A pedra da loucura · entrevistas com os pais, anamnese e jogo diagnóstico. Estas etapas...
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A pedra da loucura Bosch
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE
MESTRADO
Pesquisa e Clínica em Psicanálise
SANDRA AUTUORI
CLÍNICA COM ARTE:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE NA PSICANÁLISE.
Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro, Agosto de 2005.
CLÍNICA COM ARTE:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE NA PSICANALISE.
SANDRA AUTUORI
“Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Psicanálise da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
como requisito parcial para obtenção do
Título de Mestre em Psicanálise”
Orientadora: DORIS RINALDI
Dissertação
Rio de Janeiro, Agosto de 2005.
II
Ao meu pai,
que me apresentou à arte e à psicanálise.
III
Agradecimentos:
À UERJ, como instituição promotora do Mestrado em Clinica e Pesquisa em
Psicanálise, como também ao corpo docente que apoiou esta pesquisa
À professora Doris Rinaldi, minha orientadora, que com inteligência e sensibilidade
soube me ensinar a criar esta dissertação.
Ao meu marido: Armando
Minha filha: Silvia e enteada Marina.
Meus pais: Silvio e Elza.
Minhas irmãs: Teresa e Marina.
Meus sobrinhos: Antonio, Pedro, Ana Luisa e Daniela.
Aos meus amigos,
e especialmente: Andréa M. C., Benita M, Claudia P., Edson S., Eunice V., Inês T. C.,
Joana V., Miriam N. L. e Tânia K.
Aos pacientes.
IV
RESUMO: Desenvolvemos nesta dissertação um estudo da aplicabilidade da arte na clínica
psicanalítica. A pesquisa foi realizada no Centro de Atenção Psicossocial Infantil
Eliza Santa Roza, uma instituição pública municipal de saúde mental que prioriza o
tratamento de crianças e adolescentes psicóticos, autistas e neuróticos graves. Nos
baseamos nas teorias de Freud e nas contribuições posteriores de Lacan acerca da
arte. Apresentamos a hipótese de que a arte possa ajudar o sujeito a inventar uma
forma de estabelecer seu contorno singular em torno do vazio. Sustentamos, a partir
de nossa experiência clínica, a arte como um elemento que contribuí para que o
paciente possa visitar sua fantasia (na neurose) ou construir um delírio e, na melhor
das hipóteses, fazer suplência ao Nome do Pai (na psicose) ou ainda, para que o
inconsciente comece a se articular em discurso (no autismo). A pesquisa pôde
estabelecer cinco possibilidades da clínica com arte: 1)A arte mediando o encontro,
2) Interpretação da arte, 3) Interpretação na arte, 4) A arte como analista e 5) A arte
com crianças autistas.
RÉSUMÉ : Dans ce mémoire notre but est d’étudier l'applicabilité de l’art à la clinique de la
psychanalyse. La recherche s’est accomplie dans le Centro de Atenção Psicosocial
Eliza Santa Roza, une institution de santé mentale publique qui donne la priorité au
traitement des enfants et des adolescents psychotiques, autistes et nevrotiques
graves. Elle est basée sur les théories de Freud et les contributions subséquentes de
Lacan à propos de l'art. Nous avons mis en valeur l'hypothèse que l'art pourrait aider
le patient à créer une façon d'établir son parcours particulier autour du vide. Nous
proposons d’envisager l'art comme un élément qui ferait partie de la clinique et qui
pourrait amener le patient à retrouver son fantasme (dans la névrose) ou produire un
délire et , dans la meilleure des hypothèses, faire suppléance au Nom du Père (dans
la psychose) ou encore, afin que l'inconscient puisse être articulé au discours (dans
l'autisme). Le travail de la recherche était capable d'établir cinq possibilités
différentes de traitement qui implique l'art: 1) Art qui prend contact possible; 2)
interpréter l'art; 3) interpréter dans art; 4) Art comme analyste; 5) Art avec les enfants
autistiques.
V
ÍNDICE
INTRODUÇÃO....................................................................................................................1
CAPÍTULO I: A ARTE EM FREUD: Iluminando a Teoria........................................................................10
1. Autor e obra: um vínculo de mão dupla.........................................................................12
2. Realidade na arte..........................................................................................................20
3. A arte ensina à psicanálise............................................................................................24
4. O processo da criação artística olhado pela psicanálise...............................................27
5. O mito do nascimento da arte.......................................................................................33
CAPÍTULO II: LACAN E A ARTE – Catando migalhas............................................................................36
1º Arte como um bem.......................................................................................................40
2º Além do bem: o belo....................................................................................................43
3º Mais além do belo: o sublime.......................................................................................46
4º Elo: a arte sinthomática. ..............................................................................................50
CAPÍTULO III: CLÍNICA PSICANALÍTICA COM ARTE NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL.....................56
1. Arte e Loucura – Breve Histórico...................................................................................56
2. Saúde Mental e Psicanálise - Marcando Posição.........................................................63
3. O CAPSI Eliza Santa Roza...........................................................................................70
4. Precisando a Arte do CAPSI Eliza Santa Roza.............................................................72
5. Clínica Psicanalítica com Arte.......................................................................................76
5.1. A Oficina de Arte........................................................................................................77
A arte mediando o encontro..............................................................................................78
Interpretação da arte.........................................................................................................80
Intervenção na arte............................................................................................................83
A arte como analista.........................................................................................................85
5.2. A Arte na Clínica Psicanalítica com Crianças Pequenas Psicóticas e Autistas.........86
CONCLUSÃO....................................................................................................................93
BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................99
VI
1
INTRODUÇÃO
A arte vem sendo minha companheira há muito tempo, tanto que nem sei
quando essa paixão começou. Dei a ela outra parceira, que marcou e mudou minha
vida quando eu também era ainda muito nova, a psicanálise. É bom tê-las perto a
me guiar. Cursei artes cênicas pela UNI RIO e trabalhei com arte profissionalmente
durante mais de vinte anos, em teatro, cinema, rádio e televisão – ainda hoje me
arrisco em criações artísticas. Só mais tarde me graduei em psicologia. Durante
algum tempo esses dois interesses corriam paralelamente e a possibilidade de
pensá-los em um mesmo contexto só se apresentou após o estágio de acadêmica
bolsista que realizei no COIA (Centro de Orientação da Infância e Adolescência)
hoje CAPSI Eliza Santa Roza, onde atualmente trabalho como psicóloga concursada.
Na conclusão do estágio escrevi uma monografia intitulada: “A criança ‘em –
cena’ a psicanálise no ambulatório público”. 1 Estava, na época, interessada em
defender a possibilidade da psicanálise estar presente no ambulatório público e
direcionei esta discussão para o atendimento com crianças. Utilizei, basicamente, as
idéias de Figueiredo2, que propõe a desconstrução de uma série de pré-requisitos
formais ortodoxos instituídos historicamente como sendo indispensáveis para a
definição da prática da psicanálise e, ao mesmo tempo, se preocupa em deixar claro
que essa desconstrução não autoriza que a prática psicanalítica possa abrir mão de
seus critérios básicos e definidores. A partir de Freud podemos dizer que existe um
modo de trabalho que define a clínica psicanalítica. Figueiredo apresenta
argumentos convincentes que viabilizam, garantem e fundamentam a clínica
psicanalítica no ambulatório público e, baseando-se em conceitos fundamentais da
psicanálise, pensa uma contextualização teórico/prática que diferencia a psicanálise
de outro tipo de clínica terapêutica. A autora intitula ‘condições mínimas’ 3 os
1 Monografia apresentada para a Secretaria de Saúde da Prefeitura do Município do Rio de Janeiro em 1999. 2 Figueiredo, A. C . – Vastas confusões e atendimentos imperfeitos. Rio de Janeiro, Relume-Dumará,1997. 3 As condições mínimas, resumidamente, podem ser descritas como: realidade psíquica, transferência e o tempo. Estas condições estão subordinadas a uma condição primeira e fundamental que é o desejo de analista. O conceito de realidade psíquica delimita a única realidade que diz respeito e interessa ao sujeito; a transferência psicanalítica é o que permite a produção de um modo de fala que vai proporcionar o trabalho na análise; e o tempo que é pertinente à psicanálise, por ser o que permite a interpretação, é o a posteriori ou o só depois.
2
princípios que devem reger o modo pelo qual determinada clínica possa ser
identificada como psicanálise.
Em minha monografia pude fazer uso dessas considerações, trazendo para o
universo do trabalho com crianças as mesmas preocupações, e assim desconstruir
alguns padrões normativos que se naturalizaram durante a história da psicanálise
como sendo o modelo certo para a clínica psicanalítica com crianças. Segundo
Lamy4, por muitos anos a clínica infantil se ancorou em um conjunto de normas,
regras rígidas, quase obsessivas que pode ser exemplificada pelos modelos da
“Hora de jogo diagnóstica” e a “Hora do jogo terapêutica”. Guias elaborados para
produzir o tratamento, que se propõem oferecer um relato sistematizado e coerente
para orientar a análise, comparar diversos materiais dentro do processo
psicodiagnóstico e obter inferências generalizadoras. Nesse modelo, o trabalho com
a criança obedece a etapas fixas anteriormente determinadas, compostas por
entrevistas com os pais, anamnese e jogo diagnóstico. Estas etapas apresentam
tempo, duração e periodicidade previamente estipuladas. Tanto o setting quanto os
materiais utilizados também obedecem a exigências específicas que são justificadas
teoricamente como indispensáveis para o bom andamento do processo analítico.
A monografia serviu para repensar as concepções psicanalíticas que se
apóiam nas regras rígidas extraídas destes manuais técnicos de procedimentos
terapêuticos generalizadores e afirmar a possibilidade de haver psicanálise com
crianças no ambulatório público. Nesta direção, ao final da monografia, destaquei
que o brincar e o atendimento com os pais – modos de trabalho que especificam a
clínica com crianças – merecem ser adicionadas às condições mínimas retiradas da
teoria freudiana e assinaladas por Figueiredo.
Preocupei-me em circunscrever o brincar não como um substituto da fala ou
mesmo da associação livre, mas afirmar sua importância como método específico no
tratamento com crianças, como linguagem. As crianças, mesmo não sendo seres
mudos ou pré-verbais, apresentam tendência à ação e limites nas suas
possibilidades de verbalização. Geralmente, não se dispõem a deitar no divã e a sair
fazendo associações livres. O melhor é deixar a criança livre para se expressar da 4 Lamy, M. I. – “A criança e o dispositivo analítico” In: Cadernos do IPUB, no 11 .Rio de Janeiro, 1997.
3
forma que puder. Houve no Brasil, durante algum tempo, um descompasso em
relação à compreensão do brincar na clínica com crianças. Enquanto alguns
tenderam a substituir o discurso da criança pelo uso do brinquedo, outros, em
oposição radical a essa prática, retiraram a possibilidade do brincar. Segundo Roza5,
a experiência psicanalítica com a criança deve acontecer numa articulação do
brincar com a verbalização. O brincar é capaz de engendrar sentidos, produzir
associações e assim proporcionar uma articulação com o significante lingüístico.
Na tarefa de desenvolver a condição do ‘brincar’ como uma especificidade do
trabalho com crianças, percorri a obra de Freud procurando suas reflexões sobre a
atividade infantil. Neste percurso percebi um vínculo claro entre essa atividade e a
expressão artística. O brincar, como o sonho, é determinado por desejos
inconscientes, ele é constituinte da realidade psíquica, nele estão presentes
mecanismos como o fantasiar, a condensação, o deslocamento e o simbolismo.
Porém, o brincar não é uma formação do inconsciente, pois nele a incidência da
elaboração secundária é predominante, estabelecendo coerência e ordenação no
seu conteúdo manifesto.
Porém, como diz Jorge6, o sonho, sendo realização de desejo, é sempre
sustentado pela fantasia. É interessante o apontamento do autor que, baseado em
Lacan, ressalta que é exatamente quando o real tenta imiscuir-se no sonho, que o
sujeito acorda. O sujeito acorda para prosseguir dormindo, isto é, fantasiando.
Entrecruzados meus dois pólos de interesses – arte e psicanálise – através
do brincar infantil, pus-me a pensar que: se a psicanálise com criança utiliza o
brincar e o brincar mantém um elo com a atividade artística, o tratamento
psicanalítico poderia continuar sendo um tratamento psicanalítico mesmo quando,
além de ter dispensado o setting tradicional, estivesse convivendo com a arte.
Eram meados do ano de 2000 e o serviço em que eu estava inserida, o
Centro de Orientação a Infância e a Adolescência (COIA), passava por grandes
mudanças que o iriam levar a se transformar no CAPSI Eliza Santa Roza.
Estávamos em busca de novas formas de cuidado, capazes de atender à pluralidade 5 Roza, E. S. – Quando brincar é dizer. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria 1999 p.149. 6 Jorge, M.A.C. – “Les quatre dimensions du réveil: rêve, fantasme, délire, illusion”, in Didier-Weill, A. (org.), Freud et Vienne, Ramonville Saint-Agne, Érès, 2004.
4
de demandas da clientela infanto-juvenil com transtorno mental grave e situação de
risco. Desejávamos experimentar novos recursos assistenciais, que escapassem
dos dispositivos clínicos tradicionais de alcance restrito. E foi em meio a essa
transformação de COIA para CAPSI que iniciei uma oficina de arte. Pelo próprio
contexto em que se deu a criação da oficina de arte, o que estava em jogo não era a
arte como produtora de obra de arte reconhecida e valorizada socialmente, mas sim
o ato criativo. Foi então que se colocou para mim o desafio teórico-clínico – já que esta é
uma questão que merece ser analisada tanto através da investigação teórica quanto
a partir da prática clínica – de pesquisar as relações entre a arte e a psicanálise.
Instigava-me saber como poderiam, a psicanálise e a arte, conviver no mesmo
espaço, ao mesmo tempo, sem se descaracterizarem. Era preciso estipular uma
aproximação entre arte e psicanálise onde a psicanálise não exercesse uma relação
utilitária para com a arte e, ao mesmo tempo, não se descaracterizasse quando em
seu encontro. Rivera7 propõe que no confronto entre psicanálise e arte na busca de
novas palavras, haveria possibilidades de ligação sem que uma se reduzisse à outra.
A autora também nos faz perceber que a peça “Édipo Rei” é testemunha de um
atrelamento fundamental entre arte e psicanálise, pois, transferida com a tragédia
grega, a psicanálise pôde dar nome ao que faz núcleo de sua teoria. Freud não usa
a tragédia de Sófocles apenas para ilustrar a teoria psicanalítica, mas a lenda de
Édipo vem sustentar sua hipótese clínica, o que lhe concerne caráter de motor da
criação teórica.
A utilização da arte no tratamento psíquico é hoje um recurso amplamente
utilizado, muitos serviços de tratamento, principalmente os direcionados à clientela
mais grave, comportam espaços onde a criação artística está presente.
Eu mesma sou autora da performance “Desfile de Camisa de força”, que é
apresentada em muitos eventos de Saúde Mental, pelo grupo de ações poéticas “O
prazer é todo meu”, formado por pacientes do serviço de atenção diária Espaço
Aberto ao Tempo do Instituto Municipal Nise da Silveira.
7 Rivera, T. - “Arte e Psicanálise” Psicanálise, passo-a-passo Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 2002
5
Entretanto a utilização da arte no tratamento psíquico não tem sido matéria de
pesquisa no campo da psicanálise freudiana/lacaniana. Os inúmeros trabalhos que
versam sobre arte e psicanálise e que apresentam suporte teórico não têm se
aventurado a pensar um possível entrecruzamento com a prática clínica. E, na
entusiástica discussão sobre a presença da psicanálise no campo da saúde mental,
a arte não tem sido incluída.
Esta dissertação se propõe apresentar uma articulação entre estes três
vértices que estão legitimamente presentes na clínica que exerço: Arte, Saúde
Mental e Psicanálise. É no contexto de sustentação do discurso psicanalítico no
campo da Saúde Mental – onde se procura estabelecer uma clínica com rigor
teórico, afinada com a ética psicanalítica – que me lanço no novo desafio de articular
na prática a psicanálise com a arte.
A realização dessa pesquisa passa por quatro etapas que constituem os
quatro capítulos da dissertação. São eles:
CAPÍTULO I – A ARTE EM FREUD: Iluminando a Teoria - Apresento um
mergulho no pensamento freudiano relativo à arte. Freud combina arte com sua
investigação teórica-clínica e esta combinação reflete um pensamento dialético que
parece confirmar que em relação à arte é preciso suportar contradições e que não
há uma verdade última que abarque o total desvelamento do que seja a arte. O que
existem são pontos focais que surgem dependendo de como olhamos. Este capítulo
está dividido em cinco itens. Os três primeiros foram cunhados a partir de um
fragmento da carta de 31 de maio de 1897 de Freud a Wilhelm Fliess8, o “Rascunho
N”, intitulado Ficção e Fine Frenzy; os últimos dois itens são outras maneiras de
relação da psicanálise com a arte que se mostram representativas do pensamento
freudiano quando se percorre sua obra:
1. Autor e obra: um vínculo de mão dupla - É a abordagem da arte
presente em Freud onde ele tece entendimentos relativos a obras de arte se
utilizando, por um lado, do conhecimento de acontecimentos da vida do artista e, por
outro, inferindo o que se passa no psiquismo do autor pelo que comparece em sua
8 MASSON, J. M. – A Correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago, 1986.
6
criação. 2. Realidade na arte - Neste item procuro momentos em Freud onde se
evidencia que a criação artística em sua relação com a realidade traz
obrigatoriamente a questão da realidade psíquica. E que a fantasia e realidade
psíquica se equivalem. 3. A Arte ensina à psicanálise - Esta é a vertente de
Freud onde ele coloca a psicanálise em posição de aprendiz em relação à arte. O
dito do artista tem estatuto de verdade, oferece através de suas criações as mesmas
descobertas que a psicanálise propõe, porém, antecipadamente. 4. O processo da
criação artística olhado pela psicanálise – É a face de Freud em que se mostra
interessado em pesquisar o que determina ao escritor criativo sua escolha de
material e os efeitos desta no leitor. 5. O mito do nascimento da arte - Momento
em que Freud postula que a arte teve seu início na função de evocação, que
originalmente a arte continha intuitos mágicos, isto é, que a arte por uma coação
mística, exercia a vontade do homem sobre outras coisas ou mesmo sobre outras
vontades.
CAPÍTULO II – LACAN E A ARTE: Catando migalhas - Neste estudo da
arte na teoria lacaniana me contentei em trabalhar o que me pareceu
revolucionariamente original em sua reflexão. Lacan afirma sermos nós analistas,
frente à arte, “catadores de migalhas”.9 Ele postula que há três modos diferentes de
sublimação: o da religião, da ciência e da arte. E que a arte é caracterizada por um
certo modo de organização em torno do vazio. Seus ensinamentos me
encaminharam para esquematizar em quatro sub itens este capítulo que pretende
investigar as concepções de arte em Lacan. Proponho que não sejam lidos como
antagônicos e sim como diversas facetas da arte. Que sejam lidos da mesma forma
como se olha um caleidoscópio que transmuta o objeto visto pelo giro que é
efetuado. São eles:
1º Arte como um Bem - Na dimensão do bem, a arte é valorizada como
produto de consumo, um objeto a ser comprado, de valor comercial que obedece às
leis de mercado como outro objeto qualquer, estando inserida nas relações de poder
dominantes na sociedade. 2º Além do Bem: o Belo - Diferentemente da arte como
9 Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960), Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988. p. 289
7
um bem, na dimensão do belo – embora se crie certa ilusão de satisfação – a arte
sustenta o desejo. Por um lado parece que há uma extinção do desejo, pelo fascínio
que o belo causa e por outro ele não é totalmente extinto pela apreensão da beleza.
O desejo permanece suspenso. 3º Mais além do Belo: o Sublime - A antítese
clássica entre o Belo e o Sublime pertence à filosofia. Sublime é um termo associado
ao êxtase e à criação poética. Lacan, abalizado pela estética Kantiana, introduz
como contraponto da experiência do belo a do sublime e, por essa via, entende o
mais além do princípio do prazer que se pode dar como efeito do contato com a arte.
4º Elo: A arte sinthomática - Na quarta maneira em que a arte é incluída na teoria
lacaniana, ela comparece como um elemento importante na construção da própria
teoria lacaniana acerca da estrutura subjetiva. Lacan, principalmente ancorado no
efeito operado em Joyce por sua escrita, aponta a possibilidade da arte poder
funcionar no lugar do quarto laço fazendo suplência ao Nome-do-Pai. Joyce teve
que inventar o que Lacan chamou de Sinthoma. Soma-se a este feito o
reconhecimento público e a decorrente construção de um nome próprio para que
Joyce apresentasse um certo arranjo, mesmo que bastante singular, de
subjetividade que o sustentou em equilíbrio psíquico. A direção do tratamento das
psicoses adquire uma nova perspectiva. A escrita sinthomática de Joyce adiciona a
possibilidade de construção de uma suplência ao Nome-do-Pai que não passa pelo
delírio. Qual seja: a invenção pelo sujeito de seu sinthoma, sua forma singular de
gozo. Isto não é pouco, é talvez o que nós analistas tanto almejamos quando
tratamos de sujeitos psicóticos em profundo sofrimento mental.
CAPÍTULO III – CLÍNICA PSICANALÍTICA COM ARTE NO CAMPO DA
SAÚDE MENTAL - Este último capítulo é aquele em que, ancorada na teoria
exposta nos dois primeiros capítulos, enfoco a arte no tratamento psíquico. Ofereço
uma possibilidade de diálogo entre os três vetores principais de minha dissertação:
Arte, Psicanálise e o Campo da Saúde Mental. Para isso subdividi o capítulo em
cinco partes, são elas:
1. Arte e loucura: breve histórico - Faço um pequeno relato dos principais
nomes e acontecimentos relativos ao tratamento da loucura que envolveu a arte no
Brasil e no resto do mundo. No Brasil enfoco principalmente Osório César e Nise da
Silveira. Destaco a importância que teve para a ‘desestigmatização’ da loucura a
8
atribuição de valor artístico às obras realizadas pelos que sofriam de problemas
mentais. 2. Saúde Mental e psicanálise: marcando posição - Apresento a
discussão da entrada da psicanálise no Campo da Saúde Mental e algumas
divergências relativas a modos de entendimento da sustentabilidade da prática
psicanalítica na instituição pública e em CAPS’s. Porém não me detenho em
demasia. Ancorada em Freud em “Linhas de progresso na terapia Psicanalítica”
(1919[1918]) 10., procuro defender que estamos hoje em outro momento, não mais o
de ficar questionando se a psicanálise está ou não presente na saúde mental. Nossa
tarefa agora é bastante mais complicada, temos que reinventar na prática o legado
de Freud e Lacan, sustentando com rigor ético o discurso psicanalítico. 3. O CAPSI
Eliza Santa Roza - Apresento o serviço em que trabalho, um pouco de sua história e
modo de funcionamento. 4. Precisando a arte do CAPSI Eliza Santa Roza - Neste
item estabeleço qual o conceito de arte que nós utilizamos em nossa prática clínica
no CAPSI. Também trago a evidência da falta de teorização sobre a prática com arte
em serviços de saúde mental e a inexistência de trabalhos que unam a psicanálise
com a arte na clínica dentro de um viés freudiano/lacaniano. 5. Clínica psicanalítica
com arte - Esta parte é o testemunho do trabalho desenvolvido no CAPSI Eliza
Santa Roza no qual a arte é incluída, articulando esta clínica com os postulados
teórico-práticos da psicanálise. Subdividi em dois itens 5.1. A Oficina de arte - Baseado no tratamento com adolescentes em grave sofrimento psíquico com arte e
psicanálise. É o relato das origens do trabalho com a arte no CAPSI Eliza e suas
transformações. Descrevo quatro formas diferentes em que venho percebendo a
entrada da arte no tratamento psíquico, são elas: A arte mediando o encontro, Interpretação da arte, Intervenção na arte e A arte como analista. Elas não são
excludentes e ocorrem muitas vezes simultâneamente, só separei com intuito
didático para facilitar a comunicação. 5.2 A arte na clínica psicanalítica com
crianças pequenas psicóticas e autistas - Este é o último item desta parte. Relato
nosso trabalho com crianças autistas, ressaltando o quanto é incipiente esta clínica.
Estabeleço alguns princípios teóricos/práticos psicanalíticos como o de considerar
10 Freud, S. – “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica” (1919[1918]) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ed. Standard Brasileira. Imago. 1977. vol.XVII p. 210 e 211
9
que os atos destas crianças são atos significantes e produtos de sujeito. A arte, que
vêm entrando lentamente neste espaço, é cuidadosamente teorizada. Ela é utilizada
como um suporte para que seja possível algum encadeamento significante, uma
base, onde o inconsciente comece a se articular em discurso. Ela não aparece como
uma demanda nossa e funciona, muitas vezes como o ‘mais um’, algo que dilui
ainda mais nossa presença e ajuda a barrar o Outro.
10
CAPÍTULO I - A ARTE EM FREUD: Iluminando a teoria
O ponto de partida de minha dissertação sobre arte e psicanálise foi
pesquisar a obra de Freud profundamente. Já que pretendo falar dos enlaces que
aparecem quando a manifestação criativa, motivada tanto pela arte quanto pela
psicanálise, está em jogo, pareceu-me necessário um mergulho na obra freudiana
como um todo. Não me contentei em estudar apenas os textos mais específicos
sobre a criação artística. Fiz questão de ler qualquer menção de Freud em relação à
arte, mesmo que fosse uma rápida alusão ou que parecesse sem importância, para
assim conhecer de forma ampla o que pensava o pai da psicanálise sobre a arte e o
processo criativo.
