A PEDRA POLIDA E AFEIÇOADA DO SÍTIO DO NEOLÍTICO MÉDIO … · Ourives, constata-se que são...

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A PEDRA POLIDA E AFEI ÇOADA DO SÍTIO DO NEOLÍTICO MÉDIO DA MOITA DO OURIVES (BENAVENTE , PORTUGAL) César Neves [email protected] O sítio da Moita do Ourives na Península Ibérica e no paleoestuário existente no Holocénico Médio no Baixo Vale do Tejo (~5000 - 4000 cal BC). (base cartográfica: Daveau, [1980, fig. 6] e Vis, et al. [2008, fig. 12] adaptado) ESPA Ç O E TERRITÓRIO A Moita do Ourives situa-se em Portugal, distrito de Santarém, concelho e freguesia de Benavente. Implantado na margem esquerda do Baixo Tejo sobre o Terraço Q3 (cascalheiras de seixos de quartzito e quartzo). Ocupação em área aberta, plana, sobre um substrato arenoso, a baixa altitude (31m) e sem quaisquer condições naturais de defesa. Grande proximidade com as ribeiras do Almansor e Sorraia, afluentes de um curso principal (Tejo), que à data da ocupação distava a ~10km da Moita do Ourives. O regime estuarino/marinho existente no Baixo Tejo e nos vales tributários em resultado da Transgressão Flandriana, proporcionaria uma diversidade de recursos alimentares passíveis de ser adquiridos, sem grande esforço, através da recolecção e pesca. Especificidade da estratégia de ocupação de um território aberto, “moldada” aos recursos naturais existentes, às excelentes condições de mobilidade que o mesmo permite/exige, eventualmente, integrada numa rede de povoamento que incluiria sítios de outra natureza funcional e dimensão. MOITA DO OURIVES : A COLEC Ç ÃO DE PEDRA POLIDA E PEDRA AFEI Ç ODA Utensilagem Anfibolito Granito Arenito Quartzito Quartzo Total (Nº e %) Pedra polida Machado 1 - - - - 1 - 4,8% Martelo - - - 1 - 1 - 4,8% Pedra afeiçoada Movente - 1 2 4 2 9 42,8% Dormente - - 1 - 1 2 - 9,5% Pedra com traços de utilização Bigorna - - - 1 - 1 - 4,8% Percutor - - - 6 - 6 28,5% Manuportes Lasca em bruto - 1 - - - 1 - 4,8% Total (Nº e %) 1 4,8% 2 9,5% 3 14,3% 12 57,1% 3 14,3% 21100% Moita do Ourives: Pedra polida, afeiçoada e com traços de utilização Inventário geral A colecção da Moita do Ourives é constituída por 21 elementos apresentando, do ponto de vista tipológico e funcional, uma reduzida diversidade interna. Caracteriza-se pela presença de instrumentos acabados, estando praticamente ausentes os elementos que possam corresponder ao processo de produção desta utensilagem. A B Moita do Ourives A: Aspecto geral do sítio (antes da escavação). B: Plano final da escavação do Locus 1. (Foto B: Filipa Rodrigues) Localização de possíveis fontes de matéria-prima exógena face à Moita do Ourives e de ocupações domésticas e funerárias atribuíveis ao Neolítico médio (~4500-3200 cal BC), na sua envolvência. Legenda:1 Gruta dos Ossos; 2 - Cadaval; 3 Caldeirão; 4 Bernardo 1; 5 Alminho 1; 6 Cabeceira 4; 7 Cabeço da Areia; 8 Escoural; 9 Vale Rodrigo 3; 10 Vale Rodrigo 2; 11 Hortinha 1; Pedra p olida Pedra afei ç oada/ Tra ç os de utiliza ç ão A B B MATÉRIA - PRIMA AQUISI Ç ÃO E SEUS TERRITÓRIOS CULTURAIS O mau estado de conservação e o elevado grau de fragmentação de grande parte dos artefactos poderá estar relacionado com a intensidade e grau de utilização. Após o seu abandono, com o instrumento completamente esgotado, terá ocorrido uma dispersão aleatória pelo sítio, com pouca relação com os possíveis espaços de uso. O facto de alguns utensílios terem sido configurados sobre rochas exógenas, sendo a sua obtenção o resultado de um esforço físico elevado, será expectável que se tentasse retirar o máximo proveito das funcionalidades dos artefactos, utilizando-os até à máxima e definitiva exaustão. Nas matérias-primas utilizadas, destacam-se os elementos produzidos sobre as rochas disponíveis nas imediações da Moita do Ourives: Quartzito - 12 registos (~57% do conjunto); Arenito e Quartzo - 3 elementos cada (~29% das ocorrências). Na produção de uma parte destes artefactos a comunidade ultrapassou as imediatas proximidades da área de ocupação. Granito eo Anfibolito são recursos exógenos com pouco peso no conjunto, com um total combinado de 3 elementos (~14%). Possíveis fontes de aprovisionamento mais próximas da Moita do Ourives : - Área das Vendas Novas e Montemor-o-Novo, a ~ 40 - 50 km; - Região de Montargil, Ponte de Sor e Mora, a ~ 50 - 60 km; Prováveis espaços de exploração com testemunhos de ocupação humana inseridos no quadro cronológico reconhecido para o Neolítico médio (~ 4500-3200 cal BC), dando coerência científica e empírica a esta leitura. Os principais instrumentos destas categorias artefactuais estão, normalmente, relacionados com as práticas económicas desenvolvidas no contexto dos novos sistemas produtivos, introduzidos durante o processo de Neolitização. No entanto, em contraste com os restantes elementos que integram o clássico “pacote neolítico”, os utensílios em pedra polida e afeiçoada apresentam-se, nos contextos neolíticos do Ocidente peninsular, em percentagens muito residuais ou totalmente ausentes do registo. Apesar do maioritário mau estado de conservação, os elementos recolhido na Moita do Ourives atestam a presença de uma comunidade integrada nas Antigas Sociedades Camponesas, quer do ponto de vista artefactual / cultural, quer do ponto de vista da economia e produção. Estes dados, mesmo com as suas limitações, permitem uma reflexão acerca da funcionalidade da ocupação da Moita do Ourives , bem como da mobilidade e actividades socio-económicas dos seus habitantes. A presença de artefactos cuja matéria-prima terá sido obtida a grande-distância, reflecte acções de índole económica, suportadas por uma complexidade social bem vincada. Por aferir, estará o estado em que estes produtos chegam ao seu destino (em bruto, pré- formatados, ou já como produto final), numa leitura, por ora, impossível de concretizar. Observando os locais de origem destas matérias-primas/artefactos da Moita do Ourives, constata-se que são áreas cujo acesso terá sido facilitado pelos recursos fluviais como o Sorraia e Almansor, muito próximos do sítio arqueológico que, no momento da sua ocupação durante o Neolítico médio, apresentavam um caudal ainda fortemente marcado pela transgressão flandriana. A: Machado / B: Martelo A A: Dormente / 1 e 2: Moventes 1: Movente/Percutor / 2: Percutor

