A presença do Elemento Sudanês nas Minas Gerais

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  • 7/31/2019 A presena do Elemento Sudans nas Minas Gerais

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    LUNA, Francisco Vidal & COSTA, Iraci del Nero da. A Presena do ElementoSudans nas Minas Gerais. Suplemento Cultural do Jornal O Estado de So Paulo,So Paulo, ano II, no. 188, 26/11/1978, p. 14-16.-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

    A PRESENA DO ELEMENTO SUDANS NAS MINAS GERAIS

    Francisco Vidal Luna1Iraci del Nero da Costa

    A partir dos primeiros anos do sculo XX desenvolveu-se controvrsia relativa composio tnica e/ou lingstica dos escravos negros trazidos da frica ao Brasil. Outroponto de divergncia referiu-se distribuio do elemento africano no territrio brasileiro.

    Segundo R. Nina Rodrigues (Os Africanos no Brasil) e Arthur Ramos (As Culturas Negrasno Novo Mundo) para aqui dirigiram-se tanto sudaneses como bantos. Os primeirosteriam ampla participao relativa na Bahia e, talvez em menor escala, em Pernambuco eMaranho; os bantos, por sua vez, ocupariam rea maior, do Maranho ao centro e suldo Pas.

    Estes autores vieram pr cobro a engano largamente difundido e que perdurou por longoperodo na historiografia brasileira. Referimo-nos, em particular, a Spix e Martius (Viagempelo Brasil); segundo eles, somente os bantos teriam composto a populao negra doBrasil. Lembre-se que a tese desses visitantes foi endossada por vrios historiadoresentre os quais encontramos Slvio Romero e Joo Ribeiro.

    Afirmam, por seu lado -- ao fazerem reparos tese de Nina Rodrigues e Arthur Ramossobre a disperso dos africanos no territrio nacional --, F. M. Salzano e N. Freire-Maia:"h evidncia de que o esquema (...) de Nina Rodrigues e Arthur Ramos nocorrespondia totalmente realidade dos fatos. H, por exemplo evidncia de carterhistrico e lingstico da presena de largos contingentes de sudaneses em MinasGerais" (Populaes Brasileiras. Aspectos demogrficos, genticos e antropolgicos). Acorroborar a opinio destes ltimos autores encontram-se os trabalhos de Iraci del Neroda Costa (Vila Rica: Mortalidade e Morbidade, 1799/1801) e de Lucinda C. M. Coelho

    (Mo-de-obra Escrava na Minerao e Trfico Negreiro no Rio de Janeiro).Por outro lado, vem-se firmando o consenso de que os sudaneses foram levados para asMinas Gerias em razo de possurem conhecimento tcnico mais avanado e estaremfamiliarizados com os trabalhos de minerao em suas "naes" de origem. como anotouC. R. Boxer: "Os mineiros preferiam os 'minas' exportados principalmente de Ajuda, tantopor serem mais fortes e mais vigorosos do que os bantos como porque acreditavamterem eles poder quase mgico para descobrir outro (...) A procura dos 'minas' tambmse v refletida nos registros dos impostos para escravos, fosse para pagamento dosquintos ou para o da capitao" (A Idade de Ouro do Brasil).

    1Professores da Faculdade de Economia e Administrao da Universidade de So Paulo

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    As habilidades, as qualificaes relativas, assim como a adaptabilidade dos bantos esudaneses lide mineratria foram, desde os primrdios do estabelecimento daeconomia mineira, avaliados distintamente.

    O confronto de textos coevos evidencia as mudanas verificadas na apreciao dessesdois grupos. Em Carta Rgia de 1711 l-se: "Me pareceu resolver que os negros queentrarem neste Estado [Brasil], vindos da Angola, e forem enviados por negcio para asMinas paguem de sada a seis mil ris, (...) e os que forem da Costa da Mina, e se

    remeterem tambm para as Minas, paguem trs mil ris por cabea, (...) por sereminferiores, e de menos servios que os de Angola."

