A PRENDA NO IMAGINÁRIO TRADICIONALISTA

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PONTFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

A PRENDA NO IMAGINRIO TRADICIONALISTA

CLAUDIA PEREIRA DUTRA Porto Alegre, RS, Brasil 2002

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AGRADECIMENTO

Aos professores (as) do curso de Ps-graduao em Histria da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Em especial ao professor Moacyr Flores, pela orientao tranqila que possibilitou a confiana necessria para realizao deste trabalho. Rita e Andra, amigas que muito me estimularam a concretizar este projeto de pesquisa. Vera e Misiara, que fazem parte da minha memria, dos primeiros grupos de estudo de histria e gnero. Ao verton, responsvel pela digitao e diagramao deste trabalho, sempre responsvel e dedicado. Aos meus pais, ao meu irmo e as minhas irms, companheiros de sempre.

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Para Antnio, Francisco e Pimenta com meu amor.

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NDICE DE FIGURAS

FIGURA 1: Capa do livro "O Laador - Histria de um Smbolo" ..................... 28 FIGURA 2: Estancieira Gacha.................................. ..................................... 76 FIGURA 3: China das Vacarias.................................. ..................................... 76 FIGURA 4: Mulher Gacha ....................................... ..................................... 76 FIGURA 5: Prenda Tradicionalista ............................. ..................................... 76 FIGURA 6: Prenda no II Frum Tradicionalista Gacho - Santa Maria ............ 94 FIGURA 7: Capa do livro "Terra Gacha" ................ ..................................... 96 FIGURA 8: Prendas no II Frum Tradicionalista Gacho - Santa Maria ......... 99 FIGURA 9: Prendas no II Frum Tradicionalista Gacho - Santa Maria ...... 101 FIGURA 10: Prendas no II Frum Tradicionalista Gacho - Santa Maria ..... 110 FIGURA 11: Mulher Varrendo ................................... ................................... 114 FIGURA 12: Caderno "Santa Maria 144 anos"........... ................................... 120 FIGURA 13: Grupo de prendas "Pi do Sul", Santa Maria ............................ 125

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SUMRIO

AGRADECIMENTO..................................................................................................... ii RESUMO.................................................................................................................... vi ABSTRACT ...............................................................................................................viii INTRODUO ............................................................................................................1 CAPTULO 1. A CRIAO DO MOVIMENTO TRADICIONALISTA GACHO.........10 1.1. O Incio do Movimento Tradicionalista ............................................................19 1.2. O Gacho Tradicionalista ...............................................................................38 1.3. Da Ausncia das Mulheres Inveno das Prendas......................................46 CAPTULO 2 A PRENDA TRADICIONALISTA .........................................................51 2.1. A Invernada das Danas.................................................................................56 2.2. A Indumentria da Prenda ..............................................................................64 2.3. A Mulher que Espera ......................................................................................72 CAPTULO 3. PRIMEIRA PRENDA: PRENDA DE PRIMEIRA ................................80 3.1. Ingresso no CTG.............................................................................................84 3.2. Preparao da Prenda....................................................................................90 3.3. Ser Prenda......................................................................................................99 CONCLUSO..........................................................................................................117 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................121

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RESUMO

Autora: Claudia Pereira Dutra Orientador: Prof. Dr. Moacyr Flores

Esta dissertao constri uma histria da prenda no interior do Movimento Tradicionalista, organizado a partir dos anos de 1947/1948, em Porto Alegre, e projetado para todo o estado do Rio Grande do Sul e para fora dele, atravs dos Centros de Tradies Gachas - CTG's. O objetivo foi examinar historicamente a construo de uma memria gacha entrelaada com a construo do gnero feminino, cuja prenda passa a produzir "efeitos de verdade" como representao da figura de mulher que o Tradicionalismo escolheu para cultuar. A composio desta narrativa foi elaborada atravs dos escritos dos fundadores do Movimento Tradicionalista na dcada de 40, dos dirios dos viajantes estrangeiros que passaram no Rio Grande do Sul no incio do sc. XIX, dos textos do patrono do Tradicionalismo no mesmo sculo, dos documentos oficiais do Movimento Tradicionalista Gacho (MTG), bem como carta de princpios, legislao tradicionalista, tese, versos e canes gachas; tambm atravs das fotos que ilustram lbuns, livros, jornais e das fontes orais, construdos durante doze entrevistas com mulheres participantes do Movimento. O Centro de Tradies Gachas o lugar organizado para preservar o que foi selecionado como "tradies gachas", o lugar onde os modos de agir e pensar

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so normatizados pelo conjunto de regras e valores que estabelecem o que "correto" como conduta social, e como comportamento feminino. No Movimento Tradicionalista as novas geraes so convencidas a cultuar um passado idealizado onde o gacho viveu um tempo de felicidade na campanha, e as meninas e jovens so seduzidas a representarem o papel de prenda: a "mulher gacha", um espelho de dignidade.

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ABSTRACT

Author: Claudia Pereira Dutra Advisor: Prof. Dr. Moacyr Flores

This paper presents the "prenda" story inside the Traditionalistic Movement, organized since 1947/1948, in Porto Alegre, and projected throughout the state of Rio Grande do Sul, through the Centros de Tradies Gauchas - CTG's. The objective was to examine the formation of a memory (gacha) historically interlaced with the feminine gender, whose main figure, "prenda" starts producing "real effects" representing the women's figure that Traditionalism chose to worship. The paper was developed through the writings of the founders of the Traditionalistic Movement in the 40's,by the foreign travelers' diaries who had been in Rio Grande do Sul at the beginning of the 19th century, by the patron's texts in the same century, by official documents of the Movimento Tradicionalista Gacho (MTG), as well as letter of conduct, traditionalistic legislation, theory, verses and songs (gauchos); and also through the pictures that illustrate albums, books, newspapers, and interviews, which have been made with twelve women who had participated of the movement. Centro de Tradies Gachas is an organized place to preserve what has been selected as " traditions (guchas)", it is the place where manners and thinking are established by rules and values, that establish what is " correct " as social conduct, and as feminine behavior.

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In the traditionalistic movement the new generations are persuaded to worship the past where the "gaucho" lived in the country, girls and youths are drawn to represent the "prenda"figure: the women (gacha), a selfrespected image.

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INTRODUO

Esta pesquisa tem como objetivo examinar memria e gnero, como fenmenos histricos, construdos e reconstrudos em pocas e contextos diferentes. No se trata de um registro da existncia de relaes diferenciadas entre os sexos, mas de uma abordagem histrica a respeito da produo de memria/gnero, e das prticas que se unem para produzir um sentido em torno da prenda1, como um smbolo das mulheres no Rio Grande do Sul. Neste trabalho, observo os processos que transformam a prenda em figura histrica, passando a integrar o patrimnio cultural da regio e fazer parte da memria coletiva, atravs do conjunto de prticas do Movimento Tradicionalista. Na construo discursiva tecida em torno do Tradicionalismo gacho, as representaes sobre a prenda vo assumindo a tarefa de imprimir uma verso, prpria de dar significado2 ao passado, visto que a memria e o gnero esto presentes nos depoimentos daqueles que criam e recriam o Tradicionalismo. Para percorrer os caminhos necessrios anlise do problema, o conceito de memria cruza com o conceito de gnero: a criao do termo prenda pretende indicar que este processo de construo de um smbolo se estabelece na interseco com a produo social do gnero feminino. Segundo Joan Scott (1994), o gnero o saber que estabelece significados para as diferenas sexuais, construdos pelas culturas e sociedades sobre asPrenda: o termo usado pelo Tradicionalismo no Rio Grande do Sul para denominar "mulher gacha" (sentido figurativo). 2 Chartier, em "O Mundo como Representao", considera que as representaes coletivas so construtoras do mundo social, que no h prtica ou estrutura que no seja produzida pelas representaes, pelas quais os indivduos do sentido ao mundo que deles.1

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relaes entre homens e mulheres. Um saber cujos significados: no so absolutos; nascem de uma disputa poltica; so construes das relaes de poder, dominao e subordinao; referem-se s idias, s estruturas, s prticas e aos rituais; so variveis de acordo com o grupo social, com a cultura e com o tempo. Para a autora a anlise histrica oferece uma possibilidade de compreender os processos atravs dos quais as hierarquias de gnero so produzidas, mantidas ou contestadas. nesta perspectiva que se aproxima esta verso da histria da Prenda no Imaginrio Tradicionalista que construo:

Nesta abordagem a histria figura no apenas como registro das mudanas da organizao social do sexo mas tambm, de maneira crucial, como participante da produo do saber sobre a diferena sexual. Parto do princpio de que as representaes histricas do passado ajudam a construir o gnero no presente (Scott, 1994, p. 13).

Enquanto possibilidade de apreender o processo de construo da memria coletiva e individual, o que ocorre uma luta pela dominao da recordao onde uma rede de memrias cria a prenda, porm, estas construes no podem ser apreendidas s com o conceito de gnero; mas tambm atravs: da autobiografia que cada tradicionalista produz, da memria oficial sobre a prenda, da dana, da poesia e da vestimenta gacha, todos envolvidos com a identidade. Considerando que a memria tornou-se um objeto da histria, este trabalho constri uma nova trama que se insere no estudo da memria coletiva na sociedade contempornea, onde historiado a sua produo e seus usos sociais: a construo da prenda por uma rede de prticas (discursivas e no-discursivas) que organizaram esta memria tradicionalista gacha.

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No escrevo uma histria das mulheres gachas, mas os processos --e constituio da personagem prenda, que foi objetivada para significar

simbolicamente a "mulher gacha". Uma abordagem da prenda na histria do Rio Grande do Sul levanta algumas dvidas: como e quando foi criada esta figura, e como se criou um consenso em torno da prenda como representao feminina da tradio no Rio Grande do Sul? Os discursos tradicionalistas instituem a prenda como uma personagem significativa, uma personagem histrica. Um caminho desta pesquisa poderia ser investigar a vida das campesinas, das estancieiras e estabelecer uma trama para explicar a histria dessas mulheres, visualizando suas experincias no passado, e identificando-as (ou no) com a prenda. No entanto, o caminho que percorro examina o processo de construo da prenda, atravs dos discursos e das prticas que se cruzaram para forj-la como traduo singular das diversas figuras de mulheres da histria do Rio Grande do Sul - a "mulher gacha" -, com um destino e sentimentos definidos como apropriados para o gnero feminino. Esses discursos, tomados como construes, formam a trama que trs a prenda para a histria. A partir de uma produo de diferentes representaes sobre as mulheres, o Tradicionalismo foi instituindo a memria hegemnica, estabelecendo os contornos da prenda e silenciando outras interpretaes. No procuro nos discursos tradicionalistas, indcios que permitam conhecer a histria da "verdadeira" prenda ou do gnero feminino no Rio Grande do Sul. No h um real escondido para ser revelado. A figura da prenda foi construda e objetivada como fato histrico, a partir da que construo a trama desta narrativa que investiga

