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A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL PARA CRIANÇAS E PARA ADOLESCENTES
EM SITUAÇÃO DE RUA: entre o princípio da justa medida e as necessidades humanas
Cristinno Farias Rodrigues1
RESUMO
O objetivo deste artigo é discutir as necessidades de crianças e de adolescentes em situação de rua à luz dos Direitos Humanos. Com foco na política de assistência social e tendo como pano de fundo o princípio da justa medida em Aristóteles, investigaremos até que ponto o Estado tem conseguido (re) fazer o caminho de volta, aquele que restitui a dignidade humana de crianças e de adolescentes em situação de vulnerabilidade. Palavras chave: Política de Assistência Social; Direitos Humanos; Princípio da Justa Medida; Necessidades; Situação de Rua; Crianças e Adolescentes
ABSTRACT The objective of this article is to discuss the needs of street children and adolescents in the light of human rights. With a focus on social assistance policy and against the background of the principle of just measure in Aristoteles, we will investigate to what extent the State has (re) made the way back, that which restores the human dignity of children and adolescents in situation of vulnerability. Keywords: Social Assistance Policy; Human rights; Principle of Fair Measure; Needs; Street situation; Children and Adolescents
1. INTRODUÇÃO
O fenômeno da situação de rua vivida no Brasil por crianças e por adolescentes
se caracteriza pelas marcas do abandono e da negligência. A situação da população que vive
nas ruas está ligada ao sentimento do desamparo, caracterizando-se como um sintoma social,
gerado pela incapacidade de organização e atuação de meios institucionais, como a família,
a sociedade e o Estado.
A primeira parte deste ensaio se ocupa em caracterizar o fenômeno da situação
de rua vivida por crianças e por adolescentes, trazendo algumas categorias relevantes,
implicadas neste processo, a exemplo da exclusão e marginalização. Situaremos o debate a
partir da década de 1990, com recorte para a corrente ideológica do neoliberalismo, dados os
seus rebatimentos na nova (con) formação do Estado e de suas políticas.
No segundo momento, trazemos o debate teórico-conceitual acerca da categoria
necessidades. Partindo do princípio da justa medida em Aristóteles, estabeleceremos um
1 Assistente Social, doutorando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão; Mestre em Psicologia Social (PUC-Minas). E-mail: [email protected]
diálogo entre os significados de necessidades humanas abordados na obra de Agnes Heller
(1978), Teoría de las Necesidades en Marx.
Na terceira parte, tratamos sobre a constituição da política de assistência social
enquanto um direito humano, com foco no seu atendimento à infância vulnerabilizada. A partir
de uma retrospectiva histórica das políticas públicas para a infância, exploramos quais ações
desta política foram constituídas e até que ponto atendem às atuais necessidades das
crianças e dos adolescentes em situação de rua.
2. “Meninos de rua”: Verso e Reverso
Filhos da Precisão2
Pelas marginais, passarão meninos
Guardando o país, por quem batem os sinos
Se pelas catedrais, os filhos da precisão
Pedirão mais por outro destino
Do que por sair da lama
Com pose de dama em carnavais
Esquecerão as dores, lembrarão de Deus
Num por vir que aflore dor (Erasmo Dibell3)
Os filhos da precisão ainda passarão nas marginais. A persistente situação de rua
vivida por crianças e por adolescentes no Brasil ainda é um problema social que tem se
agravado. Alguns trechos da música acima retratam aspectos de uma infância negada,
relegada a segundo plano, pedindo por outro destino. O seu título já reflete a condição
daqueles que já nascem destituídos de direitos e vivem com persistentes carências,
necessidades.
O ‘estar’ em situação de rua não pode ser concebido como um bem e aponta para
inúmeras dificuldades relacionadas à territorialização precária e vulnerabilidade local que
evidenciam algumas dimensões do desamparo: a insegurança frente aos estabelecidos, a
precarização da vestimenta, higiene e alimentação e o risco iminente de adoecimentos e
2 Música de autoria do artista maranhense Erasmo Dibell. 3 Natural de Carolina (MA), Erasmo Dibell é um dos artistas mais populares do Estado e um dos melhores compositores maranhenses que surgiram a partir da primeira metade dos anos 90; o destaque dado ao autor se dá pela forma diferenciada com que aborda questões sociais, o lirismo de sua poesia e seu peculiar suingue ao violão.
morte por atropelamentos ou assassinatos, quando a categoria exclusão assume a sua faceta
mais perversa.