    Em carta do marqus de Angeja, vice-rei do Brasil, escrita em 1714, revela-se opiniodivergente: "Pela cpia do edital que com esta remeto ser presente a Vossa Majestadeter-se dado cumprimento ao que foi servido ordenar por esta Proviso e como nela sedetermina que os negros que viessem de Angola para esta praa e dela fossem pornegcio para as Minas pagassem sada seis mil ris por cabea, sendo peas da ndiae os da Costa da Mina a trs mil ris por serem inferiores e de menos servios que os deAngola, o que tanto pelo contrario, que os que vm da Mina se vendem por preo maissubido por ter mostrado a experincia dos mineiros serem estes mais fortes e capazes

    para aturar o trabalho a que os aplicam; o que me obrigou a consultar esta matria comos Ministros, e pessoas de mais inteligncia e resolvi que vista a equivocao que houveno valor de uns e outros negros pagassem todos igualmente quatro mil e quinhentos porcabea..."

    Em 1725, o Governador da Capitania do Rio de Janeiro voltava ao tema e reafirmava a"superioridade" do elemento sudans: "As Minas certo, que se no podem cultivarseno com negros (...) os negros minas so os de maior reputao para aquele trabalho,dizendo os Mineiros que so os mais fortes, e vigorosos, mas eu entendo que adquiriramaquela reputao por serem tidos por feiticeiros, e tm introduzido o diabo, que s elesdescobrem, e pela mesma causa no h Mineiro que se possa viver sem nem uma negra

    mina, dizendo que s com elas tem fortuna."

    Tais documentos patenteiam que, apesar do erro inicial de avaliao por parte da Coroa,logo evidenciou-se a preferncia dos mineiros pelos negros "Mina". Certamente seupropalado poder diablico para encontrar ouro nada mais era do que o resultado deconhecimentos minerais adquiridos na frica.

    Neste artigo apresentamos contribuio ao estudo do tema em tela. Para avaliarmos apresena e o peso relativo de Bantos e Sudaneses servimo-nos de fontes primrias devariada espcie, abarcando largo espao temporal e alguns dos principais ncleosmineratrios das Minas Gerais.

    Com respeito a Vila Rica utilizamos os registros de bitos da freguesia de Nossa Senhorada Conceio de Antnio Dias, uma das duas existentes, no perodo colonial, em OutroPreto. Consideramos, ademais, os dados empricos revelados por Herculano GomesMathias (Um recenseamento na Capitania de Minas Gerais - Vila Rica 1804), relativos aolevantamento populacional efetuado em Minas no ano de 1804.

    Relativamente aos demais centros mineratrios operamos com listas nominativas paraefeitos fiscais referentes a Pitangui, Itatiaia e So Joo d'El Rei.

    Com respeito aos registros de bitos de Antnio Dias consideramos o perodo 1719-1818.S a partir da segunda dcada do sculo XVIII podemos contar com registros contnuos eem bom estado de conservao. Este fato determinou o limite cronolgico inferior doperodo selecionado para estudo. O limite superior -- final do primeiro quinto do sculo

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    dezenove -- escolheu-se porque, a esse tempo, apresentava-se definitivamente superadaa explorao aurfera nas Minas Gerais e escoara-se o perodo que se nos apresentacomo de transio da atividade exploratria para a agrcola. Assim, o perodo analisadoabarca o surto mineratrio, seu auge e decadncia, captando as repercusses scio-econmicas do reflorescimento agrcola na Colnia, cujas razes assentaram-se no ltimoquartel do sculo dezoito.

    Baseados nos assentos referidos, distribumos os elementos africanos em grandes

    grupos correspondentes a Bantos e Sudaneses. Evidentemente, computamos apenas osindivduos para os quais constou explicitamente a "nao" de origem. Embora possam terocorrido omisses por parte dos clrigos responsveis pelos assentos de bitos,apresentam-se estes como timo repositrio de dados relativos composio da massade negros deslocada para a rea mineratria.

    Os resultados observados no deixam dvidas quanto presena marcante dosSudaneses; no sculo estudado (1719-1818) registrou-se a predominncia, por pequenamargem, do elemento Sudans (52,1%) sobre o Banto (47,9%).

