A Perspectiva Interseccional de Lelia Gonzalez

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1 A Perspectiva Interseccional de Lélia Gonzalez Flavia Rios e Alex Ratts Apesar De travarmos Grande embate E nesta arte Sermos Para leigos Segmento anônimo Apesar De constituirmos Uma força E há quem torça Para que do racismo Não sejamos Antônimo Apesar de tudo Continuaremos Enfrentando os males A exemplo De Lélia Gonzalez Nosso sinônimo Néthio Benguela i 1. Trajetória, ascensão educacional e experiência de racismo Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994) nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais e migrou com a extensa família para o Rio de Janeiro, então capital do país, sob a proteção financeira do irmão mais velho, jogador de futebol no Flamengo. Com a ajuda familiar e incentivos financeiros de uma família de classe média branca para quem trabalhava na adolescência, ela tornou-se a única entre os seus irmãos a atingir um elevado grau de escolaridade. Diplomou-se em História, Geografia e Filosofia na Universidade da Guanabara, atual Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Tornou-se professora secundária e posteriormente seguiu a carreira docente de terceiro grau, ocupando cadeiras em importantes estabelecimentos de ensino superior fluminenses, a exemplo da Pontifícia Universidade Católica e Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Gonzalez experimentou ascensão social via formas expressas de embranquecimento, isto é, realizou um casamento inter-racial, estudou em boas escolas onde aprendeu os gostos das classes médias e seu estilo de vida. Fez amigos no seio do estrato médio carioca e adotou sua forma de viver e sentir a vida, como o gosto pela bossa nova, a preferência por roupas e

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Lelia Gonzales

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    A Perspectiva Interseccional de Llia Gonzalez

    Flavia Rios e Alex Ratts

    Apesar

    De travarmos

    Grande embate

    E nesta arte

    Sermos

    Para leigos

    Segmento annimo

    Apesar

    De constituirmos

    Uma fora

    E h quem tora

    Para que

    do racismo

    No sejamos

    Antnimo

    Apesar de tudo

    Continuaremos

    Enfrentando os males

    A exemplo

    De Llia Gonzalez

    Nosso sinnimo

    Nthio Benguelai

    1. Trajetria, ascenso educacional e experincia de racismo

    Llia de Almeida Gonzalez (1935-1994) nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais e

    migrou com a extensa famlia para o Rio de Janeiro, ento capital do pas, sob a proteo

    financeira do irmo mais velho, jogador de futebol no Flamengo. Com a ajuda familiar e

    incentivos financeiros de uma famlia de classe mdia branca para quem trabalhava na

    adolescncia, ela tornou-se a nica entre os seus irmos a atingir um elevado grau de

    escolaridade. Diplomou-se em Histria, Geografia e Filosofia na Universidade da Guanabara,

    atual Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Tornou-se professora secundria e

    posteriormente seguiu a carreira docente de terceiro grau, ocupando cadeiras em importantes

    estabelecimentos de ensino superior fluminenses, a exemplo da Pontifcia Universidade

    Catlica e Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

    Gonzalez experimentou ascenso social via formas expressas de embranquecimento,

    isto , realizou um casamento inter-racial, estudou em boas escolas onde aprendeu os gostos

    das classes mdias e seu estilo de vida. Fez amigos no seio do estrato mdio carioca e adotou

    sua forma de viver e sentir a vida, como o gosto pela bossa nova, a preferncia por roupas e

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    cortes de cabelo moda dos anos dourados, incluindo o alisamento capilar e o uso de

    perucas. Era uma forte candidata ao ingresso no mundo dos brancos ilustrados

    parafraseando Florestan Fernandes, tendo para isso todos os artifcios econmicos e sociais

    aprendidos no convvio com seus colegas no-negros.

    Defrontada com a recusa e a rejeio ao seu matrimnio com uma pessoa de tez clara

    e ascendncia europeia, sua experincia pessoal com o preconceito e a discriminao pode ser

    entendida como parte das motivaes que a levaram a ingressar na luta poltica contra o

    racismo no Brasil. Em que pesem essas dimenses subjetivas para o seu engajamento poltico,

    o pensamento de Gonzalez devedor, sobretudo, da rede de movimentos sociais em que se

    engajou em meados dos anos de 1970, poca em que Llia Gonzalez iniciou seus primeiros

    escritos ensasticos acerca das relaes de poder e de opresso do negro e da mulher no Brasil.

    O racismo foi, pois, uma experincia que a enegreceu, ou, como ela gostava de dizer

    acerca das relaes raciais em seu pas natal: no se nasce negro, torna-se. Para ser fiel aos

    seus dizeres bem ao jeito brasileiro: a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha

    dentre outras, mas tornar-se negra uma conquistaii . Ao parafrasear a sentena de Simone

    de Beauvoir, uma de suas pensadoras diletas, Gonzalez a um s tempo nos prope uma verso

    no essencialista das raas mostrando a possibilidade de reclassificao social e revela a

    dificuldade de se tornar negro(a) num pas que apregoa a democracia entre os grupos raciais,

    ao mesmo tempo em que propaga o branqueamento social e estabelece lugares sociais com

    base em atributos adscritos por cor e sexo.

    Sua biografia bem ilustrativa disso. No raras vezes Llia foi confundida como

    empregada domstica em sua prpria casa. A famosa pergunta que usou diversas vezes em

    discursos para plateias feministas expressa isso: a patroa est?. Com este exemplo

    corriqueiro, ela conseguia explorar os significados sociais, ocupacionais e culturais relativos

    naturalizao das relaes entre classe, raa e gnero, bem como a maneira como essas

    categorias se articulavam na experincia social da mulher negra. A experincia de ascenso

    social, longe de ser uma estratgia de superao de racismo , na verdade, a confrontao

    cabal de que, no Brasil, a naturalizao dos lugares sociais se representa mediante a

    hierarquizao por sexo e raa, defenderia Llia Gonzalez durante todo seu percurso

    intelectual. Foi justamente essa postura de desnaturalizao que tornou seu discurso e suas

    prticas irreverentes at mesmo para os crculos polticos mais progressistas que frequentava.

