A Periferia Em Versos _ Cultura _ Edição Brasil No EL PAÍS
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7/26/2019 A Periferia Em Versos _ Cultura _ Edição Brasil No EL PAÍS
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CULTURA
BEATRIZ BORGES São Paulo 14 FEV 2014 - 16:44 BRST
Tenho sériasdúvidas / Secoloco catracas no
peito / Talvez aceite bilheteúnico / Ou valetransporte de
papel / Ou coloquecartão de ponto / Talvez seja adepta
do passe livre / Com direito adespedida /
Assento e destinocerto / Sem
A periferia em versosO sarau é uma atividade cultural crescente nas comunidades periféricas da Grande São Paulo, que
se fortalecem com novos protagonistas e discursos
Arquivado em: Liberdade expressão Poesia Pobreza Violência Problemas sociais Literatura Acontecimentos Cultura Comunicação Sociedade
A voz das periferias, comumenteassociadas a expressões artísticas domundo do hip hop e do samba,arranha versos falados e cantados emsaraus literários há mais de dez anos.
Alguns encontros acontecem nocentro de São Paulo, em espaçoscomo livrarias, bibliotecas públicas ouSESCs (instituição sem f ins lucrativoscom espaços para atividadesesportivas e culturais). Outros, comoos saraus desta reportagem, sãorealizados nas periferias, em bares,casas particulares e CEUs (escolas de
periferia com estruturas esportivas e recreativas). Tem poesia, mas também maracatu, bumbameu boi, teatro, pandeiros e palmas. Os temas são variados: amor, drogas, violência, racismo,mulheres, infância, dor, educação... Mas ainda que fosse possível explicar o que é um sarau,poucos dos que ocorrem em São Paulo se encaixariam em uma definição engessada. Apesar do dicionário garantir que se trata de uma “festa noturna, dentro de casa, onde se dançaexecuta música e recita”, os que vem sendo realizados nas periferias vão além.
O casal Suzi Soares e Binho criaram reuniões com “atividadesculturais diferenciadas”, em 1993, no Campo Limpo, um bairro naperiferia sul a 22km do centro da cidade. Contam que nunca acharamque “daria certo”, mas deu. Começaram em um bar, promovendo a
Noite da Vela, onde qualquer um poderia subir no caixote e declamar sua poesia. Em outra época, passaram a recolher placas depropagandas políticas para colar poesias e espalhá-las pela cidade.“A atitude subversiva-poética é o fio condutor da literatura naperiferia”, diz Suzi, que trabalha como professora de inglês na redepública. Mas, além disso, “é um movimento importante para valorizar as pessoas. Não soluciona, mas transforma muitas coisas”, afirma,contando casos de pessoas que voltaram a estudar depois defrequentar os encontros ou que descobriram talentos adormecidos. Oato de declamar em público fortalece as relações entre os moradoresda comunidade e lhes dá o reconhecimento- que muitos não têm,nem mesmo em casa. Hoje o Sarau do Binho, que existe há oitoanos, se realiza na segunda segunda-feira de cada mês no EspaçoClariô, em Taboão da Serra, cidade que faz divisa com o bairroCampo Limpo, a 23km do centro de São Paulo.
Vídeo: THAÍSA VALADÃO / Redação: B.B.
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burocratizar / Catraquizar asemoções
Elizandra Souza, Passe Livre.
Pelas paredes doboteco aindaecoavam os versosdeclamados nanoite anterior.
Restava um pouco
de palavras nãoditas nos fundosdas garrafas quehaviam destiladoas emoções dosarau da lua
passada.David da Silva, Na esquina de
Campo Limpo com New Orleans
Durante o Sarau do Binho, assim como em outros saraus,
ocorrem manifestações artísticas de vários tipos. A da foto é
um grupo cantando e dançando coco, uma dança típica das
regiões praieiras do Norte e Nordeste.
Quero ver negrosquilombolas junto
com tribosindígenas, queroum pajé
presidente, semcoronéis em
Brasília.
Helber Ladislau, Poesias
Negreiras.
Toninho Poeta, um dos frequentadoresassíduos do Sarau do Binho, senta no chãocom um caderno aberto, repleto de poesiasescritas à mão. Quando a inspiração veio,procurou uma folha em branco e começou aescrever. Não lhe incomodou que um grupoestivesse dançando coco a poucos
centímetros de sua caneta. Sua técnica, explica, consiste emescrever qualquer frase que venha à mente. Depois, ler a primeira e
escrever a segunda frase. E assim por diante. Acredita que “todosdeveriam perder a virgindade do palco, que o humor não precisaestar sentado no preconceito e que é possível fazer música semdenegrir ninguém”. “Independentemente do que se fala no sarau, seaplaude. Porque o que vale é o interesse em tentar mostrar algo,mesmo se der branco”, explica.
