A PEDAGOGIA PELA LOUCURA NO ÁJAX DE SÓFOCLES · O canto entoado pelos Anciãos de Tebas como...

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HVMANITAS Vol. XLVII (1995) MARIA DO CéU FIALHO Universidade de Coimbra A PEDAGOGIA PELA LOUCURA NO ÁJAX DE SÓFOCLES O canto entoado pelos Anciãos de Tebas como Estásimo I de Antígona conheceu q fascínio da posteridade e, para além do contexto da própria peça, nele se escutou uma ode de enaltecimento, por parte do poeta ateniense, à quase inesgotável capacidade criadora e organizativa do maior prodígio existente à face da terra: o Homem '. No entanto, a segunda parte da ode, se culmina com a referência às faculdades exclusivamente humanas da fala e do pensamento e ao fruto mais excelso da sua criação — a existência de uma comunidade organiza- da e sustentada por leis — introduz, contudo, um elemento sombrio, como que a apontar, paredes meias com o apogeu, aquela determinante que denuncia e define, afinal, a natureza humana nos seus limites: a morte inevitável. Diz o poeta (355-360): SuaaóXcov 7táyff>v ímaíôpeia K<X! SúcTouPpa (psóysiv pélrj •navxoTtópoç' anopoç kn ouSsv spxsxat TO [xêXkov "AiSa u.óvov (psõ^iv OÒK S7lá^ETai- 1 Para uma sistematização da tipologia das várias interpretações do estásimo, veja-se M. H. da Rocha Pereira, Sófocles, Antígona, introd., trad, e notas, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1992, 3." ed., pp. 24-25.

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HVMANITAS — Vol. XLVII (1995)

M A R I A D O C é U F I A L H O

Universidade de Coimbra

A PEDAGOGIA PELA LOUCURA NO ÁJAX DE SÓFOCLES

O canto entoado pelos Anciãos de Tebas como Estásimo I de

Antígona conheceu q fascínio da posteridade e, para além do contexto da

própria peça, nele se escutou uma ode de enaltecimento, por parte do

poeta ateniense, à quase inesgotável capacidade criadora e organizativa do

maior prodígio existente à face da terra: o Homem '.

No entanto, a segunda parte da ode, se culmina com a referência às

faculdades exclusivamente humanas da fala e do pensamento e ao fruto

mais excelso da sua criação — a existência de uma comunidade organiza­

da e sustentada por leis — introduz, contudo, um elemento sombrio, como

que a apontar, paredes meias com o apogeu, aquela determinante que

denuncia e define, afinal, a natureza humana nos seus limites: a morte

inevitável. Diz o poeta (355-360):

SuaaóXcov 7táyff>v ímaíôpeia K<X! SúcTouPpa (psóysiv pélrj •navxoTtópoç' anopoç kn ouSsv spxsxat TO [xêXkov "AiSa u.óvov (psõ^iv OÒK S7lá^ETai-

1 Para uma sistematização da tipologia das várias interpretações do estásimo, veja-se M. H. da Rocha Pereira, Sófocles, Antígona, introd., trad, e notas, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1992, 3." ed., pp. 24-25.

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98 MARIA DO CEU FIALHO

da geada do céu, da chuva inclemente

e sem refúgio os dardos evita, de tudo capaz.

Na vida não avança sem recursos.

Ao Hades somente

não pode fugir ~.

E Sófocles justapõe significativamente, a marcar a fronteira da capaci­

dade enaltecida com a limitação, os adjectivos pantoporosl aporos (360).

Mas o Hades a que ninguém logra escapar é apenas, como limitação,

a mais drástica e mais certa — um fim que a todos espera. Suscite angús­

tia ou nostalgia pelo que na vida tão rapidamente se esfuma, como a lírica

arcaica o deixa sentir em momentos da mais alta expressão poética, a

morte é um dado de facto, contabilizável como futuro último, rememorada

a sua presença nas mortes do quotidiano, na morte do outro, em que a

comunidade dos vivos participa através de actos rituais. A morte tem,

pois, uma dimensão social.

Contudo, se a morte constitui a certeza última, o homem sente, para

além disso, que a sua existência está marcada pela imprevisibilidade

daquilo que, no tempo, se lhe reserva e a afecta, determinando-a. A cons­

ciência desta marca temporal que a tradição poética grega desde há muito

já exprimia3 — e que Píndaro tematizou na famosa definição dos homens

como epameroi (át. ephemeroi), 'dependentes do dia ' 4 — está sublinhada

em diversos passos da dramaturgia sofocliana5.