Freud em seu percurso para criar a psicanálise fez muitas referências à arte,
algumas diretamente relativas ao artista e ao processo artístico, outras se
preocupando mais especificamente com a própria obra, havendo também estudos
dirigidos aos efeitos que estas produzem em quem é tocado por elas. Podemos
ainda encontrar trabalhos onde ocorrem mesclas de todas essas preocupações.
Não é inverdade dizer também que, em muitas ocasiões, a arte entra como mero
exemplo ilustrativo.
Não é novidade, já que esta evidência é bastante comentada, que há nas
observações de Freud relativas à arte, uma profunda ambigüidade11, ou até um
desencontro 12 . Sua maneira de analisar o tema sofre grandes oscilações.
Estranhamente, essas oscilações não obedecem a algum tipo de evolução
cronológica do desenvolvimento de seu pensamento. Em textos produzidos
proximamente aparecem idéias – me privo do termo opostas por ser forte – que
não são confluentes. Em um mesmo texto é possível notar certas afirmações
dissonantes.
Porém, essa primeira impressão pode ser dissolvida quando se tem em
mente que a ambigüidade talvez seja o reflexo de um pensamento dialético, que se
11 Kon, N. M. – Freud e seu duplo: Reflexões entre Psicanálise e Arte. Reflexões sobre Psicanálise e arte. Edusp/Fapesp São Paulo 1996. 12 Rivera, T. , em palestra proferida na UERJ em novembro de 2003.
11
evidencia quando Freud combina arte com sua investigação teórica-clínica. Esse
ponto de vista não tem como finalidade justificar ou buscar uma compreensão do
pensamento freudiano dentro de uma perspectiva coerente, ao contrário, defende a
necessidade de que, em relação à arte, é preciso suportar contradições.
O desfilar de ângulos de visão tão diferentes aponta para o fato de que não
há uma visão definitiva, não há uma verdade última que abarque o total
desvelamento do que seja a arte. O que existem são pontos focais que surgem
dependendo de como olhamos.
Tomo como ponto de partida uma citação de Freud em que a arte aparece
articulada à teoria psicanalítica – refiro-me a uma citação, presente no “Rascunho
N”, intitulado Ficção e Fine Frenzy da carta de 31 de maio de 1897 a Wilhelm Fliess
– e apresento a hipótese de que é possível depreender diferentes formas da
psicanálise se relacionar com a arte e diferentes olhares da psicanálise sobre a arte.
Nessa primeira citação Freud diz categoricamente logo na primeira frase: “O
mecanismo da ficção é idêntico ao das fantasias histéricas”13 e, para justificar esta
afirmação comenta Goethe e seu famoso romance “Os sofrimentos do jovem
Werther”. O livro conta a história de um rapaz que se mata por amor. Freud teoriza
que o autor combinou o amor que havia experimentado por Lotte Kastner com o
suicídio de uma jovem chamada Jerusalém, de quem ele teve notícia. Diz Freud:
“É provável que estivesse brincando com a idéia de se matar, e encontrou um ponto de contato nisso, identificando-se com Jerusalém, a quem emprestou uma motivação retirada de sua própria história de amor. Por meio dessa fantasia, protegeu-se das conseqüências de sua experiência”.14
Percebemos que nessa sutil estréia da reflexão sobre a obra de arte estão
condensadas várias formas com que Freud pensa a relação entre arte e psicanálise,
formas que foram depois aprofundados, esboços de idéias posteriormente
desdobradas. Aparecerem na mesma carta focos originários de abordagens
13 Masson, J. M. – A Correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904, p. 252. 14 idem, ibidem p. 253.
12
diferentes sobre a arte e o artista, aponta para o fato de que, apesar de dissonantes,
as teorias freudianas sobre os processos artísticos não são excludentes.
Na correspondência a Fliess foi possível discernir três faces principais onde a
arte é, em cada uma delas, diferentemente visitada. Em momentos posteriores,
essas abordagens foram desenvolvidas e sedimentadas por Freud. Para dar
visibilidade à leitura que fiz desta primeira referência, intitulei cada uma das três
faces que pude depreender, distinguindo-as entre si. São elas: 1. Autor e obra: um
vínculo de mão dupla 2. Realidade na arte 3. A Arte ensina à psicanálise. A
essas, adicionei outras duas maneiras de relação da psicanálise com a arte, que
embora não estejam presentes no “rascunho N”, se mostraram representativas do
pensamento freudiano quando se percorre sua obra, a saber: 4. O processo da
criação artística olhado pela psicanálise 5. O mito do nascimento da arte.
Acredito que essas diferentes abordagens são vetores importantes a serem
seguidos para a construção de um mapeamento que ajudará na compreensão do
pensamento de Freud relativo à arte.
1. Autor e obra: um vínculo de mão dupla
Destacam-se em Freud momentos em que o entendimento da obra de arte se
dá, por um lado, através de acontecimentos da vida do artista, isto é,
compreendendo a obra pelo autor e, por outro, inferindo o que se passa no
psiquismo do autor pelo que comparece em sua criação. Em sua análise há uma
mão dupla de deduções explicativas. No “Rascunho N” do Anexo à carta de 31 de
Maio de 1897 para Fliess, Freud relaciona a vida de Goethe com a vida de Werther.
Ele reconhece no personagem motivos para seus conflitos e aflições oriundos da
vida verdadeira de seu autor, mas também, na contra mão, a intensidade do
sofrimento de Werther é algo que foi transposto de um real sofrimento de Goethe,
que se dá então a conhecer. Esta ‘psicobiografia’ vai se repetir inúmeras vezes nos
textos de Freud. Mais notadamente em “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua
infância”15 e em “Dostoievski e o parricídio”.16
15 Freud, Sigmund – “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância” (1910)
13
O estudo “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância” é, dos
trabalhos de Freud, o que mais oferece aspectos referentes à vida pessoal de um
artista. Não há apenas uma análise das obras de arte. Freud apresenta a vida de da
Vinci fazendo uma grande psicobiografia. Quando lemos este artigo ficamos com a
impressão de que Freud se colocou no lugar de psicanalista de Leonardo da Vinci.
Sua genialidade é reconhecida por Freud. À frente de seu tempo, Leonardo era
pintor, escultor, inventor, cientista, arquiteto, escultor, etc.
Embora tenha criado duas das obras renascentistas mais conhecidas no
mundo: Mona Lisa e A Última Ceia, Leonardo se dedicou mais as suas invenções
do que às artes. Chegou a imaginar e desenhar croquis de helicópteros, submarinos,
máquinas voadoras e canhões. Criou projetos arquitetônicos de ponte, de cidade, de
um porto circular, etc. Foi também um cientista que dissecava cadáveres para
estudar anatomia, tendo desenhado diversas partes do corpo humano17. Ao final da
vida, nos conta Freud, ele “reconheceu ter ofendido a Deus e aos homens por não
ter cumprido seu dever para com a arte”.18
Projeto de Helicóptero Anatomia do homem
16 idem – “Dostoievski e o parricídio”(1928 (1927)) . 17 Para tal, ver: http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/vinci/ 18 Freud, S. – “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância” (1910) p.63.
14
Freud propõe em seu texto que, em Leonardo, os afetos eram transformados
em objeto de interesse intelectual, e que a frase do artista: “Não se tem o direito de
amar ou odiar qualquer coisa da qual não se tenha conhecimento profundo”,
confirma sua hipótese19.
A ânsia por descobertas que dominou Leonardo é tida por Freud como sendo
herança de sua primeira infância. A sublimação da pulsão sexual é o que garante a
atividade profissional intelectual. Freud acredita que quando Leonardo passou pela
fase das elucubrações sobre o nascimento não teve como resultado nem a inibição
e nem a compulsão. Sua libido, ao escapar desses destinos, foi sublimada desde o
começo em curiosidade o que fortaleceu o impulso à pesquisa. Assim, por ser
sublimação e não recalque, mesmo se tornando compulsiva e substituta da atividade
sexual, a pulsão pôde agir livremente sem ficar presa aos complexos originais da
pesquisa sexual infantil.
Leonardo, para Freud, tinha uma “homossexualidade ideal sublimada”,
apresentando forte inclinação à pesquisa e atrofia de sua vida sexual. O artista
chegou a ser acusado de prática homossexual, mas foi absolvido. Freud acredita
que ele não tenha tido qualquer atividade sexual.
Freud afirma ser necessário para compreender as obras de arte de Leonardo,
conhecer sua história de vida, porém, ao mesmo tempo, através das análises dos
quadros propõe entendimentos de seu psiquismo. Os primeiros cinco anos de
Leonardo da Vinci, passados solitariamente com sua mãe foram, para Freud, o que
influenciaram decisivamente seu psiquismo. A mãe era uma camponesa chamada
Caterina e o pai Ser Piero da Vinci, um tabelião que se casou com Donna Albiera no
mesmo ano em que Leonardo nasceu, em 1452. Entretanto, sua esposa não pôde
lhe dar filhos; assim, Leonardo aos cinco anos foi morar com eles20.
Freud acredita que a ternura de sua mãe foi o que lhe determinou o destino,
supondo que lhe fazia carícias que a consolavam por não ter marido e ao mesmo
tempo visavam compensar o filho pela falta do pai, tendo operado uma substituição
do marido pelo filho pequeno. 19 idem, ibidem. p.71 20 Embora Freud tenha fixado em cinco anos a idade na qual Leonardo da Vinci foi morar com seu pai, em algumas biografias pesquisadas na Internet esta idade varia entre três e cinco anos.
15
Leonardo inicialmente realizava pesquisas para sua arte, mas, aos poucos foi
se dedicando mais ao campo das invenções e projetos. Só aos cinqüenta anos
encontrou uma mulher que lhe despertou a lembrança do sorriso feliz e sensual de
sua mãe e então pintou o que talvez seja o quadro mais conhecido no mundo inteiro:
Mona Lisa ou La Gioconda em 1502. Freud descreve o sorriso de Mona Lisa como fascinante, misterioso, sedutor e
ao mesmo tempo frio e distante. Um contraste entre a ternura e a sensualidade.
Leonardo passou 4 anos pintando esse retrato e não ficando satisfeito com o
resultado não entregou a encomenda. O sorriso ‘leonardino’ comparece em outros
quadros, aliás, em suas primeiras obras já havia esboços do sorriso que é
finalmente encontrado em Mona Lisa.
Mona Lisa
Outro quadro comentado por Freud é Santa Ana, a Virgem e a criança, que
possivelmente foi criado simultaneamente ao da Gioconda. As duas mulheres
presentes nesse segundo quadro analisado exibem no rosto o sorriso leonardino. O
sorriso que, para Freud, era a recordação da mãe do autor. Porém, neste quadro,
Freud relata que o sorriso perde o caráter misterioso e exprime serena felicidade,
sendo a glorificação da maternidade.
Freud acredita que este quadro sintetiza a infância de Leonardo. Quando foi
morar com seu pai, ele foi criado não só pela madrasta Donna Albiera como por sua
avó paterna Monna Lucia. Uma das curiosidades deste quadro é que Santa Ana,
16
mãe da virgem, demonstra uma aparência mais jovem e bela do que seria de
esperar de uma avó. Freud diz que Leonardo deu à criança duas mães assim como
ele próprio havia tido: Caterina e a madrasta, esposa de seu pai, Donna Albiera.
Corrobora com este entendimento o fato de que Leonardo teve uma outra segunda
mãe, sua avó paterna Monna Lucia que também o acompanhou na infância. Neste
quadro as pinceladas que traçam as duas mulheres estão tão unidas que é muito
difícil separá-las. Porém, em outro quadro Santa Ana com outros dois ou A Virgem
com o menino Sta Ana e São João Batista a união pictórica entre as duas mulheres
é tal que é impossível separá-las em dois corpos21. Freud relata que o sorriso
retratado no quadro também possui uma outra característica: ele escamoteia o
ressentimento de uma mãe que teve que entregar seu filho.
Freud teoriza que a relação de Leonardo com suas obras de arte reflete a
relação que seu pai tivera com ele, de desinteresse. Razão pela qual raramente as
considera terminadas. Completa afirmando que se sua rebeldia o prejudicou no
campo das artes, o incentivou na pesquisa científica e nos presenteia com uma frase
de Leonardo: ‘Aquele que apela para a autoridade quando existe diferença de
opinião, está fazendo mais uso da memória do que da razão22’.
21 Os quadros estão no Museu do Louvre em Paris.
A Virgem com o menino Sta Ana São João Batista Santa Ana, a Virgem e a criança
17
Freud, neste texto que mais parece um relato de caso clínico, tem o cuidado
de, ao final, marcar a idéia de que há pouca distância entre os neuróticos e os
normais e que traços neuróticos não são sinônimos de inferioridade. Apresenta a
hipótese diagnóstica de Leonardo ter proximidade com a neurose obsessiva, por sua
‘meditação obsessiva’ e ‘inibição’. Acredita que a maior parte da pulsão sexual foi
sublimada em uma ânsia geral de saber, escapando ao recalque. Que o amor por
sua mãe foi transposto em uma atitude homossexual que o levou a ter como
discípulos rapazes que considerava mais pela beleza do que pelo talento. Entretanto,
a incrível possibilidade de criação artística proporcionou a Leonardo uma válvula de
escape para seu desejo sexual.
O próprio Freud, depois de toda a sua psicobiografia deixa claro alguns
pontos importantes. Primeiro que a psicanálise, mesmo que podendo apontar
detalhes que passariam desapercebidos por um biografo comum, tem seus limites
neste campo, já que é à realidade psíquica a que é dada maior relevância. Outro
ponto que Freud faz questão de frisar é o da impossibilidade de se traçar uma
causalidade intrínseca entre fatos ocorridos e um resultado na personalidade. As
conseqüências dos acontecimentos de uma vida são imprevisíveis. Entretanto
acredita que Mona Lisa só poderia ter sido pintada por um homem que tivesse
passado pelas experiências infantis que Leonardo da Vinci passou, o que não
significa dizer que necessariamente qualquer um que tenha passado por
experiências semelhantes viraria um Leonardo da Vinci. Vale o a posteriori.
Em “Dostoievski e o parricídio” Freud outra vez se coloca no lugar de
psicanalista do artista. Ele faz uma extensa análise de Dostoievski, que vai muito
além da perspectiva artística. Vou me deter nas postulações de Freud que são
tecidas pelo entrecruzamento dos fios da arte com a vida. Para isso é necessário um
pequeno sumário da vida do autor.
O escritor russo Fiodor Mikhailovitch Dostoievski nasceu em Moscou em 30
de outubro 1821 e morreu em São Petersburgo em 1881. Seu pai Mikhail era
médico e sua mãe Maria Fiodorovna morreu tuberculosa quando ele tinha apenas 7
22 Freud, S. – “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância” (1910) p. 113.
18
anos, ficando ele e o irmão Mikhail, um ano mais velho, aos cuidados exclusivos do
pai.
O pai foi assassinado por dois servos de sua propriedade rural em Daravoi,
quando o escritor tinha 18 anos. Era um homem rabugento e infeliz, com tendências
depressivas; enviara os filhos, dois anos antes, para a Academia de Engenharia
Militar, em São Petersburgo.
Em 1849 Dostoievski é preso por participar de reuniões subversivas na casa
de um agitador profissional, Petrachevski. Condenado à morte, é submetido,
juntamente com seus companheiros, a fuzilamento simulado, cuja impressão deixará
registrada em O Idiota. Deportado para a Sibéria cumpre 9 anos de exílio. Este
acontecimento mudou o seu posicionamento político. Até então ele era socialista e a
partir disso passou a ter proximidade com Czar. Tinha uma relação forte com a
religião, porém, pensava que o catolicismo tinha traído Cristo, deixando-se envolver
com o poder temporal.
O reconhecimento definitivo de Dostoievski como escritor universal surge
somente depois dos anos 1860, com a publicação dos grandes romances: O Idiota e
Crime e Castigo e seu último romance, Os Irmãos Karamazov.
Freud divide a rica personalidade de Dostoievski em quatro facetas: o artista
criador, o neurótico, o moralista e o pecador. Acredita que a pulsão destrutiva, muito
intensa em Dostoievski, que poderia tê-lo transformado em criminoso, foi dirigida
para a sua própria pessoa, encontrando expressão no masoquismo e no sentimento
de culpa. Os traços sádicos permaneceram em sua irritabilidade e intolerância,
possíveis de serem percebidos em seus personagens.
Dostoievski era considerado epilético. Freud diz que é altamente provável que
sua epilepsia tenha sido um sintoma de sua neurose, razão pela qual deva ser
classificada como histeroepilepsia, ou seja, como histeria grave. Acredita que suas
crises iniciaram-se na infância, com aspecto brando, e que só aos 18 anos, com a
morte do pai, assumiram a forma epilética. Freud propõe que crises como estas
significam uma identificação com a pessoa morta, estando ela realmente morta ou
alguém que se queria ver morto. O último caso é mais significativo. No caso de
Dostoievski, a crise (histérica) possui valor de uma auto punição por um desejo de
morte contra um pai odiado e ao mesmo tempo é a expressão da identificação
19
paterna por parte do eu, satisfazendo tanto a pulsão masoquista do eu, quanto a
punitiva do supereu.
O artista Dostoievski é comparado por Freud a Shakespeare em sua
grandeza. Diz ser Os Irmãos Karamazov o mais grandioso romance jamais escrito e
completa: “Diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem que depor
suas armas”.23 Entende que o romance apresenta a situação edipiana no ponto
central. O pai era detestado pelos filhos por ser muito opressor e, além disso, em
relação a um dos filhos Dimitri, um poderoso rival quanto à mulher que desejava.
Tanto que este não esconde sua intenção vingar-se. Quando o pai é morto, Dimitri é
condenado. Porém ele é inocente, foi o outro irmão que cometeu o crime. A frase, ‘A
psicologia é uma faca de dois gumes’, usada no capítulo do julgamento ficou famosa.
É uma expressão usada sempre que uma análise psicológica apressada, superficial,
ou que atenda a determinada explicação provável, leva a deduções errôneas. No
Romance, o verdadeiro assassino do pai é o filho epilético. Freud diz que é como se
Dostoievski quisesse confessar que o epilético que havia nele era um parricida.
Freud analisa a relação de Dostoievski com o jogo, que era muito intensa,
como sendo mais uma forma de expressão de seu complexo de culpa. Ele não
descansava até perder tudo, e por mais que se humilhasse e pedisse perdão,
recomeçava a jogar. Só quando realmente nada mais tinha, com o sentimento de
culpa já satisfeito, se permitia escrever e criar obras primas. Afundado em dívidas,
para tentar pagá-las, tinha de escrever um livro atrás do outro, pedindo
adiantamentos a seus editores. Para acelerar o processo de escritura, contratou
uma estenógrafa Anna Grigorievna e, em vinte e seis dias, Dostoievski ditou-lhe uma
de suas obras-primas, O Jogador. A seguir, pediu Anna Grigorievna em casamento.
Permaneceram juntos até a morte do escritor.
Uma curiosidade interessante sobre a análise de Freud sobre Dostoievski é
que ele apesar de confessar sua enorme admiração pelo artista, não tem nenhuma
paciência nem apresso por sua personalidade, não tolera sua natureza patológica24.
23 Freud, S. – “Dostoievski e o parricídio (1928 (1927))” p. 205. 24 idem, ibidem p. 83
20
Freud nestes dois textos realizou uma profunda análise psicológica dos
artistas Leonardo da Vinci e Dostoievski. Apresentei o recorte que pareceu mais
pertinente para clarear o vínculo de mão dupla entre artista e obra presente nas
psicobiografias freudianas.
2. Realidade na arte.
Freud, no texto “O interesse científico da psicanálise” (1913) afirma:
“A arte é uma realidade convencionalmente aceita, na qual, graças à ilusão artística, os símbolos e os substitutos são capazes de provocar emoções reais. Assim, a arte constitui um meio caminho entre uma realidade que frustra os desejos e o mundo de desejos realizados da imaginação – uma região em que, por assim dizer, os esforços de onipotência do homem primitivo ainda se acham em pleno vigor”.25
Este fragmento de texto é um ponto de partida para a investigação das
formas de abordagem, presentes na obra de Freud, da relação da arte e do artista
com a realidade.
Freud, no texto “Escritores criativos e devaneios” faz a afirmação: “A antítese
de brincar não é o que é sério, mas o que é real”.26 É possível, através desta
afirmação, em conjunto com o corpo teórico do texto, fazer reflexões sobre o que
parece estar sendo indicado: que a realidade não deve ser levada mais a sério do
que a brincadeira, pois a brincadeira está vinculada à fantasia do sujeito e é uma
interpretação da criança de sua realidade. Enfim, o que importa sublinhar é a
operação efetuada por Freud ao tratar como séria a brincadeira, que banhada na
fantasia expressa a própria realidade psíquica da criança. Fantasia e realidade
psíquica se equivalem. É na travessia edípica, no momento do recalque originário e
entrada no simbólico que se instaura a fantasia.
Freud aproxima o ‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’, estabelecendo que a única
diferença é que na brincadeira a criança constitui conexões com coisas visíveis do 25 Freud, S. – “O interesse científico da psicanálise” (1913), p. 222 26 Freud, S. – “Escritores criativos e devaneios” (1908) p.149
21
mundo real. Lança mão da linguagem, recordando palavras alemãs. Nos conta que
a palavra ‘Spiel‘ (peça) dá nome às formas literárias que são necessariamente
ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Relata que as palavras
‘Lustspiel‘ ou ‘Trauerspiel‘ (comédia e tragédia) significam literalmente, ‘brincadeira
prazerosa’ e ‘brincadeira lutuosa’ e que os atores são chamados de ‘Schauspieler’
que pode ser traduzido por ‘jogadores de espetáculo’.
É nesse mesmo texto, calcado na afirmação dos próprios escritores de que
eles não são tão diferentes da maioria das outras pessoas, que Freud constrói a
hipótese de que o elo entre o artista e o homem comum está na atitude da criança
ao brincar, onde aparecem os primeiros traços de imaginação criativa. Freud
compreende que o desejo que determina o brincar da criança é o de tornar-se adulto.
Desejo que é regido pela ilusão de que o mundo adulto irá proporcionar a realização
de suas fantasias. O artista, por sua vez, já não possui mais essa ilusão e, através
da criação artística, empreende uma realização imaginária. A criança ao brincar se
comporta como um artista que reedita a realidade da forma que melhor lhe agrada.
Tanto um quanto outro leva muito a sério essa brincadeira, nela investindo muita
emoção. Ao mesmo tempo, sabem que tudo não passa de um acordo momentâneo
de insanidade, já que realidade está presente, mesmo que em suspenso.
A criança no jogo “agora eu era...” (como na música de Chico Buarque),
promove um exercício mental de sentir ser algo que sabe que não é na realidade,
assim como o ator ao representar e a platéia que, em catarse com o personagem,
vive o seu drama.
O devaneio aparece na adolescência em substituição à brincadeira e perdura
a vida toda. Ele também é determinado por desejos. Porém, por serem as fantasias
motivadoras de cunho erótico-ambiciosas, os devaneios são escondidos e velados,
sentidos como vergonhosos. Ficar a devanear não é bem aceito, é considerada uma
‘atitude infantil’, se espera de um adulto que ele possa se inserir e conquistar seu
espaço no meio social.
A partir da premissa de que as forças motivadoras da fantasia são os desejos
insatisfeitos Freud estabelece que toda fantasia é a realização de um desejo. Assim,
tanto os sonhos noturnos quanto os devaneios são realização de desejos. A nossa
espécie, embora pertença ao reino animal, possui uma diferenciação, uma forma
22
bastante peculiar de estar no mundo. Por ser pulsional (Trieb) e não instintual
(instinkt) o objeto, suposto por nosso psiquismo como alvo, como aquilo que nos
satisfaria por completo, é aquilo mesmo que foi para sempre perdido, não existe. O
objeto perseguido pela pulsão é chamado por Freud de das Ding, a Coisa.
Através da análise dos fenômenos clínicos ligados à repetição, os sonhos
traumáticos e o brincar infantil, Freud, em 1920 introduz o conceito de pulsão de
morte, representada pela insistência da pulsão em sua busca continuamente não
atendida de uma satisfação absoluta. A força da pulsão visa a anulação radical das
tensões internas vividas pelo organismo vivo e pelo psiquismo 27. A fantasia interfere
nessa exigência imperiosa da pulsão. A partir da entrada da fantasia inconsciente, a
pulsão vai se abrir em duas vertentes, a da pulsão de morte propriamente dita e a da
pulsão sexual que é regida pelo princípio de prazer e dominada pela fantasia. O que
nos leva a perceber que o desejo é a pulsão que foi enquadrada, emoldurada por
uma determinada fantasia, ou seja, todo desejo é fundado na fantasia. Como
demonstra Jorge:
“A pulsão é uma radical exigência de satisfação exercida pela pressão imperiosa de sua força constante, a libido. E, nesse sentido, podemos afirmar que a fantasia é uma das formas privilegiadas de satisfação da pulsão. Insistentemente destacada por Freud, a onipresença da fantasia em nossa vida psíquica, desde os mais banais devaneios (fantasias conscientes) do cotidiano até o sonho – pois o núcleo do sonho é constituído pela fantasia inconsciente – dá provas da contínua busca de satisfação a que a pulsão impele nosso aparelho psíquico. A fantasia é o efeito mais imediato do fato de haver insatisfação – constante – da pulsão, é a ela que recorremos continuamente na tentativa de apaziguar um pouco a radical demanda de satisfação da pulsão.”