O ‘viver’ em situação de rua está associado a um processo de exclusão que não
se limita à dimensão material, da ‘despossessão’ de bens, desincorporação,
desterritorialização ou desfiliação social. É ainda mais grave. O conceito de exclusão que
abordaremos é atinente à definição estabelecida por Kowarick (2002), que a significa não
apenas como apartação social, diga-se, cidadania privada ou subcidadania, mas um processo
de estigmatização e discriminação, repulsa ou rejeição. Sobre essa matéria, o referido autor
aborda, ainda, o princípio da exclusão, que vai além da ideia de exclusão enquanto isolamento
ou banimento, chegando no extremo de “[...] negar ao outro o direito de ter direitos: é o instante
extremo em que representações e práticas levam à demonização do outro, tido e havido como
encarnação do mal e, portanto, passível de ser eliminado” (KOWARICK, 2002, p. 25).
Se a vida nas cidades recebe as marcas do desamparo, o viver em situação de
rua é um desamparo levado ao paroxismo, sobretudo se considerarmos o público criança e
adolescente, que, conforme legislação vigente se refere a seres em desenvolvimento,
incompletos, não preparados. Podemos perceber tal radicalidade a partir da reverberação dos
discursos sociais que comumente associam crianças e adolescentes em situação de rua às
expressões “delinquentes”, “trombadinhas”, “ladrões” e “marginais”.
“Pelas marginais, passarão meninos (...)” Neste caso, o termo marginais, que na
música informa sobre ruas, avenidas e logradouros públicos, ganha outra conotação e passa
a se referir aos próprios sujeitos que ocupam o espaço das ruas, denotando estigmas
relacionados à imagem de bandidos, perigosos, malandros, culpados, etc. Com um olhar mais
acurado, aquilo que se apresenta como ‘vilão’ ou ameaça, é resultado de um processo
histórico de produção de desigualdades, inscrito na sociedade capitalista que entremeia
modernização, exclusão e marginalização. Milton Santos em seu clássico A Pobreza Urbana
assim define tal processo:
Se, por um lado, a economia incorpora um certo número de pessoas ao mercado de trabalho efetivo, através de empregos recém criados, por outro, ela expulsa um número muito maior, criando de um só golpe o subemprego, o desemprego e a marginalidade. O número desses “postergados” aumenta cada vez mais. É para esses remanescentes da força de trabalho nos níveis mais baixos do espectro sócio-profissional que foi reservado o termo marginal. (SANTOS, 1979, p. 34)
Neste sentido, se faz relevante buscar compreender a conjuntura nacional e local
referentes às ações do Estado no enfrentamento das adversidades vividas por crianças e por
adolescentes em situação de rua. A Assistência Social tem avançado, sobretudo com os
serviços de acolhimento, abrigamento, abordagem social e identificação. Entretanto, num
contexto de recessão política, desmonte de direitos sociais e avanço neoliberal4, faz-se
necessário um reordenamento das ações estatais, bem como uma reconfiguração das
demandas e pressões sociais, rumo ao atendimento pelos serviços públicos estatais.
Cumprir tal tarefa requer esclarecer algumas posições teórico-metodológicas
referentes à categoria necessidades. No próximo tópico, investigaremos de que formas esta
categoria aparece e se relaciona na confluência das ideias de Aristóteles (2015) e Heller
(1978).
3. A justa medida e as necessidades humanas
Na obra Ética a Nicômaco, o princípio da justa medida é apresentado por
Aristóteles (2015) como um recurso racional de busca pelo equilíbrio e pela boa e justa
deliberação. Ressalta o pensador que a felicidade se define como a atividade da alma no
campo das virtudes.
“Assim, a virtude se distingue segundo esta diferença: de fato, dizemos que umas são intelectuais e outras morais; a sabedoria, a inteligência e a prudência são as intelectuais, enquanto a liberalidade e temperança são as morais. De fato, quando falamos a respeito do caráter, não dizemos que ele é sábio ou inteligente, mas que é moderado e prudente: mas nós elogiamos assim o sábio, segundo as suas condições, e dentre as condições, as dignas de elogios são as que chamamos virtudes (ARISTÓTELES, 2015, p. 40).