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como foram produzidas as memrias envolvidas na constituio e naturalizao da prenda como tema histrico. O Rio Grande do Sul, assim como as demais regies apresenta um desenvolvimento histrico peculiar, o que por si s no define uma identidade. Outros aspectos so necessrios, um deles reconhecer a identidade cultural atravs da qual as pessoas se encontraram como portadoras de caractersticas comuns, que as diferenciam do que lhes exterior, imprimindo-lhe uma singularidade. Conforme Renato Ortiz (1985), toda identidade entendida como uma construo simblica. No existe uma identidade nica, mas uma pluralidade de identidades que correspondem aos diversos grupos sociais, faixa etria e gnero; no entanto, na histria tradicionalista gacha3, determinados valores culturais so apresentados como aqueles que identificam o povo e se impem a todos os grupos. No se trata de questionar se os valores apresentados so os "verdadeiros", mas dentro desse contexto, quais so os elementos dessa "identidade" que pretende representar a sociedade gacha? Especificamente, como se criou uma "identidade feminina" expressa na figura da prenda? Nesse processo de construo de uma identidade, a construo de personagens-smbolos4 representa um apelo forte capaz de aglutinar a populao em torno de uma tradio regional. o momento privilegiado da construo da memria coletiva, onde as prticas tradicionalistas de repetio dos costumes do

Histria Tradicionalista Gacha: histria (re)construda pelo Movimento Tradicionalista Gacho, atravs de um processo de seleo do que o Tradicionalismo procura preservar como memria gacha. 4 Ecla Bosi (1994) identifica no gosto pela repetio de episdios antigos o estabelecimento de uma "atitudesmbolo", assim: "reconstituir o episdio transmitir a moral do grupo e inspirar os menores "(p. 424)

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passado estabelecem um sentimento de identidade social para o grupo organizado em torno dos Centros de Tradies Gachas (CTG's)5. Os estudos de memria coletiva passam pela obra de Maurice Halbwachs (1990), que rompendo com a idia de memria como "conservao do passado", trabalha com a idia de memria como "reconstruo do passado". Associa a memria da pessoa a memria do grupo, relacionando a memria do indivduo s instituies sociais, que geram os "quadros sociais da memria". Para ele o carter livre da memria est quase descartado. A questo da memria aqui compreendida, trabalha a memria coletiva como uma imposio inserida numa perspectiva de disputa, enquanto campos de conflitos e relaes de poder. Para Michel Pollak: "a memria e a identidade so valores disputados em conflitos sociais e intergrupais" (1992, p. 205). Outro aspecto importante acrescentado por Pollak a noo de memria como um fenmeno construdo social e individualmente:

A memria um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida que ela um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerncia de uma pessoa ou de um grupo em sua construo de si (Pollak, 1992, p. 204).

Quais as prticas discursivas e no discursivas responsveis pela emergncia da prenda como personagem histrica? Como a prenda foi enquadrada na memria coletiva do Rio Grande do Sul? Nesse processo, quais as memrias que foram silenciadas? O estudo do culto da imagem da prenda nos conduz necessariamente ao Centro de Tradies Gachas. O "35" - CTG6 um dos itinerrios desta pesquisa,5

5 Entidades Tradicionalistas organizadas em todo estado para cultuar e preservar as tradies gachas.

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como pioneiro ele serviu de modelo e serve de referncia aos demais Centros de Tradies Gachas. Nos discursos tradicionalistas, o Centro de Tradies Gachas o espao criado para preservar os costumes gachos, no entanto o CTG no representa tal e qual a forma como os gachos viviam no passado. Ao contrrio fruto de uma seleo material e simblica cujo interesse no "resgatar" tudo como era no passado, mas organizar a produo da memria sobre os gachos a partir de um conjunto de smbolos e mitos. O CTG um rgo que solidifica a memria do gacho que o Movimento pretende perpetuar, que exerce a "vigilncia comemorativa" necessria para reinventar e manter o culto das "tradies gachas". Percebe-se que o CTG, e o Movimento Tradicionalista Gacho - MTG7, foram criando uma identidade entrelaada com os contedos historicamente determinados para o gnero feminino. Ouvir as vozes das prendas faz entender como gestado este discurso frente aos valores do presente, so vozes que expressam muito alm do dizvel pelo CTG. Esta pesquisa tem como objetivo geral investigar a produo desta representao de mulher expressa na figura da prenda atravs da anlise do conjunto de prticas e operaes que se apiam para enquadr-la na memria coletiva do Rio Grande do Sul. A partir da, passo a analisar os agentes, os discursos e os traos materiais atravs dos quais a prenda foi transformada em um dos smbolos de identidade

0 "35" - CTG foi o primeiro Centro de Tradies Gachas, fundado em 1948. MTG um rgo fundado em 1966 para congregar todos os CTG's dos Rio Grande do Sul em torno de um mesmo conjunto de regras e normas.7

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cultural no Rio Grande do Sul; historiar a criao do Movimento Tradicionalista Gacho a partir da fundao do "35"-CTG, enquanto um lugar privilegiado para o culto das tradies e analisar o processo de construo da imagem de si produzida pelas prendas entrevistadas. O itinerrio metodolgico e as tcnicas escolhidas esto situados a partir do referencial metodolgico utilizado na construo do problema da pesquisa. Os documentos foram considerados construes, tornando-se necessrio almejar a crtica do documento, uma vez que a memria identificada como objeto de disputa, de dominao e de manipulao. Para mapear as representaes sociais, os smbolos, os valores que forjaram a prenda para a histria tradicionalista, busquei os discursos construdos em torno das prendas em depoimentos e prticas daqueles e daquelas que (re)construram o tradicionalismo no Rio Grande do Sul. Os depoimentos dos fundadores do "35"-CTG so caminhos privilegiados da minha pesquisa, pois foi a partir dos CTG"s que homens e mulheres passaram a (re)produzir discursos sobre as prendas, envolvendo a tradio oral, as manifestaes artsticas e as comemoraes. Para desenvolver esta dimenso da produo de memria sobre a prenda me empenhei na produo do documento oral, abordagem metodolgica que reflete a realizao de entrevistas8 e o processo de construo social da memria que envolvem a tradio oral.

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As fitas gravadas e as transcries das entrevistas realizadas com as prendas encontram-se no Laboratrio de Histria Oral da PUCRS.

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Delineando as tcnicas de histria oral e baseada na experincia de outros historiadores como Michel Pollak (1992), Paul Thompson (1992), Antnio Montenegro (1994), Ecla Bosi (1994), busquei no depoimento das prendas aspectos da sua atuao no Movimento Tradicionalista Gacho. Estes caminhos percorridos, formam, no seu conjunto, a contribuio que esta dissertao de mestrado pretende atingir: um olhar sobre a sociedade gacha, atravs de um aspecto pouco investigado - a Prenda no Imaginrio Tradicionalista. Pretendi captar uma percepo da prenda mais pessoal, embora a prenda seja uma figura estereotipada, para analisar como a depoente constitui a sua memria com relao a memria coletiva e como esta memria constri a sua identidade. No primeiro captulo, A Criao do Movimento Tradicionalista Gacho, analiso atravs da bibliografia tradicionalista, o discurso do Tradicionalismo, que criou e recriou um smbolo, idealizado pelo CTG - o gacho -, e que criou a prenda estabelecendo o papel das mulheres neste espao de culto s "tradies do Rio Grande do Sul". Aqui trabalho a hiptese de que a partir da imagem mtica do gacho herico que so tecidos os discursos formadores da sua parceira feminina a prenda. Atravs das contribuies dos estudos de gnero, possvel perceber que a construo do feminino no indiferente ao masculino. Conforme, George Duby e Michelle Perrot, em "Escrever a Histria das Mulheres":

preciso recusar a idia de que as mulheres seriam em si um objeto de histria. o seu lugar, a sua "condio"; os seus papis e os seus poderes, as suas formas de ao, o seu silncio e a sua palavra que pretendemos perscrutar, a diversidade das suas representaes - Deusa, Madona,

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Feiticeira... - que queremos captar nas suas permanncias e nas suas mudanas. Histria decididamente relacional que interroga toda sociedade e que , na mesma medida, histria dos homens (1991, p. 7).

No segundo captulo, A Prenda Tradicionalista, busco o processo de construo da memria da prenda, que remete significado a esta figura criada no CTG. Uma construo que projeta um passado histrico para essa personagem, que estabelece um conjunto de valores para a prenda, baseados em papis sociais historicamente determinados para o gnero feminino. Neste captulo formulo a hiptese de que a representao da prenda foi solidificada atravs de imagens (indumentria), gestos (danas) e poesia (canes), que expressam um modelo de mulher, embasado na concepo positivista e catlica, dentro de uma mentalidade conservadora. No terceiro captulo, Primeira Prenda: Prenda de Primeira, examino a interseco da construo da memria coletiva com a construo da memria individual. Analiso a prenda e a construo de si, a maneira como esta construo hierrquica de gnero mantida e reproduzida pelo Tradicionalismo, que legitima e d significado a ela. Neste captulo trabalho a hiptese de que no h um carter livre na constituio da memria da prenda, em funo do projeto educativo e normativo do CTG, que faz legitimar o sentido de "ser prenda". Considerando que os significados a respeito do gnero so variveis e dinmicos, este olhar tambm nos permite focalizar outra questo: como esta figura de mulher mantida ou contestada pr outras prticas femininas no interior do CTG, e em que medida as mulheres assumem papis diferenciadas daqueles traados como modelo feminino no interior do MTG.

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CAPTULO 1. A CRIAO DO MOVIMENTO TRADICIONALISTA GACHO

Tradicionalismo o movimento popular que visa auxiliar o Estado na consecuo do bem coletivo, atravs de aes que o povo pratica (mesmo que no se aperceba de tal finalidade) com o fim de reforar o ncleo de sua cultura: graas ao que a sociedade adquire maior tranqilidade na vida em comum. (Lessa, 1999, p.18)

O objetivo deste captulo historiar o Movimento Tradicionalista Gacho e, a partir dele, o Centro de Tradies Gachas - CTG. Parto da hiptese que o discurso tradicionalista que cria e recria o gacho tambm formador de uma determinada imagem de mulher representada pela prenda. Em outras palavras, na tecitura do discurso tradicionalista, inventa-se a prenda como uma figura que tem a tarefa de imprimir uma determinada imagem de mulher que passa a ser cultuada como parte da memria gacha. Logo descobri que o Movimento Tradicionalista Gacho j tinha uma histria contada pelos seus fundadores, que atravs das suas narrativas fizeram uma evocao dos momentos deflagradores da retomada do Tradicionalismo no Rio Grande do Sul, em 1947/48. Refiro-me s obras dos chamados "tradicionalistas histricos", aqueles que criaram o Movimento Tradicionalista Gacho e que so celebrados como "guardies da memria" tradicionalista. Para compreender o Movimento Tradicionalista Gacho busquei inicialmente, estes discursos que contaram a histria do MTG em livros que so tambm relatos biogrficos. Estas narrativas so, ao mesmo tempo, construo de uma memria individual e produo da "memria coletiva", com tramas muito bem articuladas, que

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manifestam uma viso de histria e, principalmente, da tradio, considerando a sua transmisso e perpetuao9. Este conjunto de relatos caracterizam-se pela sincronia, pois em todos eles Paixo Crtes lembrado como idealizador do Movimento, Barbosa Lessa, identificado como o intelectual do Movimento e Glaucus Saraiva reconhecido como organizador do Movimento.10 Para os "tradicionalistas histricos", escrever a histria do MTG era parte essencial do papel histrico que desempenham. Cyro Ferreira, um dos fundadores do MTG, lembra que o seu companheiro Glaucus Saraiva Fonseca, primeiro Patro do "35"- CTG11, sempre que o encontrava dizia:

_ Cyro, estamos cometendo um pecado para com o nosso "35'; enquanto estamos vivos temos que escrever a verdadeira histria do nosso Centro e do prprio Movimento Tradicionalista Gacho - MTG, antes que outros o faam, sem a devida autoridade de causa (Ferreira, 1999, p.17).