Em “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens”, 28 Freud
apresenta a arte como aquela que, através do recurso estético, por um lado
proporciona que o sujeito tenha contato com fantasias que de outra forma seriam
inaceitáveis ou no mínimo desagradáveis e, por outro, trata este mesmo recurso
estético como o que distorce a realidade, não a apresentando ‘tal como é’. Diz Freud: 27 Jorge, M.A.C. – “A Pulsão de Morte” Aula Inaugural proferida no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais Belo Horizonte, 21 de fevereiro de 2003. 28 Freud, S. – “Um Tipo Especial De Escolha De Objeto Feita Pelos Homens” (1910).
23
“Os escritos estão submetidos à necessidade de criar prazer intelectual e estético, bem como certos efeitos emocionais. Por essa razão, eles não podem reproduzir a essência da realidade tal como é, (...) eles podem demonstrar apenas ligeiro interesse pela origem e pelo desenvolvimento dos estados psíquicos que descrevem em sua forma completa. Torna-se, pois, inevitável que a ciência deva, também, se preocupar com as mesmas matérias (...) muito embora seu trato seja mais tosco e proporcione menos prazer”.29
Kon ressalta em seu livro que há em Freud uma profunda ambigüidade,
quando este trata da possibilidade do artista, através de sua arte, retratar a realidade.
A autora nos diz que em “O Mal Estar na civilização” Freud equipara a arte a uma
consolação fugidia, contrária à ‘prática cirúrgica’ da psicanálise, esta a serviço da
realidade. A autora lembra que em “O estranho” o artista é dito como aquele que tem
“função insidiosa e mistificadora, papel contrário ao do psicanalista que trabalharia,
pautando-se nas forças das luzes, para alcançar a verdade.”30
Entretanto, quando relata que a arte oferece ‘satisfações substitutivas’ que
são ilusões, em contraste com a realidade, Freud ressalta que essas ilusões, graças
ao papel que a fantasia assumiu na vida mental, não se revelam ‘menos eficazes
psiquicamente’31.
Jorge32corrobora esta visão recordando que o que caracteriza as ilusões é
elas serem derivadas de desejos humanos e por isso não necessariamente falsas ou
em contradição com a realidade. Ele nos relembra a idéia de Freud de que uma
ilusão não é necessariamente um erro33.
Freud 34 afirma que quando um homem não consegue transformar em
realidade os seus intuitos na vida, seus ‘castelos no ar’, mas possui ‘preciosos dons’
artísticos, pode transformar suas fantasias não em sintomas, mas sim em criações
artísticas. Desta forma, ao invés de se instalar a neurose, pode-se reatar através da
arte ligações com a realidade. Se um artista for uma pessoa que, por qualquer razão, 29 idem, ibidem. 30 Kon, M. N. – “Entre a psicanálise e a arte” in A invenção da vida, arte e psicanálise. (Sousa, E. A. L. e Tessler, E. e Slavutzky, A. orgs.), Porto Alegre: Artes e Oficios, 2001 31 Freud, S. – “O Mal Estar na Civilização” (1930 [1929]) Parte II vol. XXI 32 Jorge, M.A.C. – “Les quatre dimensions du réveil: rêve, fantasme, délire, illusion”, in Didier-Weill, A. (org.), Freud et Vienne, Ramonville Saint-Agne, Érès, 2004. 33 Freud, S., “O futuro de uma ilusão”, vol. XIX, p.30. 34 idem, “Cinco lições de Psicanálise” (1909) vol. XI
24
não dispõe da determinação necessária para travar os embates que a vida impõe,
seus dons artísticos o possibilitarão a realizar seus desejos, mesmo que apenas no
registro da imaginação, o livrando de ser somente um homem fraco. O que nos faz
inferir que Freud está dizendo que, se alguém tem algum tipo de inadequação ao
mundo e tem dotes artísticos, isso facilitará sua inserção neste mundo, e não que
todos os artistas são loucos ou inadaptados.
O artista como alguém que, pela arte, sabe encontrar o caminho de volta a
uma verdade de novo tipo é apresentado de forma incipiente na “Conferência XXII –
Os Caminhos da Formação dos Sintomas35, sendo aprofundado em outros dois
textos: “Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental” e “Um
Estudo Autobiográfico”.36 Este é um dos momentos da relação de Freud com a arte
em que é apresentada uma saída particularmente instigante. Parece enfim afirmar o
que está esboçado em toda a sua obra quando versa sobre a arte, que a discussão
da criação artística em sua relação com a realidade traz obrigatoriamente a questão
da realidade psíquica e também permite pensar as aproximações entre esta e os
processos de criação do artista. Procedendo desta forma, procurando entender o
mecanismo da fantasia a partir da ficção, Freud estabelece entre psicanálise e arte o
ponto que Tânia Rivera37 acredita ser cardeal: o processo da criação servir para
colocar em questão o funcionamento psíquico, chegando a investigar as condições
de alcance do próprio trabalho analítico. A arte seria, neste momento, um foco de luz
iluminando os processos psíquicos a serem estudados pela psicanálise.
3. A Arte ensina à psicanálise.
É interessante que Freud, em sua primeira apreciação da arte como algo a
ser estudado38, faz referência à peça Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare.
(ato 5, cena 1):
35 idem, “Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise” (1916-17 [1915-17]), Vol. XVI p. 419 36 idem, “Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental” (1911) e em “Um Estudo Autobiográfico” (1925 [1924]). 37 Rivera, T. op. cit. 38 Masson, M. – op. cit p.252
26
de surpreender se tivéssemos mais a aprender sobre lapsos de língua com
escritores criativos, do que com filósofos e psiquiatras”.43
A antítese entre a técnica sugestiva e a analítica é ancorada por Freud na
mesma idéia que Leonardo da Vinci resumiu, com relação às artes44, nas fórmulas
per via de porre e per via di levare. O artista faz uma diferenciação entre a pintura e
a escultura, ao sustentar que na pintura se deposita sobre a tela partículas coloridas
que antes não estavam ali (per via de porre) enquanto na escultura retira-se da
pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida (per via di levare).
Freud identifica a sugestão com a via de porre, não se importa com a origem, a força
e o sentido dos sintomas patológicos, deposita algo – a sugestão. Acredita que a
terapia analítica deva operar per via di levare.
A arte se faz presente de forma constante nos estudos de Freud. Porém, a
maneira acima citada, de estar à frente, indicando à psicanálise suas descobertas,
está especialmente evidente em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen . Texto em
que Freud tece comparações entre a ciência psiquiátrica e a arte, sobre as
possibilidades, efeitos e entendimentos que ambas têm do mental, mais
especificamente no sonho e no delírio45. De saída Freud autoriza a arte a falar sobre
os desvios da saúde mental, defendendo a possibilidade do tratamento poético de
um tema psiquiátrico. Confere ao autor um saber sobre o delírio que escapa à
ciência, ou melhor, relata que à ciência falta o reconhecimento do inconsciente, sem
o qual não é possível nenhum entendimento dos fenômenos psíquicos. Freud
considera a arte sua aliada, ela expõe artisticamente o mesmo que ele afere em sua
pesquisa clínica.
“Entre as precondições constitucionais e hereditárias de um delírio, e as criações deste, que parecem emergir prontas, existe uma lacuna não explicada pela ciência — lacuna esta que achamos ter sido preenchida pelo nosso autor. A ciência ainda não suspeita da importância da repressão, não reconhece que para explicar o mundo dos fenômenos psicopatológicos o inconsciente é absolutamente essencial, não procura a
43 Freud, S. – “Conferências introdutórias sobre psicanálise” (1916-1917 [1915-1917]) Conferencia II Parapraxias. in: CD Rom 44 idem, “Sobre a psicoterapia” (1905 [1904]). 45 Idem, “Delírios e Sonhos na Gradiva de Jansen” (1907 [1906]).
27
base dos delírios num conflito psíquico, e nem considera seus sintomas como conciliações. Acaso nosso autor ergue-se sozinho contra toda a ciência? Não, não é assim (isto é, se eu puder considerar como científicos os meus próprios trabalhos), pois já há alguns anos — e, até bem pouco tempo, mais ou menos sozinho — eu mesmo venho defendendo todos os princípios que aqui extraí da Gradiva de Jansen, expondo-os em termos técnicos”.46
4. O processo da criação artística olhado pela psicanálise
Neste item irei apresentar um modo de relação entre arte e psicanálise que
não foi especificado a partir do Rascunho N, o qual orientou os estudos das outras
três faces descritas anteriormente. Foi importante inseri-lo, pois o processo da
criação artística é olhado pela psicanálise em diversos textos de Freud.
Freud em muitos momentos recuou na tarefa de entender os ‘enigmáticos’47
dotes artísticos48. Particularmente em relação à música Freud se esquivou quase
que completamente de qualquer parecer. Relata não conseguir entender a que deve
o efeito provocado pela música, razão pela qual explica sua dificuldade de obter
qualquer prazer com ela 49 . Só volta a falar de música nas “Conferências
Introdutórias”,50 onde inicialmente propõe que as melodias que surgem na mente
inesperadamente são determinadas por uma seqüência de idéias à qual pertencem,
sem que estas sejam conscientes, e que estas estão correlacionadas com a letra da
música. Percebe, porém, que para pessoas ligadas à música o conteúdo musical da
melodia pode estar decidindo seu surgimento e acaba por confessar não poder ter
maior entendimento sobre esta questão por não ter proximidade com pessoas que
mantém estreita relação com a música.
É também nas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise que Freud faz
sua única referência, nas obras completas, ao cinema. Foi em 1895, na pré-história
da psicanálise que o cinema foi criado. Em 1916 o cinema ainda era mudo, o cinema
46 idem, ibidem p. 59 47 idem, “Cinco Lições De Psicanálise” (1910 [1909]) Quinta Lição p.46 48 Para citar algumas referências: “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância” (1910) “Uma breve descrição da psicanálise” (1924 [1923]) “Um estudo autobiográfico” (1925 [1924]). 49 Freud, S. – “O Moisés de Michelangelo” (1914). 50 idem, Conferências Introdutórias sobre psicanálise (1916-17 [1915-17]) parte II – Sonhos (1916 [1915-16]) Conferência VI - Premissas e técnica de interpretação.
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falado só apareceu em 1920. Era extremamente popular, sendo assistido em salas
para mais de mil espectadores. É a essas circunstâncias que Freud se refere ao
relatar a dificuldade que os parentes dos pacientes têm em aceitar as intervenções
psicanalíticas. Ele critica os “desinformados parentes” que “jamais deixam de
expressar suas dúvidas quanto a saber se algo não pode ser feito pela doença que
não seja simplesmente falar”. Freud nos diz que eles apenas se impressionam com
“coisas visíveis e tangíveis — preferivelmente por ações tais como aquelas vistas no
cinema”. 51
Entretanto, Freud não se privou de analisar o recurso da arte como forma de
expressão. Em muitos textos ele analisa o processo da criação. “Escritores criativos
e devaneios” – texto que se mantém como referência para quem quer estudar as
relações entre arte e psicanálise – Freud se ocupa em entender o que determina ao
escritor criativo sua escolha de material e os efeitos desta no leitor. O que o auxilia a
talhar esta construção teórica é o desvelamento do fantasiar, onde procura entender
o mecanismo da fantasia a partir da ficção.
Freud repete a fórmula, já utilizada no estudo de sonhos, para a compreensão
da construção da fantasia e do devaneio, validando-a também para o processo de
criação do escritor literário. A fórmula estipula que há três tempos neste trabalho
mental – alguma ocasião motivadora no presente desperta um dos desejos
principais do sujeito, que retrocede à lembrança de uma experiência anterior
(geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando um devaneio ou
fantasia, podendo proporcionar em um artista a produção de uma obra literária. Ao
finalizar o caminho da criação, Freud constrói uma das frases mais bonitas deste
trabalho: “Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do
desejo que os une”.52
No intuito de consolidar o vínculo proposto entre o devaneio e a criação
literária, Freud estabelece uma distinção: separa os escritores que utilizam temas
preexistentes daqueles que parecem criar o próprio material. Nos primeiros, através
das criações mais populares, assemelha o herói – aquele que aparece protegido
51 idem, ibidem. Conferência I p. 29. 52 idem, “Escritores criativos e devaneios” (1908[1907]) p. 153.
29
pela providência divina – à ‘sua majestade o ego’ tal como pode ser reconhecido nas
fantasias. Para estes autores que trabalham em obras imaginativas que não são
suas criações, mas reformulação de material preexistente, Freud ressalta que,
mesmo assim, o escritor conserva grande independência tanto na escolha do
material quanto na alteração do mesmo. Chega a postular que os mitos possam ser
“vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras”.53 Quanto
aos romances menos ingênuos, como por exemplo os ‘excêntricos’e os ‘romances
psicológicos’, Freud diz que as mesmas estruturas que sustentam a história podem
ser observadas nos devaneios. Ele prega uma proximidade entre o herói que os
escritores gostam de criar, o herói que as crianças vivem em suas brincadeiras e a
atitude do espectador/leitor em catarse com esse herói.
Para finalizar o enlace entre os devaneios e a literatura, Freud se põe a
pensar de que modo as mesmas fantasias que causam repulsa podem, quando
transformadas em obras de arte, causarem tamanho prazer. Para esta questão ele
propõe três vias: a primeira, já pincelada acima, diz respeito à obra literária que,
sendo irreal, possibilita que o leitor sinta o que é proibido na realidade; a segunda
via é a capacidade que o escritor tem de suavizar o caráter de seus devaneios
egoístas por meio de alterações e disfarces, nos subornando com o prazer estético;
a terceira via vem completar o que foi alinhavado nas duas ramificações expostas.
Freud propõe que, através do ‘prêmio de estímulo’ ou do ‘prazer preliminar’ – aquele
conseguido pelo recurso formal utilizado pelo autor – ocorre a liberação de um
prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas: as obras
artísticas liberam o leitor/espectador para se deleitar com seus próprios devaneios,
livre da culpa e da vergonha.
“Personagens psicopáticos no palco” é outro texto onde a criação artística,
particularmente a literária, é profundamente investigada54. O texto foi redigido no
início do século passado, mas só foi publicado em 1942, após a morte de Freud. A
partir da poética de Aristóteles, ele relata como sendo a finalidade do drama
despertar “terror e comiseração”, produzir a ‘purgação dos afetos’ e o ‘sofrimento
53 idem, ibidem p. 157. 54 idem, “Personagens psicopáticos no palco” (1942 [1905 ou 1906])
30
solidário’ através da catarse. Aristóteles em sua Poética diz: “A tragédia (...)
despertando a piedade e temor, tem por resultado a catarse dessas emoções”.55 Por
meio da identificação é dada ao espectador a possibilidade de ser um herói. A trama
oferece fontes de prazer, pois o desabafo dos afetos resulta em gozo pelo alívio da
descarga e pela excitação sexual concomitante.
Freud faz um passeio por vários estilos e fornece análises próprias a cada um
deles. Oferece leituras para as construções dramáticas da dança, da poesia lírica,
da poesia épica, do drama (incluindo o psicológico), da comédia e da tragédia;
dentro desta última faz subdivisões diferenciando a tragédia de rebelião da tragédia
social e da tragédia de caracteres. Vencido pelas infindáveis combinações entre os
diversos estilos, Freud afirma que as possíveis combinações entre estas são “uma
variedade quase infinita de situações de conflito – tão infinita quanto os devaneios
eróticos dos seres humanos”.56
Nesse texto ele está preocupado em entender quais ferramentas literárias são
utilizadas pelos artistas para que suas obras produzam determinados efeitos no
espectador e, como o escritor as manipula em sua arte para evitar que se instale o
sentimento de repugnância ou qualquer tipo de resistência à obra. No texto “Alguns
tipos de caráter encontrados no trabalho analítico” Freud, para tentar entender como
o escritor consegue despertar simpatia por seu herói, aponta que Shakespeare na
peça “Ricardo III” promove um tipo de cumplicidade do público com o personagem
através da artimanha de mostrar o personagem como alguém a quem já
aconteceram muitas coisas ruins e por isso teria o direito de fazer o mal, justificando
assim atos que seriam condenáveis e desviando a reflexão crítica do público. Freud
relata que há uma ampliação do que pode ser encontrado em nós mesmos, a
exigência de reparação por ferimentos ao nosso narcisismo.
“ A lei de economia poética exige que seja esta a maneira de apresentar a situação, pois esse motivo mais profundo não poderia ser explicitamente enunciado. Tinha de permanecer oculto, afastado da fácil percepção do espectador ou do leitor; do contrário, teriam surgido sérias resistências,
55 “Poética de Aristóteles” in: Coleção os Pensadores São Paulo. Editora Nova Cultural Ltda, 2000. capítulo VI p.43. 56 Freud, S. “Personagens psicopáticos no palco” (1945[1905 ou 1906]) p. 292.
31
baseadas nas emoções mais aflitivas, as quais talvez pusessem em perigo o efeito do drama”.57
Em sua análise das manobras do escritor, o “Estranho” é um texto exemplar.
Freud se põe a pensar como o escritor consegue produzir a sensação de
estranheza, dando forma e contorno a esse sentimento para que ele não se torne
insuportável, e que, por outro lado, também não se dissipe precipitadamente. Um
dos artifícios citados por Freud é o autor não deixar claro ao leitor em que terreno
ele está sendo inserido, se fantástico ou real. Diante de situações inusitadas, é a
insegurança produzida por esta dúvida que causa estranheza. Quando desde o
início é esclarecido em que realidade estamos inseridos não há produção do
sentimento do estranho. Quanto mais realista for uma história, mais a sensação
estranha vai ocorrer quando algo fora do comum acontecer. Freud nos diz que para
o terror não se aplica a mesma regra. Geralmente desde o início se sabe que se
está no terreno do irreal. O estranho é um afeto diferente do terror. Ele ilude o
espectador que espera a realidade, mas se depara com o fantástico.
Fazendo um giro extraordinário Freud nos diz que o estranho é o familiar. O
estranho é o que toca e revive os resíduos, ainda presentes em nós, de complexos
infantis e crenças primitivas. O elemento que amedronta é algo que deveria
permanecer recalcado, mas que retorna: o animismo, a magia e bruxaria e poderes
especiais, a onipotência dos pensamentos, a atitude do homem para com a morte, a
repetição involuntária e o complexo de castração. Freud acredita que a experiência
estranha ocorre quando os complexos infantis recalcados ou crenças primitivas
superadas parecem confirmar-se e revivem por meio de alguma impressão. E é essa
a arma do autor para alcançar o efeito do estranho, ele maneja com alguns desses
elementos. O escritor pode também liberar o leitor da sensação do estranho através
de alguns artifícios, pode, por exemplo, não induzir a identificação do leitor com o
personagem que sofre a ação que provoca estranheza. Pode também provocar o
cômico, proporcionando ao espectador conhecimento de informações relativas à
57 idem, “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916) II Os arruinados pelo Êxito p. 372.
33
com Körner descoberta por Otto Rank. Diz Freud “...a criação poética deve exigir
uma atitude exatamente semelhante”. 60 e transcreve o trecho da carta em que
Schiller responde a uma crítica por sua suposta baixa produtividade.
“O fundamento de sua queixa parece-me residir na restrição imposta por sua razão a sua imaginação. Tornarei minha idéia mais concreta por meio de um símile. Parece ruim e prejudicial para o trabalho criativo da mente que a Razão proceda a um exame muito rigoroso das idéias à medida que elas vão brotando — na própria entrada, por assim dizer. Encarado isoladamente, um pensamento pode parecer muito trivial ou muito absurdo, mas pode tornar-se importante em função de outro pensamento que suceda a ele, e, em conjunto com outros pensamentos que talvez pareçam igualmente absurdos, poderá vir a formar um elo muito eficaz. A Razão não pode formar qualquer opinião sobre tudo isso, a menos que retenha o pensamento por tempo suficiente para examiná-lo em conjunto com os outros. Por outro lado, onde existe uma mente criativa, a Razão — ao que me parece — relaxa sua vigilância sobre os portais, e as idéias entram precipitadamente, e só então ela as inspeciona e examina como um grupo. — Vocês, críticos, ou como quer que se denominem, ficam envergonhados ou assustados com as mentes verdadeiramente criativas, e cuja duração maior ou menor distingue o artista pensante do sonhador. Vocês se queixam de sua improdutividade porque rejeitam cedo demais e discriminam com excessivo rigor”.61
O que gostaria de ressaltar, utilizando este trecho, é que Freud equipara a
associação livre, ‘a regra fundamental da psicanálise’ – método que permite o sujeito
do inconsciente vir à baila – ao processo de criação.
5. O mito do nascimento da arte
Freud62 constrói o mito do nascimento da arte a partir de um ensaio sobre
“Orfeu” de Salomon Reinach – que acreditava que os primitivos gravavam figuras
nas cavernas mais para evocar do que para relatar acontecimentos ou para agradar
aos membros do clã. Freud acredita que a arte iniciou-se nesta função, que
originalmente a arte continha intuitos mágicos de evocação através de suas criações.
60 idem, Interpretação de sonhos (1900) Capítulo II vol.IV - O Método De Interpretação Dos Sonhos: Análise de um sonho modelo. p.124 61 idem, ibidem p. 125. 62 idem, “Totem e Tabu” (1912 – 13).
34
Através da arte poder-se-ia, por uma coação mística, exercer a vontade do homem
sobre outras coisas ou mesmo sobre outras vontades.
O ‘mito científico’ do pai totêmico é retomado por Freud quase dez anos mais
tarde e a história do parricídio fundante da estrutura da humanidade é recontada 63.
Na horda os filhos mataram o pai primevo mas não puderam, nenhum deles, tomar
seu lugar. A comunidade totêmica foi constituída assim por irmãos com direitos
iguais e com muitas restrições, tabus, que visavam preservar a lembrança do pai
morto. Algumas disputas se deram até que foram formadas várias famílias que
tinham como chefe, cada uma delas, um macho. Porém, longe do poder do pai
assassinado, estes machos tinham seus direitos limitados por tabus e pelo exercício
de poder dos outros chefes das outras famílias. Freud crê que é neste contexto que
surge o primeiro poeta épico. De forma distorcida o poeta ilustra a história do pai
primevo criando o mito heróico. É um herói que na trama mata sozinho o monstro
totêmico, ou seja, o pai. O poeta, desta forma, proporciona aos que assistem a
epopéia o revivescimento do parricídio, o mesmo que mais tarde também será
celebrado nos rituais cristãos.
Em “Totem e Tabu” Freud nos oferece algumas semelhanças entre a tragédia
grega e a refeição totêmica. Conta-nos que inicialmente só havia um ator, o herói,
posteriormente foi constituído o coro e só mais tarde ainda foram incluídos outros
personagens. Porém a essência da tragédia permanece inalterada, o herói deve
sofrer carregando o fardo da ‘culpa trágica’ em sua luta contra a tirania. Freud nos
apresenta então sua dedução original: o herói deve sofrer porque ele é o pai primevo
e o coro, que na trama aparece para adverti-lo, representa os filhos. O crime de
rebeldia imputado ao herói, pelo qual sofre, pertence na verdade ao coro. Assim,
através de uma distorção que modifica a cena originária, o herói transforma-se no
redentor dos próprios assassinos, o coro, e também o sofredor dos males que ele
mesmo causara. Através desse mito, Freud defende que o princípio da religião, da
moral, da sociedade e da arte converge para o complexo de Édipo.
Depois de apurarmos essas cinco possíveis divisões do pensamento
freudiano acerca da arte, percebe-se o quanto mais cômodo seria optar por uma 63 idem, S. “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921)
35
delas, defendendo-a como sendo a visão de Freud da arte, ou, por outro lado, dizer
que Freud demonstra ser contraditório em relação à arte. Porém, escolho a idéia de
que a arte não se deixa abocanhar por qualquer explicação, por isso mesmo nem
uma das formas de entendê-la, nem todas juntas, são definitivas. Encontramos uma
pista para sustentar essa visão do entendimento da arte por Freud – de que, em
essência, não há uma verdade última – no fato que, em momento nenhum, suas
articulações referentes à arte são expostas anulando alguma outra anterior, e sim
pertencendo a um diferente encadeamento de sua teoria que merece outro tipo de
abordagem.
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em todos. Encarnação do estranho, presença igualmente interna e externa. Ao
mesmo tempo marca e perda. Marco mítico. O Objeto do berro primitivo, sempre
perdido. Pedido, promessa e o que resta a ser satisfeito, sempre. A Coisa fundadora
do desejo, passa a ser reinterpretada, reencontrada em outras coisas. É na falta que
a Coisa é reencontrada e remetida sempre à outra coisa.
