A Política Do Desejo de Pedro Lemebel

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Sobre Pedro Lemebel.

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  • PERNAMBUCO, SETEMBRO 201414

    ENSAIO

    do carinho que nasce no convvio e o engano que gestado pelo silenciamento.Se, nas crnicas urbanas de A esquina o meu co-

    rao, o glamour hollywoodiano e os excedentes sociais da periferia terceiro-mundista entram num choque direto e, pela prpria disparidade patente, escancaram o que h de paradoxal e inusitado nessa convergncia, Tenho medo toureiro assume um car-ter mais nostlgico. Neste, intensifica-se o uso de um repertrio que o tempo tratou de vincular mais fortemente a bordis, penses e bares decadentes. So boleros antigos, tangos e outras canes que reverberam um sentimentalismo popular j fora de moda; resduos, portanto, em meio ao reluzente universo das mercadorias e do espetculo.Em determinado momento, o narrador do romance

    afirma que, durante algumas das reunies realizadas na casa, as frases frvolas das canes sintonizadas pelo rdio da loca desconcentravam a estratgia pen-sante dos garotos. a partir de recursos desse tipo que o escritor logra interceptar a narrativa mestra da poltica nacional com a inadequao melodramtica de uma splica ou de uma evocao, ou ainda com

    Um motivo recorrente atravessa a produo arts-tica do escritor chileno Pedro Lemebel: o interesse pelas circunstncias a partir das quais se delineiam encontros atravessados por uma forte carga ertica e tambm por um alto grau de ambivalncia. Em cada ponto de rearticulao dessa que uma das linhas de fora de sua obra, encontramos textos movidos pelo persistente cuidado de estabelecer e reconfigurar os lugares ocupados por sujeitos que, num dado momento, so compelidos a vivenciar uma proximidade instvel e quase sempre breve, induzidos por energias sociais e libidinais que coe-xistem em permanente tenso.Partindo de uma espcie de cartografia da margi-

    nalidade, Lemebel aciona um conjunto de diferenas de classe, idade, ideologia e etnia dimenses ainda assimilveis categorizao socioeconmica dos indivduos , para faz-las operar como elementos potencializadores de divergncias que seriam, por assim dizer, menos marcadas: diferenas qualitativas nos modos de perceber e atuar no mundo, prticas e desejos pulverizados que no se deixam abarcar por qualquer esforo de delimitao de categorias sexuais. Em meio ao multifacetado contingente humano que habita sobretudo as periferias das metrpoles latino--americanas, o escritor destaca algumas presenas eloquentes: as prostitutas, os michs, as travestis e as bichas afeminadas ou locas, que na obra de Lemebel constituem uma importante subjetividade e tambm uma esttica. Complexificando esse quadro, h ainda rapazes ou homens mais velhos, to variantes em sua conduta e em seus princpios (teramos, dentre outros, os gays ditos msculos, os assumidos, os discretos, os enrustidos, os exclusivamente ativos ou mesmo os hteros que fazem), que tentar classific--los apenas revela a natureza falha e insuficiente das palavras frente a to diversificado panorama.Essa multiplicidade de tipos entra em transaes

    nas quais muitas vezes se mesclam o afetivo, o econmico e o poltico, e o escritor parece sustentar um especial apreo pela indefinio que resulta de tais entrecruzamentos. Isso porque os desnveis no que se refere aos graus de assimilao, de fora e, portanto, de poder de que cada uma dessas figuras desfruta no interior da lgica social dominante assumem um importante papel nas relaes. De fato, a assimetria que caracteriza tais posies em jogo mais do que meramente acidental. Excita-o, indeterminao e risco constituem muito do impulso que ala os corpos a esta experincia de contornos imprecisos: o encontro possvel com um outro que incgnita; presena opaca a um s tempo promissora e hostil.

    A SEDUO DA AMBIGUIDADEJ o seu primeiro livro de contos e crnicas, A esquina o meu corao (La esquina es mi corazn, 1995), terminava com o relato de uma caada noturna que desemboca-va num final trgico. Em As amapolas tambm tm espinhos (Las amapolas tambin tienen espinhas), a possibilidade da aventura sexual impele uma loca a precipitar-se na vertigem de um encontro cujos termos jamais so estabelecidos de antemo, e cuja ameaa maior a de capitular frente ao inesperado. Numa noite, espe-cificamente, ela vislumbra um ponto de ancoragem provisrio para o seu desejo em um passante que intercepta o seu percurso. Trata-se de um desses ra-pazes pobres em busca de uma boca vida que alm do mais lhe descole uns pesos ou, como Lemebel escreve em outro texto, um desses desocupados que, por uns pesos, um cigarro ou uma cama quente faziam-lhe imediatamente o favor.Aps um rpido contato visual numa calada,

    e decorridos todos os cdigos preliminares de in-terao que presidem o universo dos iniciados na errncia noturna, ambos se encaminham para consumar sua transao sexual furtiva num beco escuro. excitao e ao atropelo do gozo seguem o arrependimento e o asco do macho, que termina por desferir uma srie de golpes de canivete com o intuito de rasurar a evidncia daquela incmoda e afeminada presena. Lemebel constri de maneira sofisticada os desdobramentos desse fluxo ator-doante de sensaes de prazer e de culpa, fazendo coincidirem at o ponto de chegarem a se con-fundir os cortes que dilaceram a carne da loca e os flashes da cmera que captura a imagem de uma estrela. A personagem se converte na star top em seu melhor desfile de vsceras frescas, recebendo

    Lemebel constri de maneira sofisticada o fluxo do desejo e da culpa, fazendo com que eles sempre coincidam em sua escrita