    Nesse sentido, sua trajetria e seu pensamento tm muito a dizer tanto sobre nossas ideologias

    nacionais com suas formas no to sutis de racismo, assim como sobre o pensamento contra-

    hegemnico que ela ajudou a construir no Brasil do final do sculo XX.

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    Com um trnsito fluente entre o movimento negro e o movimento feminista, Gonzalez

    foi crtica de ambos, mas tambm antecipou algumas abordagens que posteriormente se

    denominaram de interseccionaisiii

    . Observamos isto quando ela associa o racismo, o sexismo e

    a explorao capitalista e quando articula as identidades de raa, gnero (este tratado poca

    como sexo) e classe. Essa talvez seja uma das principais motivaes para o crescimento dos

    interesses acadmicos e polticos na produo intelectual de Llia Gonzaleziv

    .

    Em linhas gerais, a produo intelectual da autora se deslocou dos ensaios polticos em

    direo abordagem cultural, destacando-se seus trabalhos que relacionam as categorias

    mencionadas. Suas principais contribuies intelectuais foram, por um lado, a crtica radical

    ao pensamento social brasileiro e cultura nacionalv, e, por outro, a construo original de

    uma categoria transnacional capaz de abarcar a dispora negra nas Amricas, qual seja:

    Amefricanidadevi. Seus escritos so mais bem entendidos luz da sua trajetria pessoal e

    profissional, alm de seu pertencimento a uma rede ativista formadora de uma

    intelectualidade negra e feminista no processo de democratizao, a qual estava fortemente

    influenciada pelas mobilizaes coletivas nacionais e internacionais que animaram aquele

    perodo, culminando na dcada de ouro dos movimentos sociais brasileiros, entre 1978 e

    1988.

    2. Intelectualidade negra na democratizao brasileira

    No perodo em foco ampliou-se o campo intelectual brasileiro, a partir do qual

    floresceram pensadores fortemente enraizados em movimentos sociais e diretamente

    envolvidos no processo de democratizao. As instituies tradicionais de formao e

    consagrao intelectual, tais como as academias de letras e os institutos de cincia, bem como

    as universidades passaram a coexistir com outra forma de organizao, produo e

    legitimao de conhecimento, desenvolvida na sociedade civil, particularmente nas reas em

    que foram gestadas ideias crticas em forte consonncia com a prxis poltica.

    Foi assim que emergiram novas expresses de intelectuais orgnicos para tomar de

    emprstimo a formulao de Antonio Gramsci (1979)vii

    dos movimentos sociais brasileiros,

    que com suas lutas alargavam pouco a pouco o restrito espao pblico no estatal. Tais

    mobilizaes questionavam o regime de Estado, afirmando-se, muitos deles, como

    vanguardas contra-hegemnicasviii. O movimento negro que ganha amplitude nacional

    naquele perodo guarda para si muitas dessas caractersticas, at mesmo mantendo uma

    intelectualidade prpria.

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    Um trao comum a essa intelectualidade negra a origem em famlias de classes

    baixas e mdias urbanas, a formao acadmica nas principais instituies de ensino superior,

    nas quais se envolvem no ambiente poltico de contestao Ditadura Militarix

    . Nesses

    espaos buscam inserir a problemtica do negro no Brasil, valendo-se da formao de

    coletivos polticos e eventos pblicos nos quais buscavam debater o problema do

    colonialismo intelectual e polticox, do preconceito e, sobretudo, da discriminao racial no

    pasxi

    . Trata-se da gerao que tomou para si o grande desafio de traduzir as ideias polticas

    do seu tempo, bem como o sentimento de injustia social e o desejo de transformao vindos

    da populao negra em geral e de seus grupos articulados, vendo no ativismo as bases para a

    elaborao de uma crtica radical quela autoimagem do pas espelhada pelo discurso de

    harmonia das raas nos trpicos.

    No plano domstico, o consenso normativo que unia os intelectuais negros tais

    como Eduardo de Oliveira e Oliveira (1924-1980), Llia Gonzalez (1935-1994), Beatriz

    Nascimento (1942-1995), Hamilton Cardoso (1954-1999), Abdias do Nascimento (1914-

    2011), Clvis Moura (1925-2003), Joel Rufino (1941-), entre outros exatamente a

    necessidade de desconstruo do mito da democracia racial, seja por meio da denncia das

    formas de preconceito e discriminao, seja pela construo de uma identidade coletiva

    circunscrita na categoria negro. Nesse sentido, a busca de uma identidade passava pela

    ressignificao da histria brasileira, particularmente a experincia dos africanos e sua

    descendncia durante o regime de escravido, reelaborada no apenas pela retrica da

    vitimizao, pautada pelo sofrimento e a expropriao, mas tambm pela afirmao de formas

    e smbolos de resistncia dominao escravista. Assim, eram retomadas figuras importantes

    para a construo de um repertrio poltico, das quais Zumbi ganha centralidade.

    Nesse acerto de contas com a historiografia predominante no pas, os intelectuais

    negros buscaram confrontar e at negar o lugar e o papel da abolio da escravatura no

    processo de emancipao dos negros. No s figuras monrquicas foram duramente

    rejeitadas, a exemplo da Princesa Isabel, como tambm alguns dos mais ilustres articuladores

    da campanha abolicionista tiveram seus papis repensados. Nessa histria contestada,

    lideranas brancas do contexto emancipatrio perdem centralidade para as formas de

    organizao e lutas polticas de negros e libertos. Nesse sentido, o republicanismo de Jos do

    Patrocnio, bem como as diversas investidas judiciais de Luiz Gama em defesa da liberdade

    negra, passaram a ser temas recorrentes no discurso da intelectualidade negra dos anos 1970 e

    1980. As lutas dos escravizados, as aes rebeldes e no institucionais passam a ganhar mais

    proeminncia, contrastadas s formas organizativas no interior do sistema poltico, a exemplo

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    das obras de estudiosos como Clvis Moura (1981) e Dcio Freitas (1978), referncias

    importantes para essa gerao, particularmente no que toca ao modo como pensam a agncia

    escrava e suas formas de resistncia armada no perodo escravistaxii

    . Desse arsenal simblico,

    coube aos ativistas e intelectuais selecionar e ressignificar representantes legtimos da causa

    negra. So, pois, esses smbolos que marcam a nova guinada poltica negra durante o

    processo de redemocratizao do Brasilxiii

    .