Neste momento é necessária a introdução do conceito de objeto a, objeto
causa de desejo, que diferentemente de das Ding, a Coisa, tem uma vertente real,
outra simbólica e uma imaginária 69 . Razão pela qual Lacan o situa, no nó
borromeano, naquela região de interseção dos três registros. Enquanto das Ding é o
objeto da pulsão de morte, a face real do objeto a. Porém nós só temos acesso ao
objeto a em sua vertente simbólica ou imaginária. Como explica Jorge: “...o sujeito
tem seu desejo acionado, na fantasia, em relação ao objeto, ele se liga a esse objeto
através de uma palavra ou de alguma imagem. Mas aquilo que está na base dessa
palavra e dessa imagem é uma falta de palavra, assim como também uma falta de
imagem, que é das Ding”.70
A Coisa será sempre representada por um vazio, nos diz Lacan ao teorizar
sobre a sublimação. O autor retoma a proposta de Freud de que uma neurose
obsessiva seria a caricatura da religião, um delírio paranóico um sistema filosófico
distorcido (posteriormente o aproxima da ciência) e uma histeria uma obra de arte
deformada71 – e propõe que, em toda forma de sublimação, o vazio, como índice da
Coisa, será determinante, permanecendo no centro; sublimar é elevar o objeto à
dignidade da Coisa. Em suas palavras:
“Essa coisa, da qual todas as formas criadas pelo homem pertencem ao registro da sublimação, será sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa – ou, mais exatamente, de ela só poder ser representada por outra coisa”.72
69 Lacan, J. – O Seminário R.S.I.. (1974-75). 70 Jorge, M.A.C. – “A Pulsão de Morte” Aula Inaugural proferida no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais Belo Horizonte, 21 de fevereiro de 2003. 71 Freud, S. – “Totem e Tabu” (1913 [1912 – 1913]) 72 Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.162.
38
Lacan indica que há três modos diferentes de sublimação, três modos
diferentes de se relacionar com o vazio: o da religião, da ciência e da arte.
No caso da ciência é necessário não se incorrer na precipitação de
simplesmente dizer que o que há é a Verwerfung (foraclusão) do vazio. Mesmo
sabendo que isso não é uma inverdade, é necessário maior rigor teórico. Em
“Ciência e verdade” Lacan faz uma proposta radical ao situar como sendo o sujeito
da psicanálise o mesmo sujeito da ciência em sua concepção moderna. Ele afirma
que “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da
ciência”.73 O autor retoma os acontecimentos do século XVII em que Descartes
através do cogito proclama um ‘rechaço de todo saber’, mesmo momento histórico
em que Galileu funda a ciência moderna instituindo uma fenda entre saber e
verdade. O sujeito do inconsciente nasce ali naquele momento cindido. Não haverá
mais, de agora em diante, a Verdade, ela agora valia como algo a ser refutado. Isto
é, a certeza estava para sempre banida, era não-toda. Como diz Elia “o sujeito,
assim abalado, sai de sua toca, desprende-se do fundo indiferenciado em que,
crédulo, se mantinha, para desenhar seu contorno angustiado de dúvidas...”.74 Enfim,
foi a ciência que pela primeira vez tratou o real pelo simbólico. Entretanto, para se
afirmar como um saber, a ciência precisou concretizar conceitos matematizados e
lógicos sobre o real. Desta maneira, acabou por deixar de lado sua descoberta
trazendo para seu centro outros referentes. Assim, o furo real que fora denunciado
pela ciência ficou externo a ela, como algo sabido, porém paralelo.
No caso da religião, baseado no comportamento obsessivo, Lacan diz,
inicialmente, que há algo da ordem da evitação do vazio. Porém, não se satisfaz
com essa explicação e prefere dizer que o que ocorre é um “respeito” a esse vazio.
Esse respeito é traduzido como uma operação de deslocamento (Verschiebung)
Já a arte, para Lacan, caracteriza-se por um certo modo de organização em
torno do vazio75. Vazio que no centro do vaso, a partir da função artística mais antiga
73 Lacan, J. “Ciência e Verdade” (1965), in Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998. p. 871. 74 Elia, L. – “Psicanálise: clínica & pesquisa” in: Clínica e Pesquisa em Psicanálise, (Alberti, S e Elia, L. orgs.) Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 2000. p. 21 75 Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.162.
39
– a do ceramista – é exemplo do mistério da criação76. A arte tem como combustível
esse vazio. O mesmo que a ciência ejetou e a psicanálise colocou em seu centro, a
arte tem no início, no antes dela, como também em seu final, pois que ela não faz
nada além do que expô-lo. Antes do que é escrito pelo autor, o que se tem é um papel vazio. Do pintor
uma tela em branco, do escultor um nada. Há um nada antes da criação artística.
Um nada que incomoda, que pulsa, que insiste. Porém, ao terminar, a obra artística
também não oferece consistência. Quando ela acaba, vira um resto, algo que não
deu conta de dizer a que veio. Leonardo da Vinci passou 4 anos pintando o retrato
de Mona Lisa, a mulher do florentino Francesco Del Giocondo, que o tinha
encomendado. Nunca considerou o quadro terminado e não o entregou 77 . A
percepção de que a obra não diz tudo, que sempre falta algo, parece ser o motivo
que leva o artista a nunca parar de criar, sempre outras obras igualmente
insatisfatórias.
Qualquer objeto, e não algum idealizado, serve para ser elevado à dignidade
da Coisa. Estranhamente, no mesmo momento em que o objeto é elevado à
dignidade da Coisa, é também destituído de sê-la. O objeto artístico “é instaurado
numa certa relação com a Coisa que é feita simultaneamente para cingir, para
presentificar e para ausentificar”.78 A arte presentifica a ausência, expõe a falta, é o
resto exposto que faz restar.
Lacan não tem problemas em concordar que as obras de arte imitam os
objetos que elas apresentam, porém, explica que elas imitam sem representá-los,
elas fazem outra coisa do objeto79. Para melhor explicar essa afirmação lembra
Cézanne e suas maçãs. Quando ele as pinta, faz bem mais do que imitar maçãs,
não deixa de presentificá-las, mas ao mesmo tempo ausentifica-as como maçãs, as
tornando outra coisa. O artista ao criar, renova a relação da arte com o real, faz
surgir o objeto em uma renovada dignidade.
76 idem, ibidem p. 151. 77 Freud, S. – “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância” (1910). 78 Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p.176. 79 idem, ibidem p.175.
40
...Essa coisa “que fala em nós” “...é de falar dela que se trata agora, e a
palavra cabe àqueles que põem a coisa em prática”.80 Por essa razão invoco o poeta:
“E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase.
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa”.81
Esses ensinamentos me encaminharam para esquematizar em quatro sub
itens este capítulo que pretende investigar as concepções de arte em Lacan, a saber:
1º Arte como um Bem; 2º Além do Bem: o Belo; 3º Mais além do Belo: o
Sublime e 4º Elo: A Arte Sinthomática. Estas separações só têm sentido didático.
Apesar de possuírem fundamentos diversos não são nem excludentes e nem
tampouco possui cada uma delas a pretensão de reter o entendimento global da arte.
Proponho que sejam lidas da mesma forma como se olha um caleidoscópio que
transmuta o objeto visto pelo giro que é efetuado.
1º Arte como um Bem
Na primeira dimensão, a do bem, a arte é valorizada mais como produto do
que como expressão. É um objeto a ser comprado, de valor comercial que obedece
às leis de mercado tanto quanto qualquer outro objeto, estando inserido nas
relações de poder dominantes na sociedade. Neste sentido a arte serve ao
tamponamento do desejo, ao engano da satisfação. A arte como um bem de
consumo, usada para ser exercício de poder e prestígio é, no mínimo, contraditória.
Depondo contra si própria, a arte descaracteriza-se em sua essência, já que, em
essência ela comporta o vazio. A expressão flagrante desta dimensão é a do carro
último tipo que pintado em uma fábrica recebe a assinatura de Picasso. Eleva-se o
objeto à dignidade da Coisa ou está se rebaixando a Coisa ao nível do objeto? Tudo
é acessível para quem tem como comprar. Tudo está à venda e a felicidade é
possível, embora custe caro. Princípios da sociedade que perverte a arte moldando-
a ao discurso capitalista.
80 idem, “A coisa freudiana” in: Escritos p.421. 81 Pessoa, Fernando Obra Poética em um volume (1960), Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar S/A, 1998.
41
Se a moral está corrompida, menos ainda estamos submetidos a preceitos
éticos na perspectiva da psicanálise. A ética, estando para além da moral, não
obedece a imposições sociais superegóicas. Aponta para o universal da diversidade,
enquanto que o consumismo globalizado está disfarçado na ideologia do direito de
ser diferente. A sociedade capitalista parece ter se apropriado das formas de
rebeldia possíveis, no comportamento e na arte. Na contemporaneidade a arte
parece tanto virar moda, quanto à moda muitas vezes se intitula arte. Ao contrário de
outros tempos onde se exilavam os rebeldes anti-sociais, hoje se ‘fagocita’ a
expressão revolucionária incorporando-a rapidamente. A fagocitose é a mais forte
arma do capitalismo e junto com ela está a promessa do sucesso fácil que advém da
incorporação.
Não é de hoje que a discussão sobre a crise na arte anima calorosos debates.
Existem várias opiniões acerca do assunto e, embora não vá me deter em cada uma
delas, não posso deixar de, ao menos, citá-las para que tenhamos noção do como
essa discussão marca que há na relação da arte com a sociedade certo
descompasso. Alguns estudiosos da arte defendem que depois dos anos 30 do
século passado nada de tão excepcional ocorreu nas artes, por outro lado há os que
dizem que este julgamento não passa de uma visão moralizante da produção
estética pós-moderna a serviço da manutenção do modelo denunciado pelos
dadaístas. A opinião que defende a idéia de que a arte está passando por um
momento de estagnação se divide: uns atribuem a estagnação à falta de perspectiva
da sociedade da mercadoria, outros acreditam que são as vanguardas políticas e
estéticas, derrotadas entre as guerras mundiais, que se encontram estagnadas.82
Este controvertido assunto certamente daria uma outra pesquisa. De toda forma,
independente de qualquer opinião final que se estabeleça, o fato da discussão existir
82 Jappe, A. – O fim da arte segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Traduzido do espanhol por Iraci D. Poleti. Publicado em alemão in Krisis, nº 15.1(leti. fls5ti. fle Gm)10. estpti. fl nhoti. fll
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já sugere que a arte não pode manter uma relação harmoniosa com a sociedade
capitalista.
A arte na contemporaneidade se debate para livrar-se da incorporação
operada pela sociedade de consumo que visa anular todas as suas tentativas de se
impor. Sem entrar no julgamento a respeito do valor artístico de suas atuais
expressões, o que podemos perceber é que, sob esse conflito, vemos nascer uma
arte que nos presenteia com o ininteligível, como se quisesse nos reimputar o
espaço vazio que parece estar sendo foracluído pela ideologia de mercado. A arte
contemporânea cria objetos que estremecem os conceitos antes aceitos sobre o que
é arte; engendra, mais do que criação, a dúvida, a discórdia, a impossibilidade de
uma categorização consensual da arte; busca, com sua insubordinação, esburacar
as certezas do mestre capitalista83 na tentativa de recolocar a Coisa em posição
central de falta e de se ver livre do enquadramento de ser um bem.
A denúncia da arte é que à falta comum a todos não se responde com um
bem comum, posto que não há. Mesmo que não houvesse a exclusão social, a
felicidade não poderia ser alcançada no próximo shopping center, ou mesmo em
nenhum lugar. A arte opositora, com seus inusitados objetos, parece gritar à
sociedade: vocês que tudo sabem me digam se isto é arte?
O capitalismo, ou mesmo qualquer ideologia política, propõe o bem para
todos. E por isso mesmo se apresenta para o sujeito como uma barreira a seu
desejo.84 A arte não tem como efeito o bem do sujeito, aquele bem para o próximo
que também a psicanálise questiona – o bem concebido como o bem natural, na
busca de uma harmonia a ser reencontrada no caminho da elucidação do desejo. A
psicanálise e a arte, contrariamente às psicoterapias tão em voga na atualidade, não
prometem a quem se entrega a elas o alcance da felicidade através do equilíbrio
emocional e do saber sobre si. Uma psicoterapia tem, de saída, um ideal de
resultado de seu trabalho baseado em um padrão de conduta normativo.
Diferentemente, a psicanálise não oferece nenhuma promessa ortopédica. Querer o
83 Referência à tese de doutorado de Giselle Falbo. “Para que serve? Quanto vale? Reflexões da psicanálise sobre a crise da arte.” UFRJ. 84 Lacan, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p. 266.
43
bem do próximo como se ele fosse você mesmo é um contra senso, já que o anula
como outro. O bem, contradizendo o que o sustenta como ideal moral, não é da ordem do
‘natural’, isto é, ele não responde à necessidade, e sim está ligado à potência de
fazer um bem, em satisfazer. Por isso ele tem relação com o domínio, com a
44
que há uma extinção do desejo, pelo fascínio que o belo causa “pela zona de brilho
e esplendor que o desejo se deixa arrastar”,85 e por outro ele não é totalmente
extinto pela apreensão da beleza, pois aqui não há o objeto, há um enternecimento.
O desejo é capturado, mas não extinto. Permanece suspenso.
O belo é uma estrutura insensível ao ultraje, ele é imaculável. Porém, a
relação do belo com o desejo se dá sob a forma do ultraje: o desejo sofre um
rebaixamento. O belo sustenta sua natureza ao proporcionar um certo
contentamento que acomoda o desejo, mas não o extingue.
A arte bela está em uma fronteira, uma vez que ela ofusca o desejo com seu
brilho e, ao mesmo tempo, estando no último passo frente ao abismo, indica que há
algo além. A bela arte produz um efeito de regozijo a quem a olha. Porém, este é um
efeito singular no sujeito e, mais do que isso, ele é indizível, intraduzível,
intransmissível em totalidade, e por isso mesmo comporta o furo real. O belo é o
que protege e o que expõe, razão pela qual para Lacan o belo está mais perto do
mal do que do bem.86
A arte, paradoxalmente, revela encobrindo de forma singular o universal,
mostrando o impossível na maneira possível de ser mostrado.
Lacan utiliza como exemplo os sapatos universitários de um professor D87,
para demonstrar a função do belo. Despe esses sapatos tanto da universalidade do
universitário quanto da particularidade do dono do sapato, e também tira deste
qualquer impressão de sua ‘natureza de sapato’: marcha, cansaço, etc... O que
resulta é um sapato abandonado, puro. Sobra a presença de uma ausência. Um
mudo que fala. Perde sua objetificação para se transformar em falta. Qualquer
objeto, e não algum idealizado, serve para ter função de belo. Qualquer coisa serve
para ser elevada à dignidade da Coisa, ser um significante pelo qual faz vibrar o
belo.
O amor cortês é resgatado por Lacan como paradigma da sublimação e, mais
particularmente, para formular sua concepção da arte em relação à Coisa. A poesia
cortesã evidencia tanto a beleza como a crueldade do amor. É a principal expressão 85 idem, ibidem. p. 302. 86 idem, ibidem. p. 265. 87 idem, ibidem.
45
literária dos séculos XII e XIII, criação dos trovadores da Provença, região do sul da
França, tendo dali se difundido para o resto da Europa.
Não é um acontecimento apenas localizado na estética, mas é por meio da
arte que se tem notícia dele. Nasceu nas cortes feudais e desenvolveu-se como
sensibilidade mundana, voltado para a valorização sensual do amor e da mulher. Há
no amor cortês uma relação do objeto com o desejo que serve de modelo para
Lacan. O amor cortês proporcionou a promoção do objeto feminino à função da
Coisa. Sua poesia trata da relação entre uma dama casada e um homem celibatário
que se interessa por ela. Adúltero a princípio, essa expressão do amor parece
desforrar-se das servidões matrimoniais. No amor cortês havia a escolha que o
processo dos esponsais proibia, no entanto, o amante escolhia a mulher de outro.
Não a tomava nem a força nem por acordos formais, conquistava-a perigosamente,
vencendo pouco a pouco as suas resistências. Esperava que ela se rendesse, que
lhe cedesse seus favores. Neste jogo, o mais excitante eram os perigos enfrentados
pelos amantes. O amor cortês era uma aventura, permeada por encontros secretos,
discrição, olhares furtivos e pela ânsia de estarem juntos. Os favores eram
alcançados pelo amante lentamente. A mulher considerada uma deusa inacessível
esperava uma prova decisiva para entregar-se, finalmente, ao deleite carnal.
O amor cortês inverte as relações matrimoniais da época, já que o cavalheiro
está em posição de servidão. Neste jogo amoroso é o homem quem serve a dama,
inclina-se perante os seus caprichos, submete-se às provas que ela decide impor-
lhe, sujeitando-se a uma relação de vassalagem perante a senhora amada. De
todas as exigências efetuadas pela dama há uma que traduz claramente a relação
dessa trama amorosa. A submissão ao ‘prazo consentido’ imposto pela dama ao
amante vassalo, é posta à prova. O teste é chamado pelos trovadores de "a
experiência". A dama ordena ao cavaleiro que se deite ao lado dela, em comum
nudez, mas que domine o seu desejo.
Lacan sublinha que o objeto feminino no amor cortês é introduzido pela
privação, pela inacessibilidade. O jogo do amor só ocorre se existir uma barreira
entre os amantes. É uma característica da cena que é imprescindível ao romance.
Não são as qualidades que personalizam a dama. As trovas parecem ter sido, todas,
escritas para a mesma pessoa. O pressuposto que marca a mulher é o de estar
46
barrada àquele amor. 88 Não é que o amor cortês prescinda da satisfação, a questão,
mais precisamente, é que ele se organiza na não satisfação. A instituição da falta na
relação com o objeto é que constitui o amor ideal.89 Isto é, a dama está no lugar de
das Ding e é sua falta que move o sujeito. Mais do que isso, a dama (objeto
imaginário) está encobrindo a falta (das Ding) com sua ausência (objeto a). Indo
mais além, essa falta encoberta pela ausência é, enfim, revelada, via sublimação,
pelo artista em sua poesia.
Com a poesia do amor cortês fica clara a articulação que Lacan faz da
relação do belo com o desejo na arte em que a “beleza é o último anteparo ao
real”.90
3º Mais além do Belo: o Sublime
Se para além do bem está o belo, para além do belo está o sublime, como dá
a entender Ponce91. A antítese clássica entre o Belo e o Sublime pertence à filosofia.
Porém o Sublime é um termo literário associado ao êxtase e à criação poética. Foi
originalmente talhado por Longino92 como efeito produzido pelo estilo de um orador
ao comover sua platéia. Este efeito Ponce traduz como ‘o maravilhoso no discurso’.
O texto que melhor trata a problemática da mudança de sentido que o conceito sofre
é o estudo de Edmund Burke An Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime
and the Beautiful (1757), trabalho que irá inspirar Kant em sua arquitetura da
estética.
Lacan, abalizado pela estética Kantiana, introduz como contraponto da
experiência do belo, a do sublime e, por essa via, entende o mais além do princípio
do prazer que se pode dar como efeito do contato com a arte.
88 idem, ibidem p.186. 89 Lacan, Jacques. O Seminario, livro 4: La Relación de Objeto- La primacía del falo y la joven homosexual. (9 de Enero de 1957) em CD Rom. 90 Lacan, Jacques. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) p. 265. 91 Ponce, X. G. – “Conferencia Sobre las Paradojas (contemporáneas) de la Satisfacción” . in: Ornicar? digital: liste des articles publieis, Online. 92 Barbas, H. – O Sublime e o Belo - de Longino a Edmund Burke. in: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Departamento de Estudos Alemães. http://www.fcsh.unl.pt/docentes/hbarbas/SublimeHBarbas.htm
47
Na perspectiva transcendental de Kant, o prazer do Belo não é empírico, não
está na ordem do “gosto não se discute”, já que ele tende a universalizar-se e é
totalmente desinteressado. Kant diz: “É belo o que é reconhecido sem conceito
como objeto de uma satisfação universal”.93
O termo desinteressado é utilizado para denunciar a não importância do
objeto em si mesmo. E é esse desinteresse que dá acesso à universalidade, pois o
que é universal é a natureza mesma do prazer, o fato do prazer ser um estado. A
universalização ocorre pela capacidade de sentir e pensar, comum a todos os
homens. O prazer estético surge não da experiência, e sim das condições subjetivas
da percepção. Sem estar subordinada a um conceito ou a um fim objetivo, a
experiência estética paira, por assim dizer, acima da existência natural das coisas e
da realidade propriamente dita. Ela se constitui superando a oposição introduzida
pela "Critica da razão pura", entre a aparência e a realidade.
Para Kant a imaginação é o que liga as intuições da sensibilidade aos
conceitos do Entendimento. Se a ligação for de subordinação das intuições aos
conceitos temos o conhecimento, se houver apenas uma relação funcional entre
elas há o prazer estético. O jogo da imaginação que se estabelece não infringe a
estrutura do Entendimento nem tão pouco se subordina a um de seus conceitos. O
belo resulta do livre jogo da fantasia e do intelecto, que reciprocamente se solicitam
e se harmonizam; por isso, mantém o espírito em tranqüila contemplação.
No sublime não há uma contemplação agradável e sim a experiência de uma
dilaceração. Não é possível estabelecer um acordo feliz entre a subjetividade e a
imaginação, o que é indispensável para haver harmonia na impressão sensível. Há
um conflito entre nós mesmos e o sensível. Para Ponce94, enquanto o belo está
vinculado à representação da qualidade, no sublime a vinculação é com a
quantidade. Somos invadidos pelo espetáculo do sublime e nos reconhecemos
impotentes frente a ele. Não dispomos de capacidade para medir a grandeza do
excepcional que se mostra ao olhar. E por essa razão nos reconhecemos
empiricamente impotentes. Porém, mesmo desprovidos de toda capacidade de 93 Nunes, B. – Introdução à Filosofia da Arte, São Paulo, Editora Ática, 1999. p. 49. 94 Ponce, Xavier Giner – “Sobre parejas modernas: el espectador y la obra del arte” in: sit internet: Ornicar? digital: liste des articles publieis. Online.
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determinação da grandeza, somos capazes de através de nossa razão, fazer e
refazer esse cálculo infinitamente. Kant entende o sublime como sendo um estado
subjetivo determinado por um objeto cuja finalidade se alcança com o pensamento,
mas não se pode captar pela intuição sensível.
O filósofo da “Critica do Juízo” faz incursões na alma humana efetuando
descrições das qualidades, dos vícios e defeitos, dos temperamentos e também da
predominância nos sexos, sempre com a preocupação de conceituar o sublime
diferenciando-o do belo.
Vou priorizar aqui a questão do sublime na arte. A arte bela encanta, a arte
sublime comove. Enquanto o sentimento do belo está referido à forma do objeto, o
sublime pode ser encontrado em um objeto sem forma.
Ponce95 descreve o advento da arte moderna como sendo o de instalar uma
tensão entre a experiência de satisfação através do belo que encanta e a comoção
proporcionada pela experiência do sublime. O autor não deixa também de
mencionar que havia, na época, a arte como transação econômica e ligada ao
entretenimento, na qual o prazer envolvido não é nada além do que o da diversão.
Esta é a mesma faceta que anteriormente nomeei como arte na dimensão do bem.
Vários autores já sublinharam que a arte do século XX e a psicanálise, por
terem nascido na mesma época, compartilham um mesmo “espírito”.96 Sublinham a
semelhança entre a descoberta do inconsciente por Freud, que divide o sujeito
definitivamente, e a quebra na organização espacial tradicional, vigente desde o
Renascimento, exemplarmente presente na pintura de Paul Cézanne.
Porém Ponce vai além ao propor que, com o divórcio entre a imagem e o
sentido que ocorre na arte moderna, há uma quebra entre a obra de arte e o artista e
o espectador. Para melhor explicar cita o tratado de Wittgenstein: “A função da arte
seria a de ser o lugar onde o que não pode dizer-se nem ver-se se mostra ao pôr em
tensão a presença efetiva de um objeto produzido frente ao olhar de um espectador
que quer ver e entender”.97
95 Ponce, Xavier Giner – “Conferencia Sobre las Paradojas (contemporáneas) de la Satisfacción.” 96 Entre outros: Rivera, T. op. cit. e Kon, N. M. – Freud e seu duplo: Reflexões entre Psicanálise e Arte. 97 Ponce, X. G. – “Sobre parejas modernas: el espectador y la obra del arte”
49
Não só na pintura verificamos a destituição do valor do sentido acoplado à
obra. Os surrealistas se valem do recurso da “escrita automática”, à maneira da
associação livre, para criarem textos, o que também coloca em cena a subjetivação.
A arte parece ter ficado livre das amarras das convenções e exigências estéticas.
Porém, do outro lado está o espectador, que jogado frente à obra de arte deriva em
sua solidão. Ele é olhado pelo objeto artístico sem que possa lançar mão de um
sentido protetor.
Na arte o sublime pode ser caracterizado como “uma disposição do espírito,
um efeito, produzido por algo que se dá ao olhar e sobrepassa o sentido do
espectador”.98
Enfim, podemos pensar, a partir da leitura que Ponce faz de Lacan, que o
efeito sublime causado pela arte moderna é algo que não corresponde ao prazer
que na arte do belo encanta, e nem na diversão ou no poder da arte dos bens. A
promoção do sublime é o que possibilita à experiência estética o mais além do
princípio do prazer. O desacordo presente no sublime é, na verdade, o reflexo do
desacordo estrutural que existe entre o significante e o objeto (a), o mesmo que é
colocado em relevo pela arte moderna.
No seminário 7, ao final do Complemento de “Antígona no Entre-duas-mortes”,
Lacan chama Kaufmann para melhor situar o sublime em Kant. Este utiliza como
exemplo o sentimento experimentado pelo jovem Werther, de Goethe. Kaufmann
identifica a encruzilhada filosófica de Kant com o atoleiro emocional em que estava
Werther. Diz que o avanço contido na “Crítica do Juízo” concernente à articulação da
estética do belo com a do sublime é uma ‘sublimação da experiência de Werther’ ou
‘Werther sublimado’. O professor utiliza uma passagem do romance para clarificar a
confusão emocional do herói da trama:
“Que fatalidade faz que a felicidade de um homem seja a fonte de sua miséria. O sentimento tão pleno, tão caloroso que tenho em meu coração da viva natureza; esse sentimento que me inunda de tanta voluptuosidade,
98 idem, ibidem.