    A fim de captar possveis mudanas no curso do tempo subdividimos o espao temporal

    analisado em quatro sub-perodos de vinte e cinco anos. O confronto dos percentuaisindica alteraes significativas no correr do tempo. Assim, nos trs primeiros sub-perodos mostrou-se majoritrio o elementos Sudans; j no ltimo quartel (1794-1818)predominaram os Bantos (Cf. Tabela 1).

    TABELA 1REPARTIO DOS ESCRAVOS AFRICANOS SEGUNDO A ORIGEM

    (Freguesia de Nossa Senhora da Conceio de Antnio Dias)

    Grandes Grupos e "Naes" 1719-1743 1744-1768 1769-1793 1794-1818

    SUDANESESMina 42 391 688 394Cabo Verde 3 13 17 2Nag 1 8 15 4Outras 8 14 8 --Total de Sudaneses 54 426 728 400

    BANTOSBengala 10 30 43 23Angola 19 195 447 521Congo 7 7 16 23Cambunda 1 1 2 9Moambique 2 7 1 --Outras 11 40 44 18Total de Bantos 50 280 553 594

    Total Geral 104 706 1.281 994

    Quanto s "naes" de origem predominaram, entre os Sudaneses, os "Mina", "Nag" e"Cabo Verde"; quanto aos Bantos coube preeminncia aos "Angola", "Bengala" e"Congo".

    Tendo em vista o levantamento populacional efetuado em 1804 e considerados os

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    resultados relativos a Vila Rica, aspecto da maior importncia diz respeito distribuio,segundo faixas etrias, dos cativos integrantes dos grupos tnicos e/ou lingsticos emfoco. Verifica-se o predomnio dos Bantos at a faixa dos 30 aos 39 anos; j osSudaneses aparecem com peso relativo maior para as idades mais avanadas (Cf.Tabela 2).

    TABELA 2REPARTIO PERCENTUAL DOS ESCRAVOS AFRICANOS,

    SEGUNDO GRANDES GRUPOS ETRIOS(Vila Rica - 1804)

    Faixas Etrias Sudaneses Bantos

    0 19 5 99

    20 59 115 77960 e mais anos 52 80Idade ignorada 1 3

    Total 173 961

    Os Sudaneses, ainda que preferidos pelos mineradores, passaram a entrar segundotaxas decrescentes. Possivelmente os Bantos, vendidos a preos inferiores, apareciamno mercado de escravos como elemento substitutivo face aos Sudaneses. Este

    fenmeno acarretou o "envelhecimento" da massa de cativos sudaneses, o que implicouo desproporcionado peso relativo de ambos os grupos no conjunto dos vivos, por umlado, e entre os mortos, por outro. Assim, em 1804, os escravos distribuam-se emBantos e Sudaneses, de acordo com os pesos 84,7% e 15,3%, respectivamente. Quantoaos bitos, a participao apresentava-se significativamente diversa -- para o mesmo anoo peso relativo dos Bantos correspondeu a 71,9% e o dos Sudaneses alcanou 28,1%. Acausa dessa desproporo deve-se ao fato de que 30,2% destes ltimos contavam 60 oumais anos, enquanto apenas 8,4% dos primeiros se colocavam em igual faixa etria.

    Com respeito aos quintos e capitao trabalhamos com informaes de Pitangui (1718-1723), Itatiaia (1718) e So Joo d'El Rei (1718);

    Embora durante o sculo XVIII devessem funcionar as casas de fundio para arrecadar-se o quinto rgio, tais instituies s atuaram efetivamente a partir de 1725. Em 1713estabeleceu-se um acordo entre a Coroa e os mineradores -- estes comprometiam-se arecolher anualmente, em conjunto, quantidade de outro previamente estipulada. Aarrecadao efetuava-se por meio de um sistema de taxas que incidiam sobre o nmerode escravos de cada proprietrio, lojas e vendas.

    Visando cobrana, organizavam-se, em cada localidade, listas nominativas das quaisconstavam os proprietrios e seus respectivos escravos; para os ltimos indicava-se,usualmente, a origem. Neste artigo apreciamos quatro destas listas.

    A nosso ver, a predominncia de um ou outro grupo condicionou-se pelo evolver daatividade mineratria e pelas mudanas na oferta de escravos, sobretudo as relativas scondies imperantes nas reas africanas fornecedoras desta mo-de-obra.