Michael Pollak (1992), mesmo considerando a memria como um fenmeno construdo e, portanto, submetido a constantes flutuaes e mudanas, enfatiza que na maioria das memrias existem marcos ou pontos invariantes, elementos irredutveis, em que o trabalho de solidificao da memria foi to importante que impossibilitou a ocorrncia de mudanas. Para ele ocorre um trabalho de "enquadramento da memria", que percebido em tudo aquilo que leva os gruposMaurice Halbwachs (1990) entendeu a memria principalmente como um fenmeno social, ou seja, um fenmeno construdo coletivamente e submetido a constates transformaes. A reconstruo da memria no entendida como um acontecimento isolado, mas de um grupo, vista como fator de aglutinao dos membros de uma determinada sociedade. A criao da memria coletiva , neste caso, vinculada produo da identidade regional, compreendida como uma estratgia de sobrevivncia do grupo frente a uma situao de ameaa e perda de identidade nos momentos de ruptura. 10 So chamados tradicionalistas histricos os integrantes do "Piquete da Tradio" em 1947 e os fundadores do "35" Centro de Tradies Gachas. Dentre eles destacaram-se, especialmente. Joo Carlos Paixo Crtes, Luiz Carlos Barbosa Lessa e Glaucus Saraiva Fonseca. 11 " 0 nome "35" alusivo ao incio da Revoluo Farroupilha (1835-1845).9

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sociais a solidificar o social; e alm do enquadramento da memria ocorre tambm um trabalho da prpria memria em si que passa influir nas geraes futuras: "Cada vez que uma memria est realmente construda, ela efetua um trabalho de manuteno, de coerncia, de unidade, de continuidade, de organizao" (p. 206). No MTG ocorre um processo semelhante ao que o autor chamou de trabalho de "solidificao da memria", pois as lembranas dos tradicionalistas pioneiros trazem como "marcas" os mesmos lugares, os mesmos personagens e os mesmos acontecimentos do ano de 1947, quando os "tradicionalistas histricos" criaram o Departamento de Tradies Gachas no Colgio Jlio de Castilhos em Porto Alegre, e os acontecimentos do ano de 1948, quando fundaram o "35"CTG. As comemoraes que desenvolveram-se a partir da proposta do ncleo estudantil do Colgio Jlio de Castilhos de formar o Departamento de Tradies Gachas compem o conjunto de elementos eleitos pelos fundadores do Movimento para serem preservados como memria tradicionalista. As primeiras aes realizadas nesta nova fase do Tradicionalismo no Rio Grande do Sul para homenagear os heris farroupilhas e o gacho idealizado como heri do passado campeiro, foram consagradas como marcos fundamentais do Movimento

Tradicionalista Gacho. 12 As atividades comemorativas realizadas pelo Departamento de Tradies Gachas, em setembro de 1947, foram publicadas pelo jornal Correio do Povo, informando que:

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Antnio Montenegro (1997) analisa que o sentido da comemorao indissocivel ao sentimento de reestabelecimento de marcas, que atravs de rituais ressgnifica o passado.

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O Grmio Estudantil Jlio de Castilhos, sentindo a necessidade de perpetuao das tradies gachas fundou, aliando com seus j numerosos departamentos, o das "Tradies Gachas" (...) este departamento levou representado por diversos alunos com trajes caractersticos do verdadeiro gacho, montado em `pingos' aperados a capricho, at o Panteo RioGrandense, os restos mortais do inesquecvel David Canabarro. No dia 7 de setembro, antes de ser extinto o fogo da Ptria, os Cavaleiros deste Departamento transportaram at o velho casaro do Colgio Estadual Jlio de Castilhos, uma centelha do fogo que foi inflamar o `candieiro' armado no salo do prdio. O fogo da Ptria ficar, desta maneira, presente no Jlio de Castilhos at o dia 20 de setembro vindouro, de onde ser transportado tambm a `pata de cavalo' at o local onde se realizar o grande baile das Tradies Gachas, devendo ser extinto s 24 horas do dia mencionado. O perodo que vai de 7 a 20 de setembro foi denominados pelos julianos de `Ronda Gacha', dentro do qual sero realizadas conferncias sobre os temas regionais folclricos. Ainda no baile de 20 de setembro sero oferecidos finos prmios aos tipos mais sugestivos que se apresentarem em trajes caractersticos do nosso pampa. (...) A Diretoria do Grmio Estudantil Jlio de Castilhos nomeou para Direo deste Departamento (...) o colega Joo Carlos Paixo Crtes (apud Crtes,1994b, p.49-50).

Todos os primeiros passos do Movimento que estava sendo organizado em 1947, formam um "mito de origem13, e foram "sacralizados" como rituais que passaram a ser seguidos rigorosamente pelo Tradicionalismo dos dias atuais no Rio Grande do Sul. A Cavalgada Cvica com trajes gachos transformou-se no Desfile Farroupilha realizado todo dia 20 de setembro, quando comemorado o Dia do Gacho; a Ronda Gacha ou Ronda Crioula14 foi oficializada em 1964 como Semana Farroupilha, que acontece de 14 a 20 de setembro. A Chama Crioula15 continuou sendo retirada da pira da Ptria pelos CTG's, mantida acesa de 8 a 20 de setembro e a partir de 1972 este evento transformou-se em solenidade oficial, um ato repetido anualmente no Palcio Piratini, com a presena do Governador do Estado, que

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Para Maria Eunice Maciel, em "A Memria Tradicionalista: os Fundadores", o incio desse Movimento foi um momento que ficou na memra dos seus participantes como uma narrativa especial, contada aos que ingressam e recordada freqentemente, um mito de origem. 14 uma expresso alusiva ao trabalho de vigilncia do gado que o tropeiro faz enquanto a tropa pasta ou pernoita. 15 Fogo simblico mantido acesso durante o perodo em que celebrado oficialmente s tradies gachas (Semana Farroupilha).

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recebe a Chama e a mantm num candeeiro16 em formato de cuia17 nas dependncias do Palcio do Governo. Todo o ritual mantido aos moldes do que aconteceu no saguo do Colgio Jlio de Castilhos em 1947 quando realizou-se a primeira Ronda Crioula com o acendimento pela primeira vez da Chama Crioula. Atravs da repetio estes rituais transformaram-se em smbolos e foram oficializados como "tradio gacha", j no pertencendo apenas ao convvio dos Centros de Tradies Gachas, mas tambm sendo seguidos pelas autoridades e popularmente festejados. Os pioneiros do Movimento Tradicionalista Gacho so tratados como aqueles que tm a propriedade de escrever a histria do Movimento. No prefcio da obra de Paixo Crtes, "Origem da Semana Farroupilha e Primrdios do Movimento Tradicionalista", Flori Wegher escreve que a mesma preenche uma lacuna histrica e cultural a muito existente (...) agora, com a garantia da fidelidade e da insuspeita narrativa a temos de maneira completa" (1994b, p.15). Tambm Antnio Augusto Fagundes, prefaciando o livro "'35-CTG' O Pioneiro do Movimento Tradicionalista Gacho", no texto "A Verdadeira Histria do Tradicionalismo", remete aos jovens de 1947 a iniciativa de comear o Tradicionalismo que conhecemos hoje no Rio Grande do Sul. possvel perceber nestas abordagens acima citadas, a iluso de completude, de preenchimento das lacunas e a pretenso de reconstruir inteiramente o passado, numa perspectiva inteiramente oposta quela expressa par Paul Veyne (1983), para quem a histria sempre lacunar. Veyne diz que, em caso

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Candeeiro uma espcie de lamparina, abastecida a querosene e usada na zona rural. Cuia um recipiente de porongo onde preparado e servido o mate ou chimarro.

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algum o que os historiadores chamam de acontecimento agarrado direta e inteiramente, sempre incompleto e lateralmente, atravs dos testemunhos e documentos, dos vestgios que perduram: "Portanto a histria um conhecimento mutilado" (p.15). A questo no verificar a veracidade ou relevncia dos relatos, na escrita da memria, mas investigar quais os elementos constitutivos deste gacho vivenciado pelo Tradicionalismo, quais os smbolos e valores contidos, capazes de construir uma "identidade gacha". Ruben Oliven (1992) afirma que o discurso do gacho recorre a um conjunto de elementos, como: o carter de fronteira do estado, a escolha que o Rio Grande do Sul fez de pertencer ao Brasil, s guerras que envolveram o estado, a existncia de um tipo social especfico marcado pela bravura e a autenticidade do modo de vida. Segundo o autor, a partir desses elementos, so construdas representaes que adquirem uma fora quase mtica e a tendncia ignorar a diversidade e representar seu habitante como um tipo nico - o gacho.

Na construo social da identidade do gacho brasileiro h uma referncia constante a elementos que evocam um passado glorioso, no qual se forjou sua figura, cuja existncia seria marcada pela vida em vastos campos, a presena do cavalo, a fronteira cisplatina, a virilidade e a bravura do homem ao enfrentar o inimigo ou as foras da natureza, a lealdade, a honra, etc (Oliven, 1992, p.50).

Jacson Kaiser (1999) analisa que os gachos fazem uso de um discurso tnico-regional (que recorre a componentes de raa, sangue, nao gacha) manifesto como diacrtico fundamental na construo de sua identidade de grupo

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social. Segundo o autor esse discurso transforma-se em um smbolo em torno do qual formam-se sentimentos, emoes e comportamentos:

Podemos afirmar que a cultura gacha um sistema simblico que avaliza estigmas e esteretipos, sustenta a inveno de tradies e a formao de grupos de interesses e solidariedade. atravs do culto a valores ticos, morais e prticas sociais consideradas seletas e o estabelecimento de tradies que justifiquem e glorifiquem as caractersticas tnico-regionais da cultura que os gachos geram e mantm o sentido de sua identidade (Kaiser, 1999, p.31).

Nesta anlise da maneira como a figura do gacho foi sendo construda e reconstruda, no momento em que emergem os primeiros episdios considerados os marcos fundadores do Movimento Tradicionalista Gacho, considero o gacho enquanto uma figura que foi fabricada. Longe de representar continuidade de um tempo mais remoto ou um objeto cristalizado no passado, o gacho produto de um conjunto de "prticas discursivas", que se cruzam com outras prticas para conferir autenticidade.18 Considero que o Movimento Tradicionalista reelaborou o gacho, embasado numa idia de continuidade do passado, que estaria lhe conferindo autenticidade e valor de verdade, ao mesmo tempo imprimindo lhe novos significados. Para abordar o objeto central deste trabalho, a construo da prenda, foi preciso buscar qual o discurso do gacho construdo neste novo contexto tradicionalista, porque a figura masculina do gacho, constitui o elemento central do culto s tradies no Rio Grande do Sul e a partir deste gacho que passa ser elaborada a figura feminina no Tradicionalismo.

