se romper. Para Foucault, o procedimento de Roussel apenas

    possibilita linguagem que se desdobre segundo suas prprias regras e as formas

    de sua fontica:

    O encantamento no est ligado a um segredo depositado nas dobras da

    linguagem por uma mo exterior: ele nasce das formas prprias a essa

    linguagem quando ela se desdobra a partir dela mesma segundo o jogo de

    suas possveis nervuras. (Foucault, 1962/2001, p. 7)

    A leitura de Foucault vai na contramo da leitura realizada pelos

    surrealistas, que tomaram Roussel como uma espcie de padrinho de seu

    movimento e viam em Comment jai crit certains de mes livres uma obra reveladora

    dos segredos de uma escrita misteriosa. risco na literatura de Roussel que,

    acreditando se possuir a chave (a revelao do procedimento de escrita), tomar a

    obra inteira como uma grande fechadura (Besnier, 1988).

    Quatro romances foram gerados a partir deste processo fontico:

    Impressions dAfrique, ltoile au Front, Locus Solus e Poussire de Soleils. Em

    relao a suas outras obras, diz Roussel: Il va sans dire que mes autres livres : la

    Doublure, La Vue et Nouvelles Impressions dAfrique sont absolument trangers au

    29

    A imagem, seguindo a anlise comum, vem aps o objeto; ela sua continuao; ns vimos e, depois, imaginamos. Aps o objeto vem a imagem. Aps parece apontar para uma relao de subordinao. Mas, talvez, a anlise comum se engane. Talvez, antes de ir mais longe, preciso se perguntar: mas o que a imagem?

  • 29

    procd 30 (Roussel, 1935, p. 25). Entretanto, se no mesmo preciso dizer que

    estes outros livros no foram compostos atravs do procedimento fontico, isso no

    quer dizer que estejam livres de questionamento. O enigma do procedimento

    rousseliano se espalha, suas dvidas so contagiosas, despertando inquietantes

    questes: no haver, ento, outro procedimento, sob estas obras? Que outro

    procedimento ser este? possvel adivinh-lo? Lendo Comment jai crit certains

    de mes livres (1935), percebe-se que o mtodo apresentado no explica, que a

    descrio do processo apenas amplia, como num efeito de espelhos dobrados, um

    enigma. Como bem aponta Macherey (1999, p. XXI): O segredo do segredo seria,

    portanto que no existe absolutamente segredo, ou melhor, que o segredo, cujo

    carter irrisrio impressiona muito, logo que revelado, no oculta nada.

    Raymond Roussel desenvolve, em sua literatura, um jogo entre dito e j dito.

    Trata-se, no de uma repetio que retoma ou enfatiza, mas de uma repetio que

    cria diferena, que pe a linguagem em questo, uma vez que dizer o mesmo se

    torna, enfim, dizer algo muito diverso. O procedimento de Roussel acaba por apontar

    que o uso das palavras to impreciso que repetir produz diferenas, diferenas to

    grandes que possvel criar, atravessar uma histria completa entre duas frases

    que, de to semelhantes, se tornaram estranhas uma outra. A duplicao central

    em seu mtodo no cria linguagens de superfcie e linguagens subterrneas, mas

    emparelha efeitos de linguagem, coloca suas possibilidades lado a lado, apontando

    para uma multiplicao infinita. A repetio impede o retorno das coisas de coincidir

    com o retorno da linguagem (Foucault, 1963/1999, p. 18). identidade das coisas

    sobrepe-se ambigidade das palavras:

    30

    bvio que meus outros livros: La Doublure, La Vue e Nouvelles Impressions dAfrique so absolutamente estranhos ao procedimento. Entretanto, se so estranhos ao procedimento, mesmo nestes textos Roussel j se utilizava do equvocos da linguagem como matria prima. Vide La Doublure.