50
que do mundo que me rodeava fazia um paraíso, venha a ser agora um intolerável executor, um demônio atormentador que me persegue”.99
Há na mesma pessoa dois sentimentos que, oriundos da mesma fonte, estão
radicalmente contrapostos. O amor que é belo em sua raiz está contaminado pelo
sublime sofrimento.
Enfim, o conceito da arte sublime está submetido ao mais além do princípio
de prazer, e foi chamado por Ponce de ‘poética do efeito’. O encontro com esta arte
é avassalador.
4º Elo: A arte sinthomática Na pesquisa realizada para esta dissertação, a quarta e última maneira em
que a arte é incluída na teoria lacaniana, não pode a rigor ser considerada com o
mesmo enquadramento das outras três concepções.
A arte como um bem, arte bela e a arte sublime são conjecturas conceituais.
O objeto de estudo é a arte que se mostra compreendida pela teoria. A arte como
quarto elo contém uma mudança radical de enfoque. De maneira totalmente diversa,
a arte comparece como um elemento importante na construção da própria teoria
lacaniana acerca da estrutura subjetiva.
A constituição humana para Freud está ancorada nos ternários
consciente/inconsciente/préconsciente e eu/isso/supereu; para Lacan, a
subjetividade se constitui entre o simbólico, o imaginário e o real e está dividida
entre saber e verdade.100
É no intuito de evidenciar teoricamente a paradoxal constituição da
subjetividade humana que Lacan se aventura pela topologia. E é com a ajuda desta
lógica que ele procura demonstrar o indizível.
99 Provavelmente Pierre Kaufmann. Texto disponível só em CD pirata. No livro do O Seminário 7, pg. 346, só está escrito: segue comunicação do Sr. Kaufmann, mas a comunicação não está transcrita. 100 Porge, E. – Os nomes do pai em Jacques Lacan: pontações e problemáticas. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
51
A topologia borromeana dos nós foi elaborada por Lacan a partir do emblema
de uma família de nome Borromeu.101 É uma figura onde há um entrelaçamento de
três elos. O enodamento é tal que se um deles for cortado o laço todo se desfaz. O
desenho foi providencial para Lacan demonstrar as relações entre o simbólico, o
imaginário e o real. Foi possível expor a existência de uma equivalência de
importância entre os registros e ao mesmo tempo demonstrar que cada um deles
possui propriedades distintas.
Lacan menciona o nó borromeano pela primeira vez no Seminário 19, Ou pior
(1971-72), no entanto a utilização da topologia tem maior expressão nos seminários
Os não–tolos erram (1973-74), RSI (1974-75) e O Sinthoma (1975-76). 102 O
percurso da teoria lacaniana foi passando por uma mutação. Lacan, mais atento
para os efeitos de real, produz em sua formulação um deslizamento do significante
para a letra, da estrutura para a escritura. O real que a princípio se mostrava apenas
como uma fraqueza, um tropeço do simbólico, vai se revelando como algo que,
diversamente disso, é furado pelo simbólico. E é justamente esta a condição
determinante, instituinte e criadora da linguagem.
Os três elos do nó Borromeano têm diferentes predicados; no imaginário está
situado o suporte da consistência, a aquisição da imagem corporal pelo sujeito; o
simbólico tem o furo como sendo o que lhe é essencial, o que faz com que se
produza diferença; e o real sua ex-sistência que é relativa ao impossível, à não
existência da relação sexual, ao fato de que a articulação dos três registros não
proporciona ao sujeito um Outro do Outro. Como Jorge explicita: Real: o não-sentido,
Simbólico: o duplo sentido e Imaginário: o sentido.103
No Seminário 22 RSI Classe 5 de 11 de Fevereiro de 1975 Lacan demonstra
a importância de que um quarto laço venha realizar a função de manter o enlace
entre os registros como também delimitar a necessária distinção entre eles. Esta
101 Freire, M. M. – A escritura psicótica, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001. 102 Rinaldi, D. – “Joyce e Lacan: algumas notas sobre escrita e psicanálise”, trabalho apresentado no simpósio Joyce-Lacan; Dublin, Junho de 2005. Irlanda. A ser publicado na Pulsiconel Revista de Psicanálise em dezembro de 2006. 103 Jorge, M.A.C. – “Les quatre dimensions du réveil: rêve, fantasme, délire, illusion”, in Didier-Well, A. (org.), Freud et Vienne, Ramonville Saint-Agne, Érès, 2004.
52
hipótese é fundamentada nos conceitos freudianos do complexo do Édipo e de
realidade psíquica e recebe de Lacan o título de Nome-do-Pai.
Ocorre, porém que a constituição subjetiva não é estável, contém a
“insustentável leveza do ser”, algo sempre falha. E o que sempre falha, pelo menos
em parte, é o Nome-do-Pai em sua simbolização do real pulsional. Os sintomas
surgem como remendos na função paterna. O sintoma está no próprio lugar onde o
nó rateia, onde está o lapso do nó.104 No caso das psicoses a teoria borromeana
sofre um complicador a mais, pois esse adoecimento psíquico se caracteriza pela
não inscrição no campo do Outro do significante do Nome-do-Pai. Para o psicótico
não é possível a construção de uma fantasia, uma frase simbólica que venha,
através do gozo fálico, demarcar o gozo enigmático do Outro. Isto é, encontrar
como sujeito sua resposta à demanda da mãe.105 O que nos leva a considerar que
na psicose, pela falta do Nome-do-Pai – laço que amarra os outros três elos, o
simbólico, o imaginário e o real – a consistência do nó a três não pode ser mantida.
O nó se desfaz, há a eclosão do delírio e a invasão no imaginário.
Porém, a arte de James Joyce escritor irlandês que revolucionou a literatura,
vem “embaraçar”106 Lacan que o considerava psicótico.
Saussure nos ensinou que os signos antes de remeterem a qualquer coisa do
mundo, remetem, quando se quer saber seu valor, a outros signos. Consideração da
qual é retirada a descoberta de que a linguagem nasceu a partir da criação do
recurso metafórico e, por isso mesmo, comporta como característica um mal
entendido fundamental. É intrínseco à palavra ser portadora de um equívoco, o que
a faz saltar em meio à diversidade de sentidos. Em contrapartida, há em algum ponto do discurso algo que não engana. Não
é possível fazer funcionar a atividade discursiva sem o estabelecimento de um
acordo mínimo, mesmo que arbitrário, de atribuição de sentido. Lacan, no Seminário
23, embora se diga embaraçado como um peixe com uma maçã em relação à
utilização da língua inglesa por Joyce, analisa a sua escrita. Ele a descreve como
tendo uma forma diferenciada de relação com a instância da letra. Destaca as 104 Lacan, J. – O Seminário 23 – O Sinthoma CD Rom 105 Freire, M. M., op. cit. 106 Em espanhol engravidar.
53
Epifanias utilizadas por Joyce em seus livros como sendo testemunhas de um
esvaziamento radical da capacidade de articular a experiência. Lacan explica que
neste tipo de escrita onde trechos de conversas são retirados de seu contexto
natural pelo autor e transferidos para dentro de seu texto, o Simbólico e o Real estão
entrelaçados, mas o imaginário fica solto, fora, tornando incompreensível a
mensagem, já que o sentido reside na interseção do Simbólico com o Imaginário.
A escrita de Joyce, de forma geral é não tributária do sentido, pois o que mais
importava ao autor de Ulisses era a musicalidade das letras e das palavras. Os
enigmas contidos em sua escrita não são de fácil desvendamento por carecerem de
metáforas orientadoras. Ele manipulava a língua inglesa e neste jogo de letras,
palavras e sons, acabava por produzir uma nova língua. A partir do que novos
sentidos puderam ser construídos, mesmo não sendo estes muito compartilháveis.
Joyce trabalhava diretamente no real da letra e deste trabalho extraia seu gozo.
No caso de Joyce, o quarto elo que produziu uma articulação capaz de
sustentar sua estrutura psíquica não poderia ser o Nome-do-Pai. Lacan considera
que foi a obra de Joyce que assegurou sua estabilidade psíquica, a responsável
pelo não desencadeamento de um surto psicótico: “Joyce tinha o rabo um pouco
frouxo. Foi sua arte que supriu sua sustentação fálica, a arte de Joyce é a
verdadeira garantia de seu falo”.107
A estrutura de Joyce não pôde se valer do sintoma neurótico, da costura nas
falhas presentes no Nome-do-Pai – o elo garantidor da amarração nodal. Não se
pode remendar o que não existe. No lugar do quarto laço Joyce teve que inventar o
que Lacan chamou de Sinthoma. Para além de simples retificações ou emendas, o
Sinthoma é ele próprio o laço. E o Sinthoma é a peculiar escrita de Joyce. Na
ausência do pano e da linha Joyce usou o papel e a caneta.
Lacan propõem que a escrita de Joyce, seu sinthoma, era sua forma
privilegiada de gozo, um gozo que estava além da demanda do Outro. A arte pôde
fazer suplência do Nome-do-Pai, funcionar como o elo que, de alguma maneira,
manteve articulado os outros três registros.
107 Lacan, J. O Seminário 23 El Sinthoma , Classe 1, El síntoma y el padre de 18 de Noviembre de 1975 in CD Rom.
55
Esta quarta forma da arte imiscuir-se no terreno da psicanálise merece ser
diferenciada e assinalada. Principalmente porque nesta concepção se pode intuir
uma proximidade com a clínica.
Quando, no primeiro item, a arte foi verificada como podendo participar do
sistema capitalista de bens de consumo, a análise realizada se restringiu a uma
leitura ou observação, ainda que de cunho psicanalítico. A arte bela, contemplada no
segundo item, demonstrou que a apreciação psicanalítica que lhe é direcionada não
pode fugir da contaminação de seu efeito subjetivo. É a arte mulher. A arte
enganadora no mais puro sentido, por acalentar o desejo. Acalenta por oferecer
certo apaziguamento e ao mesmo tempo por mantê-lo. Promete a completude, mas
é desejada por sua falta. A arte sublime, a terceira concepção de arte depreendida
da teoria psicanalítica lacaniana, não engana, escancara, e o efeito é o desamparo
do observador.
No quarto Elo deste arranjo sobre a arte na teoria lacaniana, o incômodo de
Lacan, exposto no seminário 7, de reclamar um lugar maior para a arte do que a de
ser uma professora do colegiado psicanalítico é aclarado. Somos mesmo ‘catadores
de migalhas...’, é o que pensamos quando vemos surgir um Lacan que propõe que a
arte possa ocupar o lugar de 4º Elo. O lugar do Nome-do-Pai. Fazer suplência desta
falta. A arte, neste momento da teoria lacaniana, assume a função de amarrar o
simbólico , o imaginário e o real, proporcionando certo arranjo, mesmo que bastante
singular, da subjetividade. Isto não é pouco, é talvez o que nós analistas tanto
almejamos quando tratamos de sujeitos psicóticos em profundo sofrimento mental.
A psicanálise busca não o bem, nem o engano, e também não pretende que a
angústia se mantenha cristalizada. Se há um caminho talvez seja o de criar um estilo
próprio do que foi pura sentença, e foi isso que Joyce conseguiu com sua arte. O
caminho do sintoma ao Sinthoma no neurótico em análise talvez possa ser
assemelhado ao processo de criação, o qual Joyce realizou com sua escrita.
Vamos guardar esse ponto para que quando, no capítulo final, a arte se
mesclar com a psicanálise no tratamento psíquico, possamos retirar mais algumas
conseqüências dessas reflexões.
56
CAPÍTULO III: CLÍNICA PSICANALÍTICA COM ARTE NO CAMPO DA SAÚDE
MENTAL
1. Arte e loucura – breve histórico109
As primeiras coleções de arte produzida por internos psiquiátricos foram
organizadas no século XIX e pertenciam ao Bethlehem Mental Asylum de Londres e
do Crichton Royal Hospital da Escócia.110
Possivelmente a primeira abordagem teórica de grande repercussão sobre
desordens psíquicas e a criatividade artística foi Gênio e loucura (1864) de César
Lombroso, psiquiatra, antropólogo e criminologista italiano. Este trabalho foi
considerado um clássico da ciência positivista. Nele, Lombroso traça uma
aproximação da criatividade artística com a loucura, sustentando que a inspiração
do artista genial está vinculada à loucura degenerativa. O escritor criativo é, para o
psiquiatra, um caso psicopatológico111.
Outro autor que pensou a relação arte/loucura ainda no século XIX foi Max
Nordau (1849-1923) que originalmente chamava-se Simon Maximilian Suedfeld,
filósofo, judeu, médico-psiquiatra e dirigente sionista. Embora vivendo na França
desde 1880 escreveu em alemão ensaios sobre a decadência do pensamento e da
arte. Os temas éticos e culturais eram tratados de forma satírica; suas principais
obras nesse âmbito foram Mentiras convencionais da civilização (1883),
Degenerescência (1893-1894) e Paradoxo (1885). Mesmo conservando um olhar
crítico e irônico em relação à sociedade, Nordau guarda o mesmo pensamento que 109 As informações históricas foram baseadas em Dias, P. B. – “Arte, loucura e Ciência no Brasil: as origens do Museu de Imagens do Inconsciente” Rio de Janeiro: 2003. Dissertação (Mestrado em História das Ciências da Saúde), Casa de Oswaldo Cruz, FIOCRUZ, 2003. Mello, L. C. – “Flores do abismo” in: Mostra do Descobrimento. Nelson A. (org) / Fundação Bienal de São Paulo – S.P. : Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. Valladares. Silveira, N. Imagens do Inconsciente (1981); Brasília –DF Editora Alhambra Ltda. Afonso A. C. “Arteterapia com crianças hospitalizadas” Ribeirão Preto, 2003. Dissertação (mestrado) Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Universidade de São Paulo. Área de Concentração Enfermagem Psiquiátrica. Villar, J. E. G. “Criterios para abrir fronteras” sit http://www.uisek.cl/sek_lauga/debate_web_1.pdf. 110 Sit do Crichton Royal Museum http://www.dumfriesmuseum.demon.co.uk/crichroy.html e Mello, Luiz Carlos (op. Cit) 111 Cardwell R. A. – “The Mad Doctors: Medicine and Literature” in Finisecular Spain. The University of Nottingham. Sit http://www.nottingham.ac.uk/hispanic/research/richadoc.html
57
Lombroso expôs em relação à arte e a loucura; o gênio é visto como produto da
degeneração e da doença mental.112
Em 1901 Marcel Rejá, pseudônimo do psiquiatra francês Paul Meunier,
escreve o artigo "L'art malade: dessins de fous" e em 1907 publica o livro “A arte nos
Loucos: Desenho, a Poesia e a Prosa”. Estes escritos apresentam uma abordagem
nova em relação à arte produzida pelos sujeitos em sofrimento mental. Não se
destinam a avaliações psicodiagnósticas e reconhecem o poder de emocionar ao
apreciador de algumas obras produzidas por “doentes mentais”. O autor acredita
que a loucura favorece em alguns casos a atividade artística.113
É, entretanto, Hans Prinzhorn (1886-1933) que indubitavelmente lança na
esfera das produções estéticas a arte presente na loucura. Prinzhorn foi levado a
estudar medicina por ter contraído segundo matrimonio com Erna Hoffmann que
sofria com crises nervosas.114 Trabalhou na Clínica Psiquiátrica Heidelberg que tinha
como diretor Kerl Williams, fenomenologista e companheiro de Jaspers. O estudo
das obras dos pacientes desta clínica foi a origem de seu interesse pelo tema da
arte na loucura, interesse que acabou gerando, além de suas publicações escritas,
uma coleção de mais de mil obras e o museu que leva seu nome. Prinzhorn acaba
por se desligar de Heidelberg por desavenças teóricas. Dois anos mais tarde
separa-se de sua esposa e sofre uma profunda depressão sendo analisado por Jung.
Neste mesmo ano de 1924 escreve a obra que o deixará celebre: "Bildnerei des
Geisteskrankheiten" (Criações dos doentes mentais). O livro é um estudo sobre as
criações artísticas de quatrocentos doentes mentais. Prinzhorn utiliza a psicanálise e
a fenomenologia existencial como fundamentos psicológicos de sua análise.
Defende que a pulsão criadora sobrevive à desintegração da personalidade e
propõe não haver distinção entre produção normal e a do louco. Interessantemente,
este livro que não teve repercussão na psiquiatria, influenciou profundamente a arte,
sendo solo fértil para que em 1945 Jean Dubuffet criasse o conceito da ‘Arte bruta’.
112 http://www.jafi.org.il/education/100/people/BIOS/nordau.html ;http://www.biografiasyvidas.com/biografia/n/nordau.htm; http://www.jafi.org.il/education/100/spain/people/nordau.htm 113 Masa S. P. e Villar J. E. G. – “Criterios para abrir fronteras” in: Publications: from a medical approach to an aesthetic view introduction. Lombardi, S. – http://www.sai.qc.ca/expo/en/texte.html 114 Mahieu, E. L. – “Agujeros de gusanos (recordando a prinzhorn, ey y pichon riviere)” Circulo de Estudios Psiquiatricos Henriey Cordoba – Argentina , http://eduardo.mahieu.free.fr/cercle%20ey/circuloey/gusanos.htm.
58
Entre 1929 e 1933 foram realizadas inúmeras exposições na França,
Alemanha e Suíça com as obras de arte criadas pelos internos. Entretanto, este
posicionamento também encontrou opositores. Com a ascensão do nazismo em
1933 há o fechamento da clínica de Heildelberg e o movimento de extermínio dos
acometidos por problemas mentais. O acervo é exposto na Alemanha e Áustria sob
o título: A Arte Degenerada, visando sua depreciação. As pinturas eram comparadas
às expressões dos modernistas como Cézanne, Van Gogh, Klee, Kandinski,
Kokoshka, Chagall entre outros. Esta atitude nazista acabou por promover a arte
produzida pelos “degenerados”, apontando para a inexistência de fronteiras entre os
artistas normais e os loucos.115 As palavras de Adolf Hitler:
“De agora em diante, iremos empreender uma guerra implacável contra os últimos remanescentes da desintegração cultural (...) Por tudo que apreciamos, esses bárbaros pré-históricos da Idade da Pedra podem retornar às cavernas de seus ancestrais e lá realizar seus rabiscos primitivos internacionais”.116
No Brasil Nise da Silveira é o nome mais conhecido no que diz respeito à
valorização da produção artística dos psicóticos, porém ela própria se nega o título
de pioneira e atribui a Osório César este feito.117 Osório, além de médico psiquiatra,
foi músico e crítico de arte. Já como estudante interno de psiquiatria do Hospital
Juqueri no Estado de São Paulo em 1923 acompanhava e incentivava a expressão
artística dos internos analisando-a em bases psicanalíticas.
Quando Durval Marcondes e Franco da Rocha fundam a Sociedade Brasileira
de Psicanálise, em 1927, Osório figurava entre os 24 primeiros membros.118
A partir da literatura européia e principalmente influenciado pela leitura do
livro de Hans Prinzhorn (op. Cit), Osório, agora psiquiatra em Juqueri, reúne em 115 Cucco, M. A. – “Arte Degenerada III: La tesis política” http://amsterdam.nettime.org/Lists-Archives/nettime-lat-0401/msg00034. 116 Hitler A., discurso acerca da arte moderna, 1937; apud “A Arte não revela a verdade da loucura, a lucura não detém a verdade da arte” in: Psiquiatria Loucura e Arte: fragmentos da história brasileira, Antunes, E. H. Barbosa, L. H., Pereira, L.M.F. (org.). sâo Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002 (Coleção Estante dos 500 anos,6). p.152 117 Mello, L. C. op. cit. 118 Piccinini , W. J. Part of The International Journal of Psychiatry, On-line Brazil (8) Abril 2003; “História da Psiquiatria Franco da Rocha: vida e obra” in: www.polbr.med.br/arquivo/wal0403.htm e www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/semana17.htm
59
1929 sua experiência em um livro intitulado: Expressão artística dos alienados119,
obra sub intitulada como "Estudos dos Símbolos na Arte". Neste livro Osório César
estabelece ligações entre a arte e o psiquismo. Na mesma década de 20 o autor
recebe uma carta de Freud, a quem remetera seu livro sobre os internos do Hospital
do Juquery, dizendo:"Causa-me grande satisfação a prova de interesse que a nossa
psicanálise vem despertando no seu distante Brasil".120
Osório César escreveu também alguns artigos, como por exemplo “A arte nos
loucos e vanguardistas” (1934). Neste estudo pode-se ter clara noção de como era a
relação terapêutica entre arte e loucura na época, em que a interpretação era feita
relacionando a obra com sua significação psicanalítica muito diretamente, quase que
sem levar em conta a posição de sujeito criador, que pouco tinha a dizer sobre sua
criação, pois ela já o dizia completamente, bastando decifrá-la. Como afirma o autor:
“Da mesma maneira que se estuda o pensamento simbólico no sonho também no artista, que segundo Freud, é um extrovertido próximo à neurose, o estudo analítico do simbolismo estético possuí idêntico valor da interpretação onírica. Tanto é assim que Freud, num longo e curioso trabalho analítico sobre Leonardo da Vinci, conseguiu descobrir nos seus quadros, os anseios reprimidos de sua infância”.121
Osório César se relacionava de perto com artistas e intelectuais da época,
tendo se casado com Tarsila do Amaral. A primeira exposição organizada por ele
aconteceu no Museu de Arte Moderna em São Paulo em 1948. Esta exposição
gerou uma série de encontros e debates de artistas e intelectuais instigados pelas
obras apresentadas, tais como: Flávio de Carvalho, Lourival Gomes Machado,
Sérgio Milliet, Quirino da Silva, Luís Martins.
O acervo com mais 5 mil obras que reuniu durante sua vida está reunido no
Museu Osório César criado em 1985 na antiga residência do primeiro diretor do
Junqueri Dr. Franco da Rocha. 119 O trabalho preliminar desse livro foi enviado a Freud que se dispôs a publicá-lo na revista Imago, satisfeito com o interesse pela psicanálise no Brasil 120 Tognolli, C. J. www.tognolli.com/html/mid_freud.htm. Há também a notícia de que a exposição: “Arte e Inconsciente: Três Visões sobre o Juquery”, que ocorreu em Belo Horizonte em 18 de Agosto de 2003 no Instituto Moreira Salles, teve exposta esta carta de Freud ao médico Osório César, elogiando o seu trabalho “com a potencialidade de pacientes psiquiátricos”. 121 Dias, P. B. – op. cit.
60
Nise da Silveira criou o seu ateliê terapêutico juntamente com Almir Mavignier
no então Hospital Psiquiátrico Pedro II, (na época era conhecido como Hospital do
Engenho de Dentro), em 9 de setembro 1946.122 Ela havia sido afastada do posto de
médica psiquiátrica do hospital após a Intentona Comunista de 1935 na ditadura de
Getúlio Vargas. Nise foi denunciada por ter em seu acervo pessoal livros de cunho
socialista e presa na Casa de Detenção Frei Caneca, compartilhando a prisão com
Graciliano Ramos. Libertada em 1937, com receio de uma nova prisão se exilou em
terras brasileiras até 1944. Após o fim da ditadura do Estado Novo retomou seu
trabalho de médica psiquiátrica e ficou indignada com a forma com que a loucura
estava sendo tratada. Recusou-se a utilizar os métodos vigentes na época como o
insulínico, o eletrochoque e a lobotomia e passou a defender a terapia ocupacional
como dispositivo de tratamento. Convidada pelo Diretor Dr. Paulo Elegalde, assumiu
a direção da seção de Terapia Ocupacional do Hospital. Implantou inicialmente
oficinas de trabalhos manuais femininos e depois o ateliê de pintura e modelagem
que ficou sob a responsabilidade de Almir Mavignier. Almir era na época apenas um
funcionário burocrático e acabou se revelando um pintor internacionalmente
reconhecido. Os internos que tinham aptidão para a arte e principalmente para a
pintura eram encaminhados para o ateliê onde eram orientados por Almir Mavignier.
O ateliê revelou nomes como: Adelina Gomes, Carlos Pertuis, Emygdio de Barros,
Fernando Diniz, Raphael Domingues, Arthur Amora entre outros.
A 1ª exposição organizada por Nise foi realizada no próprio hospital, três
meses depois do início do ateliê, em 1947. Porém, quando foi transferida para o
edifício sede do Ministério da Educação atingiu um maior e diversificado público. Os
críticos e interessados em arte foram bem mais receptivos do que os psiquiatras.
Mario Pedroza, crítico de arte do Jornal Correio da Manhã, passa a ser admirador e
disseminador da arte produzida pelos psicóticos. Cunhou o conceito de “Arte
Virgem” com o qual defendia a qualidade artística dessas obras de arte, tendo sido
principalmente admirador do artista Rafael Domingues, freqüentador do ateliê de
Nise. Como resultado da aceitação do público e da crítica foi possível em 20 de Maio
de 1952 a criação do Museu da Imagem do Inconsciente. 122 Hoje o Hospital que leva seu nome: Instituto Municipal Nise da Silveira.
61
No âmbito da crítica especializada instalou-se uma polêmica sobre a
qualidade artística das obras produzidas pelos internos entre Quirino Campofiorito,
crítico do O Jornal, e Mário Pedroza, do Correio da Manhã. Enquanto Campofiorito
dizia que o valor do trabalho dos ateliês se restringia ao âmbito terapêutico, Pedroza
defendia que Nise havia demonstrado que era possível ser louco e artista ao mesmo
tempo. Sustentava que Raphael era um artista da sensibilidade de um Matisse ou de
um Klee.