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Margareth Rago, em "As Marcas da Pantera: Foucault para historiadores", sintetiza a concepo de que Foucalt, recusando o discurso como reflexo do real, entende discurso como prtica, e que as prticas discursivas instituem figuras sociais, constrem identidades e imprimem um sentido determinado ao fato histrico.

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O gacho institudo como smbolo do culto das tradies pelo Movimento Tradicionalista, e os seus fundadores reconhecem que sentiam falta de um monumento para perpetuar a imagem do heri campesino, dotado de virtudes fsicas e morais. No seu discurso de posse na presidncia do "35" CTG, em 1950, Barbosa Lessa conclamava:

(...) todas as naes tm seus heris, e todos os grandes homens tiveram seu monumento. (...) erguer um Monumento Vivo ao Gacho, como imperativo de gratido para com aqueles campesinos rudes que se ofereceram em holocausto por um mundo melhor, por um mundo que seria o nosso, o mundo de nossos filhos (apud Crtes, 1994a, p.14).

Oficializando a figura do homem do campo como smbolo do gacho, em 1958 foi inaugurada em Porto Alegre, a esttua "O Laador", feita em bronze, com 4,45 metros de altura, pesando 3,8 toneladas, de autoria de Antonio Caringe para o qual Joo Carlos Paixo Crtes posou como modelo.

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FIGURA 1: Capa do Livro O Laador Histria de um Smbolo< de Paixo Crtes

Em seu discurso oficial de inaugurao da esttua, o tradicionalista Lauro Rodrigues, faz uma evocao dos costumes do campo e do passado, como referncias de uma vida melhor que deveriam iluminar o futuro:

(...) Ele simboliza um resto de telurismo e uma promessa de novas madrugadas. Ele retrata o anseio dos moos e uma das figuras mais angulares e expressivas da vida gacha. A eternizada na forma do bronze, o nosso Laador ficar de p, bombeando as lonjuras, como convite para que os homens de todos os tempos no permitam jamais que se apague do panorama humano da querncia, a figura das estncias com seus tipos e costumes. Eterno enamorado da terra (...), o nosso gacho precisa, urgentemente, receber as bnos do poder, a fim de que se enraze no pampa, resistindo, nas sesmarias e nas invernadas, tentao da cidade. (...) Precisamos, cultuando o Passado, descortinar os dias do futuro.( ...) Glria, pois, ao Rio Grande no culto de seus troncos. Glria nossa gente, que no alvorecer de novas eras, lana um raio de luz, no pleno ocaso de sombras em que se afunda o mundo. E que as velhas tradies de respeitabilidade, de decncia, de civismo e de lealdade continuem animando a famlia rio-grandense para a plena realizao de nosso glorioso destino (apud Crtes,1994a, p.26-27).

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a partir do gacho reelaborado pelo Movimento, encarnando 0 mito do heri guerreiro, livre e viril, justo e cavalheiro, que depois pensado como deveria ser a mulher deste gacho, imprimindo-lhe tambm determinados significados. Neste aspecto, a arrancada tradicionalista da dcada de 40 precisou inovar pois a construo de uma identidade feminina tradicionalista gacha ainda tinha que ser "inventada" Assim com base em determinados discursos sobre a mulher correntes no Rio Grande do Sul foi criada a figura da prenda. Vou esboar este estudo do Movimento Tradicionalista Gacho, que serve de base para poder visitar o universo das prendas, atravs das seguintes sees: O Incio do Movimento Tradicionalista Gacho, O Gacho do Tradicionalismo e Da Ausncia das Mulheres Inveno das Prendas.

1.1. O Incio do Movimento Tradicionalista

Ao buscar o incio do Tradicionalismo gacho fui ao encontro do ano de 1898, quando o santa-mariense, Major Joo Cezimbra Jacques, fundou o Grmio Gacho em Porto Alegre, uma entidade voltada para o culto das "tradies gachas". Uma "patritica sociedade" criada porque:

(...) sentimos a necessidade de no deixarmos adormecer ou de no olvidarmos o nosso deslumbrante passado, para que ele possa atuar constantemente sobre o nosso presente e o nosso futuro, produzindo seus efeitos salutares (Jacques, 1997, p.50).

Conhecido como seguidor da doutrina de Auguste Comte, segundo o qual "os vivos so sempre, e cada vez mais, governados pelos mortos" (Comte, 1983, p.152),

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Cezimbra Jacques expe no seu livro, "Assumptos do Rio Grande do Sul" editado em 1912, uma concepo que trabalha com os "admirveis acontecimentos", de uma "brilhante histria", ocorrida num "passado glorioso", edificado pelos "grandes vultos", que so frutos de uma "valorosa raa". O autor considera que a "salvao" dos problemas do presente estaria nas lies do passado, sem, no entanto, desprezar o progresso, reforando a idia que:

Progredir substituir o difcil pelo fcil, o pior pelo melhor, aperfeioar o que existe e o que insubstituvel; mas nunca apagar o que h de fundamental pertencente ao ser que progride, porque isto importa em dissolv-lo ou anul-lo (Jacques, 1997, p. 56).

Cezimbra Jacques (1997), defendeu a idia de que h um conjunto de traos que constituem o caracterstico de um povo, e cada um conhecido pelos seus caracteres de raa. Portanto, o gacho sul-riograndense tem traos caractersticos que lhe distingue (bons caracteres herdados), como a habilidade especial para as lides rurais, a bravura, a generosidade, a lealdade, a franqueza, a sinceridade, a hospitalidade e o cavalheirismo. No art. 1 dos Estatutos do Grmio Gacho, fica claro o culto ao heri, distinguindo o que seria comemorado como "tradies gachas", pois dentro do princpio de "separar o joio do trigo" era preciso alimentar tudo quanto de bom existiu pelo feito dos "nossos maiores homens":

(...) uma sociedade civil com personalidade jurdica, composta de nmero ilimitado de scios e sem distino de nacionalidade, sexo, culto religioso ou poltico e tem por objetivo, congregar seus associados para fins recreativos, culturais, esportivos e especialmente cultivar as tradies gachas, inspiradas na personalidade inconfundvel do nclico Gal. Bento Gonalves da Silva (apud Mariante, 1976, p.16).

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O Grmio Gacho de Porto Alegre, fundado em 20 de maio de 1898, deu origem a outras entidades similares formadas no estado, segundo Helio Mariante (1976), entre elas esto: A Unio Gacha de Pelotas - 1899, o Centro Gacho de Bag - 1899, o Grmio Gacho de Santa Maria - 1901, a Sociedade Gacha Lombagrandense - 1938, o Clube Farroupilha de Iju - 1943. Todas estas entidades foram constitudas dentro dos princpios cvicos, como "patriticas agremiaes", mas com o decorrer do tempo, especialmente pela poltica do Estado Novo (1937-1945), que pregou uma unidade nacional sob o lema "grande s o Brasil" e destituiu os smbolos regionais, o destino dos clubes tradicionalistas foi fechar ou transformaremse em agremiaes cuja as finalidades de culto s tradies j no eram mais privilegiadas. Abandonando o culto memria do passado, este conjunto de entidades no mais constituam-se como uma referncia tradicionalista. Apesar do seu fundador Cezimbra Jacques, ter sido proclamado o "Patrono do Tradicionalismo", meio sculo depois da fundao do Grmio Gacho, no VI Congresso Tradicionalista, realizado em Cachoeira do Sul em 1959, as sociedades pioneiras no so reconhecidas como clulas do Tradicionalismo que atualmente oficializado no estado, seguido nas escolas, celebrado nas solenidades do governo, divulgado atravs dos meios de comunicao de massa e vivenciado por milhares de pessoas. O incio do Movimento Tradicionalista, tal como conhecemos hoje, vivido nos CTG's, organizado pelo MTG, que realiza congressos, bailes, concursos e rodeios, atribudo aos anos de 1947/48, respectivamente, o ano da fundao do Departamento de Tradies Gachas pelos alunos do Colgio Estadual Jlio de

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Castilhos em Porto Alegre e o ano da fundao do "35" Centro de Tradies Gachas". Os fundadores do "35" CTG denominam esta fase de nova arrancada tradicionalista, reconhecendo a existncia das experincias anteriores fundadas no passado, porm destacam que no fundaram apenas um novo espao tradicionalista - o CTG, mas tambm instituram uma nova forma de organizao do Tradicionalismo - um Movimento Tradicionalista. Outros tradicionalista costumam alertar:

Fique bem claro porm que o Tradicionalismo, tal como 0 conhecemos atualmente, no deve nada a essas iniciativas pioneiras. Os jovens que o tornaram possvel ignoravam todas as tentativas havidas antes. Moos e ardorosos, eles apenas sabiam do seu amor pelas tradies do pago e do descaso votado pelo Brasil do ps-guerra (...). Foi contra essas coisas que aqueles moos se levantaram, sem pedir nada a ningum, sem dever nada a ningum, sem copiar nada a ningum (Fagundes, 1999, p. 14).

Em 1947 o Rio Grande do Sul sofria o impacto do avano da poltica econmica norte-americano sobre o pas, com cerca de 70% da populao vivendo da atividade rural, a pecuria recuperava-se dos efeitos econmicos que atingiram o setor durante a II Guerra Mundial (1939-1945) e a agricultura transformava-se com o efeito do uso de novas tecnologias. Neste quadro ocorrem mudanas: penetrao de multinacionais no pas, evaso de recursos, manifestaes do xodo rural e a populao do campo atrada para a cidade a fim de servir de mo de obra ao setor industrial. Dcio Freitas (1998) analisa que os anos 50 multiplicavam sintomas de estagnao e retrocesso no Rio Grande do Sul: "A degradao econmica e social nos converte a

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um ritmo alarmante, uma terra de miserveis. Os gachos esto assustados e humilhados" (p. 37). Esse gacho pobre e citadino, "gacho a p", fica cada vez mais distante do gacho smbolo: guerreiro e campeiro, desvelando uma realidade que Barbosa Lessa (1998) assim rememora:

Quem nos contou a histria toda (...) foi o escritor Cyro Martins, em 1944, quando Porteira Fechada, impactamente desvendou para os rio-grandenses a nova realidade social da campanha. Eu li o livro no ano seguinte, aos 15 anos de idade, j morando em Porto Alegre, cursando o noturno do Colgio Estadual Jlio de Castilhos e meio procurando emprego (...). Comovi-me quando Joo Guedes teve que vender seu ltimo cavalo, um mouro macanudo (p. 74)

Este perodo tambm foi marcado politicamente pelo fim do regime ditatorial instaurado por Getlio Vargas que adotou uma poltica centralizadora, acabou com os partidos e com os smbolos regionais, e determinou a queima das bandeiras e a abolio dos hinos estaduais. Este episdio ficou profundamente marcado na "alma" dos gachos. Alzira Vargas do Amaral Peixoto (1960), ao narrar este momento em seu livro de memrias, assim o descreve:

Apesar de aplaudir com entusiasmo esta iniciativa resolvi no comparecer a cerimnia matinal. Doa-me assistir a queima da velha bandeira dos Farrapos, que durante tantos anos simbolizara a vida do meu Estado, cobrira os corpos valentes de tantos gachos mortos em combate, e fora bandeira idolatrada por meu av. Doa-me saber que o "Salve o Vinte de Setembro, precursor da liberdade"; que eu aprendi a cantar no colgio, nunca mais seria tocado; viveria apenas como uma recordao, um dobre de finados (p.336).

poca de mudanas que abalavam a identidade construda, que apresentava a cidade como espao para onde convergiam todas as atenes, abrindo-se para o mundo e para novas referncias culturais. A narrativa de Paixo Crtes expressa um

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sentimento de perda, o temor por uma gerao que estava ameaada de no vivenciar as tradies:

Grande parte de nossa gerao, que vivera sua juventude durante a ditadura de Getlio Vargas politicamente desconhecia os smbolos oficiais (bandeira, braso, hino) da terra gacha, pois tais elementos haviam sido banidos do ensino escolar, estavam ausentes dos prticos e papis timbrados, das reparties pblicas e no figuravam nas cerimnias governamentais do Estado. (...) Vivamos, agora, em 1947. Os veculos de comunicao escolar, mostravam-se saturados de estrangeirismo (Crtes, 1994b, p.41-42).