2 A tradução que citamos é de M. H. da Rocha Pereira (vide supra n.l). Mantivemos, no entanto, neste verso, a primeira versão da tradução de Antígona publi­cada pela Autora em Coimbra, Atlântida, 1968, p. 31, feita a partir do texto estabeleci­do por Jebb que, tal como Pearson, respeitou a tradição codicológica.

3 Já Arquíloco verbalizou tal noção em 122 West. E se, em 128 West, fala de um «ritmo que governa a vida», não se refere a uma lei de previsibilidade na existência humana, mas antes à relatividade da dor e fortuna presentes, que logo, sem consistên­cia, se convertem nos seus contrários. Lembremos também, a título de exemplo, a Elegia às Musas (13 West) de Sólon ou recordemos, na lírica coral, as considerações poéticas sobre a condição e fragilidade humanas ou sobre a instabilidade da sorte teci­das por Simónides (frgs.. 15 e 76 Page, bem como 16 Page).

4 P. 8, 95. 5 E é posta tanto na boca dos deuses (Ai. 131-132), como na do protagonista

(e.g. OC, 607-615, onde Édipo diferencia a existência dos deuses, que não conhecem velhice nem morte, da dos mortais, sujeita à corrosão do «Tempo soberano»), como ainda, frequentemente, na boca do Coro (e.g. Ai. 715 sqq., 1418-1420; OT, estásimo IV, bem como as últimas palavras da peça, 1528-1530, que pensamos serem originais, conforme defendemos em Sófocles,Rei Édipo, introd. trad e notas, Lisboa, edições 70, 1991, p.151, n.109). A mesma noção de Arquíloco, de que a dor e alegria são relativas

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No estásimo I de Antígona o poeta realça um aspecto específico

desta imponderabilidade por que as realizações, fruto da techne, estão

determinadas através do contraste entre a capacidade de construir e agir,

própria do homem, e a incapacidade de avaliar com segurança os móbeis

e as consequências da sua acção (365-367):

CToepóv TI xò p.Tj%avóev xé%vac, ímèp slrtíS' s/cov TOTS U.SV KaKÓV, ÔXkox' S7t' SCTSXÒV SpTCSl'

Da sua arte o engenho subtil p'ra além do que se espera, ora o leva ao bem, ora ao mal.

O orgulho pelas capacidades humanas contrasta, pois, com um segun­

do momento de insegurança e preocupação decorrentes da consciência de

que ao homem não assiste a possibilidade absoluta de traduzir em actos tais

capacidades assistido sempre por um critério justo da sua utilização. O que

confere à mais alta realização do homem, embora sancionada e fundamenta­

da pela instância do divino — a polis organizada em que aquele vive, e

dentro da qual, apenas, a sua existência adquire sentido — um carácter de

equilíbrio ameaçado, onde se projecta essa limitação do homem no seu agir.

Naturalmente que, se o fim da acção humana é imprevisível, no

homem que age manifestando, bem patente nos seus actos, o desequilíbrio

do excesso, tenha esse excesso a forma de ambição desmedida ou de

audácia, detecta já a reflexão do poeta elegíaco, como depois a do coro

trágico, um elemento de perigo para a vida da comunidade.

Adverte Sólon na Eunomia 6

aúxoi Ss cpGeípsiv peyáXrjv nóXiv àtppa5ír|ioiv áoroi PoúA,ovTai xpiíuaai neiGópevoi,

Sfjpou 9' f]yspóvcov aSiKoç vóoç. oíatv STOïJJ,OV SfSpioç SK ueyáXrjç áXyea itoXXà 7ta9sív

oò yòp s7ií.oravTai Kcné%eiv KÓpov oòSè Tiapoúaaç sucppocTiíivaç Koapeív Saitòç êv fjaoxíf)1

e logo uma se converte na outra, numa espécie de «ritmo circular», está expressa no Párodo de As Traquínias, 129-131.

6 Frg. 4 West, 5-10. Após os excessos dos cidadãos terem tomado foros de des­graça pública, o processo toma agora o rumo inverso, afectando, até à privacidada mais íntima, a existência de cada cidadão.

Por ser do conhecimento comum dos destinatários deste texto a versão portuguesa da Eunomia da autoria de M.H.da Rocha Pereira e publicada na colectânea de traduções de textos gregos Hélade, entendemos mais pertinente citar a referida versão do que ela­borarmos nós outra.

