A performance de um corpo sem órgãos

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A PERFORMANCE DE UM CORPO SEM ÓRGÃOS Isaque Ribeiro (Mestrado EBA UFMG) Resumo Este artigo discute o lugar do corpo na contemporaneidade a partir de seu desempenho em performances artísticas realizadas no Brasil. Inicialmente, com o conceito de biopoder de Michel Foucault, é trabalhada a ideia do “corpo como máquina”, ampliado em suas aptidões produtivas, utilidade e submissão. Destarte, o corpo sem órgãos, rediscutido por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs, é posto em pauta com o intuito de acrescer um olhar especificamente contemporâneo a este corpo, obsessivo pela perfectibilidade física e com infinitas possibilidades de transformação, retratando-o a partir de uma ideia metamórfica e de desconstrução. Finalmente, com a constatação destas alterações, são levantadas performances artísticas apresentadas no país, objetivando reconhecer o modo como esta discussão especificamente corporal é fomentada por vias performáticas no Brasil. Obras como as de Adriana Banana, Marcelo Gabriel e do Conjunto Vazio, são postas em análise por se tratarem de artistas reconhecidos pelo modo polêmico e crítico de empregar o corpo na cena. Esta análise representa a vontade em perceber como a arte performática discute e se utiliza do corpo na atualidade, fomentando o debate sugerido pelo estudo.

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Texto "A performance de um corpo sem órgãos" de Isaque Ribeiro (Mestrado - EBA UFMG) sobre experiências em performance art que dialogam com o conceito de Corpo sem Orgãos de Deleuze e Guattari. Analisa o trabalho de Marcelo Gabriel e Dança Burra, Adriana Banana e o coletivo [conjunto vazio] de Belo Horizonte.

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A PERFORMANCE DE UM CORPO SEM ÓRGÃOS

Isaque Ribeiro (Mestrado EBA UFMG)

Resumo

Este artigo discute o lugar do corpo na contemporaneidade a partir de seu desempenho

em performances artísticas realizadas no Brasil. Inicialmente, com o conceito de

biopoder de Michel Foucault, é trabalhada a ideia do “corpo como máquina”, ampliado

em suas aptidões produtivas, utilidade e submissão. Destarte, o corpo sem órgãos,

rediscutido por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs, é posto em pauta com o

intuito de acrescer um olhar especificamente contemporâneo a este corpo, obsessivo

pela perfectibilidade física e com infinitas possibilidades de transformação, retratando-o

a partir de uma ideia metamórfica e de desconstrução. Finalmente, com a constatação

destas alterações, são levantadas performances artísticas apresentadas no país,

objetivando reconhecer o modo como esta discussão especificamente corporal é

fomentada por vias performáticas no Brasil. Obras como as de Adriana Banana,

Marcelo Gabriel e do Conjunto Vazio, são postas em análise por se tratarem de artistas

reconhecidos pelo modo polêmico e crítico de empregar o corpo na cena. Esta análise

representa a vontade em perceber como a arte performática discute e se utiliza do corpo

na atualidade, fomentando o debate sugerido pelo estudo.

Este trabalho objetiva realizar uma discussão corporal partindo da análise de

obras performáticas que tem o corpo como matéria prima de sua realização. Mantendo

como base os estudos realizados por Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari,

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dentro das perspectivas do corpo, a análise destina-se à compreensão de questões

corpóreas, presentes em performances realizadas no Brasil.

Entre os dias 13 e 24 de novembro de 2006, aconteceu no Teatro Marília em

Belo Horizonte o projeto Improvisões - A Cena em Processo, realizado pela prefeitura

da cidade através da Fundação Municipal de Cultura. Nesse evento foram apresentadas

propostas de improvisações intermídia selecionadas mediante edital. Dentre os artistas

participantes estavam os integrantes do Conjunto Vazio que expuseram a performance

Alma Prisão do Corpo (Arquitetura Para a Destruição). A partir da utilização do

próprio corpo como material de comunicação, os artistas do Conjunto Vazio se

apresentaram em situações de violência e grandes impactos sobre si mesmos. No

registro fotográfico e audiovisual do trabalho é possível observar como os artistas

encarnaram os limites da experiência corporal ao realizar ações com forte conteúdo de

brutalidade.

Houve momentos em que se jogavam, pulando e caindo no chão, abandonando o

corpo sem anteparos para segurá-los. Em outros, apareciam furados com argolas

cravadas na pele do tórax, agulhas fixadas nos braços e pescoço e ganchos de metal

furando as costas. Com cordões e cabos afixados nas extremidades dos objetos

perfurantes, os performers se uniam uns aos outros e ao público, que puxava a carne dos

artistas fazendo com que a pele do peito esticasse pra fora de seu lugar. Ao final da

apresentação o corpo de um dos integrantes foi erguido do chão com ganchos e cordões

de aço alguns metros para cima do palco do teatro.

