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1 A PERSPECTIVA INTERCULTURAL NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR DOS INDÍGENAS KADIWÉU Marina Vinha/UCDB [email protected] Valéria Guedes dos Santos/UCDB[email protected] Marisângela Gama Vieira/UCDB [email protected] Lidiane Fernanda Franco/UCDB [email protected] Conceição Araújo da Silva/UCDB [email protected] Financiamento: UCDB/PIBIC Resumo Este ensaio resulta do projeto PIBIC/UCDB 2005-2007 “Indígenas Kadiwéu pesquisam seus conteúdos de Educação Física Escolar”, realizado na Escola Egiwageji - aldeias Bodoquena e Campina, em Porto Murtinho/MS. Os pressupostos teóricos provêm de estudos cujo eixo é a cultura. O objetivo é iniciar a sistematização dos conteúdos da cultura corporal Kadiwéu e de outros povos, refletindo sobre a contribuição pedagógica da educação física. Os procedimentos adotados são os da pesquisa do tipo etnográfica. Neste estudo enfatizamos a fase de pesquisa exploratória e a de revisão bibliográfica. Nas considerações, sustentadas em dados parciais, são apontados elementos da cultura corporal Kadiwéu e suas inter-relações numa perspectiva intercultural. Palavras-chave: Kadiwéu, educação física, intercultural Introdução Este ensaio “A Perspectiva Intercultural na Educação Física Escolar dos Indígenas Kadiwéu” trata dos resultados parciais do projeto de pesquisa PIBIC/UCDB período 2005-2007, denominado “Indígenas Kadiwéu pesquisam seus conteúdos de Educação Física Escolar”. O objetivo deste estudo é levantar dados bibliográficos sobre a cultura corporal Kadiwéu e de outros povos, desde que adotados pela escola e aldeias Bodoquena e Campina. A metodologia adotada para realizar este artigo foi a da pesquisa bibliográfica. O referencial teórico fundamenta-se no Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas (BRASIL, 1988); Laraia (2000), Junqueira (2002), Vinha (2004), Souza e Fleuri (2003) e autores que contribuíram com reflexões pertinentes ao tema. Este ensaio segue delimitações segundo o Projeto PIBIC/UCDB, tratando de cultura corporal

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A PERSPECTIVA INTERCULTURAL NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR DOS INDÍGENAS KADIWÉU

Marina Vinha/UCDB [email protected] Valéria Guedes dos Santos/[email protected] Marisângela Gama Vieira/UCDB [email protected]

Lidiane Fernanda Franco/UCDB [email protected] Conceição Araújo da Silva/UCDB [email protected]

Financiamento: UCDB/PIBIC

Resumo Este ensaio resulta do projeto PIBIC/UCDB 2005-2007 “Indígenas Kadiwéu pesquisam seus conteúdos de Educação Física Escolar”, realizado na Escola Egiwageji - aldeias Bodoquena e Campina, em Porto Murtinho/MS. Os pressupostos teóricos provêm de estudos cujo eixo é a cultura. O objetivo é iniciar a sistematização dos conteúdos da cultura corporal Kadiwéu e de outros povos, refletindo sobre a contribuição pedagógica da educação física. Os procedimentos adotados são os da pesquisa do tipo etnográfica. Neste estudo enfatizamos a fase de pesquisa exploratória e a de revisão bibliográfica. Nas considerações, sustentadas em dados parciais, são apontados elementos da cultura corporal Kadiwéu e suas inter-relações numa perspectiva intercultural. Palavras-chave: Kadiwéu, educação física, intercultural Introdução

Este ensaio “A Perspectiva Intercultural na Educação Física Escolar dos Indígenas Kadiwéu” trata dos resultados parciais do projeto de pesquisa PIBIC/UCDB período 2005-2007, denominado “Indígenas Kadiwéu pesquisam seus conteúdos de Educação Física Escolar”. O objetivo deste estudo é levantar dados bibliográficos sobre a cultura corporal Kadiwéu e de outros povos, desde que adotados pela escola e aldeias Bodoquena e Campina.

A metodologia adotada para realizar este artigo foi a da pesquisa bibliográfica. O referencial teórico fundamenta-se no Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas (BRASIL, 1988); Laraia (2000), Junqueira (2002), Vinha (2004), Souza e Fleuri (2003) e autores que contribuíram com reflexões pertinentes ao tema. Este ensaio segue delimitações segundo o Projeto PIBIC/UCDB, tratando de cultura corporal

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do próprio grupo, no caso a corporeidade e os jogos tradicionais, e a cultura corporal vinda com as relações de contato, com ênfase no futebol. Nas considerações finais indicamos as contribuições ao plano político pedagógico da Escola com vistas a encontrar o lugar da interculturalidade na educação física escolar.