No seu "Manual do Tradicionalismo", Glaucus Saraiva expressa tambm esse medo dos perigos do novo suplantando as tradies e conclama que para reverter essa situao h necessidade de lderes, "condutores" que o povo seguir:

(...) se avolumam os sintomas de um desencanto generalizado e perigoso no seio de nossa gente. Ela est perdendo a f nos poderes constitudos e aprendendo a desacreditar nos seus condutores. (...) est se criando um clima propcio inoculao de quaisquer idias aliengenas e antagnicas no esprito do nosso povo. H carncia de lideranas. Precisa-se de um rumo e um sinuelo (Saraiva, 1968, p.81).

Ainda, segundo Paixo Crtes, foi frente a esta situao de abandono das tradies que teve incio em Porto Alegre, em agosto de 1947, um movimento estudantil a favor das tradies e contra os "estrangeirismos", numa poca em que ningum mais pensava em tradio, destruindo tudo aquilo que era considerado "velharia". A fundao do Departamento de Tradies Gachas, junto ao Grmio Estudantil estava inserido neste contexto:

Esse movimento comeou no Colgio Jlio de Castilhos, onde, com vinte anos, fundei, com um grupo de jovens companheiros, o Departamento de Tradies Gachas, junto ao Grmio Estudantil. (...) A preocupao inicial era preservar, desenvolver, proporcionar uma revitalizao cultura riograndense, interligando-a, mais valorizada, no contexto da cultura brasileira. Dentro desse esprito, sugeri (...) a realizao do que denominei Ronda

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Crioula (Ronda Gacha) que se estenderia de sete a vinte de setembro, unindo assim as datas mais significativas para os gachos - sete de setembro, Independncia do Brasil e vinte, incio da Revoluo Farroupilha(Crtes, 1994b, p.42-43).

Os fundadores do Movimento Tradicionalista repetem um sentimento semelhante ao que levou Cezimbra Jacques a fundar o Grmio Gacho meio sculo antes, tal sentimento est expresso quando contam que os rapazes do "Julinho19 manifestavam-se contra a ausncia da Histria do Rio Grande do Sul nos currculos escolares, a falta de livros de literatura gacha e de msicas tradicionalistas. Para eles, esta arrancada tradicionalista era necessria para preservar e conservar as coisas do passado nos seus "devidos lugares", para alertar sociedade dos perigos da destruio dos costumes frente s "foras aliengenas". E quanto s perspectivas e os rumos, o referido tradicionalista, autor dessa iniciativa responde:

Buscavam, no entanto uma trilha, diante da perda da fisionomia regional que se processava. A descaracterizao precisava ser combatida. O Rio Grande precisava reagauchar-se. (...) Procuravam a identidade da terra gacha (Crtes,1994b, p. 43).

Neste mesmo ano de 1947, a Liga da Defesa Nacional - LDN, anunciou que incluiria entre as programaes da Semana da Ptria, que comemorava os 125 anos da independncia do Brasil, a transladao dos restos mortais do lder farrapo David Canabarro, de Santana do Livramento para o Panteo da Santa Casa de Misericrdia em Porto Alegre. Entusiasmados com as comemoraes, os rapazes do Departamento de Tradies Gachas entraram em contato com os dirigentes da LDN, manifestando o desejo de participar das comemoraes, homenageando os 112 anos da Revoluo19

"Julinho", diminutivo do nome do Colgio Jlio de Castilhos, a forma como o colgio ficou popularmente conhecido.

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Farroupilha. Atravs de correspondncia enviada a Liga, o Departamento de Tradies Gacha props desenvolver uma srie de atividades, entre elas uma guarda de honra, formada por estudantes vestidos com trajes gachos, que cavalo acompanhariam o translado do restos mortais do heri farroupilha, numa cavalgada cvica pelas ruas da capital. Tambm, a programao inclua a colocao de uma pira no interior do Colgio Jlio de Castilhos, onde seria depositada uma chama retirada do Fogo Simblico da pira da Ptria, interligando o culto das "tradies gachas" ao culto Ptria. Nasciam os smbolos usados pelo Movimento Tradicionalista (Chama Crioula e Ronda Crioula), com rituais a serem seguidos. Este um momento de criao de novos elementos simblicos a partir de outros que j existiam, de construo de uma "tradio inventada", que depois ser institucionalizada:

Por `tradio inventada' entende-se um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcitas ou abertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visam incultar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, o que implica automaticamente; uma continuidade em relao ao passado. Alis, sempre que possvel, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histrico apropriado. (Hobsbawn e Ranger, 1997, p. 9).

Apesar da criao ser recente, estes smbolos so cultuados como antigos e muitos desconhecem sua origem. Paixo Crtes afirma que em 1977, alunos e professores, autoridades e imprensa, pensavam que estes smbolos usados pelo Tradicionalismo nos dias atuais, teriam origem em 1835, incio da Revoluo Farroupilha. A Liga de Defesa Nacional aceitou a idia da "guarda de honra" proposta pelo Grmio Estudantil, e assim formou-se o "Grupo dos Oito", batizado como "Piquete

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da Tradio", composto por: Joo Carlos Paixo Crtes, Antnio Joo S de Siqueira, Cilo Campos, Cyro Dias da Costa, Cyro Dutra Ferreira, Fernando Machado Vieira, Joo Machado Vieira e Orlando Jorge Degrzia. Este foi o grupo de rapazes que saiu "pilchado20 pelas ruas de Porto Alegre, em 5 de setembro de 1947, numa homenagem que registrada como marco inicial de todo o Movimento. Segundo Cyro Ferreira, autor do livro "35" CTG - O Pioneiro do Movimento Tradicionalista Gacho - MTG, e tambm integrante do "Piquete da Tradio":

E a idia partiu do companheiro Paixo, que nunca conheceu obstculos intransponveis. Apesar dos seus 20 anos enfrentou o Capito Vignoli, propondo-se a fazer um guarda de honra, a pata de cavalo, por gachos que lembrassem os tempos gloriosos em que os nossos estancieiros e suas peonadas enfrentaram, durante 10 anos, todo um Imprio (Ferreira, 1987, p.23-24).

Este momento revela alguns aspectos importantes do incio do Movimento Tradicionalista Gacho da atualidade: Primeiro, que a Revoluo Farroupilha, luta que durante dez anos (1835- 1845) confrontou o Rio Grande do Sul ao Imprio brasileiro, o grande acontecimento histrico do Rio Grande do Sul a ser reverenciado pelos jovens tradicionalistas. Uma reverncia, tal como a intuda por Cezimbra Jacques nos fins do sc. XIX, que tambm envolveu o culto aos heris da epopia farroupilha, as suas datas e a busca de referncias no passado para "iluminar" o presente, imprimindo-lhe um carter aos moldes da concepo positivista. Segundo, que o Tradicionalismo, por outro lado, despertou a figura do antiheri ou "grosso", traduzindo-se nas resistncias que o Movimento sofreu, pois no incio no foi fcil recrutar adeptos para a cavalgada, tanto que os seus fundadores20

Pilchado: vestido com trajes gacho.

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revelam que foram conseguidos catorze arreios21 para desfilar e somente oito jovens dispostos a montar; alm disso o Piquete da Tradio causou grande estranheza na sua passagem pelas ruas de Porto Alegre: eles foram chamados de palhaos enfeitados e fantasiados. Em 1989, o Rio Grande do Sul instituiu por lei as vestimentas tpicas gachas como traje oficial. No entanto, em 1947 os integrantes do Piquete da Tradio foram considerados tipos excntricos por estarem trajados gacha nas ruas de Porto Alegre. O lder do grupo conta que deu uma surra de "mango"22 no sujeito que comeou a gritar chamando-lhe de palhao, e sentindo que a inteno era ridicularizar o gacho, diz que:

No agentei. Arrematei os arreios e montei no cavalo quase sem estribar, (...) quase fui com cavalo e tudo, para debaixo de um desses bondes eltricos, (...). Como um desesperado me lancei atrs do indivduo que, j se perdia em meio aos veculos. Quando a charrete do grito estava entrando na Bento Gonalves, o tubiano alcanou-a. E a fui eu que gritei: `diz quem palhao, diz quem palhao! Seu filho da... filho daquela!'. E movimentei o relho de cabo de guajuvira, com uma soitera de espessura de um dedo feito com papado de touro. A soitera zunia no ar. A surpresa foi terrvel para o indivduo que tratava de se esquivar da melhor maneira das vibrantes chicotadas que no cessavam (...). E d-lhe relho! (Crtes,1994b, p.80-81).

A questo de vestir-se gacha, ou seja, com roupas campeiras no ambiente citadino, j havia chamado ateno do fundador do Clube Gacho em 1898. Ele deixa bem claro que estas deveriam restringir-se s comemoraes e afirma que:

Repelindo fteis preconceitos, na nossa sede social, deixando-nos guiar por mestres e despindo-nos por momentos as galas modernas e trajando as vestimentas do gachos, realizamos todos estes bons atos daqueles belos tempos e veremos o quanto sublime nos transportar, por alguns21

Arreios: o conjunto de indumentrias, como pelego, baixeiro, serigote, freio, rdeas, bual e outros, que so usados para encilhar o cavalo para montar. 22 Mango: tipo de relho, que tem o cabo de madeira grossa e a aoiteira larga, feita de couro c.

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momentos, para um passado cheio de sade e vio como era aquele em que viveram os nossos avoengos (Jacques, 1997, p. 67)

Dessa forma, aprovada a reproduo e o exerccio dos bons atos do passado nos limites da sede social, como uma expanso patritica. O assunto foi assim tratado:

No proclamamos (...), o fato de se poder realizar gauchadas em lugares e em ocasies imprprias e nem to pouco que se pretenda introduzir nos sales das nossas cidades e no interior delas, trajes em oposio ao decoro exigido pela civilizao e que se pretenda introduzir danas que no esto de acordo com o gosto e o modo de vida da sociedade moderna (op. cit., p. 58).