As virtudes intelectuais se relacionam com as experiências e com os
aprendizados, pertencem ao domínio do tempo, do vivido. Já a virtude ética é resultado direto
do hábito, do costume, e não se constitui no ser humano por natureza, haja vista que nada do
que existe por natureza pode ser alterado pelo hábito.
"[...] como a pedra, por exemplo, que se move por natureza para baixo, não se habituaria a mover-se para cima, nem se alguém, dez mil vezes, habitue-se a jogá-la para cima; e nem se pode habituar o fogo para baixo, e nem qualquer coisa, que de modo geral é por natureza, poderia habituar-se de modo diferente" (ARISTÓTELES, 2015, p. 41).
Assim, o hábito é o exercício da aprendizagem: é fazendo que aprendemos; é
construindo que se torna construtor. “Assim também, é praticando as ações justas que nos
tornamos justos, e as ações moderadas que nos tornamos moderados [...]” (ARISTÓTELES,
2015, p. 42)
4 A partir da caracterização feita por Behring (2011), entendemos o Neoliberalismo enquanto um conjunto de ideias
e medidas políticas e econômicas, como uma reação teórica ao Estado intervencionista e de bem-estar, que produzem como principais consequências: “[...] aumento do desemprego, destruição de postos de trabalho não qualificados, redução dos salários devido ao aumento da oferta de mão-de-obra e redução de gastos com políticas sociais” (BEHRING, 2011, p. 127).
Trata-se, pois, de, progressivamente, se alcançar um sistema de medidas tomado
por modelo de medida correta para resolver o problema da adequação, que reconhece os
seres como diferentes e possuidores de diferentes potenciais e diferentes necessidades.
“Em tudo que é contínuo e divisível é impossível distinguir o maior, o menor e o igual, seja na própria coisa, seja em relação a nós; e o igual, sendo um meio-termo entre o excesso e a falta. Entendo por meio-termo da própria coisa o que se desvia em igual distância de cada um dos extremos, que é único e idêntico para todos os homens; e por meio-termo em relação a nós, o que não é nem demasiado, nem muito pequeno, e não uma coisa única nem idêntica para todo mundo.” (ARISTÓTELES, 2015, p. 49)
É assim que o princípio da justa medida nos leva a pensar sobre o problema da
exatidão atrelado ao caráter processual (e contextual) dos acontecimentos da vida. O conceito
aristotélico evidencia, assim, a necessidade de se pensar nos extremos, como pontos de
referência para se estabelecer um meio-termo, um ponto de equilíbrio. Trata-se de vislumbrar
o problema da adaptabilidade às situações, seus procedimentos adaptativos, tomando por
base, para julgamento, os extremos.
“Contudo, é entre os extremos que a dissemelhança existe em seu mais alto grau; aliás, as coisas que estão afastadas uma de outra são definidas como contrárias, e por consequência as coisas que estão mais afastadas entre si, são também as mais contrárias.” (ARISTÓTELES, 2015, p. 57)
É desta forma, portanto, que Aristóteles definiu o princípio da justa medida: um
meio-termo entre dois vícios marcados e definidos pelo excesso e pela falta, e que visa a
posição intermediária nas paixões e nas ações. (ARISTÓTELES, 2015)
Situando o debate no modelo da sociedade capitalista – na qual se inscreve o
objeto aqui investigado -, apresentamos como extremos a divisão das classes sociais, que a
cada nova paragem se apresentam cada vez mais impelidas, uma em relação contrária à
outra. É nesse movimento entre os extremos das classes sociais que se constituíram as
políticas sociais. Portanto, se quisermos compreender o debate sobre as formas contraditórias
de atendimento às necessidades humanas, criadas no (e pelo) sistema capitalista,
precisaremos entender o papel do Estado Social.