    Situada nesse espectro poltico, a trajetria intelectual de Llia Gonzalez espelha

    nuanas dessa crtica social que valem a pena ser trabalhadas em contraste com os

    interlocutores explcitos e implcitos na conversa conflituosa travada naquele perodo. Uma

    figura emblemtica na produo dessa autora a Mulher Negra. A necessidade imperiosa de

    reavaliar o papel das mulheres negras no processo de formao nacional brasileira flagrante

    nos seus escritos. Cabe destacar a figura da me preta, imagem ambivalente em diferentes

    momentos da histria poltica xiv

    , que assume contornos significativos nos textos e reflexes

    da autora:

    Ao nosso ver, a Me Preta e o Pai Joo, com suas estrias, criaram uma espcie de romance familiar que teve papel importante na formao dos

    valores e crenas do povo, o nosso volksgeist. Consciente ou no, passaram

    para o brasileiro branco as categorias das culturas africanas de que eram representantes. Mais precisamente coube a me preta, sujeito do suposto-

    saber, a africanizao do portugus falado no Brasil (o pretugus como dizem

    os africanos lusfonos) e, consequentemente, a prpria africanizao da

    cultura brasileiraxv

    .

    Localizadas no seio de um pensamento que quer compreender e ao mesmo tempo

    transformar a realidade, poder-se-ia sugerir uma verdadeira revoluo silenciosa

    metaforicamente apresentada por Gonzalez: o subalterno como sujeito que promovia

    alteraes na linguagem e na cultura daquilo que veio a se chamar Brasil. Para Gonzalez, no

    h o lugar de simples vtima para esse grupo social. Uma compreenso poderia ser extrada: a

    grande transformao poderia ser feita no mbito cultural. Em artigo escrito para a Folha de

    So Paulo, ela tambm fez meno a esse ponto explicitando sua perspectiva em relao

    figura da me de leite no perodo escravista:

    De acordo com opinies meio apressadas, a me preta representaria o tipo

    acabado da negra acomodada, que passivamente aceitou a escravido e a ela

    respondeu de maneira mais crist, oferecendo a face ao inimigo. Acho que

    no d para aceitar isso como verdadeiro. Sobretudo quando se leva em

    conta que sua vida foi levada com muita dor e humilhao. E justamente

    por isso que no se pode desconsiderar que a me preta desenvolveu suas

    formas de resistnciaxvi

    .

  • 6

    Crtica s heranas escravistas ainda persistentes nas estruturas sociais e culturais

    brasileiras, Llia Gonzalez se recusa a pensar que as mulheres negras restringiram-se

    acomodao social durante o perodo colonial e imperial. Embora tenham sido figuras

    altamente oprimidas pelas estruturas sociais, as margens para agenciar formas de

    interpretao da realidade foram usadas, de tal modo que a posio social dessa mulher foi

    fundamental para a transmisso de significados culturais no dominantes. O mesmo potencial

    de resistir no fazer do cotidiano era visto pela autora, na atualidade, em mulheres annimas,

    donas de casas, trabalhadoras manuais, com baixa escolaridade, alicerces da pirmide social

    do Brasil. Por se tratar de contexto de grande mobilizao social, coube a intelectuais como

    Llia Gonzalez a difcil tarefa de compreender as possibilidades de ao e o papel social das

    mulheres negras no curso transformador da histria. Longe de pens-las no eixo da alienao

    ou da acomodao, ela preferia ver nessas mulheres possibilidades silenciosas de

    transformao histrica, apreendidas aqui pela lgica do cotidiano.

    No vo entre esse emaranhado de ideias e a ao coletiva surge um pensamento

    poltico comprometido com a prxis. At mesmo porque, como j disse Faoro (1997), o

    pensamento poltico uma atividade: a atividade territrio da prticaxvii. No sendo

    propriamente ideologia, filosofia ou cincia poltica, o pensamento poltico se constitui pelo

    intervalo entre o ser e o dever ser. nessa chave interpretativa que se encontram os

    intelectuais do movimento negro. O perfil dessa intelectualidade se fez expressar luz do que

    bell hooks sugeriu: o trabalho intelectual uma parte necessria na luta pela libertao,

    fundamental para os esforos de todas as pessoas oprimidas e ou exploradas, que passariam

    de objeto a sujeito, que descolonizariam e libertariam suas mentesxviii. Esses intelectuais so

    autores de numerosos trabalhos feitos geralmente em forma de ensaios. Trata-se de um

    conjunto de escritos encontrados na imprensa dos movimentos sociais (a exemplo de

    Mulherioxix

    e Jornal do MNU) e das organizaes partidrias, alm das revistas de cincias

    humanas dirigidas por grupos de esquerda que apostaram nestes grupos como instrumento que

    permitiria a formao de uma cultura democrtica (casos de Versus, Teoria e Debate, Lua

    Nova).

    nesse sentido que a trajetria de Llia Gonzalez marcada pela insero em

    movimentos sociais e populares contestatrios ao regime autoritrio. Ademais, a relativa

    estabilidade profissional, financeira e, especialmente, a sua bagagem educacional pesaram a

    seu favor e da posio social que ela ocuparia no ativismo. Soma-se a isso o fato de ela ter

    pelo menos uma dcada a mais de idade que a maior parte dos militantes que se engajaram

    nos primrdios da luta negra contempornea. Intimados a fundamentar uma identidade para o

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    movimento social, ela e sua gerao de ativismo tiveram que apresentar uma definio

    identitria que simultaneamente rebatesse as crticas externas ao movimento e apaziguasse as

    idiossincrasias de algumas prticas e discursos dos militantes. Na formulao de Gonzalez:

    O nosso movimento no um movimento epidrmico; o nosso movimento um movimento

    polticoxx

    Os crculos nos quais Llia Gonzalez esteve presente levaram-na a pensar em

    processos amplos e decisrios de nosso pas, como o estabelecimento da democracia e o

    desenvolvimento do capitalismo. Conclamava todos os negros a um esprito de solidariedade

    e fraternidade a fim de promover uma luta contra processos de opresso, como o imperialismo

    e o colonialismo, este ltimo pelo advento do racismo. Em sua concepo, o processo

    democrtico em curso ainda guardava lugar para a utopia: caso a democracia se efetivasse,

    certamente haveria igualdade entre negros e brancos; em suas palavras: Irmos negros,

    lutemos para transformar efetivamente este pas numa sociedade igualitria, numa efetiva

    democracia, porque no dia que esse pas for uma democracia, lgico que ele ser uma

    democracia racialxxi .