Passadas as comemoraes de 1947, o grupo de rapazes do "Julinho" continuou reunindo-se e j pensavam e dar continuidade ao culto das tradies gachas, pois no queriam somente comemorar as datas escolhidas, mas tambm ensejavam avanar criando um espao permanente de vivncia da tradio. Este momento faz parte da memria dos seus criadores, como evidenciado nas palavras de Barbosa Lessa:

Mas a coisa talvez tivesse parado por a, na esfera cvica, se no tivesse ocorrido a idia de reunies permanentes, de periodicidade semanal, a beira de um fogo -de- cho, com a cuia de mate alimentando a inspirao de causos, com isso trouxemos para o cosmopolitismo da capital o fenmeno interiorano do galpo, reduto masculino dos pees de estncia, serviu como elemento formal para a identificao da gurizada de formao campesina (...) (apud Crtes,1994b, p. 76-77).

A partir dessas reunies, foram sendo dados os primeiros passos para a continuidade do Movimento de preservao das tradies que esse grupo selecionava para cultuar. Levaram adiante a idia de Barbosa Lessa de criar um "Clube da Tradio Gacha", imprimindo-lhe, de incio algumas caractersticas que

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so marcantes no Tradicionalismo que hoje conhecemos. Uma delas que o Movimento tem como referncia o meio rural, tido como puro, especialmente vida nas estncias, consideradas "escolas de democracia". Outra caracterstica, que o Movimento urbano, levado por pessoas que, muitas vezes, nunca tiveram uma vivncia no campo. 0 convite para primeira reunio de discusso a respeito da criao de uma entidade tradicionalista, dirigia-se aos citadinos:

Aqui trazemos um convite aos gachos que, embora residindo na capital e tendo hbitos citadinos, guardam ainda nas veias o sangue forte da terra rio-grandense. sobre a fundao de um clube tradicionalista. Ter como finalidade reunir num mesmo rodeio os grupos de muitas querncias do Rio Grande do Sul, mas agora residindo em Porto Alegre. No primeiro sbado de novembro realizaremos um reunio preparatria das atividades, para que todos sejam orientados, e assim entrem na cancha, em maro, de relho em p, prontos para a vitria. Viva o Rio Grande do Sul (Lessa, 1985, p.57).

Em janeiro de 1948 realizava-se a reunio que deu origem ao "35"Centro de Tradies Gachas, o primeiro CTG criado no Rio Grande do Sul, que tem como lema a frase " Em qualquer cho sempre gacho". Um lema que afirma a idia de manter a diferena com relao aos demais estados da federao, guiado por um orgulho de ser gacho, um forte sentimento nativista, de amor terra natal, que se traduz no apego pelas coisas ligadas a ela, as quais no podem ser desvirtuadas ou descaracterizadas, devendo permanecer puras e autnticas. O Boletim n 1 do "35"- CTG ao descrever sobre as suas finalidades, expe este sentimento:

A finalidade do 35, sob o aspecto cultural, o estudo do folclore e da histria do Rio Grande do Sul e sua divulgao da palavra falada, ou escrita, da msica, da dana, das artes, ou da prtica campeira. Sob o aspecto poltico, o anseio do 35 preservar a pureza da nacionalidade que

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se transfigura neste sufocante entrechoque de culturas estranhas nossa formao social. anseio do 35 fazer voltar todos aqueles que hoje habitam o Rio Grande do Sul ao ponto de partida comum, s razes de nossa formao, para que - movidos por idnticas aspiraes - possamos avanar irmanados e confiantes, traando as linhas do futuro sem esquecer as lies do passado (apud Crtes,1994b, p.135).

A partir da fundao do "35", em 24 de abril de 1948, foram sendo criados Centros de Tradies Gachas por todo o Estado, chegando hoje a um nmero de 1470 CTG's no Rio Grande do Sul, cerca de 500 CTG's em outros estados do Brasil e alguns fundados fora do pas. O modelo, a "estncia23 simblica", do "35"- CTG seguido por todos os Centros de Tradies Gachas, ou seja, cada entidade representada por um "galpo24 simblico", onde o Presidente o Patro25, o Vice o Capataz26, 0 1 Secretrio o Sota-Capataz27, os demais Diretores so os Posteiros28, OS Departamentos so chamados de Invernadas29, o conselho Fiscal o Conselho de Vaqueanos30 e os demais associados so os pees31. Essa nomenclatura, que reproduz o modelo da estncia gacha, foi criada por Glaucus Saraiva, escolhido 1 Patro do "35", que teve Barbosa Lessa como 1 Capataz e Paixo Crtes como 1 Patro de Honra a "Santssima Trindade do Tradicionalismo"32. Porm a simbologia da estncia foi sendo inventada aos poucos e levou dois anos para ser oficializada e aprovada pelo regulamento interno, em 1950. O tambm fundador do "35", Cyro Ferreira diz que:23

Estncia o estabelecimento rural destinado criao de gado, formado por uma grande extenso de terra. Tambm conhecida como fazenda de criao. 24 Galpo uma construo rstica que faz parte da estncia, e serve de alojamento para os empregados nas horas de descanso. 25 Patro o proprietrio da estncia. 26 Capataz supervisiona o trabalho dos pees e administra a estncia. 27 Sota-Capataz o capataz adjunto. 28 Posteiro mora nas terras da estncia, ajuda realizar algumas tarefas e cuida dos limites do campo. 29 Invernada uma extenso de terra cercada, dentro da estncia, que serve para apartar uma parte do gado. 30 Vaqueano um homem gil e que conhece bem a regio, por isso serve de guia ou condutor. 31 Peo: empregado da estncia que realiza servio pastoril. 32 Antnio Augusto Fagundes usa esta expresso para destacar a importncia desses trs nomes do Tradicionalismo.

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Sem inventar Histria - Tradio - Folclore, o "35" inventou, isto sim, e com muita oportunidade e sabedoria, o "Patro"; o "Capataz"; o "Sota-Capataz"; o "Peo"; os "Agregados'; as invernadas"; e por a afora, trazendo para dentro de uma Entidade, na identificao dos seus corpos diretivos, a bela e campeira nomenclatura crioula (Ferreira, 1987, p.112).

Durante as reunies da Diretoria, ou "Charlas da Patronagem"33, foram sendo criadas outras figuras no "galpo": os "Agregados"34 que eram os secretrios das atas e da tesouraria; as reunies de associados denominadas de "Chimarro"35 e as reunies sociais chamadas de "Chimarro Festivo". Depois passaram a chamar os meninos de "pis" e as mulheres de prendas. Numa perspectiva prxima ao que Hobsbawn (1997) chamou de "tradies inventadas", cada elemento, do vesturio, da dana, da fala, passou a ser elaborado e reelaborado para representar o passado do homem do campo, os elementos antigos so buscados para o presente, onde lhe so dados novos significados. O Tradicionalismo difundiu representaes, construdas pela "Cultura Tradicionalista", do que seria o gacho e o Rio Grande do Sul no passado, adotando elementos novos que so confundidos com antigos e todos eles adjetivados como puros e autnticos. Para Maria Eunice Maciel, estas construes: "So adotadas como oficiais e tidas como parte da cultura tradicional, exemplos de 'autnticas tradies do Rio Grande do Sul' (1999b, p.136). Toda essa criao foi concebida ao mesmo tempo em que o "35" estava sendo estruturado, conforme conta Barbosa Lessa, no seu livro Nativismo, um fenmeno social gacho:

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Conversas informais da Diretoria do CTG Agregado: pessoa que mora em terras alheias e em troca cumpre determinadas obrigaes. 35 Chimarro uma infuso de erva-mate, servido em uma cuia e sorvida atravs de uma bomba (uma espcie de canudo metlico). uma bebida tpica do Rio Grande do Sul, servida nas horas vagas e oferecida s visitas.

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Quando algum elemento faltasse para nossa ao, ns teramos que suprir a lacuna de um jeito ou de outro. Assim, por exemplo, qual o adjetivo que daramos a ns mesmos quando estivssemos vestidos gacha? Algum sugeriu "aperado"; mas "apero" arreiamento, roupa de cavalo, o termo no ficava bem. Ento, na ata de 8 de maio de 1948 0 secretrio Antnio Cndido se lembrou que pilcha dinheiro ou o objeto de uso pessoal que possa ter um valor pecunirio. `Vamos oferecer ao patro de honra, Paixo, um churrasco, ao qual a indiada dever vir toda pilchada'. Esse invento colou (Lessa, 1985, p.57).

A "estncia simblica" surgiu com caractersticas inditas, com uma simbologia ligada aos valores do campo, lembrando a regio da Campanha36 e reproduziu as figuras do patro (dono de estncia) e do peo (empregado da estncia) convivendo democraticamente numa mesma entidade, aos moldes da concepo expressa por Jorge Salis Goulart no livro "A Formao do Rio Grande do Sul", com 1' edio em 1927; uma obra que exalta as relaes fraternas na estncia, considerada "clula social" e lugar de "nobres qualidades". O autor apresenta a estncia, como uma estrutura que moldava as demais formas sociais, como a fonte maior de unidade e de estabilidade social no Rio Grande do Sul. A estncia gacha foi considerada um espao de organizao democrtica onde a distino entre as classes desaparece. Goulart assim escreve:

Estudando a existncia do gacho no descobrimos classes intransponveis por qualquer preconceito ou interesse. Surge apenas, nessa poca embrionria de nossa formao, uma indiferenciao de classes sociais; como se nota uma classe nica, a dos gachos ( igual sempre, quer se trate de ricos ou pobres, pelo garbo dos gestos, pelo amor da guerra, pelo gosto das aventuras) constantemente preparado com a galhardia do pingo, feliz na roda amistosa do chimarro, entre relatos guerreiros ou faanhas dos dias de rodeio, revelando todos, humildes e potentados, os mesmos hbitos, os mesmos costumes, os mesmos ideais (Goulart, 1985, p.34).

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Campanha a regio sudoeste do Rio Grande do Sul; conhecida como zona de latifndio e criao de gado. 0 termo tambm usado para designar qualquer local fora da cidade, na zona rural.