Alguns encontros têm a mesma tradição e certa periodicidade, comoos saraus da Cooperifa (Chácara Santana, periferia da zona sul), deParaisópolis (na maior favela do Morumbi, zona sul de São Paulo), do
Beco dos Poetas (itinerante), dos Mesquiteiros (zona leste)... Opçõesnão faltam e quase todas estão reunidas na Agenda Cultural daPeriferia, organizada pela ONG AçãoEducativa. Apesar disso, os coordenadores do coletivo PeriferiaInvisível, na zona leste de São Paulo, opinam que não é apenas umaquestão de que existam estes espaços, mas de que a comunidadetenha a cultura como um hábito e não como algo alheio a ela. “A vidana periferia é mecânica, são muitas horas para ir e voltar do trabalho eo que sobra de tempo, televisão”, explica Bruno Veloso, um doscriadores do espaço da Vila Císper, próxima à Vila Guilhermina.
Binho Santana, outro membro do coletivo, relaciona a crítica da faltade espaços aos rolezinhos. Para ele, “os rolezinhos não surgempoliticamente mas viraram luta social depois da repressão. Odiscurso da falta de espaço vem dos cientistas sociais que querematribuir um valor a um movimento que nem se preocupa com isso.
Mesmo se houvesse uma casa de cultura, os rolezeiros não viriam”, garante.
Há outros que também pensam que os saraus são eventos culturaisque não alcançam as massas (dependendo do espaço onde é feito,o público varia entre 50 e 300 pessoas) e, por esta razão, não são
tão transcendentes quanto gostariam que fossem. Lews Barbosa, de40 anos, canta no grupo de rap Potencial 3 e participa de saraus eslam (variante que inclui competição de poesias) desde 2011. Quem
viveu a transição de atividades centradas nas artes do hip hop (rima,grafite, dança, música) a outras mais focadas na literatura, diz quealém de espaços, falta infraestrutura (banheiro, transporte público,segurança). A principal razão para que não existam mais reuniõescomo estas “é a estrutura precária dos espaços na periferia”, motivopelo qual justifica a ida dos jovens aos shoppings, que têm umaestrutura adequada para receber o público. Barbosa não romantiza:
“esses eventos na comunidade não são super populares, não vejoisso como fenômeno de massas, apenas mais uma opção na periferia”. Para que isso ocorra,o próximo passo, para Elizandra Souza, poetisa, é “a parte de formação cultural, para criar públicos, necessidades e aumentar as atuações na periferia”.
Aqueles que costumam frequentar concordam com Lews, dizendo que o sarau não tem umarelevância cultural na vida de toda a comunidade, mas reconhecem que ela muda a de algumas
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Violênciadoméstica é pedirdesculpas depoisde uma tentativade homicídio / É
proferir palavras
de baixo calãocontra a liberdadede expressãoalheia / É um só seembriagar e todosos outros
pagarem com
sangue a covardia / Violênciadoméstica é...domesticar!Débora Marçal, Domesticar
Mundo meu... Estranhava a
minha cor, cabelose castanhos olhos
/ Enquantocriança desejava amesma aparência
/ Que assistia emtoda parte /
Questionava meutom de pele escura / Diferente dasbonecas...
Elidivânia Souza, Minha
identidade
pessoas. Cristiane Lima é psicóloga e começou a frequentar ossaraus há três anos. Para ela, ir a um sarau na periferia “resignificou”seu lugar no mundo. “Eu sai da periferia para buscar estudo, cultura,porque pensava que o bom estava fora daqui”, conta Lima, que moraem Pinheiros, zona oeste de São Paulo, uma bairro de classe médiaalta. Ela define esses encontros como “guetos de pessoas quetentam ir na contramão sem ser pedantes”, através de um movimentolegítimo de sair do lugar comum, do hegemônico. Lima conseguiuseu último trabalho, em uma biblioteca comunitária, através das
pessoas que encontrou nos saraus. A concentração de coletivos epessoas interessadas em arte é outro argumento que osparticipantes usam para explicar a importância desses espaços. “Éuma aglomeração de muitas linguagens artísticas, uma manifestaçãoda visão social da periferia”, explica Luan Luando, um participante doCampo Limpo que há oito anos frequenta os saraus.
Cada um tem sua razão e objetivo ao participar, seja pelanecessidade de dizer algo que considera importante, ousimplesmente para ter a autonomia da palavra. Para Zá Lacerda,
poeta que recitou um poema emprestado em espanhol, escrever efalar é quase um exorcismo. “Perdi meu marido e minha irmã em umcurto espaço de tempo. Quem me reergueu foi a poesia e o sarau,só assim eu consegui seguir adiante e sorrir para a vida”. Lacerda sedesnudou liricamente diante da plateia e arrancou aplausosemocionados. Distribuiu sorrisos e abraços fraternais, além deelogios sobre sua pronúncia. Nem ela nem ninguém deixou de se
cumprimentar, ao chegar e ao sair. Decrianças a idosos, todos se olhavam nos olhos de forma honesta.Essa micro-sociedade enfeitiçada pela subjetividade da poesia
transbordava amor. A alma do sarau só pode vir desse sentimento.
© EDICIONES EL PAÍS, S.L.