“As imagens do inconsciente são apenas uma linguagem simbólica que o psiquiatra tem por dever decifrar. Mas ninguém impede que essas imagens e sinais sejam, além do mais, harmoniosos, sedutores, dramáticos, vivos ou belos, enfim, constituindo em si verdadeiras obras de arte”.123
O valor artístico das obras foi confirmado pelo diretor do Museu de Arte
Moderna de São Paulo, o crítico de arte Leon Degand. Degand e Pedroza
realizaram a exposição “9 Artistas de Engenho de Dentro” em 12 de outubro de 1949.
No prefácio do folder de divulgação vinham escritas as idéias de Nise:
“...O diretor do MAM de SP visitou o estúdio de pintura e escultura do Centro Psiquiátrico do Rio e não teve dúvida em atribuir valor artístico verdadeiro a muitas das obras realizadas por homens e mulheres aí internados. Talvez esta opinião de um conhecedor de arte deixe muita gente surpreendida e perturbada. É que os loucos são considerados comumente seres embrutecidos e absurdos. Custará admitir que indivíduos assim rotulados em hospícios sejam capazes de realizar alguma coisa comparável às criações artísticas de legítimos artistas - que se afirmem justo no domínio da arte, a mais alta atividade humana”.124
A exposição teve grande repercussão favorável. Muitos críticos de renome
escreveram crônicas corroborando esta idéia, tais como Sergio Milliet, Quirino da
Silva, Osório Borba, Jorge de lima, Flavio de Aquino, etc.
Conhecida internacionalmente como a “psiquiatra rebelde” 125 por ter se
utilizado da arte como recurso terapêutico, revolucionando o tratamento da doença 123 Pedroza, Mário “O correio da manhã” 7/2/1947 124 Silveira, N. “20 anos de terapêutica ocupacional em engenho de dentro” in Revista Brasileira de saúde mental, 1966 p. 108. 125 Dias, Paula Barros op. cit.
62
mental, Nise não estava interessada em construir psicodiagnóstico através de sua
análise das obras criadas. Buscava penetrar nas dimensões dos processos
inconscientes revelados por meio do estudo das imagens e símbolos. A pesquisa
muitas vezes se fazia pela comparação com a história das religiões e da arte, da
mitologia etc., numa verdadeira arqueologia da psique. Este método teve forte
influência de Carl Gustav Jung que tomou conhecimento do trabalho desenvolvido
por Nise no 2º Congresso Internacional de Psiquiatria em 1957 em Zurique.
Muitos doentes psiquiátricos passaram pelos ateliês, mas só alguns se
revelaram grandes artistas. Porém a grande maioria se beneficiou do aspecto
terapêutico desta atividade. Atualmente o museu continua a existir e ainda realiza
exposições e diversas atividades terapêuticas. Conta hoje com mais de 350 mil
obras. Formou o módulo: Imagens do Inconsciente, no âmbito da exposição que
celebrou 500 anos de artes visuais no Brasil – Mostra do Redescobrimento –
realizado de 23 de abril a 7 de setembro de 2000, no Ibirapuera em São Paulo.
Junto à experiência de Onório e Nise vieram outras instituições como A casa
das Palmeiras, fundada em 1956 e a tantas outras que trabalharam com o princípio
de evitar o ciclo de reinternações, utilizando o recurso terapêutico de incentivar a
criatividade dos sujeitos acometidos por intenso sofrimento mental em suas
elaborações psíquicas. Essas experiências muito contribuíram para que uma outra
política de saúde mental fosse instaurada no Brasil. Podemos dizer que a direção
tomada hoje na saúde mental, de construção de serviços substitutivos para a
extinção gradual das instituições asilares teve como um dos seus precursores o
trabalho desenvolvido com arte nos antigos manicômios.
A partir deste retrospecto histórico – reconhecimento imprescindível a
pessoas que muito fizeram no campo da saúde mental em prol da transformação da
assistência psíquica – gostaria de destacar dois pontos: o primeiro se refere ao
fato de que foi preciso sublinhar que a atribuição de valor artístico às obras de arte
criadas pelos psicóticos foi de vital importância para que se iniciasse um movimento
de destigmatização da loucura. Considerar a possibilidade do louco de criar o trouxe
para a condição de humano. O segundo ponto importante é sobre a própria análise
feita por Nise da Silveira sobre o trabalho realizado no ateliê pelos psicóticos. Ela
acreditava que as obras criadas pelos que passavam por sofrimentos psíquicos
63
intensos mostravam as profundezas de seus inconscientes. Porém, suas obras de
imagens tão fortes parecem mais confirmar que elas mostram sim seus
inconscientes, mas os mostram porque o inconsciente do psicótico está a céu aberto,
muito mais à vista do que o dos neuróticos. Assim, suas pinturas expõem com maior
proximidade o que para outros é tão difícil de alcançar. Este apontamento que faço
pode se apoiar na observação feita por Freud a Salvador Dali após ser interpelado
para que analisasse o quadro Metamorfose de Narciso de 1937 . O pai da
psicanálise em tom jocoso respondeu: “nas pinturas clássicas procuro o inconsciente
– em uma pintura surrealista, o consciente”.126
2. Saúde Mental e psicanálise - marcando posição.
Inicio com as palavras de Freud:
“Agora, concluindo, tocarei de relance numa situação que pertence ao futuro (...) Somos apenas um pequeno grupo (...) Comparada à enorme quantidade de miséria neurótica que existe no mundo (...) Ademais, as nossas necessidades de sobrevivência limitam o nosso trabalho às classes abastadas (...) Presentemente nada podemos fazer pelas camadas sociais mais amplas, que sofrem de neuroses de maneira extremamente grave. (...) é possível prever que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente, quando o tem, agora, à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose (...) Quando isto acontecer, haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais serão designados médicos analiticamente preparados (...) Tais tratamentos serão gratuitos. Pode ser que passe um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como são urgentes esses deveres. (...) Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica às novas condições. (...) É muito provável, também, que a aplicação em larga escala da nossa terapia nos force a fundir o ouro puro da análise livre com o cobre da sugestão direta; (...) No entanto, qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes
126 Rivera, Tânia op.cit. p. 22
64
continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa”.127
No Brasil, o fim dos anos 70 é marcado pelo término da ilusão do milagre
econômico. Cai a máscara da falsa perspectiva de desenvolvimento econômico que
vinha sendo apregoada pelo governo militar revelando a verdadeira face do Brasil.
Não é mais possível esconder a deterioração das condições de vida da população
brasileira. A crise político – econômica do governo Geisel força o início da retomada
da democracia. O campo da saúde mental também é afetado. Por um lado a
previdência social entra em colapso, provocado pela busca desenfreada por lucro
dos empresários da loucura; por outro a abertura política põe a mostra o que até
então estava guardado dentro dos muros do hospício. Pôde-se ver então a situação
em que se encontravam e o tratamento dispensado ao louco. A herança dos anos 60.
O ponto em que se localiza o início da Reforma Psiquiátrica no Brasil é o da
crise na Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), ocorrida em 1978 na cidade do
Rio de Janeiro, que colocou em debate a assistência presente nos hospitais
psiquiátricos públicos. Esse processo levou à criação do MTSM (Movimento de
Trabalhadores de Saúde Mental), constituído, com diz Amarante128, como ator e
sujeito privilegiado não homogêneo, que realizou uma mobilização política em torno
da saúde mental pela reforma psiquiátrica.
Divulgadas pelos trabalhadores de saúde mental, vêem à público denúncias
da situação trágica em que se encontravam os hospitais psiquiátricos, os relatos de
violências contra internos e os altos lucros concedidos ao setor privado.
Teóricos estrangeiros que travam lutas semelhantes em seus países, como
Basaglia, Guatarri, Castel e Goffman fazem presença constante em Conferências,
Encontros e Congressos, influenciando profundamente o movimento pela reforma no
Brasil.
127 Freud, S. “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica” (1919[1918]) p. 210 e 211 128 Amarante, P. – Loucos pela Vida: A trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Panorama/ ENSP, 1995.
65
Como fruto da luta política travada e também ajudados pela reconstrução
democrática do país, em meados dos anos 80 participantes do MSTM passam a
participar de postos de chefia dentro do governo, em hospitais e universidades. O
Movimento já não se restringe às bandeiras de luta iniciais de reivindicações por
melhores condições de trabalho e pela humanização da assistência. A reforma
psiquiátrica agora está orientada pelos princípios da destigmatização da loucura, a
tomada da responsabilidade, a desmedicalização, o rompimento com a lógica
manicomial/hospitalar, enfim a luta pela desinstitucionalização.129
O movimento pela reforma psiquiátrica no Brasil favoreceu a entrada de
outros saberes quando quebrou com a hegemonia do saber médico sobre a loucura.
Porém, mesmo com esta abertura, os psicanalistas que atuavam nas instituições
públicas em sua maioria não se assumiam como tais, como demonstra a pesquisa
realizada na década de 90 por Figueiredo130. A diferença de setting era um dos
argumentos mais utilizados na resistência à possibilidade da psicanálise atuar no
campo da saúde mental. Em seu livro Figueiredo propõe a desconstrução de uma
série de pré-requisitos formais ortodoxos instituídos historicamente como sendo
indispensáveis para a definição da prática da psicanálise e, ao mesmo tempo, se
preocupa em deixar claro que essa desconstrução não autoriza que a prática
psicanalítica possa abrir mão de seus critérios básicos e definidores. Baseando-se
nos conceitos fundamentais da psicanálise Figueiredo pensa uma contextualização
teórico/prática que diferencia a psicanálise de outro tipo de clínica terapêutica e
intitula ‘condições mínimas’131 os princípios que devem reger o modo pelo qual
determinada clínica possa ser identificada como psicanálise.
129 Algumas referências bibliográficas sobre a reforma psiquiátrica: Pitta, A. (org.) Reabilitação Psicossocial no Brasil. (1996) Ed. HUCITEC. São Paulo. Vasconcelos, E. M.. “Avaliação de Serviços no Contexto da Desinstitucionalização psiquiátrica: revisão de metodologias e estratégias de pesquisa” (1995) in: Jornal Brasileiro de Psiquiatria: 189-197. Rio de Janeiro. Goldberg, J. “Clínica da Psicose: Um Projeto na Rede Pública” (1994), Te Corá Editora. Rio de Janeiro. Costa, J.F. “História da Psiquiatria no Brasil: um corte ideológico” (1984), Editora Xenon. Rio de Janeiro. Delgado, P. G. G. “As Razões da Tutela” (1992) Ed. Te Corá. Rio de Janeiro. 130 Figueiredo, A. C . – “Vastas confusões e atendimentos imperfeitos”, (1997) 131 As condições mínimas, resumidamente, podem ser descritas como: realidade psíquica, transferência e o tempo. Estas condições estão subordinados a uma condição primeira e fundamental que é o desejo de analista. O conceito de realidade psíquica delimita a única realidade que diz respeito e interessa ao sujeito; a transferência psicanalítica é o que permite a produção de um modo de fala que vai proporcionar o trabalho na análise; e o tempo que é pertinente à psicanálise, por ser o que permite a interpretação, é o a posteriori.
66
Muitos autores 132 e psicanalistas atuantes no campo da saúde mental,
principalmente os lacanianos, se somaram às posições defendidas por Figueiredo e
um movimento em prol da psicanálise se estabeleceu.
Posso citar, como exemplo, Elia que, com o rigor necessário, já presente em
outros textos seus, especifica a psicanálise como sendo um método em que a
dimensão que interessa é aquela que visa o sujeito do inconsciente.
“A psicanálise não é sensível a certas formas e critérios de ordenação dos sujeitos, como classe social, nível cultural (de instrução), gostos, partidos políticos, credo, raça e cor. Não: ela lhes é indiferente.(...) A psicanálise é sensível a outros critérios, aos quais ela é diferente: posição do sujeito em face de seu desejo, de seus pontos de gozo, nível de sua divisão em relação ao que o determina, pontos de angústia, pedido ao Outro, modo de funcionamento fantasmático e de organização (ou desorganização) sintomática etc".133
O sujeito é o referente absoluto134 da psicanálise, é o que em primeira e
última instância a caracteriza, é seu motivo singular e indispensável.
No entanto, não podemos negar que existem muitos pontos de atrito entre a
abordagem psicanalítica e a concepção reformista do louco. Neste sentido, é
interessante a pesquisa realizada por Rinaldi 135 onde a autora mostra como
conceitos caros à psicanálise são utilizados com sentidos bastante diversos por
trabalhadores de saúde mental. A psicanálise não é contrária à luta pelo direito à
cidadania para aquele que está em tratamento psíquico. Desde que este seja um
direito que advenha de um trabalho clínico que leve em conta o sujeito e não para
responder a aspiração de algum profissional de saúde mental. A advertência de
Lacan136 é importante, pois chama a atenção dos que lidam com a ‘miséria do
mundo’ para que não ‘joguem fora o bebê com a água suja do banho’, isto é, para
que a exigência por cidadania não se torne obliteração de sujeito. 132 Elia, L. (2000) . Tenório, F (2002) , Rinaldi, D (2001) 133 Elia, L. “Psicanálise: clínica & pesquisa” in: Clínica e Pesquisa em Psicanálise (2000). p. 28 134 Milner, J – Citado por Elia, L. “Uma ciência sem coração” in Ágora: estudos em teoria psicanalítica, 1999. Contra Capa / Rio de janeiro volume II, numero 1 135 Rinaldi, D. – “Clinica do Sujeito e Atenção Psicossocial: os novos dispositivos de cuidado do campo da saúde mental” (2003) UERJ/CNPq, in: Estudos e Pesquisas em Psicologia, Revista do Instituto de Psicologia/ÙERJ Ano 3 nº 1, 1º Semestre/2003 136 Lacan, J. Televisão (1993). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1974)
67
Não pretendo me aprofundar na tensão entre clínica e política presente no
campo da saúde mental, pois esta daria outra dissertação. Esta tensão já foi por
muitos autores relatada e discutida. Apenas não posso deixar de situar o contexto ao
qual a psicanálise, quando se faz presente no campo da saúde mental, se vê
confrontada. A ética pela qual se orienta não é a mesma que orienta outros
seguimentos que comparecem no tratamento à loucura.
Há, porém, uma outra força presente na reforma psiquiátrica que, de forma
insidiosa e perigosa, vem ganhando terreno. Este saber geralmente não se coloca
disponível a dialogar com os outros, pois se acredita possuidor da verdade. É a
corrente denominada organicista, muito difundida entre os médicos, mas não só por
eles e nem por todos. Perverteu sua origem Pineliana, onde havia um doente que,
através do tratamento moral, seria resgatado das ‘paixões da alma’e atingiu sua
radicalidade na medicalização do corpo como forma exclusiva de exercer sua
clínica.137 Esta corrente é gravemente estimulada pela industria farmacêutica que
obtém grandes lucros financeiros com sua ideologia. É inegável que as descobertas
dos psicofármacos foram de grande ajuda para minorar o sofrimento mental, porém
também sabemos que os efeitos benéficos produzidos pelos outros saberes
atuantes na saúde mental não foram menores. A psicanálise necessariamente não
se opõe ao psicofármaco, que em muitas vezes colabora para que se inicie um
trabalho analítico. Mas se opõe a que este recurso seja sempre utilizado e utilizado
sempre como solução.
Mesmo com todos este entraves, os psicanalistas hoje assumem sua filiação
teórica e se firmam no contexto da saúde mental. É inegável que o futuro previsto
por Freud chegou. Não nos cabe mais duvidar dessa realidade que está aí. Muitos
psicanalistas voltaram seu interesse para o trabalho em instituições e estão atuando
em hospitais gerais, hospitais psiquiátricos, unidades básicas de saúde ou
ambulatórios de saúde mental, hospitais-dia, centros de referência para aidéticos,
Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e até com grupos de moradores de rua e
favelados.
137 Rinaldi, D. “Clinica e Política: a direção do tratamento analítico no campo da saúde mental” in: Psicanálise, Clínica e Instituição, Mello, M e Altoí, S. Rio de janeiro, Rios Ambiciosos, no prelo.
68
Estamos hoje em outro momento, não mais o de ficar questionando se a
psicanálise está ou não presente na saúde mental. Nossa tarefa agora é bastante
mais complicada, temos que reinventar na prática o legado de Freud e Lacan,
sustentando com rigor ético o discurso psicanalítico.
Não podemos justificar um recuo nosso frente às novas dificuldades impostas,
utilizando a possibilidade, apontada por Freud, da contaminação do ouro puro da
psicanálise por metais de menor valor, pois, na mesma citação é ele próprio quem
deixa claro, ao final de sua previsão que:
“qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa”.138
A psicanálise para ser assim designada, mesmo que se apresente com
roupagens diversas, respeita certos princípios. O espaço institucional inclui a
possibilidade da prática psicanalítica se o laço analítico – o laço entre a função
analista e a função sujeito – se estabelecer. O que há de novo é que a clínica
nesses espaços têm demonstrado que esse laço não é dependente do setting
tradicional de consultório particular.
“Tais funções não se destacam e enlaçam apenas quando há só duas pessoas, dois corpos, em uma sala O que é exigível é que essas duas funções sejam verificáveis, que um laço analítico se estabeleça entre elas. Não é relevante (quanto a esta condição de análise) que, no espaço institucional considerado, estruturado segundo as diretrizes e princípios do dispositivo psicanalítico (que não coincide com o consultório particular), haja duas ou mais pessoas, desde que, entre elas, analista e analisante se destaquem do conjunto como situando-se fora dele, mas articulados a ele”.139
Muitos autores têm se ocupado da maneira pela qual a psicanálise está na
saúde mental; as diferenças e aproximações de um tratamento em consultório e da 138 Freud, S. – “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica” (1919[1918]) vol.XVII p. 210 e 211 139 Elia, L. – “O sujeito demasiado visível do autismo” Trabalho apresentado na I JORNADA CLÍNICA DA SEDE RIO DO LAEP, O Autismo tratado pela clínica psicanalítica, realizada no dia 11 de dezembro de 2004 no Museu da República (Palácio do Catete), Rio de Janeiro.
69
prática exercida na instituição. As posições são várias. Alguns acreditam na
possibilidade de que haja em uma instituição efeitos psicanalíticos, escuta
psicanalítica, orientação psicanalítica, mas não a verdadeira psicanálise. A posição
inicial de que nenhuma psicanálise era possível na instituição, ainda que presente
em alguns teóricos, já não é mais defendida em larga escala. Seguiu-se a ela a
suposição de que se poderia pensar em uma psicanálise em extensão e, logo depois
– para não fortalecer o possível equívoco com o que Lacan havia designado com o
mesmo nome –, alguns psicanalistas do campo da saúde mental substituíram o
termo ‘extensão’ pela nominação ‘dispositivo psicanalítico ampliado’.140 Porém esse
nome, embora usado por muitos não dissolve algumas profundas diferença
práticas/teóricas, pois enquanto uns defendem haver na instituição efeitos de sujeito
provocados pela ação da psicanálise, mas não sujeitos em análise, outros tendem a
assegurar que a psicanálise – com todo rigor teórico que comporta esta afirmação –
está em stricto sensu na instituição.
São profundamente instigantes as conjecturas sobre o entrecruzamento da
psicanálise com a instituição, mas não me será possível desenvolvê-las mais. Opto
por, no momento, me dar por satisfeita com essas iniciais articulações. Mais adiante
apresentarei minha prática clínica institucional orientada pelos princípios
psicanalíticos, embora não vá, pelo menos nesta dissertação, me remeter mais a
essa interessante discussão.
3. O CAPSI Eliza Santa Roza
Com a reforma psiquiátrica, a partir da década de 80, foram criados os
CAPS’s. Estes dispositivos assistenciais de saúde mental surgiram com o objetivo
de substituir os antigos manicômios e hospitais psiquiátricos, que lamentavelmente
ainda existem e continuam sendo muitos. O Rio de Janeiro é dividido em áreas
140 idem, ibidem.
71
periódico com todos os aparelhos públicos que atendem as crianças na área
programática 4 visando uma maior integração e discussão de problemas.
A equipe que pertence ao CAPSI ESR é multiprofissional e trabalha
interdisciplinarmente. 143 Trata-se de uma equipe eclética constituída por várias
profissões diferentes – enfermeira, psicólogo, assistente social, psiquiatra,
musicoterapeuta, psicanalista, terapeuta ocupacional e psicomotricista. Passam
ainda pelo serviço profissionais em formação, fazendo residência em saúde mental,
e também alguns estagiários. As reuniões de equipe semanais contam com um
supervisor clínico.144 A equipe não é formada somente por psicanalistas, porém
temos concordado em que a psicanálise dê a direção da clínica que exercemos.
Nossa prática e também discussões teóricas são balizadas, fundamentadas e
sustentadas na psicanálise.
Temos, no CAPSI Eliza diversos dispositivos de atenção às crianças, como
oficinas, grupos de pais, grupos de musicoterapia, atendimento aos pais, oficinas,
etc. Porém o dispositivo de “Convivência” é aquele que se tornou, por nossa
experiência clínica, o dispositivo príncipe de nosso atendimento. O dispositivo de
Convivência se assemelha à ‘pratique à plusieurs’145, uma expressão usada por
Antonio Di Ciaccia, que foi sustentada conceitualmente por Jacques-Alain Miller.
Este novo dispositivo começou a ser desenvolvido em 1990 por alguns psicanalistas
europeus em instituições para crianças autistas e psicóticas, na Bélgica, na França,
e na Itália.146
É um dispositivo clínico que acontece tanto na pluralidade das crianças
quanto dos que as tratam, além de se realizar em múltiplos espaços e nos vários
tempos envolvidos no tratamento. Essa prática, por ser psicanalítica, promove que a
função de analista e a função de sujeito façam laço. A pessoa que oferece o
143 Na data da inauguração a equipe era composta por Nilzette de Oliveira Santos, Suzzely F. Lopes Lima, Marcia Frias, Claudia Coutinho, Rossanno Cabral Lima, Sandra Autuori, Jorge Rogério Fagin, Maria Jacintha C. da Franca, Rosemary Fiães Pinto, e Joana D. Vibranovski. 144 O supervisor do CAPSI Eliza Santa Roza é Luciano Elia, psicanalista. 145 Mantenho a expressão em francês por não haver consenso no Brasil sobre o melhor termo para designá-la, se prática feita por vários ou entre muitos. 146 Para melhor entender essa nova contribuição dos psicanalistas à clinica das psicoses ler o livro “La pratique à plusieurs em institution” Publication du Champ Freudien em Belgique: Preliminaire; ACTES des Troisièmes Journées du Réseau International d’Institutions Infantiles. Bruxelles, 1-2 février 1997.
72
tratamento se coloca em uma posição dessubjetivada, à escuta do que vai
subordinar sua ação.
A equipe do CAPSI Eliza Santa Roza acredita que tanto as reuniões de
equipe, quanto as reuniões de fim de turno fazem parte do tratamento dispensado às
crianças. São momentos em que as impressões sobre o atendimento são trocadas.
A clínica que acontece em um espaço institucional como um CAPS possui a
característica de não se restringir ao settig terapêutico. Além disso, algumas
discussões relativas a assuntos gerais que parecem ser apenas burocráticas,
apresentam reverberações no tratamento, por isso, cada uma delas merece receber
o peso clinico que contém. A clínica é soberana sob todos os aspectos já que diz
respeito ao sujeito.
4. Precisando a arte do CAPSI Eliza Santa Roza.
Neste momento da dissertação em que já foi mostrado no primeiro capítulo
um mapeamento da arte na teoria freudiana; em que foi apresentado uma proposta
de leitura da arte depreendida da obra de Lacan no segundo capítulo; de ter se
percorrido, mesmo que de forma breve, a história da arte no tratamento da loucura e
de ter sido localizada no campo da saúde mental, em particular no CAPSI Eliza
Santa Roza, esta pesquisa, faz-se necessário precisar a arte presente na clínica que
exercemos.
A utilização da arte no tratamento psíquico, como já demonstrei, não é
novidade. O que pioneiramente foi desenvolvido por um pequeno seguimento é hoje
um recurso amplamente utilizado. Atualmente quase todos os serviços de
tratamento, principalmente os direcionados à clientela mais grave comportam
espaços onde a criação artística está presente.
Esta realidade se torna surpreendente quando a confrontamos com a
constatação de não ter sido encontrado, durante esta pesquisa, um só espaço em
que a utilização da arte no tratamento psíquico seguisse uma orientação
psicanalítica freudiana e/ou lacaniana.
De forma geral, a arte aparece como um recurso que se mostra eficaz, no
sentido mesmo de oferecer certa possibilidade de estabilização ou mesmo de
73
facilitar reflexões, porém sem um suporte teórico que reflita sobre a prática exercida.
Os estudos recentes se referem a oficinas laborativas que ocasionaram melhoras
em pacientes que delas fizeram uso, ou então trabalhos que ressaltam o talento
artístico de certos usuários de serviços de saúde mental.
Também encontramos escritos, alguns interessantíssimos, sobre arte e
psicanálise. Porém, quando este entrecruzamento é feito, entre a arte e a
psicanálise, ele é só teórico. Não encontramos nesses autores nenhuma articulação
com o tratamento psíquico, não há relatos com abordagens psicanalíticas da prática
clínica com a arte. Isto torna a dissertação que me propus realizar um pouco solitária.