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Mas querem destruir a grande urbe, com os seus desvarios,

cedendo às riquezas, os próprios cidadãos, e dos chefes do povo o espírito injusto, a quem está destinado

sofrer muitas dores pela sua grande insolência. Pois não sabem refrear os seus excessos, nem pôr ordem

nos bens presentes, na paz do banquete.

Tal situação vê-a o poeta como uma ferida inevitável que alastra

(v.17) pela cidade7 , e o poema de Sólon8 parece ecoar no canto dos

Anciãos de Tebas(369-371):

vóp.ouç yspaícov %9ovòç Bscõv T ëvopKov SíKCXV

VJ\|/Í7IOXIç' âixoXiç ôxcoí xò \xr\ KaXòv E,úveaxi xóXu.aç %ápiv

Se da terra preza as leis e dos deuses na justiça faz fé, grande é a cidade, mas logo a perde quem por audácia incorre no erro.

O texto grego confronta hypsipolis lapolis para realçar não só a

incompatibilidade entre a polis ideal e o comportamento do audacioso,

como, até certo ponto, para salientar a tensão latente no que de mais per­

feito envolve a realização humana e que, simultaneamente, está sujeito às

consequências de uma acção viciada.

Ora, se o conhecimento de uma acção que leva a um fim inesperada­

mente adverso suscita a reflexão sobre a fragilidade do que é humano, a

percepção de um comportamento nascido do excesso, da insensatez, pro-

7 A cidade como um organismo vivo, susceptível de ser afectado por doença, vai aparecer na tragédia, nomeadamente em Sófocles, Rei Édipo, conforme já referimos no nosso estudo Luz e trevas no teatro de Sófocles, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1992, pp. 50 sqq. Alcméon de Crotona, em contrapartida, entende o estado de saúde e de doença do indivíduo à semelhança do equilíbrio ou desequilíbrio institucional da polis. Assim, entendia a harmonia dos elementos no corpo humano como uma isonomia e o estado anómalo na sua inter-relação, com preponde­rância de um deles como uma monarchia (frg.4 B DK).

Esta reciprocidade de imagens é bem expressiva para compreender a indissociabi-lidade e interdependência indivíduo-pólis até ao fim da época clássica.

8 Num outro fragmento elegíaco (6 West, 3-4) Sólon estabelece o nexo de cau­salidade entre KÓpoç (a saciedade) e a insolência (vjppiç) tecido através do comporta­mento de um espírito «incapaz de um correcto juízo» (urj vóoç apxioç rji). Veja-se C.Bowra, Early Greek Elegists, New York, 1969, pp. 81 sqq.

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voca a repulsa instintiva em quem se encontra perante uma ameaça de

perigo iminente. O espectáculo da hybris no concidadão representa o

germe possível do desequilíbrio da polis através de um seu elemento con­

taminado, qual membro enfermo a afectar a saúde do todo. Por isso os

Anciãos de Tebas expurgam do seu convívio o insensato (372-375):

|J,rjT' SfO.01 Tiapsorioç yÉvoíxo pr)x' tcov (ppovSv ôç Trio' epSsi.

Longe do meu lar o que assim for! E longe esteja dos meus pensamentos o homem que tal crime perpetrar!

Desejam, no entanto, como se vê, mais do que isso — expulsá-lo do

pensamento, como se o excesso tivesse a força de contágio e pudesse,

então, afectar quem cultiva a sensatez, como uma ameaça, com força ter­

rível de propagação, a fazer perigar o frágil equilíbrio da virtude e a esta­

bilidade de quem a cultiva9.

Transcende os nossos objectivos apurar aqui se os Gregos considera­

vam uma demarcação entre norma e anormalidade no comportamento

humano, caso tal seja possível, ou se sentiam a fronteira que as separa

como uma obscura e complexa zona de intercepção.

Facilmente se depreende, no entanto, que o caso extremo do excesso

absoluto — mania 10 —, da absoluta privação de senso, episódica ou dura­

doira, e o comportamento totalmente imprevisto e fora de regra que ela

9 Na segunda estrofe do estásimo II de Rei Édipo (882-896) o Coro chega mesmo a formular o desejo de que o hybristes seja destruído pela sorte, como uma maneira de se evidenciar o sentido daquilo em que acredita. Para a interpretação do controverso xl Seï |xe X°P£^S1V (v- 896), veja-se a nota 78 à nossa tradução da peça, já citada.