  • 30

    () destruir a identidade das coisas com a ambigidade das palavras,

    desfazendo a ligao entre as palavras e as coisas, o signo e o sentido, o

    significante e o significado, isso se d por conta de uma repetio que

    mostra a falha, a falta da linguagem. (Machado, 2000, pg. 81)

    O incontornvel dilema da enunciao que a palavra, por mais que busque

    presentificar a coisa, no a coisa ignorado por Roussel, que desobriga a

    literatura da representao de uma suposta realidade, e que prefere, a este

    compromisso, inserir em seus livros vermes cantores que operam um delgado

    mecanismo musical embutido numa carta de tar, esttuas feitas com barbatanas de

    baleia que deslizam sobre trilhos de pulmo de bezerro, um adolescente de sangue

    esverdeado capaz de entrar voluntariamente num coma, aparelhos to maravilhosos

    quanto a hie voadora ou as melodiosas mquinas de tortura criadas em honra do rei

    Talou VII, corpos que se tornam instrumentos musicais (uma tbia arrancada se torna

    uma flauta, o abdmen cncavo dos membros de uma famlia so verdadeiras

    caixas de ressonncia), alm de um colossal diamante em cujo interior um

    misterioso liquido mantm suspensa a cabea decepada de Danton e a faz balbuciar

    desconexas frases patriticas quando um gato sem plos lhe introduz substncias

    ressuscitadoras (Roussel, 1963; Roussel, 1963/1979) : monstruosidades sem

    espcies nem famlias (Foucault, 1963/1999, p. 32).

    Afinal, diz Roussel: Jai beaucoup voyag. () Or, de tous ces voyages, je

    nai jamais rien tir pour mes livres. Il ma paru que la chose mritait dtre signale

    tant elle montre clairement que chez moi limagination est tout 31 (Roussel, 1935, p.

    27, grifo nosso). A descrio de Martial, feita por Janet, refora esta impresso:

    Martial a une conception trs intressante de la beaut littraire, il faut que

    luvre ne contienne rien de rel, aucune observation du monde ou des

    31

    J viajei bastante. () Ora, jamais extra nada de todas estas viagens para meus livros. Me pareceu que isto merecia ser assinalado tanto mostra claramente que em mim a imaginao tudo.

  • 31

    esprits, rien que des combinaisons tout fait imaginaires : ce sont dj des

    ides dun monde extrahumain. 32 (Janet, 1928, apud Roussel, 1935, p. 132)

    De suas viagens pela Europa, sia e frica, Roussel no tomou nenhuma

    nota e no fez nenhum relato. Apesar de ter desenvolvido um automvel

    especialmente para estas viagens um Rolls-Royce com escritrio e dormitrio, que

    foi visitado por Benito Mussolini e despertou a curiosidade at do papa , o carro

    passava sempre com as cortinas cerradas. Toutes le grandes villes se

    ressemblent33, Roussel confidencia, cheio de indiferena, a Pierre Leiris (Caradec,

    1997, p. 211).

    O procedimento de Roussel pe seus escritos deriva, os ameaa,

    insinuando que toda palavra fruto de encontros perdidos, nunca mais

    reproduzveis. Quais seriam as palavras-irms? Que palavras este termo, aqui em

    Roussel, est a ecoar, reiterar ou negar? Ou, se nada disso ocorre, aps descobrir

    que h um procedimento, ser ainda possvel aceitar calmamente sua obra? O

    procedimento cria leitores estranhamente inquietos pela suspeita da proximidade de

    um mistrio, cuja realidade, entretanto, no afianada por ningum, nem pelo

    prprio Roussel. O que revela Comment jai crit certains de mes livres (1935) no

    um segredo mstico, encoberto atravs de um engenhoso artifcio, mas um limite,

    uma impossibilidade que poderamos chamar, com Foucault, de a rica pobreza das

    palavras: Em sua rica pobreza, as palavras sempre conduzem mais longe e

    remetem a si mesmas; perdem e se reencontram; elas desfiam no horizonte em

    desdobramentos repetidos, mas retornam ao ponto de partida numa curva perfeita

    (Foucault, 1963/1999, p. 12).

    32

    Martial possui uma concepo muito interessante da beleza literria; imprescindvel que a obra no contenha nada de real, nenhuma observao do mundo ou dos espritos; nada mais que combinaes inteiramente imaginrias: so j idias de um mundo extra-humano. 33

    Todas as grandes cidades se parecem.