    Llia Gonzalez engajou-se no movimento negro, na formao de seus quadros, de suas

    organizaes e da produo de discursos contestatrios ao nacionalismo brasileiro. Do mesmo

    modo, o fez no movimento de mulheres, atuando na formao de coletivos femininos negros

    em morros cariocas, a exemplo dos movimentos de mulheres de reas populares, das favelas,

    onde se via a frequente presena de Benedita da Silvaxxii

    , participando de eventos do

    movimento feminista, de estrato mdio e com formao acadmica. Mariza Correia, ao

    apresentar uma reflexo sobre a experincia do feminismo no eixo Rio-So Paulo, fala de

    uma cegueira estrutural na sociedade brasileira para pensar a questo racialxxiii. Somente

    com a recepo da produo intelectual do feminismo negro norte-americanoxxiv

    e com a

    insero dela nesses crculos intelectuais e ativistas, o tema da raa pde ser problematizado.

    3. Raa, sexo e classe: o pensamento interseccional de Llia Gonzalez

    A relao entre raa e classe tem certa tradio no interior das intepretaes

    sociolgicas realizadas no Brasilxxv

    . Mas dos estudos de relaes raciais do chamado Projeto

    UNESCOxxvi

    e, sobretudo, da escola sociolgica paulista, que Llia Gonzalez e sua gerao

    se nutrem para suas reflexes sobre a articulao dessas duas categorias sociais,

    especialmente do livro A integrao do negro na sociedade de classes, de Florestan

    Fernandesxxvii

    . Esta obra teve tanto impacto sobre a intelectualidade negra da

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    redemocratizao, a exemplo da prpria militncia poltica de Florestan, que esteve muito

    prximo das lideranas negras durante a formao do Partido dos Trabalhadores, como

    durante a mobilizao social pela constituinte e pelo centenrio da abolio contestadaxxviii

    .

    Da mencionada obra de Fernandes, Gonzalez rejeitou todas as interpretaes

    funcionalistas sobre a populao negra no processo de transio para a sociedade de mercado.

    Em contrapartida, ela se interessava tanto pela ideia de que a democracia racial era um mito

    autoritrio da sociedade brasileira quanto pela constatao do autor de que os negros no Brasil

    foram absorvidos precariamente na sociedade de classes, isto , em suas franjas, s margens

    do sistema capitalista. Embora Florestan Fernandes, quando escreveu sua tese, estivesse se

    referindo ao incio da modernizao brasileira, estabelecendo So Paulo como o centro

    irradiador do capitalismo no pas, Gonzalez reflete sobre perodo posterior o contexto de

    transio democrtica fortemente influenciada pelo ambiente de crise econmica, em que o

    modelo desenvolvimentista militar entrava em falncia.

    Na dcada de 1980, havia uma grande mobilizao para a redemocratizao do pas,

    indicando transformaes no regime poltico. No plano econmico, havia grande frustrao

    social, alimentada pela inflao galopante, pelas altas taxas de desemprego, forte

    informalizao do mercado de trabalho, aumento da violncia e crescente precarizao das

    condies de moradia. Era nessa conjuntura econmica que Llia Gonzalez via a situao da

    populao negra, particularmente o segmento feminino.

    Outra influncia vinha do socilogo argentino Carlos Hasenbalg, com sua tese sobre

    Discriminao e desigualdades raciais no Brasilxxix

    . Essas perspectivas estruturalistas, sejam

    as vindas de Fernandes ou as de Hasenbalg, auxiliaram Gonzalez a pensar o lugar social e

    simblico do negro na estrutura social brasileira. Assim ela expressa o seu entendimento

    acerca da articulao entre o fenmeno do racismo e as transformaes da sociedade

    capitalista, particularmente quanto aos processos discriminatrios na conformao das classes

    no Brasil:

    Nesse momento, poder-se-ia colocar a questo tpica do economicismo:

    tanto brancos quanto negros pobres sofrem os efeitos da explorao

    capitalista. Mas na verdade, a opresso racial faz-nos constatar que mesmo

    os brancos sem propriedade dos meios de produo so beneficirios do seu

    exerccio. Claro est que, enquanto o capitalista branco se beneficia

    diretamente da explorao ou superexplorao do negro, a maioria dos

    brancos recebe seus dividendos do racismo a partir de sua vantagem

    competitiva no preenchimento das posies que, na estrutura de classes,

    implicam nas recompensas materiais e simblicas mais desejadas. Isso

    significa, em outros termos, que se pessoas possuidoras dos mesmos

    recursos (origem de classe e educao, por exemplo), excetuando sua

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    filiao racial, entram no campo da competio o resultado desta ltima ser

    desfavorvel aos no-brancosxxx

    Llia Gonzalez entendia o racismo como uma construo ideolgica, tomando de

    emprestado a interpretao de Althusser, para quem a ideologia seria uma forma de

    representao da realidade necessariamente falseadasxxxi. Como discurso ideolgico, o

    racismo era absolutamente eficiente, no sendo restrito classe dominante, mas tambm s

    classes dominadas. O ponto central na argumentao dela no era convencer os marxistas

    acerca da explorao do negro pelo sistema capitalista, mas dar inteligibilidade para a

    diferenciao no processo de recrutamento e alocao de pessoas em postos de trabalho.