10 A noção de excesso está já contida na raiz *man-. J. Mattes, Der Wahnsinn im griechischen Mythos und in der Dichtung bis zum

Drama des fuenften Jahrhunderts, Heidelberg, 1970, pp.100 sqq. enumera outras desig­nações para loucura, entre as quais X aaa (cf. Baquílides, Ode XI, 102 e Esquilo, frg.368 Mette).

Sobre a personificação de Lyssa diz Wilamowitz, na sua edição de Euripides. Herakles, Darmstadt, Wiss. Buchgesellschaft, 3 Bd., 1959, 2.a ed. Vol. II, 123-124, que Esquilo a introduziu na sua dramatização do mito de Penteu. Euripides, ao pô-la em cena no Heracles Furens, leva, no entanto, Lyssa a exprimir reservas quanto à loucura a suscitar em Héraclès, julgando, assim, a sua própria natureza como algo que ao mesmo tempo lhe é estranho — o que é expressivo quanto à perspectiva de Euripides

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dita e que permanece por completo alheio à compreensão do homem não

possam deixar de suscitar neste sentimentos de temor e insegurança11,

É que o espectáculo da loucura põe o homem sensato, capaz de

reflectir, perante algo de misterioso e imponderável que pode determinar a

mente humana, que pode levar até à perda de identidade do indivíduo,

sem que se saiba como, quando e porque se desencadeia o agente respon­

sável. A quem apenas permanecer à superfície do que observa, a face

exterior da loucura — o gesto e a palavra incongruente — podem oferecer

motivo de riso.

De qualquer modo, temor ou riso são comportamentos que distanciam

quem deles é objecto 12. O louco é um ser isolado, que a comunidade não

integra e, antes, instintivamente rejeita, quase num gesto de autodefesa.

Tal como noutras culturas, os Gregos buscaram a primeira explicação

para a loucura na interferência de entidades divinas, como a corrente

designação de 'doença sagrada' — theia nosos — o deixa perceber13.

E se no séc.V escritos médicos documentam já uma designação um pouco

diferente — a de 'loucura sagrada', theia mania — quer isto dizer, con­

forme nota Dodds 14, que os estudiosos do tempo devem ter restringido

sobre a religião e os deuses, vistos como convencionais: «Wenn er den Volksglauben, indem er ihm folgt, ad absurdum fuehrt, so ist es ihm ganz genehm.»

Opinião diversa sobre os deuses em Euripides, nomeadamente no Héraclès, é defendida por W. Desch no seu artigo «Der «Herakles» des Euripides und die Goetter», Philologus, 130, 1986, 8-23. Este artigo é notável pelo minucioso e sistemáti­co historial que apresenta das interpretações mais relevantes para a compreensão e estudo da peça.

11 Platão tenta compreender o fenómeno da loucura opondo a de origem huma­na à de origem divina e sistematizando quatro tipos de mania de intervenção divina, caracterizados diversamente de acordo com a natureza dos diversos deuses que a pro­vocam: Fedro 265, a-b.

12 O medo e o riso simultâneos são a reacção suscitada pela visão de Héraclès louco nos criados do palácio: Eur. HF, 950.

13 E.R. Dodds, The Greeks and the Irrational, Univ. of California Press, 1973, 8." ed., p.67 assinala: «It has long been observed that the idea of possession is absent from Homer, and the inference is sometimes drawn that it was foreign to the oldest Greek culture. We can, however, find, in the Odyssey traces of the vaguer belief that the mental disease is of supernatural origin. The poet himself makes no reference of to it, but he once or twice allows his characters to use language which betrays its existen­ce.» E documenta com Od. 18.327 e 20.377.

14 Op. cit. pp. 67-68. No escrito médico Prognostikon o seu autor deixa perce­ber a sua convicção de que há uma origem divina para certas doenças II. 112.5. No entanto, o De morbo sacro VI, 394, 9 sqq., como nota Dodds, vai mais longe, defen­dendo que não há doenças mais divinas que outras, já que todas são divinas, na medida em que remetem para uma ordem divina, e todas são humanas, já que decorrem de causas fisicamente verificáveis pelos homens.

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apenas a certos tipos de loucura uma origem divina. O que representa

uma indiscutível evolução.

Mas para o cidadão comum manteve-se, decerto, preponderante o

entendimento da loucura como uma forma de maldição cora origem na

divindade. Para reforçar este sentimento arreigado contribui a tradição

mitológica do enlouquecimento de figuras como, por exemplo, Ájax,

Héraclès, Penteu, Agave, quer transmitida através da simples narração —

mythos — quer através do seu tratamento poético.