  • 32

    A palavra no evoca, em sua enunciao, a realidade da coisa, no garante

    sua certeza; mas, ao contrrio, numa virada, num gesto rebatedor, que a

    linguagem lana sobre as coisas sua falha, sua instabilidade, sua dvida (ou dvida)

    essencial, criando um outro espao onde a subordinao da palavra coisa j no

    mais existe.

    Para Michel Foucault, pensar a ligao entre loucura e literatura, aqui, no

    utilizar a vida de Roussel cujo diagnstico, realizado por Janet, se abre como um

    leque para abranger melancolia, obsesso e delrio paranico como um fator

    explicativo de sua obra ou seu mtodo. Partir da loucura para a obra seria manter

    uma oposio e sobreposio da razo contra a loucura, com prevalncia da

    primeira. Quando Foucault diz que a loucura ausncia de obra (1964/2002), ele

    afirma, entre outras coisas, que se tratam de operaes de linguagem no-

    permeveis entre si. A literatura que interessou a Foucault era uma transgresso,

    mas a loucura atravessar um limite ltimo, abandonando a linguagem mesma

    neste processo.

    A megalomania de Roussel, atestada na comparao com Napoleo ou

    Victor Hugo, seus infinitos rituais (seu almoo durava exatamente de 12h30 s

    17h30, incluindo cerca de vinte pratos), suas fobias (as cortinas cerradas de seu

    automvel, o medo de passar por tneis), a mania de limpeza (ele mandava

    costurar, em todas as roupas, um pequeno bolso interno onde mantinha um pedao

    de pano branco, que marcava cada vez que a pea era usada); tudo isso nada mais

    faz que atestar a incorruptibilidade da obra em relao loucura. Trata-se de uma

    literatura que encena linguagens arruinadas, mas que se mantm obra, mesmo que

    a custo da vida de Roussel, mesmo que ao preo de sua morte:

    A loucura desmoronamento total, ruptura absoluta, ao passo que a

    linguagem literria a construo desse desmoronamento, na medida em

  • 33

    que, ao mesmo tempo que fora o rompimento com a obra, s existe como

    obra, se apresenta necessariamente como obra. (Machado, 2000, p. 43).

    A literatura moderna, ento, buscaria uma aliana com a loucura, no

    subordinando-a razo, tal qual na psiquiatria, mas vendo na loucura uma

    compreenso diferenciada de linguagem: sua fragilidade, runa e desmoronamento.

    O absoluto no-sentido, uma fala que no diz encenada, mas nunca levada a cabo

    no exercitar infinito de linguagem (duplicao e reduplicao, espelhamento,

    desdobramento) realizado pela literatura.

    preciso lembrar que Comment jai crit certains de mes livres um texto

    condicionado pela morte, sobre o qual o desaparecimento de Roussel acidente?

    suicdio? se derrama como clusula. Em 1933, Roussel j era dependente de

    barbitricos e vivia num estado de constante intoxicao e, no dia 02 de julho, aps

    uma tentativa de suicdio que o deixou extremamente fraco, ele decidiu voltar

    clinica de desintoxicao onde anos antes havia conhecido Jean Cocteau, marcando

    sua passagem para o dia 16. Seu corpo sem vida foi encontrado no dia 14 de julho,

    em meio a mais de uma centena de frascos vazios, de at oito tipos diferentes de

    sedativos, todos catalogados pela polcia de Palermo. A porta de comunicao de

    seu quarto com o quarto de sua acompanhante, uma porta que tinha permanecido

    aberta durante toda a estadia dos dois no hotel, estava trancada (Foucault, 1997).

    O mtodo de Roussel no nos explica sua escritura e tampouco nos d a

    receita necessria para novas criaes, mas indica, mesmo que de maneira

    precria, uma certa imagem a ser vista. O procedimento ensina o olhar, como uma

    dobra dentro de sua literatura, uma mola secreta na base de textos que da se

    desdobram, mas cujo mecanismo nunca fica claro. Para isso, necessrio no

    apenas a revelao dos procedimentos de criao, mas uma obra necessariamente

  • 34

    pstuma: Como se o olhar, para ver o que existe para ver, tivesse necessidade da

    duplicadora presena da morte. (Foucault, 1963/1999, p. 49).

