A Pressa Apressa

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A pressa apressa Em algum lugar do atlântico, uma baleia solitária urra 8 Hz acima do tom de sua espécie. Já Lúcio, muito pelo contrário. Lúcio entra em um ônibus apressado a caminho do supermercado na praça 13 e se senta perto de uma janela para vislumbrar o magenta celeste, efeito das luzes e da poluição da cidade grande. No entanto, sua respiração assertiva deixa translúcido o vidro e a sua lucidez. As maçãs desorientam a memória de Lúcio, remetendo-o ao mímico de chapéu côco e de rosto palificado de pó de arroz que no passado o convenceu de que havia uma parede a sua frente. Há poucos dias ficara alarmado quando passeava pelas páginas de seu hebdomadário predileto. Sua tarefa era simples, buscava o artigo capital daquela edição que prometia uma investigação profunda sobre os impactos regulatórios dos florais de Bach nas células hepáticas. Por meio da adoção de uma estratégia infeliz cujas minucias dificilmente carregariam o peso da pertinência, Lúcio descobriu que sua convicção exercia menos controle sobre a sua atenção do que a rutilância das páginas levemente enrugadas de saliva que iam e viam sob a coerção de suas cores e de suas frases em fonte de tamanho desproporcional. Extenso, pretensioso, com frases cansativas e dolorosamente mal escrito, eis que, no centro dessa desaventura, o texto que mudou para sempre as referências que representavam Lúcio. O argumento principal era simples, objetivo, científico até, caso abríssemos mão de um detalhe ou outro. Construído com o ódio de um pai que gravou em filme os maus-tratos de sua filha pela babá, o corpo textual averiguava a presença de cianeto nas sementes das maçãs. Dilacerador. O impacto foi desolador, tanto foi o estrago que Lúcio criou um pequeno ritual onde sempre encara por alguns minutos e não sem suspeita, as atemporais gôndolas de maçãs argentinas que sempre respondiam com indiferença. Para ele era fundamental manter o olhar cerrado e, caso sua face pavimentada se desfizesse, correria o risco de a babá alfinetar novamente a filha pequena que Lúcio não tinha. Quando seus olhos começaram a lacrimejar em virtude do tempo seco e também de sua bravura, concluiu que o risco era aceitável. Afinal, precisava deixar a pequena criança aprender a se virar. A gradual despavimentação de seu rosto acompanhava a incerteza de sua descrença. No caixa, Lúcio infla as bochechas de ar e desvia o olhar para o seu relógio digital ligeiramente translúcido por uma fina camada de aço-cobalto e se desinfla vagarosamente. A pressa nunca fez parte de sua vida, tinha, pelo oposto, enorme respeito e admiração pelos minutos. Afinal, “é como aprender a nadar” dizia sorridente quando lhe perguntavam o

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A pressa apressa

Em algum lugar do atlântico, uma baleia solitária urra 8 Hz acima do tom de sua espécie. Já

Lúcio, muito pelo contrário.

Lúcio entra em um ônibus apressado a caminho do supermercado na praça 13 e se

senta perto de uma janela para vislumbrar o magenta celeste, efeito das luzes e da poluição

da cidade grande. No entanto, sua respiração assertiva deixa translúcido o vidro e a sua

lucidez.

As maçãs desorientam a memória de Lúcio, remetendo-o ao mímico de chapéu côco

e de rosto palificado de pó de arroz que no passado o convenceu de que havia uma parede a

sua frente.

Há poucos dias ficara alarmado quando passeava pelas páginas de seu hebdomadário

predileto. Sua tarefa era simples, buscava o artigo capital daquela edição que prometia uma

investigação profunda sobre os impactos regulatórios dos florais de Bach nas células

hepáticas. Por meio da adoção de uma estratégia infeliz cujas minucias dificilmente

carregariam o peso da pertinência, Lúcio descobriu que sua convicção exercia menos controle

sobre a sua atenção do que a rutilância das páginas levemente enrugadas de saliva que iam

e viam sob a coerção de suas cores e de suas frases em fonte de tamanho desproporcional.