Que poderia levar um deus a fazer cair sobre o homem semelhante

maldição? Uma desmedida culpa humana ou, pura e simplesmente, o

desagrado divino, conforme acontece com Hera em relação a Héraclès.

Nota Josef Mattes que, nestes casos, o efeito da loucura se opera fun­

damentalmente sobre os órgãos de percepção e a figura momentaneamente

louca pratica actos imaginados sobre um objecto real que não corresponde

àquilo que os seus olhos vêem l3.

Naturalmente, para que a loucura se torne uma punição é necessário

que se lhe siga a lucidez como tempo de reconhecimento de algo irrepará­

vel cometido durante o lapso de consciência do real16. Para Héraclès, na

peça homónima de Euripides, e para Agave, nas Bacantes, o regresso pau­

latino à lucidez fá-los defrontar com familiares queridos mortos às suas

próprias mãos. No caso de Agave reconhece-se a dupla punição de

Dioniso, sobre Penteu e sua mãe; no caso de Héraclès, Hera serve-se da

loucura para levar o herói inocente, mas perseguido pelo ressentimento da

deusa por causa do seu nascimento, a manchar as suas mãos e para o des­

truir 17. Ela conta com a reacção do herói após a loucura para completar o

seu plano 18. É a solidariedade humana, incarnada em Teseu, que reabilita

o filho de Alcmena e o afasta do suicídio 19.

15 Op. cit., pp. 81-82. 16 Mattes, op.cit. pp.93-95, salienta que a loucura é temática apropriada à tragé­

dia pelo que envolve de dor no isolamento que persegue o louco — dor semelhante ao exílio e análoga ou pior que a morte. Por isso a loucura representa, na tragédia, o aban­dono dos deuses (cf. Eur. HF, 1086 e Bakch. 11, 108 sqq.).

O louco, alvo do riso ou do temor, após regressai' à lucidez reconhece, envergonha­do, os seus actos e a sua time ressente-se. O autor cita Esquilo, Supp. 562 sqq. e Pr.599.

17 O que fris, a cruel mensageira dos deuses, confessa: vv. 822 sqq. Veja-se Wilamowitz, op.cit., vol.11, pp. 122-123.

Sobre a cena Iris-Lyssa e o tratamento irónico da complexa perspectiva do divino em Euripides, vide M. Halleran, «Rhetoric, Irony and the Ending of Euripides'Herakles», CA, 5, 1986, 171-181, sobretudo 179-180.

18 Cf. vv.1300 sqq. 19 O motivo do valor e importância da amizade é, aliás, recorrente na peça.

Aparece na primeira intervenção de Anfitrião, no prólogo (v.55) e é verbalizado nas

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No caso da loucura de Ájax, operada em Sófocles pela intervenção

de Atena, os intuitos de vingança do herói sobre os Atridas e Ulisses, por

lhe não terem sido atribuídas as armas de Aquiles em benefício do rei de

ítaca, são frustrados pela deusa que, no momento em que a vindicta esta­

va a ponto de ser executada, faz descer sobre os olhos do herói um

conhecimento enganador20 e o leva a chacinar as reses do exército, pen­

sando assassinar os chefes dos Aqueus. O despertar da loucura traz consi­

go o horror da chacina e a consciência de se ter convertido em objecto de

riso. O que é intolerável para um herói homérico, cuja arete depende do

reconhecimento da comunidade militar. O motivo do riso é, aliás, fulcral

no decorrer da peça21.

Os factores que suscitam a intervenção da deusa são vários e alguns

deles controversos, não apenas por questões relacionadas com a interpreta­

ção da peça, mas também pelo nosso conhecimento incompleto da tradi­

ção épica do ciclo troiano. Pela boca do Mensageiro sabe o espectador

que o adivinho Calcas alude a antigos gestos de Ájax, reveladores de

soberba e hybris. O herói, ainda em Salamina, repudia os conselhos pater­

nos e dispõe-se a rejeitar a ajuda dos deuses no combate (767-769): o

que, efectivamente, cumpre, recusando o auxílio de Atena (774-775).

A origem da ira da deusa, a abater-se um dia sobre o orgulhoso guer­

reiro, vê-a Calcas nesta atitude e pensamentos que não são próprios de um

homem (777). Mattes 22 entende que o contexto deixa esfumada a questão

últimas palavras de Héraclès (vv. 1425-1426), bem como nas palavras que o Coro pro­fere, a encerrar a peça.