  • 35

    CAPTULO 2

    PALAVRA-IMAGEM-COISA

    [La Doublure]

    La Doublure, romance cujo fracasso causou tanto transtorno a Raymond

    Roussel, se inicia com o intrigante aviso do autor: Ce livre tant un roman, il doit se

    commencer la premire page et se finir la dernire. 34 (Roussel, 1979, p. 6) Ora,

    no exatamente isso que se espera de um romance: que seja lido da primeira

    pgina at a ltima linha? Que prove cada uma de suas palavras indispensveis

    para sua construo e envolva o leitor fazendo da leitura completa um compromisso,

    uma exigncia? Entretanto... o que esperar de um romance inteiramente disposto

    em versos alexandrinos? Trata-se ainda de narrativa? Prosa ou poema? E onde

    mesmo estes dois se diferenciam?

    Em quase 200 pginas, La Doublure computa cerca de 5000 versos que,

    primeira vista, do a impresso de versos alexandrinos: so estritamente dispostos

    em doze slabas (a contagem deve respeitar as regras da diviso silbica do francs,

    diferentes do portugus), as rimas se alternam entre termos no feminino e termos no

    masculino. Falta, entretanto, a terceira marca lingstica que compe o verso

    alexandrino: o seu ritmo. O verso alexandrino clssico segue a diviso 6//6, que

    pode se desdobrar em 2/4//2/4, 3/3//3/3 ou at mesmo um esquema 4//4//4, desde

    que a localizao das pausas se mantenha constante. importante observar que,

    na tradio literria clssica da Frana, o alexandrino aspira perfeio do verso,

    tanto foneticamente quanto em seus jogos semnticos. Ele busca realizar, na lngua

    34

    Sendo este livro um romance, deve-se comear na primeira pgina e terminar na ltima.

  • 36

    francesa, o que o hexmetro dactlico realizou na poesia pica latina e grega, e

    atravessa a obra de grandes mestres franceses, como Baudelaire, Verlaine e Victor

    Hugo.

    Em La Doublure, prodigiosamente escrito com versos estritamente

    dodecasslabos da primeira ltima pgina, o marcado ritmo dos versos

    alexandrinos absolutamente ignorado, como podemos ver nos exemplos abaixo:

    elle regarde

    Le pierrot// dont le masque a lair stupide,/ aux yeux (3 // 7/2)

    Froids,// se moque plus delle /avec le srieux (1 // 5/6)

    Ironique// et le grand calme /de sa figure, (3 // 5/4)

    Que ne pourrait le faire aucune vraie injure. 35

    (Roussel, 1979, p. 67)

    Roussel utiliza-se tambm de uma inverso extrema, chamada rejet, onde a

    estrutura gramatical de um verso termina apenas no verso seguinte. O rejet tambm

    atenta contra o ritmo do verso, j que a leitura vai se guiar, naturalmente, pela lgica

    gramatical e no pela disposio mtrica. Lido em voz alta, no se adivinha que La

    Doublure composto em verso.36 No exemplo apresentado, o sujeito gramatical

    apresentado na primeira linha, o verbo composto dividido entre o primeiro e o

    segundo verso, e o objeto transitivo direto surge apenas no terceiro verso (termos

    grifados):

    Il retourne la tte et saperoit quil a

    Un peu laiss derrire, quelques pas de l,

    Roberte ; et sarrtant 37

    (idem, p. 53)

    Antecipando os jogos do Oulipo38, Roussel parece fazer da regra de um

    texto (a metrificao em doze versos, a alternncia entre rimas femininas e

    35

    ela olha/O pierr cuja mscara tem o ar estpido, nos olhos/Frios, zomba mais dela com a seriedade/Irnica e a grande calma de sua figura,/Que no lhe pode fazer nenhuma verdadeira injria. 36

    Agredeo ao professor Jean-Jacques Chatelard a observao de que La Doublure possui um perfeito contra-exemplo: a traduo da Odissia feita por Victor Brard, entre 1919 e 1923. Apesar de no ser disposta em versos ou possuir qualquer rima, a traduo segue fielmente o ritmo alexandrino, constante ao longo dos cantos do poema. 37

    Ele gira a cabea e se percebe que/Deixou um pouco para trs, a alguns passos dali,/Roberte; e, parando