A Escola Egiwageji – pólo e extensão – atende aproximadamente 250 alunos da população Kadiwéu das aldeias Bodoquena e Campina, nos períodos matutino e vespertino. Ambas as aldeias comportam uma população em torno de 1500 habitantes, estando jurisdicionadas ao município de Porto Murtinho, no Mato Grosso do Sul.

A contribuição pedagógica da educação física está na sistematização das práticas corporais, aqui compreendidas como movimentos corporais executados em situações de ginástica, de modalidades esportivas, de jogos populares e tradicionais, de lutas, de danças e de atividades do cotidiano. Essas práticas corporais devem ser compreendidas à luz da pedagogia do movimento, não devendo, portanto, se esgotarem em si mesmas, assim como devem relevar os contextos socioculturais em que foram criadas ou adotadas (BRASIL, 1998; GALLARDO, 1998; GALLAHUE e OZMUM, 2005; VINHA, 2004).

A perspectiva intercultural é um elemento norteador cuja proposição é de uma educação física em sintonia com normas que garantam uma escola diferenciada em aldeias indígenas. Para compreender interculturalidade foi retomada a compreensão de cultura. A cultura é a característica que diferencia o homem dos outros animais. O ser humano vivendo em diferentes ambientes desenvolveu várias culturas. Segundo Laraia (2000) embora ainda existam crenças de que elementos de uma cultura são conseqüências de transmissões genéticas ou mesmo de determinismos geográficos, há refutações afirmando que cultura é algo complexo, que está em constante mudança, podendo causar choque entre gerações da mesma comunidade.

Para o autor, o comportamento denominado etnocentrismo considera que uma determinada cultura pode julgar-se superior ou a mais correta frente outras. Com isso, ocorrem depreciações de um povo dito superior para com outros povos diferentes. O etnocentrismo ao mesmo tempo em que pode contribuir fortalecendo a identidade de grupos ou povos, pode também significar domínio, como ocorreu com o processo de colonização (LARAIA, 2000; JUNQUEIRA, 2002).

Refletir sobre uma educação física na perspectiva intercultural significa considerar “as relações entre seres humanos culturalmente diferentes uns dos outros” afirmam Souza e Fleuri (2003, p. 69). Seria compreender também os sentidos que as ações assumem nos contextos de um e de outro, o que contribuiria para fortalecer a própria identidade e para estimular o conhecimento de outros povos, explicam os autores.

A perspectiva intercultural implica compreender a educação como toda formação concebida em vários ambientes, adquirida através das relações interpessoais realizadas em diferentes circunstâncias sociais, ou seja, família, grupo de

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pertencimento, clubes, feiras, organizações políticas, entre outras. Implica compreender a educação escolar, no caso a educação escolar indígena, sistematizada em um tempo e um espaço pré-determinados, buscando ser realizada com modos próprios de ensinar e de aprender, em situações que aproximem do ambiente em que cada povo vive; sem, contudo deixar de trabalhar com elementos vindos das relações de contato, principalmente com o mundo urbano. (BRANDÃO, 2004; LDB, 1996)

Ao elaborar o currículo diferenciado, neste caso pensando a especificidade indígena Kadiwéu, a educação física compromete-se em interagir com todos os demais componentes curriculares, sem perder sua competência, no sentido de contribuir para o desenvolvimento motor. O desenvolvimento motor humano, em estudos recentes, segundo Manoel (2005, p. 34), “é visto como um processo que envolve emergência, aquisição e aperfeiçoamento de funções e habilidades a partir de um script que vai sendo escrito ao longo da experiência”. O autor destaca ainda que “a extensão desse script, a gramática sob a qual ele opera, é predeterminada pela nossa natureza (biológica) humana”. Assim, desenvolvimento motor é compreendido como processo, sendo este caracterizado por um “determinismo indeterminado”, conforme expressou Valsiner (1997 apud MANOEL, 2005, p. 34). Partindo dessa compreensão de desenvolvimento motor, destacamos a expressão cultura corporal. Segundo o RCNEI (BRASIL, 1998, p. 321), cultura corporal é o conjunto de conhecimento culturalmente produzido que se refere à movimentação do corpo.