    Essa realidade se tornava mais aguda quando se tratava da mulher negra, que o tema

    sobre o qual a autora se debruar durante quase toda sua vida intelectual. No seria

    despropositado afirmar que Llia Gonzalez fez a recepo do feminismo no movimento

    negro, ao mesmo tempo em que no interior do movimento de mulheres insere o tema das

    relaes raciais, atentando para o caso da subordinao das mulheres negras na representao

    cultural, social e na fora de trabalho. Nesse sentido, Gonzalez se vale dos estudos

    monogrficos do final da dcada de setenta que retratavam os esteretipos femininos negros

    no repertrio literrio brasileiroxxxii

    , os estudos de desigualdades realizados no Rio de Janeiro,

    alm da nascente produo sociolgica sobre a condio da mulher e sua insero no sistema

    de classesxxxiii

    .

    De fato, a autora figura como uma das antecessoras do conceito de interseccionalidade

    enquanto uma questo terica e poltica. Podemos dizer que Llia Gonzalez trabalhava esta

    proposio em trs planos: entre as categorias de anlise (raa, sexo e classe, entre outras), os

    fenmenos sociais de opresso e discriminao (racismo, sexismo e segregao, entre outros)

    e na articulao entre movimentos sociais (negro, feminista e homossexual, por exemplo).

    Llia Gonzalez esteve frente da reorganizao da luta poltica antirracista ainda na

    ditadura militar (1964-1985), particularmente da formao do Movimento Negro Unificado

    (MNU), sobretudo em So Paulo, no Rio de Janeiro e na Bahia, que tem como marco o ano de

    1978. Alguns anos antes ela participara de reunies no Rio de Janeiro e ministrara um curso

    sobre Cultura Negra no Brasil, na Escola de Artes Visuais no Parque Lage.

    A partir dessa poca, ela passa a escrever artigos em peridicos negros, feministas e

    homossexuais, sobre o tema da mulher negra, fazendo correlaes profcuas entre raa, sexo e

    classe. Na leitura dos ensaios ou artigos de opinio, fica evidente a ampliao, o

    aprofundamento e a persistncia de Llia Gonzalez em imbricar e delinear esses temas em

    conjunto, preservando as suas dinmicas prprias. De um lado, como dissemos, a autora parte

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    de uma leitura marxista da sociedade dirigindo-se para um pblico identificado com esta

    vertente, seja o que est nos quadros do movimento negro e de mulheres, seja o que compe

    outros segmentos da denominada esquerda poltica. Neste sentido, ela aponta:

    Ora, na medida em que existe uma diviso racial e sexual do trabalho, no

    difcil concluir sobre o processo de trplice discriminao sofrido pela

    mulher negra (enquanto raa, classe e sexo), assim como seu lugar na fora

    de trabalho.xxxiv

    De outro lado, a intelectual ativista busca escrever para pblicos mais amplos, como o

    fez nos jornais Mulherio e Lampio da Esquina, vinculados respectivamente aos movimentos

    feminista e homossexual. Em um dos artigos publicados no primeiro peridico referido, ela

    traz a mesma ideia da trplice discriminao que atinge as mulheres negras:

    a gente constata que, em virtude dos mecanismos da discriminao racial, a

    trabalhadora negra trabalha mais e ganha menos que a trabalhadora branca

    que, por sua vez, tambm discriminada enquanto mulher.[...] Por essas e

    outras que a mulher negra permanece como o setor mais explorado e

    oprimido da sociedade brasileira, uma vez que sofre uma trplice

    discriminao (social, racial e sexual)xxxv

    .

    Nesses escritos para a imprensa negra ou feminista, destacamos a preocupao de

    Llia em apontar para o fato de que o feminismo deveria atentar para as mltiplas formas de

    opresso da mulher, entre elas a de raa e de classe social. Na opinio de Gonzalez, o

    feminismo no Brasil era formado por mulheres brancas e de classe mdia que pregavam a

    emancipao e a insero feminina no mercado de trabalho, contudo no atentavam para a

    situao das mulheres negras e pobres, exemplificada nos baixssimos salrios para as

    trabalhadoras negras domsticas, estas sem qualquer seguridade social e sequer contempladas

    nas garantias da legislao trabalhista brasileira. Alm disso, a autora observava no discurso

    feminista a no correlao entre a condio social de explorao do trabalho domstico e a

    explorao sexual da mulher negra. A autora expressa sua relao tensa com o feminismo:

    A explorao da mulher negra enquanto objeto sexual algo que est muito

    alm do que pensam ou dizem os movimentos feministas brasileiros,

    geralmente liderados por mulheres da classe mdia branca. Por exemplo,

    ainda existem senhoras que procuram contratar negras jovens belas para trabalharem em suas casas como domsticas; mas o objetivo principal o de

    que seus jovens filhos possam iniciar-se sexualmente com elasxxxvi

    .

  • 11

    nesse sentido que a articulao entre raa, classe e gnero est no centro do

    pensamento de Llia Gonzalez. Um passo interessante para saber o modo pelo qual ela

    trabalhava essas categorias e identificar o que h de novo em suas reflexes conhecer um

    pouco mais sobre a tradio intelectual qual ela se voltava para tratar da temtica da raa e

    classe, de um lado, e observar a forma como ela relaciona essa tradio com as abordagens

    feministas que colocavam a questo da dominao e da explorao sexual no centro de suas

    anlises. Em outras palavras, o desafio dela foi o de articular duas linhagens distintas do

    pensamento social, o de raa e classe com o de sexo e classe. nessa correlao analtica que

    Llia Gonzalez consegue antecipar no Brasil a recepo do que viria a ser chamado, uma

    dcada depois, de abordagem interseccional.

    Nos seus escritos encontramos inmeras referncias s mulheres negras de vrias

    classes sociais e de distintas reas geogrficas, seja o morro, a favela, o subrbio ou os

    espaos de ascenso social. Notamos a necessidade que a autora tem de inserir esta discusso

    na pauta acadmica e poltica dos crculos em que frequentava. semelhana de outras

    autoras negras que lhe so contemporneas, a pesquisadora traz para o centro de suas

    reflexes a questo da imagem e do corpo feminino negro. Em determinados momentos ela se

    centra no tema da boa aparncia, exigida explicitamente nos anos 1970 e 1980 em inmeras

    solicitaes de trabalho.