Conforme Boschetti (2016), o fato de assumir uma “feição” social não extingue do
Estado a sua natureza capitalista e nem faz dele um lugar neutro de produção de bem estar
e, portanto, de atendimento às necessidades sociais. Logo, as políticas sociais “[...] são
resultado de relações contraditórias determinadas pela luta de classes, pelo papel do Estado
e pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas [...]” (BOSCHETTI, 2016, p. 25)
Como mecanismos de atendimento às necessidades, as políticas sociais são
formas civilizatórias que instituíram direitos e deveres que conseguem alterar o padrão de
dissemelhança entre as classes sociais: “Alterar o padrão de desigualdade não significa
superar a desigualdade, mas provocar a redução das distâncias entre rendimentos e acesso
aos bens e serviços entre as classes.” (BOSCHETTI, 2016, p. 25)
A Assistência Social é um exemplo de política social diretamente vinculada ao
atendimento das necessidades humanas, conforme veremos no tópico seguinte.
Historicamente, o campo das necessidades humanas já foi objeto de investigação de diversos
pensadores. A falta é marca ontológica da espécie e tem sido satisfeita de diferentes formas,
em diferentes contextos.
Na busca por uma antropologia marxista geral, Heller (1978) desenvolveu a obra
Teoría de las Necesidades en Marx, tratando de uma perspectiva crítica que não considera a
natureza humana fixa e imutável, um vez que esta natureza é marcada pela falta, pelas
necessidades, pelos desejos (necessidades individuais) e pelas carências (necessidades
sócio-políticas). Cada época irá atender a esta falta de formas diferenciadas.
Segundo a interpretação de Heller, quando Marx estabelece a classificação das
necessidades como “naturais” e “socialmente produzidas”, não há negação do conteúdo das
necessidades naturais, aquelas atreladas à condição de sobrevivência física, a exemplo da
alimentação, moradia e vestimenta. “La necesidad física corresponde aquí a la biológica, esto
es, a aquellas necesidades dirigidas a la conservación de las meras condiciones vitales.”
(HELLER, 1978, p. 28)
Logo, conforme Heller (1978), a redução das necessidades humanas a
necessidades de conteúdo social, incluindo as de natureza biopsicológica, são um produto da
sociedade capitalista. “Es la sociedad burguesa la que subordina los sentidos humanos a las
burdas necesidades prácticas y las hace abstractas, reduciéndolas a meras necesidades de
supervivencia.” (HELLER, 1978, p. 29).
Assim, a compreensão de que o sistema capitalista é um sistema alienado de
necessidades implica sua visualização como sistema contraditório, que impede o atendimento
às necessidades humanas fundamentais. Na medida em que as necessidades são
socialmente construídas e se desenvolvem em relação a objetos ou meios objetivados de
satisfação, o privilégio da posse de bens se dá a partir desta indiferença em relação ao valor
de uso. Sem haver [necessidade de] satisfação imediata, não há limite para a acumulação.
Donde advém o poder de compra (dinheiro):
«Lo que mediante el ‘dinero’ es para mí, lo que puedo pagar, es decir, lo que el dinero puede comprar, eso ‘soy yo’ , el poseedor del dinero mismo. Mi fuerza es tan grande como lo sea la fuerza del dinero. Las cualidades del dinero son mis —de su poseedor— cualidades y fuerzas esenciales. Lo que ‘so y ’ y lo que ‘pu e do’ no están determinados en modo alguno por mi individualidad (...) (MARX apud HELLER, 1987, p. 63).
É desta forma que todas necessidades se convertem na necessidade de posse,
na necessidade de ter. A obra helleriana elucida claramente que a grande preocupação de
Marx foi a superação do modo de produção capitalista, uma vez que há impossibilidade
concreta e radical de que, neste sistema de produção, os indivíduos se desenvolvam
plenamente e em liberdade, sobretudo por que a liberdade no capitalismo não está para os
homens, mas para o mercado, que figura como mediador das necessidades humanas, ao qual
a sociedade como um todo está subordinada.
É nesta relação que o capitalismo torna homogênea toda forma de necessidade,
naturalizando este processo e desprezando por completo a alteridade.
“Cuando cesa el dominio de las cosas sobre el hombre, cuando las relaciones interhumanas no aparecen ya como relaciones entre cosas, entonces toda necesidad es gobernada por la «necesidad de desarrollo del individuo», la necesidad de autorrealización de la personalidad.” (HELLER, 1978, p. 85).