Extenso, pretensioso, com frases cansativas e dolorosamente mal escrito, eis que, no

centro dessa desaventura, o texto que mudou para sempre as referências que representavam

Lúcio. O argumento principal era simples, objetivo, científico até, caso abríssemos mão de um

detalhe ou outro. Construído com o ódio de um pai que gravou em filme os maus-tratos de

sua filha pela babá, o corpo textual averiguava a presença de cianeto nas sementes das

maçãs.

Dilacerador. O impacto foi desolador, tanto foi o estrago que Lúcio criou um pequeno

ritual onde sempre encara por alguns minutos e não sem suspeita, as atemporais gôndolas

de maçãs argentinas que sempre respondiam com indiferença. Para ele era fundamental

manter o olhar cerrado e, caso sua face pavimentada se desfizesse, correria o risco de a babá

alfinetar novamente a filha pequena que Lúcio não tinha. Quando seus olhos começaram a

lacrimejar em virtude do tempo seco e também de sua bravura, concluiu que o risco era

aceitável. Afinal, precisava deixar a pequena criança aprender a se virar. A gradual

despavimentação de seu rosto acompanhava a incerteza de sua descrença.

No caixa, Lúcio infla as bochechas de ar e desvia o olhar para o seu relógio digital

ligeiramente translúcido por uma fina camada de aço-cobalto e se desinfla vagarosamente. A

pressa nunca fez parte de sua vida, tinha, pelo oposto, enorme respeito e admiração pelos

minutos. Afinal, “é como aprender a nadar” dizia sorridente quando lhe perguntavam o

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segredo de sua relação pacífica com a marcha temporal, “não é à toa que a maioria dos

vertebrados e invertebrados já nascem sabendo nadar, eles não sabem da importância em

manter a cabeça para fora da água”. Seus gestos pagam tributos ao deleite pouco intuitivo

que Lúcio extrai da marcação do tempo e foram integrados a seu patrimônio pantomímico há

mais ou menos três anos, quando descobriu um fenômeno curioso que decidiu intitular “a

primeira imparidade claustrofóbica”. 23 : 19 : 02. Três números primos! Que extraordinário!

Ainda, o único número primo que é ao mesmo tempo um número par! Sentiu nesse momento

uma leve vertigem e uma espécie de frio na espinha, como se uma rã gelatinosa escalasse

languidamente as suas costas. Desde então passou a buscar novamente tal experiência.

A todo momento mirava com os olhos pessoas que estivessem portando seu

instrumento de júbilo preferido. Primeiro, via se se tratava de um relógio digital. Em seguida,

esperava para ver a reação do portador ao verificar as horas. Nunca encontrou par

semelhante. As reações flutuavam entre pessoas que ansiosamente aguardavam ou, ao

contrário, que ansiosamente precisavam estar em outro lugar para possivelmente encontrar

alguém que estaria ansiosamente aguardando. Afinal, é bastante duvidoso que tal experiência

fosse possível para um homem apressado.

Eis outro deleite de Lúcio, descreditar mentalmente a tolice compartilhada que todos

chamam de futuro. Não raro ele olhava para os pedestres apressados na rua, olhava para o

seu relógio a fim de verificar a possibilidade de uma imparidade claustrofóbica e depois voltava

novamente o olhar para seus dispares temporais. Abria, então, um leve sorriso e aquela

pessoa desaparecia, para sempre perdida no além-presente. Sorria ainda mais ao imaginar

aquele infeliz dez, quinze, vinte minutos adiante de dez, quinze, vinte minutos adiante de dez,

quinze, vinte minutos adiante. Aí se aborrecia, pois era natural se aborrecer ao pensar na

morte de um contemporâneo, mas logo voltava a sorrir ao esbarrar na palavra

“contemporâneo”. Enfim, Lúcio acreditava que o futuro era uma tolice.

Senhor, setenta e quatro e sessenta – disse gentilmente a bela moça de olhos

heterocromáticos por detrás do balcão –. O senhor deseja pagar como? Crédito ou débito?

Crédito, por favor – respondeu Lúcio, ultrajado.