Em outro evento, no Festival Internacional de Dança de 1995, também em Belo

Horizonte, foi exposta a obra de Marcelo Gabriel e Adriana Banana da Cia. de Dança

Burra. O espetáculo realizou discussões em torno da AIDS: preconceitos,

discriminação, etc. A performance, assim como a do Conjunto Vazio, esboçou traços de

intervenções físicas e corporais. O trabalho intitulado Estábulo de Luxo (1987) exibiu os

artistas, em uma cena de vídeo, costurando os lábios com linha e agulha. Segundo

depoimento de Próchno (1999, p.70) “Gabriel é um artista que leva às últimas

conseqüências o aspecto físico e carnal de seu trabalho artístico”. Em Estábulo de Luxo,

por exemplo, a discussão sócio-política a respeito da doença surge a partir de uma

proposta de intervenção física que trabalha com questões que envolvem sangue e dor

para conduzir o entendimento da obra.

Fora do Brasil, desde a década de 1960 é possível identificar trabalhos artísticos

que possuem uma proposta similar às supracitadas: expor o corpo humano como objeto

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de arte e em situações de transformação física. Obras performáticas que lidam com

interações diretas com corpo podem ser localizadas nos trabalhos de Rudolf

Schwarzkogler, Chris Burden, Pierre Pinoncelli e Orlan.

Em 1965, por exemplo, é possível identificar nas fotos de Schwarzkogler, em

seu trabalho mais conhecido – Aktion –, uma sequência de mutilação corporal onde o

artista corta o pênis polegada por polegada. Nesses registros, ele aparece com bandanas

envolvendo o rosto, tubos e cabos afixados no corpo e sujos de sangue. Hoje, sabe-se

que a obra se trata de uma farsa1. Burden, em 1970, apresentou uma performance em

que recebeu um tiro de um amigo. Baleado no braço esquerdo, Burden foi conduzido ao

hospital. Em outra obra sua, o artista aparece crucificado no teto de um fusca que

rodava em volta do quarteirão de sua vizinhança. Pinoncelli em 2002 decepou a

primeira falange do dedo mínimo no 5.º Festival Internacional de Performances de Cáli.

Depois de cortar-se, borrou a parede com o sangue que jorrava de seu dedo. Orlan,

mesmo hoje, vem exibindo suas obras onde faz intervenções cirúrgicas (plásticas) em

todo o corpo (principalmente no rosto). Ao todo, as operações somam um número

próximo a dez. Hoje ela ostenta o nariz da escultura de Diana, a boca de Europa de

Boucher, a testa da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, o queixo da Vênus de Botticelli e

os olhos da Psyché de Gerome.

A ideia de corpo como suporte da obra de arte pode ser inicialmente localizada

na body art, despontada como movimento artístico por volta da década de 1960. Como

aponta Renato Cohen (2002) a body art surge no rastro da action painting, dos

assemblages e environmentes2 estabelecendo uma relação diferenciada entre o artista e o

corpo. Para François Pluchart (2000, p.220), a arte do corpo surge como uma resposta

às vontades humanas pela construção de um novo homem e uma nova sociedade “livre e

harmoniosa, livre de falsa ética, de ditadores de qualquer tipo, ideologias repressivas e

censores”. Para o autor (2000, p.220) se os artistas expõem seus corpos em situações de

violência e risco, eles o fazem de modo a “denunciar determinismos, tabus, obstáculos à

liberdade e à expressão do indivíduo”. Sob a perspectiva de Pluchart trata-se de

localizar na body art um ponto de ruptura no entendimento e no modo de utilização do

corpo enquanto objeto de arte. Contudo, a percepção das alterações e mutações que

envolvem o juízo do corpo não permanece exclusivamente no âmbito artístico.

De acordo com as constatações de Foucault (2004, p.25), após a alteração dos

direitos políticos nos séculos dezoito e dezenove, o corpo sofreu modificações

permanentes, principalmente no modo como o encaramos. Com a ideia de um corpo

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imerso no campo político, onde “as relações de poder têm alcance imediato sobre ele”, o

autor comenta como as modificações do sistema de poder influenciaram na percepção

corpórea. A substituição do sistema em que o soberano pode fazer morrer e deixar viver,

para um tipo de poder destinado a produzir forças, ordená-las mais do que destruí-las,

reflete a possibilidade de um Estado disposto a cuidar do corpo para aumentar seu

tempo de vida, deixando a morte de lado e cada vez mais no domínio do privado, do

particular.