    A poltica do desejo de Pedro Lemebel Ensaio repensa obra do escritor chileno que tem sua estreia no BrasilFbio Ramalho

    a lmina de prata como um trofu. Desse modo, e a despeito de toda tristeza, o ltimo momento de sua vida dotado de afetada teatralidade.No h, nesse texto, condescendncia nem tenta-

    tiva de atenuar o carter torpe e revoltante do crime homofbico. Pelo contrrio, o que sobressai um olhar pungente sobre as nuances que caracterizam as posies em risco de sujeitos dispostos a negociar sua segurana fsica e emocional em nome de uma abertura radical ao outro, entregando-se a prticas que engendram uma aproximao nem um pouco metafrica entre sexo e morte. H tambm um gesto afirmativo frente constatao de que, no mercado simblico de formas e signos da cultura miditica, costuma-se destinar s existncias mar-ginais apenas o olhar embrutecido e sensacionalista da imprensa marrom, com seu tom moralizante. Contra o enfoque restritivo dos relatos de crimes, Lemebel aciona a fora tica e criativa dos adornos e artifcios de que ele reveste algumas existncias marcadas pelo estigma.

    CANES DE BORDEL ANTIGOComo se buscasse explorar, a partir de uma nova modulao, o suplemento fantasioso capaz de apor-tar a interaes to cruas e por vezes violentas uma inesperada ternura, o primeiro romance de Pedro Lemebel empreende uma nova guinada em direo a todo o universo de signos romnticos que sobrecodificam e tornam possvel a sensibilidade maricona que permeia os seus textos. Tenho medo toureiro (Tengo miedo torero, 2001) se situa no panora-ma poltico marcado pelo embate entre as foras autoritrias do regime ditatorial chileno e os grupos de esquerda que lhe impunham resistncia. Esse contexto orienta as circunstncias de uma relao indefinida entre a Loca del Frente, como nomeada a protagonista, e o militante Carlos, que passa a usar a casa daquela como sede para as atividades de uma clula revolucionria. Tal propsito, no entanto, jamais explicitamente discutido entre ambos, e Lemebel explora com insistncia as ambiguida-des que resultam desse arranjo, justamente pela dificuldade de saber onde comeam e terminam a aproximao motivada pelo interesse, a sinceridade

    PE_103.indb 14 25/08/2014 13:36:30

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    JANIO SANTOS SOBRE FOTO DE DIVULGAO

    Frente impossibilidade de inscrever um lugar para as sexualidades desviantes no amplo espectro poltico chileno, o escritor tece sua obra singular e a marca com uma sensibilidade que, porquanto irredutvel, no teme ser incompreendida e mesmo rechaada. A dissonncia se d tanto em relao queles que, embora excludos da norma heterossexual, esto dispostos a negociar sua insero nos segmentos autorizados da experincia social (reivindicando um lugar de direito nas instituies, recusando-se a abrir mo de seus privilgios patriarcais), quanto aos militantes polticos excessivamente zelosos de um certo ideal de valentia e de heroicidade, para quem o fraseado irreverente e mariflor da escrita de Lemebel pode soar um tanto debochado e frvolo. Diante de uns e de outros, o escritor sustenta sua postura desafiadora e cava a abertura capaz de fazer com que persista, nos domnios da poltica, o problema contundente que seu corpo e sua vida no deixam de postular.Ao mesmo tempo, e embora o lugar que se delineia

    a partir dessas divergncias j se mostre demasiada-mente intrincado, Lemebel no deixa de se voltar para a atrao exercida pela ambiguidade, recusando-se a

    descartar o convite possvel (mas sempre velado) que acena do interior mesmo das trincheiras interpostas pelos universos do macho, do gay discreto e/ou do militante. Argutas exploradoras de territrios limtro-fes, as protagonistas de tantos dos seus relatos abrem caminho entre as zonas de penumbra da cidade, da famlia e da poltica, a fim de vislumbrar o que sub-siste para alm das aparncias como o no-dito que toda sociedade carrega em si. A afirmao da margem constitui assim uma pergunta por todas as ocultaes que, em ltima instncia, sustentam o arcabouo de preconceitos, valores e correes de comportamento sem as quais as verdades dessa mesma sociedade ruiriam. Imbudas de um esprito impetuoso, as locas que florescem nos textos de Lemebel seguem guiadas pelo intuito de desvendar quais prazeres secretos, cheiros e gostos a estrutura aparente do edifcio moral esconde e que, num lance do acaso, podem eventu-almente dar-se experimentao.

    A Editora Cesrea (www.cesarea.com.br) lana este ms o e-book Essa vontade louca de partir, de Pedro Lemebel, com traduo de Alejandra Rojas.

    a singela emotividade que se desprende de uma declarao amorosa. Ao fim e ao cabo, o que resulta evidente que a ambivalncia presente na relao central do romance desnuda os limites de uma dada forma da poltica. Porque relega a sexualidade a um parntese, a luta contra a represso pode muito bem deixar intocados certos preconceitos e excluses. No por acaso, ento, no manifesto Falo por minha diferena (Hablo por mi diferencia), lido durante uma reunio pol-tica de grupos de esquerda no ano de 1986, Lemebel provoca seus interlocutores: No haver um viado em alguma esquina/ desequilibrando o futuro do seu homem novo?/ Vocs nos deixaro bordar de pssaros/ as bandeiras da ptria livre? E prossegue: Voc no cr/ que estando sozinhos na serra/ algo iria acontecer entre ns?/ E ainda que depois me odeie/ por corromper sua moral revolucionria/ Tem medo de que a vida se homossexualize?.Lemebel chama a ateno para o fato de que, em

    meio aos movimentos da histria, nada est garan-tido, e que sobre nossas comunidades paira sempre o fantasma de uma escalada da segregao e da vio-lncia que no cessam de incidir sobre as margens.

    PE_103.indb 15 25/08/2014 13:36:31