Ao despertar do sono em que caiu, após o acesso de loucura, Héraclès procura, antes de mais, um amigo (1106). A chegada de Teseu, como imagem ideal da tpiXo-E,svía ateniense e da amizade grata, abala Héraclès pela imagem que de si apresenta perante o amigo (1199-1201). É Teseu que instiga Héraclès e o persuade, pelo recurso aos argumentos do vínculo da amizade e do papel que esta deve desempenhar, a que­brar o isolamento a que o infortúnio e maldição da loucura o levaram (1214 sqq.). Ao herói filho de Zeus abre-se, por essa via, a integração numa nova polis (1311). O que Sófocles dramatizará, também, no Édipo em Colono. E também aí, ao estrangeiro per­seguido pela sorte, é um Teseu idealizado quem lhe oferece e lhe assegura o acolhi­mento em solo ático.

A importância de philia na peça euripidiana é salientada por D. J. Conacher, «Theme, Plot and Technique in the Heracles of Euripides», Phoenix, 9, 1955, 139-152 (sobretudo 148-149).

20 Vv.51-52. 21 Sobre este assunto veja-se, sobretudo, o artigo de G.Grossmann, «Das Lachen

des Aias », MH, 25, 1968, 65-85. Cf. o passo atrás citado (n.12) de Eur. HF, 950 e note-se o riso desmedido como sintoma da loucura de Héraclès (HF, 935).

22 Op. cit., p. 50 sqq. Para P. Biggs, no seu artigo «The Disease Theme in Sophocles' Ajax, Philoctetes

and Trachiniae», C Ph, 61, 1966, 223-227, a loucura do herói representa o culminar de

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se a ira de Atena é responsável pelo julgamento das armas e, indirecta­mente pelo desespero e ressentimento de Ajax, ou apenas pela sua loucu­ra. Pensamos que um e outro momento — o do julgamento e o da vingan­ça frustrada — estão intrinsecamente ligados por uma relação de causa-efeito de modo a que a punição divina se vá operando nesse nexo, no decorrer do tempo, e não seja pontual.

No entanto, e tendo em linha de conta a extrema importância das palavras de Calcas quanto ao significado da acção dramática, a causa pri­meira da cólera divina é inegavelmente realçada. É que do modo como se processou o julgamento das armas de Aquiles, a peça pouco nos diz. O que dramaticamente interessou a Sófocles foi a sentença final: a atribui­ção das armas a Ulisses e a humilhação revoltada de Ajax, que se sentia com direito a recebê-las como o mais valoroso dos guerreiros gregos.

Sófocles omite dados da tradição poética que aludem à intervenção de Atena no julgamento e a uma relativa isenção por parte dos juízes23, para insinuar outra imagem do episódio, através das palavras acusatórias de Teucro a Menelau e às quais há que reconhecer um peso indubitável, segundo Kamerbeek24, com quem estamos de acordo.

Já no lamento de Ajax sobre a sua fortuna o protagonista assevera (442-446):

eí Ç5v ' A%iXXsbq xóõv 07tXa>v xcõv S V nkpx

Kpíveiv ájxeXXs Kpáxoç à p t a x s í a ç xtví, OòK av xiç aux ' s(^ap\|/sv áXXoç ávx ' êuoõ . võv 5' aí$x' 'Axpe iSa t tpcoxl TtavxoopySi cppsvaç 87Tpaf;av, àvõpòç xoõõ' àTtcocjavxsç Kpaxiy

Se Aquiles estivesse vivo e fosse julgar a primazia da excelência a

um candidato às suas próprias armas, nenhum outro as receberia, senão

eu. Mas agora os Atridas conseguiram-nas para um vilão e repudiaram o

meu valor.

um processo de desajustamento entre o protagonista e a comunidade, que se iniciou com a atribuição das armas de Aquiles a Ulisses.

Sobre o âmbito da loucura, veja-se o nosso trabalho já citado Luz e Trevas no Teatro de Sófocles, pp.19-21.

R. Gruetter, Untersuchungen zur Struktur des sophokleischen Aias, diss., Kiel, 1971, P-35 sq. salienta que a loucura aparece como o culminar das contradições que dominam a existência de Ajax. Condição para a loucura é a aspiração heróica do prota­gonista e a intervenção divina.