Em relação ao padrão (ou medida) brasileiro de atendimento às necessidades
humanas, encontramos no pensamento de Pereira (2007) alguns contornos essenciais. A
crítica da referida autora incide sobre o padrão adotado pelas políticas sociais quando trata
de oferecer os mínimos sociais, em contraponto ao atendimento das necessidades humanas
básicas.
Fruto secular das sociedades divididas em classes – sejam elas escravistas, feudais ou capitalistas -, a provisão de mínimos sociais, como sinônimo de mínimos de subsistência, sempre fez parte da pauta de regulações desses diferentes modos de produção, assumindo preponderantemente a forma de uma resposta isolada e emergencial aos efeitos da pobreza extrema (PEREIRA, 2007, p. 15).
A justa medida entre o mínimo e o básico é um contraponto. Pereira (2007) trata
como assimétricas as noções entre os dois termos, sem equivalência conceitual, teórica,
política e muito menos factual. O foco da sua crítica está voltado para o Art.1º da Lei Orgânica
da Assistência Social, especificamente nos trechos “[...] que provê os mínimos sociais [...],
visando ao atendimento de necessidades básicas”. Na medida em que os beneficiários da
política de assistência social são atendidos por um padrão de serviços adaptados a um
modelo que provê aquilo que é mínimo, o vício aqui é marcado pela escassez, onde o mínimo
nega o outro extremo, o ‘ótimo’ de atendimento, que pode ser impulsionado pelo padrão
básico.
Mínimo e básico são, na verdade, conceitos distintos, pois, enquanto o primeiro tem a conotação de menor, de menos, em sua acepção mais ínfima, identificada com patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção social, o segundo não. O básico expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base de sustentação indispensável e fecunda ao que a ela se acrescenta (PEREIRA, 2007, p. 26).
Finalmente, há que se ressaltar que a condição de vulnerabilidade e precarização
da vida, que leva crianças e adolescentes à desventura pela sobrevivência nas ruas
brasileiras, os vitimizam, também, pela fragilidade de se medirem, de se perceberem e de
reconhecerem quais são as suas necessidades. Devido a dificuldades insuperáveis de
existência, muitas pessoas reduzem o arco de seus desejos e se conformam com o que têm
(SEN, 1976).
No próximo tópico veremos de que forma o Estado tem avançado no
enfrentamento à situação de rua vivida por crianças e por adolescentes, a partir da política de
assistência social.
4. A Política de Assistência Social para crianças e para adolescentes em situação de
rua
As raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil sempre giraram
em torno da conjunção assistência e repressão (Rizzini, 2008, p. 21). A história da infância
pobre brasileira5 vai sendo moldada até os anos de 1980, passando pelo primeiro damismo
da LBA, pelo entulho autoritário da ditadura militar e alcançando o movimento de
redemocratização, que trouxe significativos avanços para a população brasileira, inclusive
com a posterior criação de leis específicas, a exemplo do Estatuto da Criança e do
Adolescente e da Lei Orgânica da Assistência Social, que competem para a defesa de direitos
da população infanto-juvenil em situação de vulnerabilidade.
Ressaltamos que a expressão “situação de rua” se refere ao caráter processual
da vida nas ruas, no sentido de definir a ideia de trajetórias (idas e vindas), em detrimento da
ideia predominante (e pejorativa), cristalizada no imaginário coletivo, de que se trata de
pessoas de rua, como apêndices das paisagens urbanas. (Rizinni et al.2010)
Evocamos, aqui, mais um trecho da música citada no ‘item 2’ deste ensaio:
“pedirão mais [...]”. Como vimos, somente a partir da Constituição Federal de 1988 é que a
pobreza é retirada da invisibilidade, atendendo aos que dela necessitarem e substituindo as
velhas formas tradicionais de caridade e filantropia que conformavam os pobres no lugar de
pedintes.
Neste sentido, a Lei Orgânica da Assistência Social é inovadora na medida em
que institucionaliza benefícios, serviços, programas e projetos como forma de garantir direitos
sociais às pessoas que necessitam de auxílio e que se encontram em situação de
vulnerabilidade. Conforme Yasbek (2004):
Como lei, inova ao afirmar para a Assistência Social seu caráter de direito não contributivo (independente de contribuição à Seguridade e para além dos interesses do mercado), ao apontar a necessária integração entre o econômico e o social e ao
5 Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, a assistência à infância foi repressiva e coercitiva.