O aparecimento de um poder que não mais se exerce sobre o corpo

individualizado se concentra agora na figura do Estado e reflete a pretensão dos

governantes em administrar a vida e o corpo da população. Para Foucault (2004), na era

do biopoder, gerir a vida significa cuidar o “corpo como máquina”, ampliando suas

aptidões produtivas, sua utilidade e docilidade para integrá-lo com maior eficácia ao

sistema econômico. De acordo com o autor (2004, p.25) a partir de tais alterações “o

sofrimento físico e a dor corporal não são mais os elementos constitutivos da pena”.

Concordando com Focault, Peter Pelbart3 (2006) relembra a importância de

associar o corpo à discussão das novas relações de poder instituídas em nossa

atualidade. Como salienta o autor (2006, p.02) “tanto o biopoder como a biopotência

passam necessariamente, e hoje mais do que nunca, pelo corpo”. Com essa constatação,

Pelbart (2006) destaca o deslocamento do foco do sujeito da intimidade psíquica para a

própria carne. Dessa maneira pontua-se como até mesmo a subjetividade foi reduzida ao

corpo, à sua aparência, imagem, performance, saúde e longevidade, culminando numa

espécie de “superinvestimento corporal”. As constatações de Pelbart tornam claras as

ideias de um mundo atual marcado pela primazia da estética e pela busca constante da

perfectibilidade física. O superinvestimento do corpo que caracteriza nossa atualidade

demonstra uma maneira adversa de encará-lo, tendo em vista o seu entendimento

anterior a revolução trabalhista tratada por Foucault. Como pontua Pelbart (2006, p.05)

o corpo recente apresenta “infinitas possibilidades de transformação anunciadas pelas

próteses genéticas, químicas, eletrônicas ou mecânicas”.

A constatação de que esse corpo, atual, é um corpo adverso àquele que se

considerava em tempos passados, também entra em pauta quando se evoca a discussão

do Corpo sem Órgãos (CsO) realizada por Deleuze e Guattari (2008). Os autores

apresentam a ideia de um corpo em estilhaços que se multiplica e se refaz num novo

corpo, onde tudo se traça e foge ao mesmo tempo. Com críticas aos ditames da

psicanálise ambos declaram guerra aos órgãos e partem do princípio que ao determinar

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aos órgãos uma função – um território – todos se inscrevem num só organismo,

afetando terminantemente a produção desejante.

Como escrevem os filósofos (2008, p.09) o CsO se configura numa

“experimentação inevitável”. “De todo modo você possui um (ou vários)”, e de

qualquer forma você faz um, pois não pode desejar sem fazê-lo. Para Pelbart (2006,

p.14) a tematização do CsO é uma variação em torno do tema biopolítico. É “a vida

desfazendo-se do que a aprisiona, do organismo, dos órgãos, da inscrição dos poderes

diversos sobre o corpo”.

Dentro da definição do CsO, Deleuze e Guattari subdividem-no em cinco

categorias distintas, possivelmente com o objetivo de obter maior clareza no

entendimento do conceito. Nessa subdivisão os autores apresentam cinco categorias em

que o CsO pode se apresentar: o corpo hipocondríaco, o corpo paranóico, o corpo

esquizo, o corpo drogado e o corpo masoquista. Dentre estas, segue, como figura de

exemplo, a descrição sob a perspectiva do corpo masoquista.

Senhora, 1) você pode me atar sobre a mesa, solidamente apertado, de dez a quinze minutos, tempo suficiente para preparar os instrumentos; 2) cem chicotadas pelo menos, com alguns minutos de intervalo; 3) você começa a costura, costura o buraco da glande, a pele ao redor deste à glande , impedindo-o de tirar a parte superior, você costura o saco à pele das coxas. Costura os seios, mas com um botão de quatro buracos solidamente sobre cada mama. Você pode reuni-los com um suspensório. Aí você passa à segunda fase: 4) você pode escolher virar-me sobre a mesa, sobre o ventre amarrado, mas com as penas juntas, ou atar-me ao poste sozinho, os punhos reunidos, as pernas também, todo o corpo solidamente atado; 5) você me chicoteia as costas as nádegas as coxas, cem chicotadas pelo menos; 6) costura as nádegas juntas, todo o rego do cu. Solidamente com um fio duplo parando em cada ponto. Se estou sobre a mesa, você me ata então ao poste; 7) você me chicoteia as nádegas cinqüenta vezes; 8) se você quiser reforçar a tortura e executar sua ameaça da última vez, enfie agulhas nas nádegas com força; 9) você pode então atar-me à cadeira, você me chibateia os seios trinta vezes e enfia agulhas menores, se você quiser, pode esquentá-las antes no fogo, todas, ou algumas. A amarração na cadeira deveria ser sólida e os punhos amarrados nas costas para estufar o peito. Se eu não falei sobre as queimaduras é que devo fazer em breve uma visita e leva tempo para curar. (2008, p.11)