Neste documento, há perguntas sobre o porquê e o para quê da educação física compor o currículo das escolas indígenas. As indicações pautaram-se em quatro elementos-eixo, a saber: (i) gosto dos índios pelos esportes; (ii) saúde, visto que as práticas corporais hoje praticadas nas aldeias não são tão intensas, de maneira que a adesão à educação física os leva à melhora em sua qualidade de vida; (iii) revigoramento da cultura corporal, na medida em que recuperam a memória de jogos, os quais, ao longo da história, deixaram de ser praticados e como conseqüência os mais novos não têm esse conhecimento e vivência e (iv) através das práticas corporais de jogos podem vivenciar com os alunos exercitando valores e normas.

Em busca de vestígios desses eixos acima apontados, buscamos na Escola Egiwageji seu plano político pedagógico (PPP). Este documento, quando elaborado segundo cada escola significa que todos os membros devem ter conhecimento do processo educativo proposto pela equipe e comunidade quanto à filosofia, às finalidades e fins na formação das crianças, jovens e adultos matriculados. Os elementos definidos no PPP são fundamentais para que a educação física elabore saberes e cumpra com seu compromisso pedagógico na formação dos alunos.

Ao buscar pelo PPP da Escola Egiwageji fomos informados de que no final de 2005 a Secretaria de Estado de Educação/MS promoveu um curso com o objetivo de capacitar as equipes das escolas indígenas, visando sua elaboração. No entanto, não houve continuidade nesse trabalho por parte da Escola. Em decorrência dos fatos, foi

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acessado o documento em que constava o currículo da Escola Egiwageji, cujo teor versa sobre a grade curricular. Assim, observou-se o espaço e o tempo atribuídos a esta disciplina, mas não havia registro sobre os objetivos da educação física escolar, conteúdos e metodologias. A presença do indígena professor de educação física que narrou suas práticas contribuiu para que fosse decidido iniciar por uma recuperação bibliográfica da corporeidade guerreira, os jogos e o futebol, visto serem esses conteúdos de muita aceitação entre o grupo.

Desenvolvimento

O corpo biológico, mesmo sendo único para a espécie humana, recebe

significados diferentes segundo a sociedade em que está inserido. Essa diferença de significados atribuída ao corpo é denominada corporeidade, segundo Santin (1996). Por exemplo, a formação da corporeidade guerreira Kadiwéu, na educação tradicional, caracterizava-se pela fortaleza física e pela conduta corajosa e destemida. Foram essas vivências guerreiras, específicas para o sexo masculino, que marcaram a identidade histórica do grupo.

Como eram as práticas corporais desse guerreiro? Datam de 1910 os registros do missionário Sànchez Labrador (apud VINHA, 2004) sobre a educação Kadiwéu para os jovens do sexo masculino. Era composta principalmente por lutas corpo-a-corpo e corridas, visando ser admitido na categoria de guerreiro. Dentre as muitas festas que realizavam no período histórico registrado pelo missionário, a ‘festa da corrida’ consistia em uma prova de velocidade seguida do rito de sangria. A sangria era um procedimento realizado com um objeto pontiagudo feito de osso de animal, próprio para perfurar partes do corpo, neste caso as panturrilhas e coxas, com o objetivo de recuperar a parte fisiológica, o cansaço e cãibras decorrentes do esforço físico praticado.

A luta corpo-a-corpo era comum nesse mesmo período e estendeu-se até meados de 1948 quando Darcy Ribeiro esteve entre eles (VINHA, 2004). Praticada em diferentes situações – festas, bailes, momentos de diversão coletivos –, na luta de socos podiam tocar-se em qualquer parte do corpo, que no final terminava tudo em brincadeira. Tanto homens quanto as mulheres participavam dessas lutas, sendo a presença feminina em apenas algumas situações. As mulheres passavam pela ‘festa da moça’ visando anunciar sua prontidão para o casamento, enquanto o homem conquistava o lugar de guerreiro, ocupando a posição de protetor do seu povo, enfrentado embates entre grupos étnicos e conflitos com colonizadores.

Atualmente, a ‘festa da corrida’ não foi observada no decorrer da realização do Projeto e também não foi mencionada por outros pesquisadores. Quanto ao rito da sangria, segundo relatos orais obtidos por Vinha (2004), ao ser recordado entre membros do grupo, do sexo masculino, foi explicado que essa prática estava em desuso e, caso fosse realizada nos dias de hoje, não a aceitariam. Da mesma forma

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disseram sobre as lutas corpo-a-corpo. Hoje são pouco aceitas e raramente ocorrem em festas ou outras situações.