Destacamos como principais marcos históricos daquele período o Código de Menores de 1927; A Legião Brasileira de Assistência (1942); o Serviço de Assistência ao Menor (1941); Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (1964) e as Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor.
apresentar novo desenho institucional para a Assistência Social. (YASBEK, 2004, p. 13).
Quanto aos objetivos da LOAS, destacamos no Art. 2º, os incisos I e II, que
definem:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; (BRASIL,1993, p.4).
Dentro do novo ordenamento jurídico-institucional, o atendimento à situação de
rua vivida por crianças e por adolescentes, passa pela Proteção Social Especial, que deve se
ocupar de ações voltadas a indivíduos cujos vínculos familiares estejam rompidos ou
ameaçados, vítimas de situações de abandono, maus tratos, abuso sexual, uso de
substâncias psicoativas, trabalho infantil, situação de rua. A dimensão da alta complexidade
expressa a exigência da implementação de medidas protetivas e de ações cautelares integrais
e estritas, onde as necessidades humanas elementares (alimentação, asseio, higiene,
vestimenta, proteção) e básicas (educação, moradia, saúde e assistência social) possam ser
reparadas.
Mesmo com avanços no campo jurídico-institucional, o enfrentamento às
vulnerabilidades ainda é incipiente. Sobre a avaliação da implementação de ações
interventivas na área da infância, Silva e Motti (2002), ao avaliar os dez anos de
implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, apontam para as fragilidades
presentes no processo de institucionalização do direito, da democracia e da cidadania infanto-
juvenil.
Após dez anos de ECA, o grande desafio apontado é a efetiva implementação do paradigma da proteção integral e de seus dispositivos, em especial a universalização das políticas públicas e a promoção do protagonismo das crianças e dos adolescentes (Silva e Motti et al 2002, p. 194).
Durante o período de 2006 a 2009, Couto et al (2017) desenvolveram uma
investigação empírica do processo de implantação e implementação inicial do Suas. Em
relação às regiões Norte e Nordeste, os resultados da referida pesquisa apontam para alguns
avanços: a participação de outros profissionais – além de Assistentes Sociais - na
implementação do Suas, e o fato de que a opinião da maioria dos entrevistados indica que as
demandas históricas no campo da Assistência Social foram contempladas no desenho da
PNAS.
A implementação do Suas nos estados e municípios do Norte e Nordeste vem expressando esse avanço mediante a construção de uma nova institucionalidade com uma considerável expansão dos objetivos da política e dos serviços desenvolvidos, que passam a ser prestados e organizados com tendência a maior unidade e uniformidade (COUTO, et al, 2017, p. 160).
Em relação aos aspectos dificultadores da referida pesquisa, destacamos a
fragilidade da participação dos usuários no controle social da Assistência Social e o
descompasso entre o sistema legal sancionado pela Política e os limites dos espaços públicos
capazes de viabilizar as regras formalizadas. De acordo com as autoras:
Pôde-se observar mesmo que a ação dos sujeitos sociais, sobretudo no interior dos Cras, em geral, se desenvolvem à margem desse sistema legal sancionado pelo Estado, reproduzindo a lógica do assistencialismo, tanto em razão da cultura política quanto da dificuldade que o Estado (normas legais, equipamentos, pessoal) encontra para se fazer presente em muitas regiões do país (COUTO, et al 2017, p. 163).
Em linhas gerais, na revisão bibliográfica aqui empreendida, as políticas sociais
ainda persistem em figurar como historicamente subordinadas aos interesses econômicos
dominantes e, por isso, com pouca efetividade no enfrentamento à desigualdade e à pobreza,
mantendo práticas de exclusão e produção de vulnerabilidades, ainda mais acentuadas pela
esteira neoliberal.
No caso da Assistência Social, o quadro é ainda mais grave. Apoiada por décadas na matriz do favor, do clientelismo, do apadrinhamento e do mando, que configurou um padrão arcaico de relações, enraizado na cultura política brasileira, esta área de intervenção do Estado caracterizou-se historicamente como não política, renegada como secundária e marginal no conjunto das políticas públicas (COUTO et al, 2017,
p. 61 e 62).