Para Deleuze e Guattari (2008) o esquema de ações supracitado representa uma

das maneiras para se chegar (alcançar para si) um CsO. O interessante é notar que ao

reler o mesmo trecho sobre outro viés é possível localizar pontos de similaridade entre o

receituário de desenvolvimento do CsO (sob a perspectiva do corpo masoquista) e as

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atividades performáticas levantadas neste trabalho. O enxerto se associa às obras na

instância em que propõe a descoberta de um “novo corpo” a partir de interferências

corporais diretas.

As performances de Marcelo Gabriel, Adriana Banana e do Conjunto Vazio

representam, no Brasil, a busca pela fuga dos órgãos, a procura por um corpo

fragmentado e reconstruído que se dá a partir da desconstrução física no sentido literal.

O corpo masoquista aparece como uma alternativa na busca por esse outro corpo,

multifacetado e contemporâneo. Em obras como as desses artistas se torna evidente a

busca por ações mais extremas e radicais através das quais se questiona práticas sociais

e tabus ligados à cultura contemporânea.

Com exemplos claros desse tipo de intercessão corporal, eventos performáticos

como os realizados pelo Conjunto Vazio ou por Gabriel e Banana são a comprovação de

que obras artísticas com um tipo de conjectura corpórea inevitavelmente têm ganhado

espaço no Brasil. Com a realização desses eventos, artistas nacionais dão início a uma

cultura de discussão corporal iniciada no país próximo à década de 1990, apontada por

Renato Cohen (2002) como época de migração da performance para o lado mais

investigativo da corporeidade humana.

Como afirma Kátia Canton (2000, p.43) os artistas da nova geração “se nutrem

de comentários e questionamentos fora do âmbito da arte, que se referem à realidade

cotidiana e social”. Ao transportar o corpo para a arte, alterar a própria carne em função

de intervenções artísticas, esses performers parecem incitar, por vias performáticas, a

discussão corporal presente nos estudos de Focault, Deleuze e Guattari. A existência de

performances que apresentam diálogos próximos às teorias desses autores parece

comprovar as particularidades dessa linguagem em traduzir, na arte, questões oriundas

no âmbito social, político e filosófico.

No entanto, uma questão vem à tona quando se trata desse tipo de obra

corpóreo/performativa. Estariam esses artistas ousando ao explorar territórios distintos,

ou simplesmente executando ações grotescas desprovidas de valor artístico?

1 Segundo relato de Philip Wincolmlee Barnes, a automutilação nunca existiu. O artista simplesmente fotografara uma cena com um modelo – Heinz Cibulka – repleto de bandagens cobrindo ferimentos fictícios.2 Como aponta Cohen (2000, p.39) “A action paiting é a pintura instantânea, que é realizada como espetáculo na frente de uma audiência. A assemblage é uma espécie de escultura ambiental onde pode ser usado qualquer elemento plástico-sensorial. O environment é uma evolução desta e ambas caminham para o que hoje se designa por instalação, que vem a ser uma escultura-signo-interferente, que muitas vezes vai funcionar como o cenário para o desenrolar da performance”.3 Professor Titular do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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Em entrevista publicada no Caderno de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do

Rio de Janeiro, Affonso Romano de Sant'Anna analisa a arte de nosso tempo e classifica

esse tipo de ação performática como um excesso da perversão, afirmando que,

...perversão sempre existiu nas diversas culturas, mas agora parece estar ocorrendo uma exacerbação que merece análise. E uma análise disto pode ser feita através da arte de nosso tempo [...] Desde os anos 70 do século passado veio se intensificando e se expandindo na arte, um tipo de comportamento (ritual, performance, happening) explorando, às vezes, o lado sádico e masoquista da existência. (2003, p.34)

Será que, caso se adote a análise de Sant'Anna como resposta, nada mais se tem

além de um desfile de corpos lúgubres e pervertidos? É interessante realizar essa leitura

na medida em que aponta outro viés de observação sobre os trabalhos artísticos

retratados neste trabalho?