    Dedicada a refletir acerca de esteretipos, a autora traz uma argumentao a respeito

    das imagens que fixam as mulheres em determinados lugares sociais, com foco no perodo

    mencionado, mas que, devidamente contextualizadas, podem ser abordadas em outras

    situaes, como as figuras da mulata e da domstica:

    constatamos que o engendramento da mulata e da domstica se fez a partir

    da figura da mucama. E, pelo visto, no por acaso que, no [dicionrio]

    Aurlio, a outra funo da mucama est entre parnteses. Deve ser ocultada,

    recalcada, tirada de cena. Mas isso no significa que no esteja a, com sua

    malemolncia perturbadora. E o momento privilegiado em que sua presena

    se torna manifesta justamente o da exaltao mtica da mulata nesse entre

    parnteses que o carnavalxxxvii

    .

    Precisamente neste artigo, mas igualmente em outros trabalhos, Llia Gonzalez traz a

    dimenso espacial das relaes raciais, de gnero e sociais. Podemos apreender que a

    mulata seria no espao pblico uma expresso correspondente que atribuda domstica

    no mbito privado. No nos parece que Gonzalez queira afirmar que no houve alteraes

    neste quadro desde o perodo escravista. O que identificamos que ela reconhece aspectos

  • 12

    remotos que so retomados e se atualizam para manter o corpo negro feminino como alvo de

    imagens pblicas fixas, repetitivas, quase sempre de inferiorizao, negativas. Mais de uma

    vez, a prpria autora aponta que passa por cenas similares. Nos textos de Llia Gonzalez h a

    anlise combinada com a exposio de problemas prementes e permeada por um discurso de

    profunda solidariedade com as mulheres negras das classes trabalhadoras. Ela tambm

    participa da formao de grupos especficos, a exemplo do Nzinga Coletivo de Mulheres

    Negras.

    Entre as imagens e a situao social, a mulher negra discutida por ela em espaos

    habituais e nos locais de ausncia ou discriminao. Notamos nos ensaios e artigos uma

    viso contextual que amplia a observao para os aspectos da subjetividade e da vida em

    famlia:

    Enquanto seu homem objeto da perseguio, represso e violncia policiais

    (para o cidado negro brasileiro, desemprego sinnimo de vadiagem;

    assim que pensa e age a polcia brasileira), ela se volta para a prestao de

    servios domsticos junto s famlias das classes mdia e alta da formao

    social brasileira xxxviii

    .

    Tendo em mente que, desde os anos 1970, o movimento negro indica que h um

    problema visvel no tratamento do Estado para com a populao negra, pois que

    diferenciado e desigual, Llia Gonzalez distingue os efeitos disso para cada um dos sexos,

    destacando a ao intimidadora e violenta da polcia para com os homens negros. Devemos

    ressaltar que seu pensamento, em grande parte, pode ser relido com atualidade, em tempos de

    denncias e anlises acerca do alto ndice de homicdios de jovens negros em reas urbanas,

    particularmente as metropolitanas. Ademais, importante salientar a pertinncia do

    argumento da autora ao atentar para experincias diferenciadas de racismo por sexo. As

    mulheres negras vivenciam um tipo de experincia por conta de sua condio de gnero na

    representao nacional e na forma como se inserem no mercado de trabalho. Por sua vez, o

    homem negro apreendido por outras lgicas de controle e dominao social, que envolve a

    violenta represso policial e o extermnio fsico.

    4. Percursos na dispora: o pensamento em movimento de Llia Gonzalez

    A primeira fase do pensamento de Llia Gonzalez tributria do grande

    empreendimento com que o movimento negro desafiou seus intelectuais, qual seja: desfazer-

    se das narrativas hegemnicas sobre as relaes raciais no Brasil e restabelecer o negro

    discursivamente enquanto um sujeito poltico na histria do pas.

  • 13

    Dos anos que vo de 1978 a 1988, Gonzalez possui um forte engajamento poltico no

    interior de organizaes do movimento negro, particularmente o carioca. Esse foi um perodo

    em que os intelectuais negros mais proeminentes eram recrutados para o processo formativo

    do movimento no mbito nacional. O desafio daquele contexto era nacionalizar o discurso do

    movimento social e estabelecer uma crtica que tivesse respaldo em todas as regies do

    territrio brasileiro.

    Por conta disso, os temas e abordagens de Gonzalez so quase sempre circunscritos

    ao mbito nacional. H que se notar que os autores mobilizados por ela, bem como a tradio

    dos estudos de relaes raciais centravam na compreenso do padro das relaes entre

    negros e brancos no Brasil. Somente a partir de meados da dcada de 1980, Llia passou a

    investir em reflexes para alm das fronteiras nacionais, bastante despida do arsenal marxista

    de intepretao da realidade e interessada em construir uma categoria poltica transacional,

    comportando os negros da dispora e os povos originrios das Amricas: a Amefricanidade.

    Como salientou Luiza Bairros, o conceito de Amefricanidade, apesar de estar em

    franco dilogo com o pan-africanismo, diferencia-se deste porque se trata de uma unidade

    que, sem apagar as matrizes africanas, reconhece a experincia fora da frica como

    centralxxxix. Assim Llia Gonzalez imprime maior densidade sua negritude e ao seu

    feminismo com um horizonte transnacional, alm de formular a categoria poltico-cultural

    que se aproxima mais das discusses contemporneas acerca da Dispora que do Pan-

    Africanismo. Ademais, Gonzalez adverte que esse conceito rebate concepes imperialistas

    norte-americanas. Para ela, amefricanidade conceito que recoloca as identidades negras e

    indgenas de todo o continente americano. Assim, o termo assumiria contornos geogrficos,

    polticos, antropolgicos e histricos, na medida em que incorporaria culturas de resistncia

    em diferentes partes das Amricas, oferecendo-lhes um significado coletivo e comum. Nos

    termos da autora:

    As implicaes polticas culturais da categoria de Amefricanidade

    (Amefricanity) so, de fato, democrticas; exatamente porque o prprio

    termo nos permite ultrapassar as limitaes de carter territorial, lingustico e

    ideolgico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo

    dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMRICA como um todo

    (SUL, Central e Insular) xl.