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    Assim -- ressalvadas as transformaes ocorridas nas reas de que eram oriundos osescravos e dada a preferncia dos mineradores pelos sudaneses em geral e pelos "mina"em particular --, no perodo de ascenso da lide exploratria ocorreu concomitanteincremento no percentual correspondente ao grupo em apreo. poca do auge da finaaurfera parece ter havido preponderncia do elemento sudans. Reciprocamente, aotempo da decadncia, passaram a dominar os bantos. Revelando-se, paralelamente,tendncia "substituio" daqueles por estes, fato a evidenciar o estreito liame entre o

    elemento sudans e o trabalho exploratrio.

    Na tabela 3 apresenta-se a repartio dos escravos africanos, segundo grandes gruposde origem, para o ano de 1718. Depreende-se que, tanto em Pitangui como em Itatiaia,ocorria pequena discrepncia no peso relativo de Bantos e Sudaneses; j em So Jood'El Rei, estes ltimos apresentavam percentual expressivamente inferior (30,6% contra60,4%). Disto decorre a participao significativamente menor dos Sudaneses, quandocomputadas as trs localidades conjuntamente: 42,9% vis--vis 57,1% de Bantos (Cf.Tabela 3)

    TABELA 3REPARTIO DOS ESCRAVOS AFRICANOS SEGUNDO A ORIGEM

    (Localidades selecionadas - 1718)

    Grandes Grupos e "Naes" Pitangui Itatiaia So Joo d'El Rei Total

    SUDANESESMina 77 178 73 328Cabo Verde 19 15 9 43Outras 11 8 -- 19

    Total de Sudaneses 107 201 82 390

    BANTOSBengala 36 81 45 162Angola 15 34 84 133Congo 40 35 32 107Monjolo 16 17 12 45Moambique 7 8 6 21Outras 19 27 7 53Total de Bantos 133 202 186 521

    Total Geral 240 403 268 911

    Dentre os Sudaneses realavam-se os "Mina" com macia preponderncia sobre asdemais "naes" do grupo; aos "mina" correspondia 84,1% da massa de cativosSudaneses. Para os Bantos verificava-se presena marcante de trs "naes": "Bengala"(31,2%), "Angola" (25,6%) e "Congo" (20,6%).

    Os dados de Pitangui relativos os perodo 1718-1723 revelam, por um lado, o incrementode escravos africanos -- de 240 para 679, com ponto de mximo em 1722, ano em quese anotaram 710 cativos -- e, por outro, a participao crescente dos Sudaneses -- do

    percentual de 44,6 (1718) subiu-se para 49,8 (1723). Este aumento deveu-se, sobretudo, maior presena dos "Mina" que, em termos absolutos, passaram de 77, em 1718, para295, em 1723. Corresponde este incremento taxa de 283,1%, superior ao verificado na

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    massa de cativos em geral -- 182,9% --, e dos Bantos, em particular -- 156,3% (Cf.Tabela 4).

    TABELA 4REPARTIO DOS ESCRAVOS AFRICANOS SEGUNDO A ORIGEM

    (Vila de Pitangui - 1718/1723)

    Grandes Grupos e "Naes" 1718 1719 1720 1722 1723

    SUDANESESMina 77 114 119 294 295Cabo Verde 19 20 13 28 27Outras 11 14 13 25 16Total de Sudaneses 107 148 145 347 338

    BANTOSBengala 36 40 38 59 69Angola 15 30 28 59 74Congo 40 63 59 131 108Monjolo 16 21 23 37 28Moambique 7 9 7 14 13Loango 12 18 23 42 26Outras 7 9 16 21 23Total de Bantos 133 190 194 363 341

    Total Geral 240 338 339 710 679

    vista do exposto conclui-se pela ampla participao dos Sudaneses na massa decativos deslocada para a rea mineratria. Grosso modo, pode-se afirmar que houveigualdade no peso relativo dos dois grandes grupos considerados neste trabalho. Estainferncia sustenta-se pela diversidade de documentos compulsados e, tambm, pela

    representatividade de tais fontes quanto ao espao geogrfico abrangido.