De um lado encontra-se a arte amplamente utilizada na clínica, porém sem um apoio
teórico com aporte psicanalítico freudiano/lacaniano, de outro há os autores
dissertando sobre a arte com profundo suporte psicanalítico, mas sem se
aventurarem a pensar um possível entrecruzamento com a prática clínica. Em um
terceiro vértice vislumbro a sempre entusiástica discussão sobre a presença da
psicanálise no campo da saúde mental, porém nesta polêmica a arte não é incluída.
Entretanto, estes três vértices: Arte, Saúde Mental e Psicanálise estão legitimamente
presentes na clínica que exerço. E é no contexto de sustentação do discurso
psicanalítico no campo da Saúde Mental – onde se procura estabelecer uma clínica
com rigor teórico, afinada com a ética psicanalítica – que me lanço no novo desafio
de articular na prática a psicanálise com a arte.
A criação é central tanto no tema da sublimação como no da ética da
psicanálise para Lacan. 147 E é, para nós, exatamente a perspectiva ética que
norteia o trabalho com a arte no tratamento psicanalítico oferecido no CAPSI Eliza
Santa Roza. Lacan utiliza o vaso, produzido pelo artista mais antigo, o ceramista,
como o objeto que pode, metaforicamente, falar sobre os mistérios da criação. Este
primeiro significante modelado pelo homem é distinguido do utensílio vaso, para ser,
em sua ‘essência de significante’, significante “de tudo que é significante – em
outros termos, de nada particularmente significado”.148 Assim, o que caracteriza o
vaso é justamente o vazio que ele cria e a perspectiva de preenchê-lo. O vaso é
147 Lacan, J. – O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959 – 1960) 148idem, ibidem p. 151
74
promovido por Lacan ao representante da “existência do vazio no centro do real que
se chama a Coisa, esse vazio (...) se apresenta (...) como um nihil, como nada”.149 O
ceramista cria o vaso em torno do vazio. A criação na arte está na relação que o
objeto artístico pode estabelecer com a Coisa, de modo que esse vazio possa ser
presentificado.
Para continuar na tarefa de sustentar esta articulação necessito expor o
conceito sobre arte com o qual trabalhamos no CAPSI Eliza Santa Roza. Vou me
deter mais especificamente em dois espaços, por serem os quais participo. O
primeiro com pacientes adolescentes e o segundo com crianças mais novas, autisas
e psicóticas.
Nesses espaços o conceito de arte que utilizamos não está relacionado ao de
produção de obras de arte valorizadas socialmente. Mesmo que alguns pacientes
apresentem um talento artístico especial, não é nesta direção que caminhamos.
Inclusive, pode não haver um objeto produzido ao final do trabalho.
À arte criada no espaço de tratamento não respondemos com um significado.
O que podemos aferir não é nunca sem relação à clínica. Principalmente, não se
trata de esperar da arte que ela venha ser uma ‘psicobiografia’ de seu autor, que vá
dar sua contribuição se aliando à psicanálise para desvendar o lado obscuro da
mente do paciente. Entender a arte através da psicanálise como tradutora de relatos
de memórias é acreditar que o inconsciente está guardado no passado do
analisando esperando para ser descoberto através de suas criações artísticas. Não
acreditamos em uma técnica de interpretação da arte em psicanálise, nem em
fórmulas prontas ou interpretações selvagens e sem autorização. Só há intervenção
possível se for no reconhecimento de que o que se está fazendo é recobrir furo com
furo, sempre restando algo de não dito que alimente o deslizamento dos
significantes.
Chamo atenção para o fato de que, em última instância, a criação artística
aponta para o vazio, mas um vazio que põe em movimento a inventividade. A arte
desencadeia (em todos os sentidos do termo) a criação. Não é a toa que nós nos
sentimos inspirados quando somos tocados por uma obra de arte. 149 idem, ibidem , p. 153.
75
Não existe nenhuma obrigatoriedade relativa à atividade, o que não significa
dizer que não haja oferecimentos, porém, estes oferecimentos podem ser recusados,
acrescidos ou mesmo trocados por outro. Não há determinação prévia de nenhuma
atividade, ela é escolha de cada um, podendo ser exercida em grupo ou apenas por
alguns participantes ou mesmo isoladamente; geralmente ocorrem várias atividades
ao mesmo tempo. Muitas vezes ela é desenvolvida a pedido de algum paciente, ou
então vai sendo eleita por ele no decorrer do tratamento. A escolha ou oferecimento
de determinada atividade tem a ver com o sujeito em questão. Este trabalho
considera que não há incompatibilidade com a prática psicanalítica o oferecimento
de algum material, desde que a razão que oriente o oferecimento esteja ancorada na
clínica do sujeito em análise e não em uma demanda do analista.
Neste sentido podemos lembrar da psicanálise com crianças, pois nela o
brinquedo é parte integrante da clínica. Entretanto, não dá para negar que muitos
profissionais transformam suas sessões em uma ludoterapia que visa domar
“pulsões endiabradas” de seus pequenos pacientes. Porém, o caminho para
preservar o rigor da clínica psicanalítica com crianças não é o de retirar o brincar,
mas o de sustentar sua importância e pertinência no tratamento, reconhecendo, com
Freud, que o brincar é determinado por desejos inconscientes e representante da
realidade psíquica, e que é na articulação do brincar com a verbalização que a
função do analista implica profundamente o sujeito. Desta forma, acredito que a
atividade artística também pode ser um oferecimento presente na clínica
psicanalítica desde que respeite os mesmos preceitos éticos que o brincar na clínica
com crianças.
A Criatividade por sua vez não é tomada como tendo relação quantitativa com
conflito psíquico. Como nos lembra Teixeira150 , a loucura não pode enunciar a
verdade da arte, nem a arte, tão pouco, poderá enunciar a verdade da loucura.
Mesmo porque a verdade não pode ser enunciada toda. Muito embora nos pareça
ser uma grande vantagem o artista poder expressar conflitos psíquicos através da
arte. 150 Coelho, Teixeura – “A Arte não revela a verdade da loucura, a lucura não detém a verdade da arte” in: Psiquiatria Loucura e Arte: fragmentos da história brasileira, Antunes, E. H. Barbosa, L. H., Pereira, L.M.F. (org.). sâo Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002 (Coleção Estante dos 500 anos,6).
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Pensamos a arte na clínica como um elemento que ajude o sujeito a inventar
uma forma de estabelecer seu contorno singular em torno do vazio.
5. Clínica psicanalítica com arte
“É preciso ser sem escrúpulos, trair-se, expor-se, comportar-se como o artista que compra tintas com o dinheiro da casa e queima os móveis para que o modelo não sinta frio. Sem algumas destas ações criminosas, não se pode fazer nada direito”.151
Buscando oferecer, neste item da dissertação, um colorido que só a clínica
pode proporcionar, apresento o testemunho do trabalho desenvolvido no CAPSI
Eliza Santa Roza no qual a arte é incluída, articulando esta clínica com os
postulados teórico-práticos da psicanálise.
Como já foi exposto, no CAPSI Eliza Santa Roza existem dois espaços em
que alguns efeitos interessantes vêm ocorrendo quando a arte vem se somar à
psicanálise no tratamento psíquico. Um com pacientes adolescentes autistas,
psicóticos e neuróticos graves, e outro com pacientes mais novos de até onze anos,
autistas e psicóticos. O primeiro originou-se de uma oficina de arte que era
coordenada por mim, na época uma acadêmica bolsista, no antigo COIA (Centro de
Orientação a Infancia e a Adolescencia), serviço que veio a se transformar no CAPSI
Eliza Santa Roza. O segundo é um dispositivo de tratamento que foi criado depois
da inauguração do CAPSI.
5.1. A Oficina de arte
O primeiro espaço era inicialmente chamado de ‘oficina de arte’. Esta oficina
foi criada em um momento da reorganização do serviço, quando estava deixando de
ser um ambulatório para se tornar um CAPSI. Desde o começo ela se voltou à
atividade de criação, importando menos o tipo de atividade a ser executada, e mais
151 Freud, Sigmund. Apud, Freud e seu duplo de Noemi Moritz Kon. p.11
77
fazer funcionar o processo criativo. Porém a denominação ‘oficina de arte’ leva a
muitos equívocos. Oficina é um termo utilizado para descrever inúmeras práticas
terapêuticas, inclusive algumas nem tão terapêuticas assim. Muitas vezes é uma
atividade dirigida, onde a preocupação com o produto final se sobrepõe ao trabalho
psíquico envolvido na ação. Dentro do campo da saúde mental está quase sempre
vinculada a atividades que têm como característica a valorização do produto em si.
Foi por estas razões que fomos parando de nomeá-la ‘oficina’ e incorporando-a ao
dispositivo de Convivência que ocorre no mesmo momento.
A oficina ‘explodiu’, sendo incorporada por esta outra atividade, mas também
a contaminou, levando para esse espaço mais amplo de atendimento outros
recursos que antes não eram utilizados. Ela é hoje um acontecimento aberto e livre
à participação de quem estiver em tratamento no mesmo horário, não havendo, no
entanto obrigação de se permanecer dentro da sala. A circulação pelo CAPSI fica a
critério dos participantes. É preciso pontuar também que a palavra convivência para
o dispositivo de tratamento que desenvolvemos no Eliza também não traduz o que
fazemos. É uma palavra que parece não sugerir tratamento psíquico em um
dispositivo que tem a psicanálise em sua direção, com uma clínica que sustenta o
um entre muitos no viés da singularidade, avessa ao fazer em grupo que é
amparado pela crença nas identificações imaginárias. Por outro lado, pode também
sugerir que estejamos trabalhando na direção de promover laço social, o que reflete
melhor a presença da psicanálise no trabalho desenvolvido.
A partir do tratamento com adolescentes em grave sofrimento psíquico foram
revelando-se diferentes formas em que a arte comparece. Algumas delas serão
apresentadas a seguir.
A arte mediando o encontro
Como deixei claro, no espaço que inicialmente chamávamos ‘oficina’, embora
não haja a prévia condição para que o paciente produza algum obra, não há também
nenhuma rejeição – caso seja de seu interesse – que ocorra a criação de algum
objeto.
Os elementos e materiais a serem utilizados como: papéis, tesoura, cola, tinta,
argila, (o que não estiver em falta no serviço) funcionam como meios para
78
possibilidades de subjetivação. Apresento a hipótese de que parece haver neste
trabalho que conta com a ajuda da arte uma vantagem clínica no que concerne aos
impasses da transferência. Principalmente no campo da psicose, a obra que está
sendo criada pode funcionar como um mediador, um objeto intermediário que
protege o sujeito psicótico da sensação de invasão que o acomete pela presença de
outra pessoa. Assim, o analista conta com uma ajuda em sua dessubjetivação.
O analista, que inicialmente é procurado como sujeito que sabe, se deixa
usar pelo analisando se simulando de objeto a e, ao final da análise é reduzido a
resto, a des-ser. O analista se oferece como uma tela vazia. Vai se deixando pintar
pelo analisando que cria sua fantasia. O analisando vai se inventando como um
artista que sabe que a arte só expõe o vazio, na direção de um estilo de des-ser.
A posição do analista, como diz Lacan “está no meio, onde está o vazio, o
buraco, o lugar do desejo”.152 Só é possível para o analista se oferecer desubjetivado
por ter, no término de sua própria análise, se confrontado com a castração, com sua
falta-a-ser. O lugar do analista é aquele mesmo de Velásquez no momento em que
pinta seu quadro “As meninas”: Como diz Lacan:
“...a regra para que o analista escape a esta vacilação que o faz facilmente recair nessa espécie de ensino ético, é que ele se dê conta do que está em questão no próprio lugar do que condiciona a vacilação essencial, a saber, o objeto pequeno a; e que em vez de se considerar, ao fim desses anos de experiência, como clínico, ou seja, aquele que sabe fazer avaliação do assunto em cada caso, ele prefira se dar (...) essa referência (...) e não surpreende que sejam exemplos tomados da arte (...) algo para que se oriente, a saber, para que tenha uma outra espécie de conhecimento diferente deste conhecimento de ficção que é o seu (...) e, uma vez que ele entre com a análise, que ele procure no caso, na história do sujeito, da mesma maneira que Velásquez está no quadro das Meninas, onde ele já está, o analista, a tal momento e em tal ponto da história do sujeito. A vantagem disso é que ele saberia o que é a transferência. O centro, o pivô da transferência não se passa absolutamente por sua pessoa”.153
Embora não haja nada contra analistas serem artistas, a comparação feita por
Lacan é com o ‘lugar’ e não como o ‘ser’. Lacan está comparando o lugar do analista 152 Lacan, Jacques. O Seminario, livro 15: o ato psicanalítico. (1967-68) p. 71. 153 idem, ibidem p. 272.
79
com o do pintor é certo, mas é ao pintor que está retratado no quadro, que faz parte
da pintura, ou seja, o que foi pintado pelo pintor Velásquez.
Lacan em muitos momentos intitula o analisando, poeta, cabendo ao analista
fornecer estímulo à inventividade do sujeito, com suas interpretações. “Os efeitos da
interpretação são recebidos ao nível da estimulação que ela fornece à inventividade
do sujeito”.154 Em certo momento Lacan esclarece:
“Felizmente, há um buraco. Entre o delírio social e a idéia de Deus, não há medida comum. O sujeito se toma por Deus, mas é impotente para justificar que se produz do significante, do significante S¹, e ainda mais impotente para justificar o que esse S¹ representa junto a outro significante, e que seja por aí que passem todos os efeitos de sentido, os quais se tapam imediatamente, estão em impasse. A astúcia do homem é encher tudo isso, eu o disse, com a poesia, que é efeito de sentido, mas também efeito de buraco. Não há mais que a poesia, eu já disse, que permita a interpretação. É por isso que eu não alcanço com minha técnica, ao que ela sustenta. Eu não sou bastante poeta (‘Je ne saris pus poate-assez’)”.155
Lacan diz não alcançar com sua técnica o que não é mesmo alcançável, só
pelos poetas, e justamente porque a poesia interpreta mas não pode ser traduzida.
A arte nos diz (no duplo sentido, o de falar para nós e de falar sobre nós), mas não
conseguimos dizê-la. A arte é maior que o artista.
No tratamento psicanalítico, onde a arte está presente mediando o encontro
do paciente com o analista, o possível desvio de atenção provocado pelo fazer
artístico no analisando pode se mostrar algo interessante de ser manejado pelo
analista, já que a obra e o fazer artístico, para onde se dirigiu o interesse, é ‘em si
mesma’ um nada, um sem significado prévio e ao mesmo tempo produto do sujeito.
Interpretação da arte
A obra que está sendo criada também pode ser um ato à espera de
intervenção, ou mesmo de interpretação. Opera-se de um lugar delicado, o de não
obter uma leitura contaminada por sua própria vivência e selvagemente oferecê-la 154 idem, ibidem p. 57 155 Lacan, J. – Seminario, 24: Lo no sabido que sabe de la una-equivocación se ampara en la morra, classe 13 Hacia un significante nuevo IV (17 de Mayo 1977) Em CD Pirata
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ao paciente através de sua interpretação como verdade; e tampouco o de se
proteger, sair da reta’ da transferência, se escondendo atrás da teoria ao realizar
uma correspondência direta entre criação e significado. Como se houvesse uma
técnica ou mesmo um manual de interpretação da arte em psicanálise. O traçado do
analista que relaciona a obra à experiência de vida do analisando inclui saber que o
que foi criado é uma reedição endereçada. Pois, como diz Lacan, a transferência
não é outra coisa senão a colocação em ato do inconsciente, e que é feito para
alguém e é efeito da própria transferência. Certamente a arte tem com seu
admirador uma espécie de co-autoria. Eco defende veementemente que, se há algo
que caracteriza a obra de arte é que ela é “uma mensagem fundamentalmente
ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante”,156 e
que existe uma relação de ‘fruição ativa’ com seus receptores, não sendo possível a
total abstração na situação de intérprete. A arte não se esgota em nenhuma leitura e
não há a verdadeira. A arte existe como provocadora e, mesmo que guarde em si
traços de seu criador, ela acontece no encontro e é absolutamente atravessada por
quem a percebe. Ela pertence também a quem a olha, no momento do olhar, na
medida que afeta, transformando, provocando.
Barbosa nos faz recordar que, para Lacan, há poesia quando o poeta nos
introduz numa nova dimensão da experiência, em um mundo diferente do nosso.
Quando nos coloca em contato com outro ser em sua relação própria com o mundo,
fazendo com que esta relação se torne nossa também, “A poesia é criação de um
sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo”.157
No entrecruzamento clínico da arte com a psicanálise, a intervenção ocorre
como indicação de um possível sentido, dentre outros, um sentido como direção,
sentido em movimento, não um significado, reconhecendo-se que sempre resta algo
de não dito que alimenta o deslizamento dos significantes. Se o ato do psicanalista
for na direção de um significado, mesmo se este significado for um novo significado,
ele poderá ser um ato de mestre, mas jamais um ato psicanalítico. O ato
156 Eco, U. – Obra aberta (1976) São Paulo Editora Perspectiva, 1976. p. 22 157 Barbosa, J. P. – Joyce – O Canto das sereias. Texto apresentado no simpósio do Rio de Janeiro da Intersecção Psicanalítica do Brasil.
81
psicanalítico atribui valor de ato significante, em relação ao inconsciente, quando a
interpretação liga através de uma nova articulação os significantes.
Assim, talvez importe menos o novo significado que foi criado do que a
indicação da plasticidade operada pelo ato psicanalítico. Não é o ato de significar e
sim a proposta de que haja criação que compreende o ato na psicanálise. Melhor
dizendo, a dimensão criativa do ato é que deve estar presente na intervenção do
psicanalista, já que a ênfase não está no que foi criado e sim na possibilidade de
que haja criação, no ato de se criar. Tomando essa responsabilidade na
interpretação psicanalítica, transforma-se a clínica de forma radical, já que a
psicanálise deixa de ser uma tradutora de sentidos tornando-se, como diz Moritz
Kan, “um fazer criador de múltiplos sentidos de realidades singulares inéditas”.158
Um sentido não está lá aguardando ser descoberto, a não ser como uma das muitas
possibilidades. Ao analista cabe manter algo por dizer para que a criação nunca se
efetive por completo, não finalize, reste sempre um algo de não dito que alimente o
deslizamento dos significantes.
Lacan no seminário 15 nos diz: “Os efeitos da interpretação são recebidos ao
nível da estimulação que ela fornece à inventividade do sujeito, dessa poesia que
falei há pouco”.159 Podemos concluir que o sentido oferecido na intervenção do
analista não é aquele articulado ao imaginário, e sim uma direção que proponha ao
analisando que ele invente seus próprios caminhos. Mais que isso, o que o analista,
com seu ato, pode apresentar ao analisando é a possibilidade de inventar, ou de se
inventar, para que ele vá criando sua poesia. A falha, a qual o analista dá o nome de
verdade em seu ato, é não toda representável, pois a verdade é furada. Lacan
afirma que o ato provoca uma abertura ‘um traço de luz’, ‘algo de inundante’ que por
muito tempo não voltará a se fechar. Utiliza o termo “babaca”, incluindo o sentido
sexual, para afirmar que a verdade e a babaquice se recobrem, furo sobre furo.
Assim, o ato analítico não pode ser senão ‘eludido’, pois articula-se a um nível que
“responde a esta deficiência que experimenta a verdade por sua proximidade do
158 Kon, Noemi Moritz. op. cit. p.31 159 Lacan, Jacques. O Seminario, livro 15: o ato psicanalítico. (1967-68) p. 57
83
Na psicanálise com arte também contamos com esta possibilidade. Podemos intervir
participando na arte que está sendo criada, junto com o sujeito em análise e, assim,
promover um exercício de deslocamento de sua posição subjetiva. As intervenções
feitas desta forma têm mais possibilidade de serem acolhidas pelo sujeito psicótico
do que intervenções verbais diretamente vinculadas às suas questões.
Cito o caso de uma mocinha, a quem vou dar o nome de Emília. Sempre que
ela chegava pedia para fazer colares e pulseiras. Ela sentava à mesa e construía
colares na cor rosa. Resolvi interferir em sua criação e propus que misturasse cores.
Inicialmente ela aceitou colocar a mais só a cor vermelha, depois passou a combinar
outras cores diferentes. Na medida em que ia adicionando novas cores aos seus
colares, ia também transformando a maneira com que se vestia. Assim como seus
colares Emília, inicialmente, usava basicamente o rosa para se vestir e aos poucos
foi utilizando outras cores. Hoje se veste de forma bastante variada. Outra mudança
observada foi o seu comportamento com os outros, ela era muito tímida e
ultimamente está bem mais sociável. Misturou as cores e também pode se misturar
mais com as pessoas.
84
A atividade artística, o ato criativo, apresenta-se nesta clínica que se pretende
sustentada no discurso psicanalítico – como equivalente ao brincar na forma como é
descrito por Freud. O brincar na infância é o traço da imaginação criativa que poderá
futuramente se desenvolver em arte.
Apresento outro fragmento de caso clínico. Uma adolescente, que vou
chamar de Clara, chegou para nós trazida pela instituição na qual morava, com o
diagnóstico de retardo mental. Este retardo escondia uma estrutura, que não
podíamos precisar, porém Clara apresentava uma fala quase inexistente e um
discurso bastante fragmentado, o que nos indicava a possibilidade de estarmos
diante de um caso de psicose. Um dia, na ‘oficina de arte’ – ainda a chamávamos
assim – quando cortávamos e colávamos eu distraidamente fiz uma sanfona de
homenzinhos, um grudado no outro a partir de um mesmo papel. Clara se interessou
pelos bonequinhos e quis, junto comigo, traçar separações entre eles com pilôs.
Esta brincadeira artística rendeu muitas falas à medida que íamos decidindo e
fazendo juntas as separações. Escolhíamos as cores, o trajeto do traçado e tudo
mais que envolvia esta criação. Ao final, a obra havia ficado muito interessante e
resolvemos colocá-la na parede. A partir deste dia, Clara passou a falar muito mais
nos nossos encontros e seu tratamento acabou apresentando um desenvolvimento
muito melhor do que o prognóstico inicial.
A arte como analista
A clínica com a arte tem nos mostrado que há momentos em que os
pacientes parecem estar realizando algum tipo de ‘elaboração’ enquanto criam, da
qual nós analistas não tomamos parte e, muitas vezes, ocorrem melhoras
independentes de nossas intervenções, só por deixá-los criar. Este acontecimento
faz lembrar um ponto importante na trajetória de uma análise: o “saber fazer com
seu sintoma”, que desemboca na construção do sinthoma, que Lacan nos aponta
como o final de uma análise.
É necessário não confundir a ausência do analista com uma possível
presença silenciosa deste. Pois o silêncio de um analista pode e deve provocar
efeito no analisando, sua presença, mesmo que silenciosa, certamente influenciará
não só o objeto final como todo o processo. Estou descrevendo momentos do
85
paciente com a arte em que não houve endereçamento, não houve nenhuma
transferência a um analista. Momentos em que a arte pôde fazer a vez de analista,
assumir o mesmo lugar vazio do analista.
Parece ser, a partir da possibilidade deste modo de relação entre o paciente e
a arte – neste encontro onde o analista é dispensável – que podemos compreender
o fato de que muitos loucos artistas atingem algum tipo de estabilização ou equilíbrio
só por criarem. Indo um pouco além, podemos pensar que talvez seja essa a
explicação para haverem tantas “oficinas de arte” em lugares de tratamento da
loucura, oficinas que efetivamente alcançam melhoras em seus pacientes sem que
haja muitas vezes nenhum analista por perto.
Podemos lembrar aqui Joyce e seu saber-fazer com seu sintoma. Ele o
transformou em um traço de singularidade, de criação, e assim o fez alcançar o
estatuto de sinthoma. Ao construir uma suplência capaz de sustentar o
entrelaçamento do nó, produziu uma estrutura subjetiva muito diferente da habitual,
porém suficiente para que pudesse viver no meio social sem entrar em surto.
Também podemos nos recordar de Freud, quando propunha a arte como a
possibilidade de se estabelecer um caminho de volta a uma realidade de um novo
tipo.163 Quando a subjetividade fica paralisada em meio a um conflito psíquico, o
artista tem a arte para restabelecer com sua criatividade seus laços com o mundo.
5.2 A arte na clínica psicanalítica com crianças pequenas psicóticas e autistas
Cada convivência no Eliza tem suas particularidades; elas têm uma direção
comum, mas mantém formas diferentes. A convivência à qual vou me reportar é
composta por três técnicos: eu, uma musicoterapeuta e uma psicóloga que tem sua
clínica profundamente orientada pela psicanálise.164 O atendimento é realizado a um
163 Esta idéia é apresentada por Freud nas “Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise” (1916-17 [1915-17]), “Formulações sobre os dois Princípios do Funcionamento Mental” (1911) e “Um Estudo Autobiográfico” (1925 [1924]). 164 Seus nomes: a musicoterapeuta é Benita Michahelles e a psicóloga Joana Dulcetti Vibranovski. As duas também têm ligação com a arte. A musicoterapeuta é pianista e a psicóloga além de filha de atores, trabalha em produção de teatro.
86
mesmo grupo de crianças, sempre no mesmo horário e se desenvolve em uma sala
grande com quintal e brinquedos. Ao contrário do exemplo citado anteriormente, em
que a experiência com a arte iniciou-se a partir de uma oficina, neste espaço a arte
vem se infiltrando lentamente e começou a ocorrer depois dele estar constituído. O
autismo e a psicose infantil são adoecimentos psíquicos que apresentam ainda uma
clínica incipiente. Na verdade, ela está sendo criada, a cada dia, a cada atendimento.