Como lembra a pesquisadora Priscilla Ramos da Silva4 (2007), na body art as

intervenções sobre o corpo aparecem como uma maneira de tecer e realizar críticas aos

ditames da sociedade. O modo violento com que esses artistas se posicionam em relação

ao corpo transgride tabus e normas sociais e parece deslocar o olhar do espectador de

seu estado de observação casual. Para além da perversão, as obras performáticas

analisadas apresentam uma maneira própria de expor sua visão sobre determinado tema,

assunto, objeto ou questão. Certo é que, dependendo do lugar de observação, pendurar-

se pela pele com ganchos de metal (como fez o Conjunto Vazio) pode ser considerada

uma atitude perversa. Contudo, o contexto de questionamento artístico em que se insere

esse tipo de atitude produz uma significância no ato de se pendurar que excede a ideia

de perversão.

Como aponta Silva (2007, p.08) a questão da body art “é despertar a consciência

do indivíduo, tanto frente à arte, quanto à vida.” Ou seja, mesmo que esse tipo de

performance provoque determinado choque ao apresentar uma postura diferenciada no

modo de tratar o corpo, há sempre algo a ser dito, noticiado ou questionado. Algo

dotado de valor artístico e cultural e que se propõe à comunicação com seu público e

com o contexto atual em que se apresenta. Essa espécie de compromisso artístico

desvaloriza a propriedade em apontar perversão na obra dos artistas performáticos

apresentados neste trabalho.

4 Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da UNICAMP

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Em contraponto a opinião de Sant'Anna, Peter Weibel escreve (apud

PLUCHART 2000, p.219) que,

se um artista se golpeia, isso não significa que um público sádico está assistindo a um artista masoquista. O problema deve ser visto em outro nível, um no qual ambos estão expostos ao golpe. Porque o artista exposto pode ser um substituto para o público ou até mesmo para toda a humanidade. A exposição pessoal ao perigo em um contexto artístico possui uma qualidade semiótica/simbólica no fluxo do processo artístico, que vai além do sado-masoquismo.

É possível perceber as capacidades das manifestações corpóreo/performativas ao

provocar e fomentar discussões que ultrapassam o âmbito artístico nas palavras de dois

dos artistas já citados neste trabalho.

Pinochelli, por exemplo, diz que cortou um pedaço de seu dedo para protestar

contra a violência na Colômbia. De acordo com depoimento do próprio artista5 ele "quis

envir às Farc uma mensagem, advertindo que qualquer um pode usar a violência, e até

com maior intensidade que a guerrilha". Já Orlan, se transfigurou como uma forma de

criticar determinadas imposições da sociedade. Segundo a artista6, sua obra fala “sobre

o quanto se maltrata o corpo das mulheres. Sobre como a “religião propõe um corpo

culpado, que deve sofrer”. A validade do trabalho desses artistas reside justamente no

diálogo com questões que são próprias do contexto em que se vive. Mesmo tratando o

corpo de maneira violenta, Pinochelli, Orlan, o Conjunto Vazio, Gabriel e Banana

propõem uma estética de modificação corporal que ultrapassa puramente a perversão ou

o sado-masoquismo. A poética da agressão corporal se demonstra capaz de interagir

com as tensões e questões advindas do social.

Parto do princípio de que é possível identificar, no trabalho performático dos

artistas em voga, o desempenho de um corpo atual ligado à alteridade de uma nova

dimensão humana capacitada a escolher sua própria identidade e remodelar sua

aparência. Ao se “livrar” da “prisão dos órgãos” artistas como os do Conjunto Vazio,

Adriana Banana e Marcelo Gabriel, realizam no Brasil uma discussão que envolve

questões corporais contemporâneas como suas mais recentes mutações apontadas por

Deleuze e Guattari.

5 Depoimento colhido online de http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2002/not20020611p7392.htm6 Depoimento colhido online de http://anodafrancanobrasil.cultura.gov.br/br/2009/04/05/orlan-criadora-do-manifesto-da-arte-carnal-apresenta-mostra-sutura-hibridacao-reciclagem-laicidade/

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Mesmo que cada um dos artistas analisados possua um objetivo específico com

sua obra, o conjunto dessas performances representa a presença, no Brasil, da discussão

corporal sugerida por este trabalho. Nas obras performáticas é possível notar a discussão

que envolve a presença de um organismo modificado por transições contemporâneas,

alterações sensoriais, cognitivas, tecnológicas, genéticas e sexuais é um organismo que

redesenha sobre ele mesmo os seus resultados desejantes. Um organismo que representa

um corpo que se tornou um espaço para ser mídia, tatuagem, piercings e operações

cirúrgicas, e que abre para novas mudanças e novos territórios corporais.

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Referências

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