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A PEDRA POLIDA E AFEIÇOADA

DO SÍTIO DO NEOLÍTICO MÉDIO DA MOITA DO OURIVES (BENAVENTE, PORTUGAL)

César [email protected]

O sítio da Moita do Ourives na Península

Ibérica e no paleoestuário existente no

Holocénico Médio no Baixo Vale do Tejo

(~5000 - 4000 cal BC).

(base cartográfica: Daveau, [1980, fig. 6] e Vis, et

al. [2008, fig. 12] – adaptado)

ESPAÇO E TERRITÓRIO

A Moita do Ourives situa-se em Portugal, distrito de Santarém, concelho e freguesia de

Benavente.

Implantado na margem esquerda do Baixo Tejo sobre o Terraço Q3 (cascalheiras de

seixos de quartzito e quartzo).

Ocupação em área aberta, plana, sobre um substrato arenoso, a baixa altitude (31m) e

sem quaisquer condições naturais de defesa.

Grande proximidade com as ribeiras do Almansor e Sorraia, afluentes de um curso

principal (Tejo), que à data da ocupação distava a ~10km da Moita do Ourives.

O regime estuarino/marinho existente no Baixo Tejo e nos vales tributários em resultado

da Transgressão Flandriana, proporcionaria uma diversidade de recursos alimentares

passíveis de ser adquiridos, sem grande esforço, através da recolecção e pesca.

Especificidade da estratégia de ocupação de um território aberto, “moldada” aos

recursos naturais existentes, às excelentes condições de mobilidade que o mesmo

permite/exige, eventualmente, integrada numa rede de povoamento que incluiria sítios

de outra natureza funcional e dimensão.

MOITA DO OURIVES: A COLECÇÃO DE PEDRA POLIDA E PEDRA AFEIÇODA

Utensilagem Anfibolito Granito Arenito Quartzito QuartzoTotal

(Nº e %)

Pedra polidaMachado 1 - - - - 1 - 4,8%

Martelo - - - 1 - 1 - 4,8%

Pedra afeiçoadaMovente - 1 2 4 2 9 – 42,8%

Dormente - - 1 - 1 2 - 9,5%

Pedra com traços de

utilização

Bigorna - - - 1 - 1 - 4,8%

Percutor - - - 6 - 6 – 28,5%

Manuportes Lasca em bruto - 1 - - - 1 - 4,8%

Total (Nº e %) 1 – 4,8% 2 – 9,5% 3 – 14,3% 12 – 57,1% 3 – 14,3% 21– 100%

Moita do Ourives: Pedra polida, afeiçoada e com traços de utilização – Inventário geral

A colecção da Moita do Ourives é constituída por 21 elementos apresentando, do ponto de vista

tipológico e funcional, uma reduzida diversidade interna. Caracteriza-se pela presença de instrumentos

acabados, estando praticamente ausentes os elementos que possam corresponder ao processo de

produção desta utensilagem.