Em uma perspectiva intercultural na educação escolar e tendo a educação física como mediadora de uma prática motora de deslocamento, a corrida, deve-se considerar a presença da ‘capacidade motora1’ velocidade. Velocidade é a capacidade motora de realizar um movimento ou percorrer uma distância no menor tempo possível, por estar mais ligada a fatores genéticos, estudos mostram que meninos e meninas são similares em velocidade na infância e que os meninos aumentam sua velocidade após a puberdade; enquanto meninas tendem a estabilizar-se. Um adulto que não treina pode melhorar no máximo 20% seu tempo de corrida, caso venha a receber um treinamento apropriado (GALLAHUE e OZMUM, 2005).

Esse dado contribui para levantar a hipótese de que os Kadiwéu do sexo masculino tinham uma carga genética em potencial para a velocidade, acrescida de resistência física adquirida no dia-a-dia, no ambiente circundante com as tarefas que se apresentavam. Por exemplo, a resistência física desse grupo foi basicamente associada à montaria, de onde decorre o codinome ‘índios cavaleiros’. A cavalgada, a doma, os deslocamentos em velocidade para pegar animais em campo aberto faziam parte desse ambiente em que a resistência física era elaborada. Resistência, aqui entendida como a capacidade motora que permite ao organismo resistir à fadiga por um período longo de tempo, segundo Barbanti (1994).

Por sua vez, os significados ritualísticos que a ‘festa da corrida’ ensejava estão em desuso ou foram re-significados, assim como a mudança que trouxe também a descaracterização do guerreiro. Simbolicamente foram alterados tendo em vista a dinâmica histórico-cultural e sua complexidade. Nesse sentido, ainda faltam estudos que busquem dados sobre as transformações ocorridas nesses elementos da cultura corporal Kadiwéu.

O segundo elemento de reflexão neste estudo é o jogo. O termo jogo está acompanhado da expressão tradicional por significar os valores agregados segundo cada cultura. Rocha Ferreira et al (2005) entendem jogos tradicionais dentro de contextos indígenas, por isso recebem adornos corporais e significados segundo a cosmologia de cada grupo. Tais jogos têm como função, em sua maioria, o aprendizado para a vida adulta, a transição de uma fase da vida para a outra.

Por esses fatores, esse tipo de jogo geralmente necessita adaptações para ser praticado na escola. Quando isso ocorre apresentam uma série de vantagens, pois todos podem participar, sem distinção de idade ou sexo; o principal objetivo não é a vitória, mesmo que haja perdedor e ganhador não há premiações que estimulem vitórias a qualquer custo e os materiais utilizados são do próprio ambiente. O elemento diferenciador trazido pela interculturalidade é reconhecer um saber já sistematizado 1 Capacidades Motoras Básicas são: força, resistência, velocidade e flexibilidade (SHORNARIE FILHO e GALLARDO, 2002).

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sobre capacidade motora, neste caso a velocidade. Esta deve ser refletida sobre os cuidados, as passadas, o ritmo braços-pernas, os fatos que acontecem com o organismo como aceleração cardíaca, respiração, dentre outros sinais corporais. As mudanças de significado ocorridas ao longo do tempo podem ser discutidas com a participação de adultos e idosos moradores na própria aldeia.

Assim, o jogo tradicional ocupa seu lugar na Escola, na recuperação da memória e da identidade de jovens Kadiwéu. Um dos jogos tradicionais Kadiwéu citados em Vinha (2004) é o jogo com peteca. Gravuras deixadas por Sánchez Labrador (1910 apud VINHA, 2004) mostram os participantes em diferentes posições corporais, ou seja: rebatem a peteca estando em pé, sentados, de cócoras, de bruços e de joelhos. As formações de jogo transmitidas nas gravuras são: em círculo e em coluna frente a frente. Os participantes, segundo a gravura, são de ambos os sexos, adultos, jovens e crianças. Nas diferentes situações, a peteca está rebatida com as mãos.

Sob o ponto de vista intercultural, o jogo de peteca encontrado na tradição Kadiwéu mostra-se mais complexo devido as diferentes posições corporais assumidas para jogar. Na cultura ocidental de forma geral a peteca é jogada em pé, portanto o diálogo com as intensidades corporais, exigidas nas diferentes formas culturais, é muito significativo de ser trabalhado.

No dia do índio, em 2007, realizamos visita à aldeia, o que contribuiu para observações de que estava programada uma partida de futebol, que não foi realizada devido ao curto período de tempo. Essa modalidade esportiva, assim chamada por ser organizada com normas internacionais, foi sistematizada na Inglaterra em 1863. A escrita das regras partiu de uma convocação, feita por um jornal daquele país, para que quinze rapazes se reunissem com o objetivo de regularizar as leis dessa modalidade. No Brasil, o futebol foi introduzido em 1894, 30 anos após ter iniciado na Inglaterra, com o incentivo da colônia inglesa. A partir de 1899 as partidas começaram a tornar-se espetáculo comum e daí em diante a modalidade caiu no agrado da grande maioria da população, principalmente do sexo masculino.