23 Sobre a tradição épica e o seu aproveitamento selectivo por parte de Sófocles, veja-se a introdução de R. Jebb à sua edição comentada da peça: Sophocles. The Plays and Fragments. Part VII : Ajax, Amsterdam, 1907 (rep.1967), §§1-7, bem como J. C. Kamerbeek, The Plays of Sophocles. Commentaries Part I: Ajax, Leiden, 1963, pp. 5-6.

24 Op. cit. comm. ad. 1135.

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106 MARIA DO CBU FIALHO

M a s estas pa lavras p o d e m ainda ser en tendidas c o m o d i t adas p e l o

ressent imento . Todavia , o m e s m o se não pode j á entender n o confronto

entre Teucro , que pugna pe la pres tação de honras fúnebres ao i rmão , e os

dois Atr idas — pr imeiro Menelau , e m seguida A g a m é m n o n — , que a tal

acto p iedoso se opõem, Mene lau confessa (1134):

HiaoCvx' S|xíasv Kal ah TOUT' fi7iío"Taoo.

Ele odiava-me e eu odiava-o. E tu sabias isso.

O verso seguinte contém, na resposta de Teucro, a referida acusação:

K^S7TTT)ç yàp (XOTOU vi/Tjtpoicoiòç T]í>ps9rjÇ.

Pois tu revelaste-te um ladrão que desvia votos.

O perfil dos dois Atridas, na peça, como tipos expressivos de defor­

mação da conduta e pensamento na democracia da polis, confere toda a

verosimilhança às certezas de Teucro.

Sendo assim, o ressentimento de Ajax é legítimo e justifica o seu

propósito de vingança, esta, no entanto, tal como a concebe, é excessiva e

selvática. E é por dentro desse seu plano, em que se projecta o pendor de

excesso e de isolamento do herói, que Atena age, toldando-lhe a percep­

ção e desviando-o dos chefes do exército para as reses, enquanto o anima

a prosseguir na chacina que há-de ser a sua vergonha e o caminho para o

seu suicídio.

Se da sintomatologia da loucura faz parte apenas o erro de sentidos

ou também o júbilo frenético com que executa a vingança25, é problema

que o dramaturgo deixa em aberto, bem mais interessado em valorizar o

significado desta theia mania, que em analisar os seus sintomas (conforme

Mattes também opina26). E neste sentido adquire traços de profunda iro­

nia trágica o facto de Ajax, para além do erro de sentidos, entender ainda

que Atena é sua aliada e congratular-se com isso, pedindo-lhe que se

mantenha sempre assim, como sua aliada, (symmachon, v.117). É agora,

quando Atena o destrói, que Ájax aceita um funesto patrocínio, esquecido

das palavras insolentes proferidas outrora, em tempo de lucidez.

Que pretende o poeta exprimir ao encenar a loucura, o doloroso des­

pertar do herói e o seu suicídio? demonstrar, na sua dramaturgia, que

25 Héraclès, em HF, 970 sqq. também julga vingar-se ao matar os seus próprios filhos por erro de percepção.

26 Op. cit., p. 82.

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A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 107

quem erra por excesso cedo ou tarde é castigado? .. .De Ajax, na sua

queda, fica-nos, no entanto, a impressão deixada por outros heróis sofoclia-

nos que, na sua derrocada e isolamento, manifestam intacta uma certa

forma de grandeza. O que Knox, aliás, tão bem analisou no seu conhecido

livro The Heroic Temper. Studies in Sophoclean Tragedy21.

Do primeiro impulso de suicídio que o herói manifesta desde que

recupera a razão, por não suportar imaginar-se despojado do seu prestígio

antigo ao ser agora alvo de troça — troça do exército, dos seus velhos

inimigos —, por não suportar o regresso às suas raízes, à casa paterna

mostrando-se despido de feitos de valor (464), passa ao aprofundamento e

amadurecimento desse propósito, a partir de uma nova visão da sua exis­

tência e das leis a que entende estar submetida a natureza e o homem.

Referimo-nos ao belíssimo e controverso episódio II, constituído pela

longa rhesis conhecida por «discurso enganador».

Não vamos aflorar aqui os problemas suscitados pela complexa inter­

pretação do passo, por já o termos feito noutro lugar28. O que Ajax pare­

ce ter entendido da sua experiência é que há uma lei inelutável que o

tempo ilumina: no tempo se manifesta que nada é absoluto, que tudo

muda, tudo cede ao seu contrário, seja pelo ritmo que rege os fenómenos

da natureza, seja pela ausência de ritmo, pela absoluta margem de proba­

bilidades que rege o que é humano. E o seu modo de ser não se ajusta a

viver nesta mudança. Ajax é inflexível. A única cedência possível, lógica,

é retirar-se desse mundo, onde já não sente brilhar o seu valor, e refugiar-

-se nas trevas da morte. O que entende como purificação, salvação.