Trabalhamos no sentido oposto ao da ilusão da medicalização do sofrimento, que no
caso de crianças, pode trazer ainda maiores danos futuros. Sua possível utilização,
em determinado momento pontual é cautelosamente estudada.
Em nossas reuniões de fim de turno, quando pensamos os casos, fica claro
que não traçamos soluções – visto que nesta clínica não há – mas um caminho, ou
um passo, até o próximo impasse. Neste sentido, acredito que nossa clínica não
está só afinada com o Caso a Caso – modelo ‘anti-apriorístico’ da psicanálise – mais
do que isso, ela parece ser a do momento-a-momento, porque em um mesmo caso
a direção encontrada sempre pode mudar.
A diferença entre autismo e psicose infantil não é consenso nem na literatura,
nem em quem as trata. Geralmente, ao compará-las, diz-se que a criança autista
não apresenta recurso verbal, enquanto que a acometida pela psicose infantil utiliza
fala, porém, sem efetuar um encadeamento, uma sintaxe, ou quando a fala se
mostra como repetição da fala de outro. Esse enquadre não é muito fácil de ser
sustentado na clínica. As crianças que não falam, comumente passam a falar com
pouco tempo de atendimento, e as que falam sem ‘autoria’ aos poucos vão criando
encadeamentos. Este segundo momento do tratamento, entretanto, é muito mais
lento, mas, mesmo assim, tem mostrado resultados.
As crianças, de forma geral, como já expus na introdução, apresentam
tendência à ação e limite na sua possibilidade de se expressar com palavras.
Agravando essa particularidade da criança, há o fato de que a nossa clientela
apresenta quadros bastante graves, por isso, na clínica que desenvolvemos
adicionamos outros meios e materiais, pois nosso trabalho tem que se haver com
outras formas do dizer.
87
O ato é um conceito interessante para ser analisado aqui, pois se a arte pode
ser vista como um ato que muito diz sobre o sujeito e ao sujeito, poderemos
sustentá-la como um instrumento na clínica.
Sua fórmula nos foi oferecida por Lacan no seminário 15 que se utilizou de
uma citação de Rimbaud:
“Um golpe de teu dedo sobre o tambor descarrega todos os sons e começa uma nova harmonia. Um passo teu é o levantamento de novos homens e a hora em marcha. Tua cabeça se desvia, o novo amor. Tua cabeça se volta, o novo amor”.165
Lacan, neste seminário, nos alerta para o fato de que o ato não é estritamente
ação. Porém, a ação pode atingir uma dimensão de ato, se ela não se restringir
somente à motricidade. O Ato pode, em certos casos, não comportar ação, o que
não exclui a ação de determinado ato. Mas não é disso que se trata quando falamos
em ato. Do que se trata é justamente de não considerá-lo como estímulo-resposta
ou arco reflexo ao nível da ameba.
No Aurélio há dez significados para a palavra ato e mais vinte e duas formas
de combinar a palavra ato com outra que lhe confere significado diferente, entre elas:
ato político, ato atributivo, ato de variedades, ato institucional, ato jurídico, ato
público e ato falho. Como diz Lacan, falar sobre o ato é uma ‘longa’ tarefa166, ele
sublinha que muitos têm se ocupado em falar do ato falho, porém, geralmente se
ocupam do falho e pouco falam do ato.167 O que é encarado como o óbvio é o que
merece que nos detenhamos aqui.
Entre o “No começo era o verbo” da Bíblia e o “no começo era a ação”, de
Goethe, Lacan não vê oposição. No seminário 15 Lacan explicita que no começo era
a ação, porque sem ato não poderia haver começo, pois não há começo sem ação,
e não há ação alguma que se apresente sem uma ponta significante. É esta ponta
significante que caracteriza o ato e não a eficácia de um fazer.
165 Lacan, J. – O Seminario, livro 15: o ato psicanalítico. (1967-68) Notas de Curso, Cópia pirata, p.47 166 idem, ibidem p.93 167 idem, ibidem p. 47
88
O ato é tomado por Freud e Lacan como tendo dimensão significante. Lacan
ao comentar o estudo de Freud “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana” nos diz:
“...em tudo o que está neste capítulo e no que o segue, o das ações acidentais ou
ainda sintomáticas, não se tratará jamais senão desta dimensão que nós colocamos
como constitutiva de todo ato, a saber: sua dimensão significante”.168
Essa afirmação parece recolocar a questão, sob outro enquadre, do que é
passível de ser ouvido, ou mesmo interpretado, isto é, significantizável. Parece claro
que não é só através da fala que o analisando comparece. Afinal, como Lacan, no
mesmo seminário, nos relembra, Freud utiliza a expressão ‘ato’ para denominar
aparições do sujeito. Ele nos fala de atos sintomáticos, dos atos falhos, dos
esquecimentos, dos lapsos da fala, da leitura e da escrita, os equívocos na ação,
superstições, lembranças encobridoras, atos casuais, erros, e passagens ao ato. O
ato pode ser verbalizado pelo analisando em análise e não custa lembrar que fala é
ato. De outra forma, também pode haver ato significante sem fala, que pode ser
vivido na transferência. Freud169 nos diz que, ao invés de lembrar, o sujeito repete
na transferência e que esta é a sua forma de lembrar, o que por si já implica em ato
89
Há, no entanto, um ponto de partida do qual todas as intervenções que
dirigimos às crianças parecem respeitar: Consideramos que seus atos são atos
significantes e que estes são produtos de sujeito. Santos nos ajuda a entender os atos dessas crianças:
“Essa ação não pode ser, por nós, definida como estereotipada, como um testemunho que se oferece através de ruínas, ou simplesmente expressão de degenerescência, mas nossa hipótese é que essa ação diz fundamentalmente do modo de comparecimento do sujeito na psicose infantil e no autismo”.170
Um segundo ponto é que nossas intervenções não são motivadas pela nossa
vontade e sim, causadas por algo que vem da criança. A clínica com autistas nos
apresenta de forma crua a necessária dessubjetivação do analista. Como diz Di
Ciaccia, um dos fundadores da instituição Antenne:
“Nisso, diferentemente das crianças neuróticas, as crianças autistas e psicóticas são mestres para nós: de seus lugares impiedosos, elas nos nivelam todos ao nível do semblant. É como se elas nos ensinassem que nós não valemos senão por nossa função, contanto que estejamos à altura desta”.171
Muito provavelmente uma criança autista não suportaria a clínica de
consultório particular. A instituição aparece como algo que media a relação e dilui
possíveis sensações de invasão. Não podemos nos esquecer que as crianças que
tratamos se sentem atormentadas por um gozo que não conseguem localizar,
crianças nas quais não houve a operação simbólica da função paterna.
Muitas vezes nos vemos tendo a função de costurar seus significantes
desarrumados. É muito interessante notar que quando conseguimos fazer um ponto
de amarração, a criança desliza, abandona o ato que estava repetindo e passa para
outro ato significante. E assim vamos... Muitas vezes nada conseguimos e a clínica
170 Santos, A. W. K. “Ato e discurso no dispositivo analítico com o autismo e a psicose infantil” in: Saber, verdade e gozo: leituras de O seminário, livro 17, de Jacques Lacan, Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2002. (Rinaldi, D e Coutinho Jorge M. A. org.) p.247 171 Ciaccia, D. A. – “Da fundação por Um à prática feita por muitos”. In: Preliminaire, La Pratique à Plusieurs em institution. Publication du Champ Freudien em Belgique. Bruxelas, Fevereiro 1997.
90
fica estagnada e nos sentimos impotentes frente ao Outro avassalador que domina
aquela criança.
Nem sempre apoiamos suas ações, já que às vezes há um gozo do qual elas
são escravas, que as domina. Nestes momentos parecem contar conosco para que
as ajudemos a dar a seus atos outra direção.
Tomamos cuidado para não assumir o lugar do que ‘sabe tudo’, mesmo
quando entendemos suas comunicações, deixamos claro que não sabíamos antes,
que foi preciso que elas nos dissessem. Nos atendimentos que fazemos às suas
mães, é comum termos que abalar suas certezas relativas às crianças. É preciso
criar espaço para que o sujeito possa vir a se inventar.
A experiência de levarmos para a convivência com pequenos alguns
materiais de arte é muito recente. O que obtivemos foi espantoso, esperávamos que
não houvesse interesse por parte das crianças ou que estas fizessem muita
‘bagunça’, e nada disso aconteceu. Algumas se interessam e utilizam o material
para realizarem suas incursões nas artes. Às vezes criamos com elas, às vezes
secretariamos. Estamos atentos para nos mantermos firmes na difícil tarefa de não
nos deixar levar pela conduta disciplinar. Tratamos de crianças, mas não estamos ali
para educá-las. Mesmo que seja essa, muitas vezes, a demanda dos pais.
Possivelmente por desconhecimento mesmo, já que é muito recente o
trabalho clinico com essa clientela, não ousamos o que poderíamos ousar. Sabemos
que estamos ajudando-as a inventar pontos de ancoragem e talvez possamos contar
com mais elementos para isso. “Não é suficiente, de fato, acolher a surpresa, a
invenção. É preciso estar atento a ela, e até mesmo suscitá-la, provocá-la, calculá-
la”.172
O trabalho com arte com crianças autistas só pode ocorrer por que supomos
sujeitos ali e a esta suposição elas respondem com suas criações. A arte é tomada
como o ato criativo de moldar significantes e o ato ganha seu valor de ato
significante em sua relação com o inconsciente. Procuramos, utilizando a arte, dar
suporte para que seja possível algum encadeamento significante, uma ordenação
lógica em seus discursos soltos. Oferecemos a possibilidade da arte servir como 172 Stevens, A “A instituição; prática do ato” p. 20
91
uma base onde o inconsciente comece a se articular em discurso. O cuidado que
temos quando trazemos a arte é de não trazê-la como uma demanda nossa. A arte
também funciona, muitas vezes, como o ‘mais um’, algo que dilui ainda mais nossa
presença, que ajuda a barrar o Outro e promove o sujeito. Para testemunhar com a
prática este relato da experiência da arte com autistas e psicóticos infantis, trago
dois momentos do entrecruzamento da arte com a psicanálise no tratamento de
duas crianças autistas.
O primeiro acontece com um menino de cinco anos que vou chamar de Isaías.
Soube, através dos atendimentos individuais feitos a seus pais, que a mãe de Isaías
não conseguia negar-lhe o seio. Para desmamá-lo ela teve que se valer de uma
artimanha. Passou mercúrio cromo no peito e, mostrando-lhe, disse-lhe que estava
machucada, razão pela qual não poderia lhe dar de mamar. Ao introduzirmos os
materiais de artes na convivência, Isaías mostrou rapidamente predileção por uma
atividade. O menino, com um pilot vermelho, rabisca as fotos das mulheres, e
concentra seus riscos na região dos seios. Outra arte que Isaías gosta muito de
fazer é recortar as figuras das revistas e depois colá-las remontando a revista. Outro
dia pus-me a fazer uma colagem ao seu lado, e para isso tínhamos que compartilhar
a mesma cola. Cada vez que eu pegava a cola Isaías reclamava muito, dava berros
e pulos para que eu a devolvesse. Eu, por minha vez, calmamente avisava que
depois de usar eu a devolveria. Isso se repetiu muitas vezes, porém, a cada vez ele
ia berrando menos. Fui falando com ele, dizendo que ele podia acreditar em mim,
que eu sabia que era difícil pra ele acreditar porque em sua casa o sim e o não eram
confusos: “Eu quero te dar o peito, mas eu não posso”, aquilo era um não fingido de
sim e ao mesmo tempo um sim que na verdade era um não. No fim não existia nem
sim nem não. Quando ele ouviu a argumentação de que aqui era diferente, que ele
podia acreditar no meu não e no meu sim, ele olhou, deu um largo sorriso e acenou
um sim com a cabeça. Ao final pôde acreditar que eu devolveria a cola, chegando a
entregá-la na minha mão quando eu pedia.
Para finalizar apresento outro fragmento de caso clínico que oferece um
colorido que só a prática pode proporcionar. Aconteceu com um menino de 7 anos
que vou chamar de Caíque. Seus pais vêm repetidamente falando sobre quererem
que Caíque passe da turma especial de condutas típicas para a turma regular na
92
escola. O menino já fez uma avaliação, por insistência deles, junto à 7ª CRE e não
foi considerado apto a mudar de turma. Porém os pais não se contentam e
constantemente retornam ao assunto. Caíque fica muito inquieto com tudo isso. Seu
pai comenta, em atendimento, que Caíque não foi aceito na turma regular porque
não sabia escrever, que esta é a condição, estar alfabetizado. Neste dia, Caíque
com uma vareta nas mãos fez riscos na areia. Perguntei se ele estava escrevendo e
comentei que havia conversado com seu pai sobre a escola e sobre a avaliação pela
qual passou. Caíque me olhou muito firmemente, se levantou, e começou a fazer
sua arte. Ele ia até a mesa em que estavam as tintas, lambuzava a mão com
determinada cor, saía da sala e marcava na parede do lado de fora, lavava a mão na
torneira e voltava, escolhia outra cor e fazia o processo todo outra vez. Acabou
ficando muito interessante, tanto que mantivemos a pintura na parede, ela sugere
um caminho feito de mãos, tem muito movimento e cores variadas. Quando Caíque
terminou sua ‘obra’, chamou a mãe para mostrar-lhe a escrita que havia criado ali.
CONCLUSÃO
O estudo relativo à aplicabilidade da arte na psicanálise é uma espécie de
inversão do que vem sendo produzido atualmente sobre a relação Arte e Psicanálise.
Normalmente, e não são poucos os autores, é a psicanálise que é aplicada à arte.
Quero esclarecer que, como disse antes, nada tenho contra essa articulação e que
encontrei trabalhos interessantíssimos neste âmbito. Utilizando a ‘ferramenta
psicanálise’ como uma lupa sobre determinada obra ou autor, muitos escritos
importantes têm sido criados.
Para talhar esta pesquisa, não me detive em fazer um estudo da arte no
tratamento psíquico em geral, mas sim de falar sobre um modo de tratar que tem a
psicanálise freudiana/lacaniana em seu fundamento. Como pudemos constatar, a
relação Arte e Loucura encontra muitos adeptos, tanto na prática quanto na teoria.
Só que o diálogo que efetuam é com outras teorias.
93
O CAPSI Eliza Santa Roza, lugar em que trabalho, pertence à rede pública de
saúde mental. A psicanálise vem se firmando neste campo principalmente a partir da
década de 90. Porém são muitas as questões relativas à presença da psicanálise e
elas animam ainda muitas discussões. Esta pesquisa não poderia deixar de tocar
neste assunto e marcar algumas posições. O eixo principal do debate é: o que
ocorre na instituição pode ser descrito como efeitos de sujeito provocados pela ação
da psicanálise ou ainda: a psicanálise está em stricto sensu na instituição?
Parece ser consenso entre os psicanalistas que a psicanálise está na saúde
mental enquanto um recurso teórico/clínico e que é preciso sustentá-la, mesmo que
com roupagens diversas, respeitando certos princípios. Freud deixou uma
declaração muito clara de sua posição. Qual seja, apoiar a necessária contribuição
da psicanálise ao tratamento da ‘miséria neurótica que existe no mundo’, pois o
pobre também tem direto à assistência mental. Ao mesmo tempo, firmar que a
psicanálise, ao entrar neste novo terreno, mantenha seus princípios básicos e
definidores. Como diz Freud: “...aqueles tomados à psicanálise estrita e não
tendenciosa”.173
A posição exposta nesta pesquisa é a de reinventar na prática o legado de
Freud e Lacan, sustentando com rigor ético o discurso psicanalítico. Para isso
apresentei a clínica que exerço com arte e psicanálise na Saúde Mental.
Entretanto, o entrecruzamento da arte com a psicanálise se configura como
uma questão que necessita ser analisada tanto a partir da prática clínica quanto
através da investigação teórica. Na teoria, o ponto de partida para traçar uma
compreensão da ótica psicanalítica sobre a arte foi a leitura atenta dos
ensinamentos de Freud.
O pensamento dialético de Freud é mais do que teoricamente indispensável,
pois ele é motor de arranque, promove o avanço do pensamento. Cada parágrafo
escrito abre muitos caminhos ao pensamento, às vezes acontece da cabeça se
perder em tantas conjecturas e bifurcações, não é a toa que inúmeros textos foram
criados a partir de seus escritos. Seus pensamentos abrem possibilidades,
173 Freud, S. – “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica” (1919[1918]) vol.XVII p. 210 e 211
94
alimentam de modo brilhante nossas idéias. Ele é mais do que um teórico, Freud é
um artista das letras. Expõe com arte sua teoria.
Em relação à arte Freud demonstra o principal, que ela não pode ser
desvendada. Não há uma verdade última que abarque o total desvelamento do que
seja a arte e os enigmáticos dotes artísticos são inexplicáveis. Mesmo quando Freud
se arvora no terreno das artes assumindo o lugar de decifrador, acaba sempre por
admitir que é apenas um aprendiz. Embora tenha se utilizado de muitas obras de
arte para arriscar compreensões psíquicas de seus autores, Freud não propôs que a
arte pudesse ser utilizada como um elemento no tratamento psicanalítico. Entretanto
chegou a esboçar, em carta a Osório César, certo entusiasmo pela abordagem
psicanalítica de pinturas criadas por internos psiquiátricos.
Em Lacan encontramos a arte definida como um modo de organização em
torno do vazio. Ela não tenta tapá-lo nem o ignora. Pelo contrario, se nutre do vazio
ao mesmo tempo em que o expõe.
A relação da arte com o vazio comparece na obra de Lacan de quatro
maneiras diferentes. A primeira como a arte do bem. Esta é estritamente
comprometida com o consumo, razão pela qual poderíamos, ao invés de manter o
título de arte, propor nomeá-la ‘estética fruto do marketing’.
A segunda é a arte do belo, para esta não há melhor exemplo do que a obra
de Leonardo da Vinci, Mona Lisa; pelo engano da satisfação que ela oferece antes
de nos abandonar imergindo em todo o seu mistério.
A terceira leitura da arte em Lacan é a que rompe com o tradicional e
escancara o não sentido. Esta arte captura não pela promessa – não cumprida, é
claro – da arte bela, e sim exatamente por expor logo de saída o indizível como
indizível.
Porém, o que Lacan oferece de mais importante para a pesquisa da arte na
clínica é o que nomeei como a Arte Sinthomática. A arte é apresentada como algo
que pode fazer função de quarto elo, organizar o em torno do vazio constitutivo da
subjetividade humana, fornecendo um enlace. Funcionar como suplência do Nome-
do-Pai e, assim sustentar uma organização singular que possibilite ao sujeito um
gozo próprio que o liberte de ser o objeto do gozo do Outro. Esta inovação traz uma
conseqüência clínica: a possibilidade de uma estabilização psíquica existe não
95
apenas através da estruturação do delírio como forma de tratar a psicose. É possível
a construção pelo sujeito de uma versão própria ao desejo da mãe, isto é, a
passagem do sintoma ao sinthoma, tendo como conseqüência um estilo singular. A
psicanálise através do testemunho de Lacan sobre Joyce cata as migalhas deixadas
pela arte.
Mergulhamos na clínica, a arte no tratamento psíquico não é um recurso novo.
Sua primeira função foi a de ser uma terapêutica não tradicional, uma possibilidade
de tratamento que trazia melhoras efetivas nos internos psiquiátricos e que
escapava dos métodos violentos utilizados na época. A arte na loucura foi
vanguardista. Entretanto, devido à qualidade das criações efetuadas, o que a
principio foi somente a experimentação de um modo de tratar mais humano tornou-
se um dos argumentos mais contundentes pela ‘desestigmatização’ da loucura. A
arte é uma atividade humana de alto valor social. Porém, essa aproximação da arte
com a loucura acabou criando alguns estigmas para os artistas, não é incomum
ouvir que todo artista é louco. Confundem a complexidade psíquica presente em
todo ser humano com a loucura. A possibilidade de expressá-la através da arte é um
dom e não uma sentença de loucura. Como diria Caetano Veloso de perto ninguém
é normal, mesmo porque não dispomos de um parâmetro de normalidade; como O
Alienista de Machado de Assis demonstrou muito bem. Assim, como não há relação
direta e dependente entre a arte e a loucura, quem tiver a felicidade de possuir
talento e muita dedicação, que expresse a sua idiossincrasia.
O relato da clinica com arte no CAPSI Eliza Santa Roza foi realizado sempre
no sentido de sustentá-lo nos preceitos psicanalíticos. Trabalhamos com uma
clientela muito grave, crianças e adolescentes autistas e psicóticos. Muitas vezes
aparecem obras interessantes e não posso negar que as admiro. Porém, não
desenvolvemos uma oficina que trabalhe nesta direção, o produto final não se
sobrepõe ao ato de criação e nem ao trabalho psíquico envolvido na ação. Em
relação à obra criada não empregamos nenhuma técnica de interpretação em
psicanálise, pois não acreditamos que exista tal manual. Muitas vezes não há
sequer produto, nenhuma obra, nenhum objeto. A arte é uma opção oferecida que
pode ou não ser utilizada da maneira que melhor convier ao interessado, se estiver
interessado.
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A arte como um elemento da clínica revelou varias facetas que não são
excludentes entre si. A arte que medeia o encontro é uma forma da aplicabilidade da
arte na clínica que funciona muitas vezes como o ‘mais um’, algo que dilui ainda
mais nossa presença e ajuda a barrar o Outro. Isto é, esta mediação facilita o laço
analítico, pois ajuda a fazer a pessoa que habita o analista desvanecer-se.
A arte quando comparece como obra, um objeto produzido pelo sujeito – não
que seja indispensável ou obrigatório – pode proporcionar ao analista que faça uma
intervenção. Uma inferência que pude fazer é que, além da necessidade de que seja
uma interpretação autorizada e vinculada ao autor/paciente, ela pode apresentar um
sentido, entre outros, mas nunca um significado. Mais ainda, que é o não dito –
porque não é possível dizer – que alimenta a criação de outras obras.
Minha pesquisa acabou me levando também a perceber o quanto a
intervenção na arte que está sendo criada pode proporcionar efeitos interessantes.
Primeiro por ser recebida pelos clientes com menos resistência, como se fosse um
jogo. E em segundo lugar por ser operada visando efetuar uma modificação.
Colocamos elementos, mudamos uma ordenação repetitiva, acionamos algum tipo
de novidade, de surpresa ou diferença no que está sendo produzido. O efeito, não
sabemos de antemão, mas temos notado que transformações produzidas nas artes
têm se refletido no comportamento dos pacientes. Como se eles aprendessem que
também é possível criar de várias formas a própria vida.
O que nomeei como a Arte como analista é a que parece ser a mais velada. É
um modo que independe da presença de qualquer interlocutor para que o sujeito
elabore enquanto cria. Sabemos que quando há algum analista por perto, mesmo
que este não faça interferência, só a sua presença já promove efeitos. Mas existem
espaços e momentos em que realmente só há o sujeito e sua obra e, mesmo assim,
a arte produz efeito psíquico. Lacan nos dá a pista de Joyce e Freud a do caminho
de volta a uma realidade de um novo tipo. A arte fazendo função de analista é uma
possibilidade na qual pretendo ainda me deter mais, pois se revela profundamente
enigmática.
A arte na clínica com crianças mais pequenas, autistas e psicóticas, revelou
muitas surpresas. Quando comecei a pesquisa, não tinha idéia de que em casos tão
graves a arte poderia ser um elemento clínico. Parecia um absurdo total oferecer às
97
crianças completamente desorganizadas, sem fala, com movimentos repetitivos,
materiais de artes. Acredito que a experiência tem sido bem sucedida porque a
equipe que trabalha junto neste dia apresenta grande sintonia. Conversamos muito
sobre os casos e possíveis direções. As reuniões são ricas em trocas. As crianças
autistas chegaram para o tratamento, em sua maioria, apresentando pouco ou
nenhum recurso verbal. Uso o verbo no passado porque hoje todas falam, algumas
mais outras menos. O que elas nos ofereciam eram atos. Estabelecemos como
ponto de partida que seus atos são atos significantes e que estes são produtos de
sujeito. A clínica do autismo é ainda incipiente e muito temos a aprender.
Possivelmente não ousamos o que poderíamos ousar. Sabemos que estamos
ajudando-as a inventar pontos de ancoragem e talvez possamos contar com outros
elementos para isso. Oferecemos a possibilidade da arte servir como uma base
onde o inconsciente comece a se articular em discurso. Promover algum
encadeamento significante, uma ordenação lógica em seus discursos soltos.
Minha experiência clínica tem demonstrado que a arte pode ser um elemento
interessante na clínica psicanalítica. A arte pode contribuir para que o paciente
possa visitar sua fantasia (na neurose) ou construir um delírio e na melhor das
hipóteses fazer suplência ao Nome do Pai (na psicose) ou ainda, para que o
inconsciente possa começar a se articular em discurso (autismo).
A arte na clínica pode ajudar o sujeito a inventar uma forma de estabelecer
seu contorno singular em torno do vazio.
Para finalizar esta dissertação quero dizer que tracei um longo percurso, mas
certamente terei que dar continuidade, ainda sobrou muito a ser aprofundado. A
aplicabilidade da arte na clínica psicanalítica no cenário do tratamento psíquico atual
ainda está se inaugurando. Estabelecer a clínica psicanalítica com arte é um desafio
que pretendo continuar construindo com rigor teórico e dentro da ética da
psicanálise. Acredito que esta pesquisa proporcionou que uma porta fosse aberta.
Por isso esta conclusão, assim como uma porta, é passagem.
98
Marcel Duchamp, Door: II, rue Larrey, 1927
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