Entre indígenas, de modo geral, o futebol já está inserido nos seus contextos culturais, na grande maioria das aldeias. Sua presença é unanimidade nos Jogos dos Povos Indígenas, evento bi-anual realizado por instituições governamentais, com participação tanto feminina quanto masculina. As regras são regidas pela Instrução Geral dos Jogos Indígenas e obedecem ao padrão da federação internacional, exceto o tempo de jogo que é de 50 minutos (FUNAI, 2007).

Conforme tradições culturais de jogos entre povos indígenas no Brasil, há informações de etnias que praticavam jogo de bola. Indígenas habitantes no Alto Xingu/MT praticam um jogo semelhante ao futebol, em que a bola é chutada usando somente os joelhos, chamado katulaiwa. Nesse sentido, pode-se considerar que jogos com bola estão presentes entre indígenas. Contudo, não priorizam a habilidade motora de chutar. O chute não foi encontrado nos jogos coletados por Vinha (2004), entre os

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indígenas Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul. Chutar é uma ação de bater, na qual o pé é usado para fornecer força a um objeto (GALLAHUE e OZMUN, 2005).

Como prática vinda com as relações de contato, qual seria o lugar do esporte futebol entre os Kadiwéu? A chegada do esporte entre os Kadiwéu ocorreu aproximadamente há 26 anos. Quem recuperou essa memória foi Farias (apud VINHA, 2004), que é indígena Kadiwéu, professor e atleta. O sentido atribuído ao esporte segundo o ancião e ‘filho querido2’ Soares (apud VINHA, 2004) é explicado tendo como referência a festa da cultura, que são eventos significativos na cultura desse povo. O futebol pode ser comparado a uma brincadeira, no entanto, essa modalidade, mesmo apreciada na comunidade, não representa a festa da cultura. Diferentemente, as lideranças indígenas Kadiwéu e jovens atletas entendem o futebol por trazer o sentimento de rivalidade entre as equipes, por terem que participar em torneios e pela necessidade de treinamento das equipes. Uma outra característica do esporte, segundo lideranças e jovens, é a de ser uma prática para o lazer.

Na escola, o futebol está presente no recreio e nas aulas de educação física, sendo pouco elaborado, mas praticado como diversão. Quando saem da Escola os alunos dispõem de um campo oficial logo no centro da aldeia e vários outros improvisados, localizados ao lado de residências. O futebol pode ser trabalhado na escola tendo em vista sua contribuição na formação das pessoas, pois seu modo mais racional, os passes, as finalizações, as estratégias de jogo são conteúdos que dialogam com o cotidiano da comunidade. Além disso, por ser uma modalidade de esporte praticada no coletivo, significa um confronto desafiador entre duas equipes, cujo objetivo é o de vencer transpondo situações de ataque e defesa (GARGANTA, 1994). Considerações Finais

Este ensaio elaborou reflexões com predominância em dados bibliográficos

sobre a cultura corporal Kadiwéu, visando contribuir no plano político pedagógico em elaboração na Escola Egiwageji. Os temas sob reflexão foram a corporeidade Kadiwéu, os jogos tradicionais e o futebol. Esses temas podem contribuir para que a educação física elabore saberes e cumpra com seu compromisso pedagógico na formação dos alunos indígenas. Os dados bibliográficos indicam caminhos em que a interculturalidade pode estar presente recuperando a corporeidade guerreira e compreendendo-a nas mudanças históricas. Assim como a corrida de velocidade, o jogo de peteca e o futebol podem contribuir nos elementos-eixo propostos pelo referencial curricular nacional.

O Projeto PIBIC/UCDB está em andamento, para ser finalizado em 2007, sem que isso signifique sua conclusão. Devido às dificuldades de acesso e para desenvolver trabalhos de pesquisa e participação na Escola, outros projetos serão elaborados. A 2 Expressão da língua Kadiwéu para significar as pessoas que foram criadas desde a infância para serem os portadores da memória histórica do grupo.

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maturidade do trabalho educacional e a ressonância no modo de vida Kadiwéu, podem nos levar a presenciar em festas da cultura elementos da cultura corporal, próprios e de outros povos, dadas as devidas adaptações valorativas do grupo.

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