  • 37

    masculinas) causa de sua criao, a despeito dos estranhos efeitos resultantes

    deste artifcio. O verso alexandrino, condio de escritura, fantasticamente forado

    para dentro de um romance em prosa, ao mesmo tempo em que negado em sua

    potncia: estruturalmente, seu ritmo no respeitado e, semanticamente, as

    palavras empregadas no romance no criam metforas matria da poesia, por

    excelncia mas descries simplrias: um sabo verde na saboneteira, um homem

    com seu guarda-chuva, dilogos diretos banais, etc.

    un savon vert,

    Dans sa savonnire est encore couvert

    De mousse dessche ; en arrire une ponge... 39

    (idem, p. 12)

    Roberte marque un peu le rythme avec la tte,

    Puis regardant Gaspard qui lui demande si

    Elle ne se sent pas fatigue, elle aussi

    Fait rptr la phrase au milieu du vacarme ;

    Elle rpond : Non, non, pas du tout. 40

    (idem, p. 85).

    Un ne rue

    En entrant, puis trottine un peu ; car, au tournant,

    Cest lanalcade des Anglaises maintenant

    Qui passe ; un homme a son umbrelle trop ouverte

    Retourne ; un, plus loin, a sous sa robe verte

    Un morceau de pliss qui pend. 41

    (idem, p. 106)

    Os objetos e sua manipulao recebem mais ateno que a descrio dos

    personagens, assim como os encontros fonticos tornam-se mais importantes que o

    ritmo alexandrino. Trechos de msicas populares e infantis, cantigas de carnaval so

    disseminados aqui e ali, sem que se justifique sua presena no texto. Numa

    38

    Oulipo Ouvroir de Littrature Potentielle (Oficina de Literatura Potencial) designa um grupo de escritores que se uniram, nos anos 60, em torno de alguns interesses comuns: linguagem, matemtica, anagramas, lcriture contraintes (escrita sob restrio). Seus expoentes mais conhecidos so Raymond Queneau (que chegou a conhecer Raymond Roussel), talo Calvino e Georges Perec, que escreve, em 1969, La Disparition, romance onde a letra e no surge uma nica vez. 39

    um sabo verde/Na saboneteira ainda coberto/De espuma ressecada; atrs uma esponja... 40

    Roberte marca um pouco o ritmo com a cabea,/ Depois olhando Gaspard que lhe pergunta se/Ela no se sente cansada, ela tambm/ Faz repetir a frase no meio da algazarra,/Ela responde: No, no, de forma alguma.

  • 38

    antologia de poesia da poca, o seguinte comentrio acompanha trechos de La

    Doublure:

    [la posie de La Doublure] est infiniment subtile. Elle semble facile, trop

    facile mme, puis, tout coup, lon saperoit que lon na pas compris, quil

    faut reprendre, quil faut se ressaisir. Elle est lente et pre. Elle stale,

    slargit et svapore. 42 (Anthologie de la Nouvelle Posie franaise, [s.d.], apud Caradec, 1997, p. 253)

    Doublure, segundo o Larousse, responde por:

    1. ttoffe lgre dont on garnit lintrieur dun vtement, le revers dune tenture. 2. Acteur qui en remplace un autre. 43

    Forro e substituio de atores, o romance La Doublure se inicia com o

    exagerado gesto de um ator que leva sua espada bainha. Antes de terminado o

    gesto, o ator treme, a espada recua, a platia comea e cochichar e, depois, a rir. O

    riso duplica redouble e Gaspard Lenoir, um substituto medocre que quer tomar o

    papel de um ator talentoso, ou seja, um dubl, deixa o palco. Uma moa de nome

    Roberte de Blou de Blou, doubler apaixona-se pelo ator e abandona seu amante

    para passar o carnaval em Nice junto a Gaspard. Assim, () Gaspard ne se

    contente pas de doubler un comdien ; il est aussi la doublure de Paul, lamant en

    titre de sa matresse 44 (Caradec, 1997, p. 46).