A

B

Moita do Ourives

A: Aspecto geral do sítio (antes da escavação).

B: Plano final da escavação do Locus 1.

(Foto B: Filipa Rodrigues)

Localização de possíveis fontes de matéria-prima exógena face à Moita do Ourives e de ocupações domésticas e

funerárias atribuíveis ao Neolítico médio (~4500-3200 cal BC), na sua envolvência.

Legenda: 1 – Gruta dos Ossos; 2 - Cadaval; 3 – Caldeirão; 4 – Bernardo 1; 5 – Alminho 1; 6 – Cabeceira 4;

7 – Cabeço da Areia; 8 – Escoural; 9 – Vale Rodrigo 3; 10 – Vale Rodrigo 2; 11 – Hortinha 1;

Pedra polida

Pedra afeiçoada/ Traços de utilização

A B

B

MATÉRIA-PRIMA

AQUISIÇÃO E SEUS TERRITÓRIOS CULTURAIS

O mau estado de conservação e o elevado grau de fragmentação de grande parte dos artefactos poderá

estar relacionado com a intensidade e grau de utilização. Após o seu abandono, com o instrumento

completamente esgotado, terá ocorrido uma dispersão aleatória pelo sítio, com pouca relação com os

possíveis espaços de uso. O facto de alguns utensílios terem sido configurados sobre rochas exógenas,

sendo a sua obtenção o resultado de um esforço físico elevado, será expectável que se tentasse retirar o

máximo proveito das funcionalidades dos artefactos, utilizando-os até à máxima e definitiva exaustão.

Nas matérias-primas utilizadas, destacam-se os elementos produzidos sobre as rochas

disponíveis nas imediações da Moita do Ourives: Quartzito - 12 registos (~57% do

conjunto); Arenito e Quartzo - 3 elementos cada (~29% das ocorrências).

Na produção de uma parte destes artefactos a comunidade ultrapassou as imediatas

proximidades da área de ocupação. Granito e o Anfibolito são recursos exógenos com

pouco peso no conjunto, com um total combinado de 3 elementos (~14%).

Possíveis fontes de aprovisionamento mais próximas da Moita do Ourives:

- Área das Vendas Novas e Montemor-o-Novo, a ~40-50km;

- Região de Montargil, Ponte de Sor e Mora, a ~50-60km;

Prováveis espaços de exploração com testemunhos de ocupação humana inseridos no

quadro cronológico reconhecido para o Neolítico médio (~4500-3200 cal BC), dando

coerência científica e empírica a esta leitura.

Os principais instrumentos destas categorias artefactuais estão, normalmente, relacionados com as práticas

económicas desenvolvidas no contexto dos novos sistemas produtivos, introduzidos durante o processo de

Neolitização. No entanto, em contraste com os restantes elementos que integram o clássico “pacote neolítico”,

os utensílios em pedra polida e afeiçoada apresentam-se, nos contextos neolíticos do Ocidente peninsular, em

percentagens muito residuais ou totalmente ausentes do registo.

Apesar do maioritário mau estado de conservação, os elementos recolhido na Moita do Ourives atestam a

presença de uma comunidade integrada nas Antigas Sociedades Camponesas, quer do ponto de vista

artefactual / cultural, quer do ponto de vista da economia e produção.

Estes dados, mesmo com as suas limitações, permitem uma reflexão acerca da funcionalidade da ocupação

da Moita do Ourives , bem como da mobilidade e actividades socio-económicas dos seus habitantes.

A presença de artefactos cuja matéria-prima terá sido obtida a grande-distância, reflecte

acções de índole económica, suportadas por uma complexidade social bem vincada.

Por aferir, estará o estado em que estes produtos chegam ao seu destino (em bruto, pré-

formatados, ou já como produto final), numa leitura, por ora, impossível de concretizar.

Observando os locais de origem destas matérias-primas/artefactos da Moita do

Ourives, constata-se que são áreas cujo acesso terá sido facilitado pelos recursos

fluviais como o Sorraia e Almansor, muito próximos do sítio arqueológico que, no

momento da sua ocupação durante o Neolítico médio, apresentavam um caudal ainda

fortemente marcado pela transgressão flandriana. A: Machado / B: Martelo

A

A: Dormente / 1 e 2: Moventes

1: Movente/Percutor / 2: Percutor