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Ainda Goulart, serve de referncia ou de inspirao ao Tradicionalismo, quando defende a tese da superioridade dos gachos sul-riograndenses, justificada pela possibilidade que teve o fator geogrfico de atuar no mesmo sentido que as foras sociais e raciais, desta forma podendo influenciar sobre acontecimentos histricos, mais precisamente sobre os fatos humanos. A influncia destas idias esto, por exemplo, em -Aspectos da Sociabilidade Gacha", escrita pelos grandes nomes do Tradicionalismo atual: Barbosa Lessa e Paixo Crtes. Segundo a teoria de Goulart, as trs foras (fsica, social e racial), agindo num mesmo sentido, geram uma influncia real mxima; no Rio Grande do Sul a fora geogrfica agiu no sentido da grande propriedade, do trabalho pastoril, gerando as possibilidades para a realizao da democracia, assim como a grande "massa branca" contribuiu para "guiar os destinos superiores do povo", evitando que os "elementos inferiores" travassem a "marcha ascendente", o sul rio-grandense diferenciado do gacho platino ou "gacho maio", apontado como mais apto para a civilizao, como aquele que assume a direo e orienta os demais - ndios e negros. Dentre os aspectos destacados pela tese da superioridade do gacho esto as relaes democrticas da estncia, onde patres e empregados irmanados pelos mesmos costumes e sentimentos, so igualados pela simplicidade do modo de vida; alm disso dito que ambos moravam em ranchos37, alimentava-se do mesmo churrasco38, tomavam o mesmo chimarro, proseavam em volta do fogo-de-cho39 e realizavam as mesmas lides campeiras. A idia que estancieiros e pees no37 38

Rancho: construo pequena e rstica, que serve de moradia aos habitantes mais pobres da zona rural. Churrasco: carne salgada e introduzida num espeto. depois assada sobre brasas. 39 Fogo de Cho: fogo aceso no cho de um galpo de estncia; em volta dele os pees contam causos, aquecem a gua para o chimarro e tambm serve para assar o churrasco e aquecer o ambiente nos dias frios.

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tinham interesses opostos, por isso o empregado se identificava com seu patro, sendo o peo considerado uma pessoa da famlia do fazendeiro. Outro aspecto apontado, para distinguir o Rio Grande do Sul como um lugar de relaes democrticas, refere-se a escravido, que teria sido mais amena em relao as demais provncias. Nas estncias os negros teriam sido melhor tratados devido ao esprito de fraternidade depositado na "alma gacha", que "adoou a escravido". Uma concepo que admite a possibilidade da existncia de uma "escravido amena" tentando eliminar a contradio entre estas duas palavras, e reduzindo a sua explicao aos efeitos do meio geogrfico e da raa, numa abordagem positivista que subordina os acontecimentos as "leis gerais" de uma suposta "ordem natural". O meio teria feito o gacho diferente, e por conta disso dotado de boas qualidades:

Dentro de sua altivez tradicional, da sua felicidade inata, o gacho nunca admitiu preeminncias de classes ou de raas. A democracia e a liberdade so necessidades vitais para o gacho (...) (Goulart, 1985, p.15).

A raa "superior branca", outro elementos que teriam estabelecido a diferena do gacho:

No tinham aqui os dominantes a necessidade de tiraniar os dominados, pois a sua superioridade era natural, harmoniosa em tudo. No era necessrio uma coao material que iria inverter uma ordem material espontnea. Desde a cultura at a capacidade econmica a `elite' diretora era, naturalmente superior (op. cit., p.48).

Estas idias a respeito de uma singularidade da formao social do Rio Grande do Sul, apontando diferenas do modo de vida dos gachos, esto em

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diversas obras que tratam da historiografia do Rio grande do Sul, constantemente fundamentadas com base nos relatos dos viajantes estrangeiros, Auguste de Saint Hilaire, Nicolau Dreyes e Arsne Isabelle, que passaram no estado no incio do sculo XIX, e servem de suporte para muitas destas teorias. O naturalista francs Saint-Hilaire muito citado pelos autores quando registra fatos dessa natureza, como por exemplo quando descreveu a simplicidade do modo de vida do estancieiro. Este aspecto usado por Jorge Salis Goulart para mostrar que: "Pelo gnero de vida que os ricos levavam desciam at os pobres, irmanados a estes pelos mesmos costumes e sentimentos" (1985, p.39).

A estncia de Jos Bernardes se compe, como todas as outras, da casa do proprietrio, de uma casa para negros e de uma cozinha que forma uma pequena choupana parte, segundo o costume de quase todo o Brasil. A casa do fazendeiro coberta de palha, como as que eu vi desde a estncia do Silveira; baixa como todas as outras e construda de paus cruzados e barro (...) (Saint-Hilaire, 1997, p.104-105).

Outro aspecto muito valorizado do dirio de Saint-Hilaire, "Viajem ao Rio Grande do Sul", a sua descrio a cerca do tratamento recebido pelos escravos nas estncias, especialmente quando escreve:

(...) Entretanto no h talvez, no Brasil, lugar algum onde os escravos sejam mais felizes do que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os escravos; conservam-se prximos deles e tratam-nos com menos desprezo. O escravo come carne vontade; no veste mal; no anda a p; sua principal ocupao persiste em galopar pelos campos, o que constitui e exerccio mais saudvel do que fatigante; enfim, ele faz sentir aos animais que o cercam uma superioridade consoladora de sua condio baixa, elevando-se aos seus prprios olhos (op. cit., p.53).

A citao acima alimenta vrias fantasias sobre a existncia de um pampa idlico gacho, que podem ser questionadas em outras passagens, quando ele relata tratamentos cruis s crianas negras:

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(...) No conheo criatura mais infeliz do que essa criana. No se assenta, nunca sorri, jamais se diverte, passa tristemente apoiado parede e , freqentemente, martirizado pelos filhos do patro.( ...) no esta casa a nica onde h este desumano hbito de ter sempre um negrinho perto de si para dele utilizar-se quando necessrio (op. cit., p.86-87).

Essa possvel "escravido amena" tambm fica inconcilivel com uma lenda, das mais populares do Rio Grande do Sul - "O Negrinho do Pastoreio", que retrata a saga de um menino negro que sofre a crueldade do estancieiro e de seu filho que lhe martirizam at a morte. Segundo Flvio Loureiro Chaves (1982), so as relaes de violncia que se manifestam de maneira mais brutal na narrativa d' O Negrinho do Pastoreio, na verso de Simes Lopes Neto publicada em 1906: "caracterizando a personagem do estancieiro e o seu poder autocrtico; e, por conseqncia instaurando uma ciso j insanvel entre patro e escravo, o dominador e o dominado" (Chaves, 1982, p.170). Estas "razes", formadoras de uma "fraternidade gacha", foram ento buscadas pelo Movimento encabeado pelo grupo do "35"-CTG, que seguira sua caminhada estruturando-se cada vez mais, com dezenas de CTGs inaugurados logo aps a sua fundao. Para organizar todas estas entidades e para definir os rumos do Movimento, em 1954 foi realizado o I Congresso Tradicionalista, no CTG "Ponche Verde", na cidade de Santa Maria. Neste Congresso foi aprovada a importante tese de autoria de Barbosa Lessa, denominada "O Sentido e o Valor do Tradicionalismo", documento terico de maior importncia para o Tradicionalismo que estava surgindo no Rio Grande do Sul. O documento de Barbosa Lessa identifica um processo de desintegrao da sociedade causado pelo enfraquecimento das culturas locais (constitudas pelo seu Patrimnio Tradicional, os seus hbitos, seus princpios morais, seus valores, etc.,

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que so compartilhados por todos) e o desaparecimento dos "grupos locais" (pequenas unidades sociais compostas por pessoas que vivem juntos numa determinada rea, compartilhando hbitos e noes comuns, como o bairro, a vila, a vizinhana, o distrito,etc.). Combater estes fatores de desintegrao social, reforando o ncleo da cultura rio-grandense atravs dos Centros de Tradies Gachas, o objetivo apontado para o Movimento Tradicionalista Gacho que estavam criando. Diante dos rumos que estava tomando o Tradicionalismo, cada vez mais constituindo-se num Movimento de grande porte, que estima-se que atualmente envolva dois milhes de pessoas, os tradicionalistas comearam a sentir falta de um rgo que servisse para unificar e enquadrar o Movimento dentro de uma mesma regra. Segundo seus militantes, este organismo era necessrio, para estudar e ditar normas de interesse geral, trocar experincias e aproximar os CTG's. Para cumprir esse objetivo, fundaram em 1966, no XII Congresso Tradicionalista, o Movimento Tradicionalista Gacho, conhecido pela sigla de MTG.

1.2. O Gacho Tradicionalista

A figura do gacho, sofreu profundas transformaes, em diferentes contextos e momentos histricos, at chegar ao significado que atualmente lugar comum. Os historiadores, bem como os escritores de forma geral, e at mesmo os viajantes estrangeiros, contriburam para a transformao de um termo que pejorativamente representava o ladro de gado, contrabandista e vadio.

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Aplicado originariamente para designar mestios, ndios, espanhis e portugueses que viviam da atividade de prear gado na regio dos pampas40 da Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul, no perodo Colonial, a expresso gacho foi sendo reconstruda ao ponto de ser usada como quase um sinnimo de heri. Este tipo social formado por desertores, aventureiros que realizavam a atividade predatria de extrao do couro no extremo sul do Brasil no decorrer dos sculos XVII e XVIII, foi identificado como guasca, gaudrio e gacho, mantendo nestas trs denominaes o mesmo sentido de homens fora da lei. Na viso mtica, o gacho sul-rio-grandense participou das lutas para manuteno das fronteiras portuguesas na regio do Prata; e com o

estabelecimento das fazendas de criao de gado, fixou-se como peo de estncia, perdendo suas caractersticas nmades. Porm, ainda no desfazendo o sentido negativo do vocbulo, que resignificado como figura de qualidades fsicas e morais exemplares. Foi em fins do sculo XIX, incio do sculo XX, que surgiu a figura do gacho significando homem ligado s lides campeiras e ao trabalho pastoril nas estncias, que tambm foi chamado como soldado nas freqentes disputas de fronteiras para combater os invasores espanhis e platinos. Apesar dessa conotao de peo guerreiro no ter, de imediato, traduzido-se na imagem de homem forte e virtuoso, comea a a construo da imagem de heri que o gacho vai adquirir. A partir de dois elementos, habilidade nas atividades campeiras e da participao nas guerras, comeou a ser construda outra imagem do gacho que se difundiu: atravs da histria que lhe confere atos hericos nos conflitos de40

Pampa: termo usado para designar as amplas reas e plancies cobertas de pastagens.

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demarcao dos limites de fronteira; atravs dos relatos dos viajantes que reforam a descrio de um tipo destemido; atravs da literatura que a partir do duplo elemento, campeiro-guerreiro ou peo-soldado, foi modificando o uso do termo, num processo de recriao do gacho como sinnimo de grandeza fsica e moral. O gacho torna-se um mito. Em "Historiografia - Estudos", Moacyr Flores analisa que as primeiras obras da literatura escrita, seguiram os padres do romantismo (a temtica regional, a descrio da paisagem e o uso dos termos locais), mostrando que em 1849, no romance "O Corsrio", de Jos Antnio do Vale Caldre e Fio, o personagem heri o bom campeiro que se veste de monarca e o gacho ainda significa o elemento marginal do campo; que em 1869, o livro "Monarca das Coxilhas", de Apolinrio Porto Alegre, explora o contraste entre o meio rural e urbano sendo o campo visto como o lugar melhor para viver; e que a entrada do gacho na literatura acontece em 1877, com "Os Farrapos", de Luis Alves de Oliveira Belo, quando o monarca das coxilhas chamado de gacho - o centauro dos pampas. Analisando o gacho como tema literrio, Flvio Loureiro Chaves (1982) diz que Jos de Alencar, autor de "O Gacho" (1870), ultrapassa o "tipo" para criar a imagem do gacho como heri romntico - "um vulto ideal da idealizao da paisagem", criando um modelo a ser seguido; e acrescenta que o gacho desta obra tem uma caracterstica machista que ser constantemente repetida na fico, formando o prottipo do gacho composto com: "o macho guerreiro", "a mulher que ameaa invadir sua solido" e "o cavalo seu fiel companheiro". Para este autor, Jos de Alencar explorou a mescla de elementos contraditrios e apresentou um gacho "meio homem, meio heri", formando um

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"modelo". Pois o tipo, sempre identificado aos atos guerreiros e vastido dos campos, j existia, mas o modelo alencariano (idealizado e mitificado) foi adotado para fixar a imagem do gacho, e incorporado tradio:

Alencar recobriu-o de aura pica, que era portador o `novo homem americano' pronto para executar o amplo gesto da liberdade, projetando-o no cenrio histrico (...) concedeu-lhe cidadania de `centauro dos pampas' (Chaves, 1982, p.32).