    O casal de amantes passa o carnaval em Nice, at se desentenderem e se

    separarem. Roussel descreve detalhadamente a festa e a geografia da cidade, os

    carros alegricos, os grupos carnavalescos, suas fantasias e a interao do casal

    com os passantes, mediada por jatos de confete lanados de um lado a outro. Entre

    a histria principal de Gaspard e Roberte e o desenrolar da festividade, no h

    41

    Um asno coiceia/Entrando, depois trota um pouco; pois, dobrando a esquina/ a burralcada das Inglesas agora/Que passa; um homem tem seu guarda-chuva bem aberto/ Revirado; um, mais adiante, tem sob sua veste verde/Um pedao franzido que pende. 42

    [a poesia de La Doublure] infinitamente sutil. Parece fcil, bastante fcil mesmo, depois, de repente, que percebemos que no compreendemos, que preciso retomar, que preciso recompor-se. Ela lenta e acre. Ela estaciona, se alarga e evapora. 43

    1. Tecido leve que guarnece o interior de uma vestimenta, inverso do tecido. 2. Ator que substitui outro. 44

    No basta a Gaspard substituir um ator, ele tambm o dubl de Paul, amante oficial de sua amante.

  • 39

    relao perceptvel, e as imagens vo sucedendo-se umas s outras sem que se

    possa estabelecer entre elas um fio narrativo: um aleatrio desfile de fantasias,

    carros e carnavalescos, um discurso inteiramente sem [que] espessura percorre a

    superfcie das coisas, ajustando-se a elas por uma adaptao nativa, sem esforo

    aparente (Foucault, 1963/1999, p. 99).

    Eis o que Roussel nos oferece: versos estritamente dodecasslabos, mas de

    ritmo desigual; um longo romance-poema sem poesia. No toa que Foucault o

    chama de incansvel versificador (idem, p. 121), mas no de poeta. De um lado,

    uma poesia que no se faa com lirismo, de outro, uma prosa que no seja livre.

    Na anlise de Franois Caradec:

    Les alexandrins de La Doublure nous tonnent par labsence complte

    dimages ou de poncifs dits potiques . Cest une prose descriptive rime

    mais non rythme ce qui ne peut que surprendre de la part dun musicien ,

    que ne vient mme pas relever la sonorit des rimes, remarquables par leur

    platitude. Cette allure de prose en vers est encore souligne par lirrgularit

    des coupes, tel point que ce qui est gnralement dans la posie classique

    une exception devient la rgle ().45 (Caradec, 1997, p. 41, grifos nossos)

    Na dcada de 1980, foram encontrados textos inditos de Raymond

    Roussel. Entre eles estava o poema Les Noces e uma estranha lista de pares de

    rimas: branche penche lointain incertain mal assure figure niveau nouveau

    verticales gales couleur pleur utile le regards pars ordinaire lunaire clatant

    entend 46 (idem, p 65). Lista que, segundo a tese de Franois Caradec, era redigida

    previamente por Roussel e mantida mo para ser inserida nos versos que ele

    criava (1997). Se tais listas foram de fato utlizadas, no saberemos. Mas bem

    possvel que a estranheza de La Doublure seja resultado do uso destes versos

    45

    Os alexandrinos de La Doublure nos espantam pela ausncia completa de imagens ou de chaves ditos poticos. Trata-se de uma prosa descritiva rimada mas no ritmada o que no deixa de nos surpreender vindo de um msico , que no chega mesmo a dar destaque sonoridade das rimas, notveis por sua insipidez. Esta forma de prosa em versos ainda sublinhada pela irregularidade dos cortes, a tal ponto que aquilo que geralmente exceo na poesia clssica se torna regra (....). 46

    ramo inclinado longe incerto mal segura figurada nvel novo verticais iguais cor palidez til ilha olhares esparso ordinrio lunar radioso escuta

  • 40

    fabricados para caberem numa rima, ao contrrio de uma rima nascida na criao de

    um verso.

    As regras de escritura vo fazendo distncia entre o autor e seu texto e

    Roussel se torna inventor de um engenho (o dodecasslabo como condio de

    escritura de um romance no-potico), mas outro a mo do acaso fontico e da

    rima, para Roussel; a mo da matemtica e do clculo, para os membros do Oulipo

    seu autor. Na insistncia sobre os detalhes materiais das fantasias, dos carros

    carnavalescos,