Para ilustrar, sobre o panorama maranhense, a pesquisa realizada pelo
Observatório Criança (2014), volume V, aponta que a situação da Assistência Social no
Maranhão, no período analisado entre 2010 e 2014, estava precária: o Estado do Maranhão,
no ano de 2010, ocupava o último lugar no ranking da extrema pobreza no Brasil.
Se considerado o critério de renda per capita, o estado ocupava a última posição do ranking nacional em termos de população em situação de extrema pobreza no país, com 26,3% da população sobrevivendo com uma renda per capita mensal inferior a R$ 70,00 (setenta reais). Esse percentual correspondia a 1.729.170 pessoas nessas condições (Observatório Criança, 2014, p. 30).
Quanto à situação da infância maranhense, a pesquisa destaca alguns dados
relacionados à violação de direitos, ocorridos no ano de 2010: violência física (85 casos);
violência psicológica (89 casos); abuso sexual (91 casos); exploração sexual (87 casos);
negligência ou abandono (85 casos); trabalho infantil (87 casos); situação de rua (45 casos)
(Observatório Criança, 2014, p. 40).
Não obstante, não podemos perder de vista o caráter de intervenção e
transformação que possuem as políticas sociais. Concordamos com Silva (2013) quando
afirma que as políticas públicas são formas de intervenção na sociedade e meios de atender
a interesses diversos, podendo se constituir em instrumentos de emancipação de grupos
excluídos, a exemplo de crianças e de adolescentes vítimas de violências. Conforme Silva
(2013):
Ademais, toda política pública é tanto um mecanismo de mudança social, orientado para promover o bem-estar de segmentos sociais, principalmente os mais destituídos, devendo ser também um mecanismo de distribuição de renda e de equidade social, vista como um mecanismo que contém contradições. Contraponho-me à percepção da política pública como mero recurso de legitimação política ou de uma intervenção estatal subordinada tão somente à lógica da acumulação capitalista (SILVA, 2013, p. 20).
“Pedirão mais por outro destino do que por sair da lama com pose de dama em
carnavais (...)”. Outro destino é preferível e necessário. Pensar a adaptabilidade, pois, a
moderação, a medida justa, a mediação política, é pensar a inversão de uma realidade que
ainda insiste em aprisionar a infância, que clama pela transformação e, com a altivez que lhe
sobra, insiste em sobreviver.
5. CONCLUSÃO
O que tentamos trazer neste ensaio diz respeito a algumas ponderações sobre o
mal estar ocasionado pela vida nas ruas: o desamparo, a fome, as ameaças, os adoecimentos
e os estigmas são alguns dos sintomas sociais que marcam as pessoas na referida condição,
mais ainda crianças e adolescentes, seres em desenvolvimento, mas também postergados,
remanescentes.
Mesmo com avanços significativos, a política de assistência social ainda possui
grandes desafios na efetivação dos direitos infanto-juvenis. A persistente situação de rua
ainda é um grave problema social que requer intervenções do Estado e da Sociedade Civil.
O que vivemos nos idos de 1980, durante a redemocratização do país, nos
trouxe amplas conquistas no campo dos Direitos Humanos: a derrubada da ditadura militar; o
direito ao voto; a promulgação da Constituição Federal. Na arena dos movimentos sociais, o
Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, junto com a força de outras organizações
da sociedade civil – a exemplo do Fórum-DCA – emplacaram dois artigos de iniciativa popular
na Constituição Federal. Dois anos depois, também avançamos com a promulgação do
Estatuto da Criança e do Adolescente.
E avançamos muito desde então. Mas muito ainda temos para avançar. O
momento exige uma re-organização da sociedade civil em prol da efetivação dos direitos
infanto-juvenis. Acreditamos, também, que investir em pesquisas e produção de
conhecimentos é uma das formas de retirar os ‘invisíveis’ da invisibilidade, por meio das
publicações e debates, que também podem assumir a forma de denúncia. Como afirmou o
filósofo do século XX, Gaston Bachelard: “Pensar é pesar.”
REFERÊNCIAS
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