Com essa transformao, o termo gacho no representa apenas o nome pelo qual conhecido o homem do campo entregue ao meio pastoril na regio dos pampas, ser gacho significa estar imbudo de uma srie de qualitativos representativos de coragem, justia e liberdade, aqueles atribudos ao mito do heri. De uma ampla anlise dos conceitos de mitos e smbolos feita por Jung em "O Homem e seus Smbolos", destaca-se alguns elementos importantes: primeiro, uma palavra ou imagem um smbolo quando implica alguma coisa alm do seu significado imediato e bvio; segundo, uma palavra ou imagem (smbolo) tem um aspecto inconsciente mais amplo que nunca precisamente definido ou explicado; terceiro, quando a mente explora um smbolo conduzido a idias que esto fora do alcance da razo. Para Dayse Lange Albeche (1996), houve uma difuso histrica do smbolo gacho, sendo que seu significado variou conforme os interesses de determinada poca. Ao trabalhar o imaginrio cultural gacho, a autora chama ateno para os diferentes significados que teve a imagem mtica do gacho, variando com o contexto de sua elaborao, mostrando que o mito do gacho pode ser reinterpretado e o seu significado constantemente reconstrudo:

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O gacho herico do padro romntico muitas vezes generalizado como sendo a imagem da sociedade riograndense. Por sua mitificao comum apresent-lo como representante de determinados qualitativos, que podem ser traduzidos em valores de: bravura, honestidade, liberdade, justia, fora fsica, destreza, coragem, patriotismo, lealdade, ordem e moralidade (Albeche, 1996, p.9).

Partindo da concepo de que os mitos e os smbolos no so naturais, no tm origem divina e que no foram inventados, ou seja, no so uma mentira, mas so uma representao coletiva, a histria quando investiga a constituio da memria e o imaginrio coletivo, busca smbolos e mitos que expressam as idias e valores que um determinado grupo social construiu a respeito de si em sua poca. Nesta investigao percebi que o gacho do Tradicionalismo faz um culto de si, transformado em um tipo ideal e, conforme analisou Albeche:

Talvez a aceitao dessa `tradio legendria gacha' repouse em grande parte nos elementos sociais que conservam a imagem positivista de uma tradio reordenada, confundindo como real a reinterpretao do ncleo simblico da imagem do gacho (op. cit., p. 132).

O mito do heri reconhecido como o mais difundido mundialmente, sendo observado que mesmo que ele varie muito de contexto, momentos e lugares diferentes, conserva sempre as mesmas caractersticas essenciais, contidas no "ncleo bsico". Estas caractersticas, que Jung denomina "arqutipos", formam o ncleo do heri, representado: por um nascimento milagroso, pela prova de fora, por uma rpida ascenso e a notoriedade, pela luta triunfal contra o mal e pelo seu declnio, que aparece sempre como resultado de uma traio ou sacrifcio e resulta na sua prpria morte. O Tradicionalismo, faz essa reinterpretao do gacho, mantendo seus "arqutipos" de heri, traduzidos nas qualidades do gacho que o MTG divulga: 1.

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Hospitalidade; 2. Coragem; 3. Nativismo; 4. Respeito palavra empenhada; 5. Apego aos usos e costumes; 6. Cavalheirismo. "Tudo isso pertence ao catecismo tradicionalista, ao seu cdigo de honra" (Mariante, 1976, p. 14). O gacho tradicionalista uma caricatura do tipo lutador e campeiro, dotado de um padro moral, de onde foram extrados os elementos que interessavam para fundar um Movimento que pretendia reestabelecer um cdigo tico, que existiu num "tempo melhor", para dele resgatar sentimentos "saudveis, laboriosos e patriticos". Esses qualitativos do gacho que fazem parte do discurso tradicionalista so constantemente reforados e so evocados nas comemoraes, nas cartilhas e na oralidade. Considerados como "autnticos" valores do Rio Grande do Sul, so formadores de uma "moral gacha" e de uma "alma dos pampas", que transformam o Rio Grande do Sul num lugar privilegiado e seus habitantes em homens excepcionais. O Tradicionalismo busca conscientizar a necessidade dessa moral ser cultuada e perpetuada, a fim de que se conserve imaculada dos valores externos. Esta idia de naturalizao de um modo de ser e de sentir gacho exposta por Hlio Moro Mariante (1976) em "Histria do Tradicionalismo Sul-Rio-Grandense", onde o autor atribui ao nativismo o fator da elevao do carter e da moral dos gachos, escrevendo que:

Ainda no transcorrera sculo e meio da fundao oficial do Rio Grande do Sul, 191021 1737, e gacho (...) j sentia a forte atrao que a sua terra, os seus pagos, a sua querncia, exerciam em sua idiossincrasia. Este sentimento de apego ao seu torro natal, sua auto- afirmao de suficincia, este telurismo congnito foram- lhe inculcados, sem dvida, pela aguerrida participao dos seus maiores nas constantes lutas para a demarcao e manuteno das lides meridionais de sua ptria (...). Tal reconhecimento ensejou ao homem sulino, sensorialmente, o sentimento de firmeza de carter e de ao de seus ancestrais, sensibilizando-o como um seu predestinado continuador no tempo e no espao (1976, p.5-6).

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Segundo a argumentao de Mariante, esse apego do gacho pelo "torro natal", esse amor aos "pagos"41, essa ternura pela "querncia"42 resulta de um somatrio de influncias positivas exercidas pelos valores que o pago desenvolveu, os valores de liberdade, de honradez e democracia. No devemos olvidar, ainda, o ar de liberdade que gozavam os habitantes da raia meridional brasileira, com os seus horizontes infinitos e campos imensos, cujos limites, a princpio, eram demarcados pelas cartas de sesmaria e ratificados na prtica pelo documento indubitvel da palavra empenhada, do fio- de- bigode. Aditese mais o modo de vida das estncias de ento, onde o patro e o empregado esmeravam-se no labor do dia- a- dia (...) confraternizando diurnamente atravs da cuia de chimarro, elo afetivo e real da amizade e compreenso mtuas, enraizando no gacho, por instinto e condicionamento o mais amplo sentido de democracia (op. cit., p. 6). O VIII Congresso Tradicionalista, realizado em Taquara em 1961, aprovou a "Carta de Princpios" fixando os objetivos e os princpios do Movimento Tradicionalista Gacho. O documento de autoria de Glaucus Saraiva mantm-se em vigor e ressalta a idia de retomada da "conscincia moral do gacho", a necessidade de barrar as idias opostas aos "costumes naturais" do povo gacho e de zelar pela pureza dos "costumes autnticos do gacho". A fim de fazer cumprir estes objetivos, o item VII da Carta de Princpios indica que necessrio:

VII. Fazer de cada CTG um ncleo transmissor da herana social e atravs da prtica e divulgao dos hbitos locais, noo de valores, princpios morais, reaes emocionais, etc.; criar em nossos ncleos sociais uma41 42

Pago: nome dado ao lugar onde a pessoa nasceu. Querncia: lugar onde a pessoa vive.

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unidade psicolgica, com modos de agir e pensar coletivamente, valorizando e ajustando o homem ao meio, para a reao em conjunto frente aos problemas comuns (Saraiva, 1999, p. 24-25).

Para Maria Eunice Maciel (1999), o gauchismo e o Tradicionalsmo operam uma atualizao do passado rural, agregando figura do gacho uma noo de autenticidade, onde os seus participantes comportam-se e vestem-se como imaginam a existncia do gacho na Campanha, e o Movimento alimenta a possibilidade de viver o "outro" - o gacho. Este "outro", o gacho recriado e vivido nos CTG's. O gacho vivido no Tradicionalismo, o campeiro, que usa botas e bombacha, gacho que sente saudades e vive lembranas do seu "pingo"43, que lembra do fogo-de-cho e da roda de chimarro, que vive a nostalgia de uma vida ao ar livre e pura de um tempo de fartura e confraternizao. Para que cada uma viva o gacho mesmo que, muitas vezes, nunca tenha tido ligao alguma com o campo, o Movimento Tradicionalista propicia realizar: o culto aos heris, s comemoraes cvicas e a mitificao do homem do campo, especialmente da regio da Campanha gacha. O MTG mantm o modelo de gacho fixado, inclusive as suas contradies, mas apresenta um espao social simblico para viver este tipo social, o CTG, altamente disciplinado, que dita as normas de comportamento que extrapolam os limites da entidade. Estas regras so aprovadas nos congressos do MTG e passam a vigorar com fora de lei, sendo muitas vezes confundidas com condutas de origem remota.

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Pingo: cavalo bom e bonito.

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O uso das pilchas, as danas, a organizao de eventos, como concursos artsticos e provas campeiras, o tipo de msica e a literatura, tudo supervisionado pelo MTG, que constitui o rgo disciplinador de todos o CTGs. Segundo a cartilha do tradicionalismo gacho, alguns imaginam viver uma verdadeira "seita crioula".

1.3. Da Ausncia das Mulheres Inveno das Prendas

A presena feminina no CTG (Centro de Tradies Gachas) no era imaginada no incio do Movimento Tradicionalista que se estabeleceu a partir do ncleo estudantil do Colgio Jlio de Castilhos e do "35"-CTG nos anos de 1947/48. Encontrei referncia presena de algumas mulheres no Baile Gauchesco promovido pelo Grmio Estudantil do "Julinho", em 20 de setembro de 1947; entre elas Maria Zulema Paixo Crtes (12 anos), irm do estudante Joo Carlos Paixo Crtes, o qual conta que o vestido usado pela irm no baile foi criado por sua me, pois no sabiam como vestia-se a mulher campesina do passado. Esses vestidos foram descritos como simples e ingnuos, feitos de chita, compondo um conjunto com cabelos em tranas e laos de fita. Contudo, a estruturao do Movimento que estava surgindo no previa a participao das mulheres; as reunies que foram realizadas aps as

comemoraes do 20 de setembro de 1947, foram exclusivamente masculinas. A partir destes encontros surgiu o "35"-CTG, fundado em 1948 como uma entidade s de homens, um "galpo simblico".

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O galpo dentro da unidade econmica da estncia era um espao masculino, o lugar dos pees. Barbosa Lessa (1984) considera que o galpo como um fenmeno social da regio da fronteira, que deve ser explicado muito alm do que uma simples construo de madeira que abriga