    Nessa nova categoria, Llia Gonzalez incorporava todo o aprendizado que teve nas

    leituras e nas viagens por Amrica Latina, Caribe e frica, com a riqueza de imagens de

    resistncia das lutas negras nas Amricas, bem como a mobilizao contempornea das

  • 14

    mulheres negras e indgenas de nosso continente. nesse sentido que ela props um

    feminismo transnacional, portanto, afrolatinoamericano. Isto , uma proposta que buscava a

    aproximao das diversas contribuies culturais e polticas das mulheres de ascendncia

    indgena e africana nas prticas e no pensamento feminista de matriz ocidental, ao mesmo

    tempo em que defendia a autonomia das organizaes de mulheres populares, negras e

    indgenas. Gonzalez acreditava que ningum era melhor do que essas mulheres para vocalizar

    seus prprios interesses e suas formas de simbolizar o mundo social.

    Como dissemos, ela dialoga e se diferencia em relao a parte significativa da

    intelectualidade brasileira de sua poca pela determinao em articular raa e classe nos seus

    discursos, artigos e ensaios, com uma abordagem prpria, agregando a questo sexual, com

    foco na mulher negra, na sua condio social, nas imagens, na subjetividade, incluindo, por

    vezes, seu percurso pessoal como exemplo. Neste sentido, a semelhana de outras intelectuais

    ativistas negras brasileiras e estadunidenses, ela pode ser considerada uma das matrizes para a

    ideia de interseccionalidade, antes de o termo ter sido cunhado.

    com essa contribuio intelectual que Llia Gonzalez, mulher, negra, brasileira,

    amefricana, oriunda das classes populares, acadmica e militante, se torna referncia

    obrigatria para a produo acadmica e para as lutas negra e feminista no Brasil e nas

    Amricas.

  • 15

    i Pseudnimo de Nelson Inocncio. Poema inscrito no cartaz em homenagem a Llia Gonzalez feita pelo

    Movimento Negro Unificado, seo do Distrito Federal, em 1994, por ocasio de sua morte.

    ii Ver: GONZALEZ, Llia.A importncia da organizao da mulher negra no processo de transformao social.

    Raa e Classe. Ano 2, n. 5, nov./dez. 1988, p. 2.

    iii

    Desde a virada do sculo XXI, o conceito de interseccionalidade tem sido colocado no centro dos estudos

    feministas e das polticas pblicas para as mulheres, a partir de vrias abordagens, tendo como referncia

    particular um artigo de Kimberl Crenshaw que aponta a inter-relao entre eixos de opresso. No entanto, Cardoso (2012) indica que autoras negras brasileiras trabalham com este princpio desde os anos 1980,as

    reflexes de Llia Gonzalez tm sido evocadas neste campo. Sobre o conceito de interseccionalidade, ver

    CRENSHAW, Kimberl (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminao racial relativos ao gnero. In: Rev. Estud. Fem. [online]. vol.10, n.1, pp. 171-188.

    iv Os principais estudos e reflexes sobre o pensamento e trajetria de Llia Gonzalez so: BAIRROS, Luiza (1996).

    Lembrando Llia Gonzalez (1935-1994). Revista Afro - sia. Salvador, p. 347-368. BARRETO, Raquel.

    Enegrecendo o feminismo ou feminizando a raa: narrativas de libertao em ngela Davis e Llia Gonzalez.

    Rio de Janeiro: PUC - Rio, 2005; VIANA, Elizabeth. Relaes raciais, gnero e movimentos sociais: o

    pensamento de Llia Gonzalez (1970 1990). Rio de Janeiro, IFCS-UFRJ, 2006; BARRETO, Raquel de Andrade. Aquela neguinha atrevida: Llia Gonzalez e o movimento negro brasileiro. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aaro (Org.) Revoluo e democracia. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2007, p. 453-478.

    RATTS, Alex. Encruzilhadas por todo percurso: individualidade e coletividade no movimento negro de base

    acadmica. In: PEREIRA, Amauri M. & SILVA, Joselina (Org.) Movimento negro brasileiro: escritos sobre os

    sentidos de democracia e justia social no Brasil. Belo Horizonte: Nandyala, 2009, p. 81-108. RATTS, Alex;

    RIOS, Flavia. Llia Gonzalez. So Paulo. Selo Negro/Summus, 2010; CARDOSO, Cludia Pons. Outras

    falas: feminismos na perspectiva de mulheres negras brasileiras. Tese de doutorado em Estudos

    Interdisciplinares sobre Mulheres, Gnero e Feminismo. Salvador, UFBA, 2012.

    v GONZALEZ, Llia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. So Paulo, ANPOCS, Cincias Sociais Hoje, 2.

    ANPOCS, 1983, p. 223-244.

    vi GONZALEZ, Llia. Por un feminismo afrolatinoamericano. Revista Isis International. Santiago, Vol. IX,

    junio, 1988a, p. 133-141; Gonzalez, Llia. A categoria poltico-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro.

    Rio de Janeiro, N. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69-82.

    vii

    GRAMSCI, Antonio. Intelectuais e a Organizao da Cultura. Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro,

    Civilizao Brasileira, 1979.

    viii

    HANCHARD, Michael. Orfeu negro e o poder: movimento negro no Rio e So Paulo (1945-1988). Rio de

    Janeiro: EdUERJ, 2001.

    ix

    RIOS, Flavia. O protesto negro contemporneo. Lua Nova. No. 85 So Paulo, 2012, p. 13-40.

    x A leitura anticolonial mais influente para essa gerao vem de Franz Fanon, especialmente Peles Negras

    Mscaras Brancas (1982) e Os condenados da Terra (1968). Para mais detalhes sobre a recepo de Fanon no

    Brasil, ver GUIMARES, Antnio Srgio A. A recepo de Fanon no Brasil e a Identidade Negra. Novos

    Estudos CEBRAP, 81, julho de 2008, p. 99-114. Alm de Fanon, outra influncia intelectual importante para

    essa gerao Amlcar Cabral, referncia obrigatria de intelectuais negros que acompanhavam os processos

    revolucionrios dos pases africanos. Informaes mais detalhadas sobre a relevncia dos escritores e

    revolucionrios africanos e a mobilizao brasileira anticolonialista, ver SANTOS, Jos Francisco. Movimento

    Afro-Brasileiro pr-libertao de Angola (MABLA). Dissertao de mestrado em Histria. So Paulo, PUC,

    2010. e SANTOS, Thereza. Malunga Thereza Santos. So Carlos. EDUFSCAR, 2008.

    xi

    Para citar alguns exemplos dessas experincias: o coletivo negro da Pontifcia Universidade Catlica de So

    Paulo (Alberti e Pereira, 2007, p. 165), a quinzena do Negro na Universidade de So Paulo ou o Grupo de

    Trabalho Andr Rebouas, da Universidade Federal Fluminense.RATTS, Alex. Eu sou Atlntica: sobre a

    trajetria de vida de Beatriz Nascimento. So Paulo, Imprensa Oficial/Instituto Kuanza, 2007.

  • 16

    xii Cabe notar que a historiografia brasileira sobre a escravido passava por grandes transformaes nesse

    perodo, alterando significativamente o olhar sobre as aes de escravizados e libertos; para mais detalhes ver

    SCHWARTZ, Stuart. A historiografia recente da escravido brasileira, em Escravos, roceiros e rebeldes.

    Bauru, Edusc, 2001, p.21-88. As referncias da intelectualidade negra sobre a mobilizao social no perodo

    escravista eram MOURA, Clvis. Rebelies da senzala: quilombos, insurreies, guerrilhas. So Paulo, Livraria

    Editora Cincias Humanas, 1981. 3 Ed [1. Ed. 1959] e FREITAS, Dcio. Palmares: a guerra dos escravos.

    Edies Graal, Rio de Janeiro, 1978.

    xiii

    RIOS, Flavia. Mobilizao negra na Constituinte. Comunicao apresentada no Seminrio de Sociologia,

    Histria e Poltica na Universidade de So Paulo. So Paulo, USP, 2013. (mimeo).

    xiv

    Uma anlise da forma pela qual a me preta se tornou um smbolo importante na tradio do pensamento e do

    ativismo negro brasileiro encontra-se em SIEGEL, Micol. Mes Pretas, filhos cidados. In: CUNHA, Olvia M.G; GOMES, Flavio (Org.) Quase-cidado. Rio de Janeiro, FGV Editora. 2007, p 315-376.H que se notar

    que, embora Llia Gonzalez dialogue diretamente com essa tradio, o sentido que ela atribui a essa figura

    completamente particular, especialmente no que tange atualizao estrutural dessa figura nas formas

    contemporneas de dominao no Brasil.

    xv

    GONZALEZ, Llia. A mulher negra na sociedade brasileira. In: LUZ, Madel (Org.) O lugar da mulher:

    estudos sobre a condio feminina na sociedade atual. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 94.

    xvi

    Ver Folha de So Paulo, 22/11/1981, p.4.

    xvii FAORO, Raymundo. Existe um pensamento poltico brasileiro? Estudos Avanados. Vol. 1. No. 1 So

    Paulo Out/Dez, 1987,p. 40.

    xviii HOOKS, Bell. Intelectuais Negras. Estudos Feministas. Florianpolis, Vol. 3, No. 2, . p.466

    xix

    Para acessar a coleo digital Mulherio, ver http://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/mulherio/

    xx GONZALEZ, Llia. 1985, p.43.

    xxi GONZALEZ, 1984, p.45.

    xxii Note-se que nesse perodo Benedita da Silva era vereadora no Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores,

    entre 1983-1986; logo depois se elegeu deputada constituinte. Durante essa dcada, notria a relao entre

    Benedita e Llia Gonzalez, particularmente o trnsito poltico delas nos movimentos sociais, partidos polticos,

    parlamento e conselhos participativos.

    xxiii

    CORREIA, Mariza. Do feminismo aos estudos de gnero no Brasil: um exemplo pessoal. Cadernos

    Pagu No.16, 2001, Campinas, p. 13-30.

    xxiv

    Dentre as principais autoras negras norte-americanas, podemos destacar Toni Morrison, Alice Walker,

    ngela Davis, dentre outras.

    xxv

    GUIMARES, Antonio Srgio. Racismo e anti-racismo no Brasil. So Paulo, Editora 34, 1999.

    xxvi

    MAIO, Marcos Chor. O projeto Unesco e a agenda das cincias sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista

    Brasileira de Cincias Sociais. Vol.14 n.41 So Paulo, Out., 1999, p. 141-158.

    xxvii FERNANDES, Florestan. A integrao do negro na sociedade de classes. Vol.I e II.So Paulo, Editora

    Anhembi, 1964.

    xxviii FERNANDES, Florestan. O significado do protesto negro. So Paulo, Cortez Editora, 1989.

  • 17

    xxix

    HASENBALG, Carlos. Discriminao e desigualdades raciais no Brasil. 2 edio, Belo Horizonte:

    Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2005. [1. Ed. 1979]

    xxx GONZALEZ, Llia. A questo negra no Brasil. In: Cadernos Trabalhistas. So Paulo, Global Editora,

    1981, p.62.

    xxxi

    apud GONZALEZ, 1981.

    xxxii QUEIROZ Jr, Tefilo de. Preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira. So Paulo, tica, 1975.

    xxxiii

    O trabalho de referncia para Llia Gonzalez : SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes:

    mito e realidade. Petrpolis, Vozes, 1976.

    xxxiv GONZALEZ, Llia, 1982a, p. 96.

    xxxv

    GONZALEZ, Llia. E a trabalhadora negra, cume que fica? Jornal Mulherio. So Paulo, Ano 2, No. 7,

    mai.-jun. 1982b, p. 9

    xxxvi GONZALEZ, Llia, 1982a, p.100.

    xxxvii GONZALEZ, Llia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. So Paulo, ANPOCS, Cincias Sociais Hoje,

    2. ANPOCS, 1983, p.230

    xxxviii GONZALEZ, Llia. 1982a, p. 97-98.

    xxxix BAIRROS, Luiza. 2000, p. 355.

    xl GONZALEZ, Llia. 1988b, p. 76.