A ira da deusa opera apenas num dia, anuncia Calcas — o dia em

que decorre a acção do drama29. E o que um dia pode conter para os

mortais efémeros aponta-o Atena, nas suas últimas palavras, antes de

abandonar definitivamente a cena (131-132) após o espectáculo de Ajax

louco que oferece aos olhos de Ulisses:

cbç T)u,spa KXíVSI xe tcáváyei náXiv anavua xávSpeímsicr ...

.. .o dia derruba e ergue de novo tudo o que ao homem diz respeito.

27 Berkeley, 1964. 28 Luz e Trevas no Teatro de Sófocles, sobretudo pp. 29-42. 29 Remetemos de novo para o nosso já citado livro, pp. 43-45. Segundo J. F. O'Connor, Disease Imagery in Aeschylos and Sophocles, diss. Ohio

State University, 1974, p. 84, o dia da ira pode ser visto como equivalente à noção da medicina hipocrática de 'dia crítico', o dia determinante na evolução de uma doença.

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108 MARIA DO CEU FIALHO

N ã o é, pois , apenas à queda, mas à reabil i tação de Ájax , impl icada

na expressão ' d e n o v o ' , que estes versos pa recem aludir.

O Prólogo inicia-se com Ulisses em cena, com o gesto de quem

busca um rasto, já na proximidade de uma tenda, e observado por Atena,

que ele não vê. A ligação entre o herói e a deusa é, por demais, conhecida

do público ateniense e encontra-se bem realçada no diálogo inicial. São

velhos aliados. Atena rompe o silêncio e dirige-se-lhe como quem o

conhece desde há muito e lhe lê os gestos sem segredos (1-2):

'Ael |iév, ã> meu Aapxíou, SsSopKá a s Tieípáv TIV' 8%9pSv âp^ácai 0T]pcí)p:svov

Sempre te tenho visto, ó filho de Laertes, à procura de um meio de

apanhar os teus inimigos.

A atitude, familiar a Atena, é descrita através de uma metáfora cine­

gética. Ulisses segue o rasto do inimigo com a porfia implacável e o

gosto da perseguição, da busca, de um cão dotado de bom faro.

A sintonia é perfeita. Ulisses reconhece que a deusa o compreende.

Ele mesmo retoma, na primeira pessoa, a imagem de caça empregue pela

deusa(20):

Ketvov yap, oôôsv' áXXov, í/veóco náXai.

É dele (Ajax), não de outrem, a pista que sigo desde há muito.

E o topos da caça repete-se, de novo na boca de Atena, implicando

sempre Ájax como o animal caçado30 — quer pela busca de Ulisses, quer

pela loucura que a deusa lhe provoca, qual rede funesta para onde o lança

(60). Ájax, o perseguidor dos chefes do exército, caça animais, julgando

derrotar homens. E é ele, afinal, quem é caçado e preso na armadilha que

ainda não reconhece31.

Mas o que Ulisses irá encontrar, no fim do prólogo, ultrapassa de longe

aquilo que procura, como veremos. E é através dessa capacidade de seguir

os indícios que ele encontra que a loucura de Ájax cumpre a sua pedagogia.

E através da pedagogia bem sucedida Ájax é, finalmente, reabilitado.

30 Héraclès louco é comparado, na sua fúria, a um touro pronto para arremeter (HF, 869).

31 O'Connor, op.cit., pp. 66 sqq., chama a atenção para a utilização da imagéti-ca de caça no diálogo entre Atena e Ulisses (vv.2, 5-6, 8, 20, 32, 37).

Veja-se também J. Jouanna, «La métaphore de la chasse dans le prologue de Y Ajax de Sophocle», BAGB, 1977, 168-186.

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A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 109

Atena constrói para Ulisses um espectáculo dentro do próprio espectá­

culo, conduzindo assim o espectador ateniense a uma identificação de ponto

de vista com a do espectador ideal em que Ulisses se vai convertendo32.

Ao seguir o rasto do assassino das reses, Ulisses pretende averiguar a

veracidade do que já corre pelo exército — que o autor é o príncipe de

Salamina. Na dúvida, vai confirmando progressivamente a suspeita à

medida que se aproxima da sua tenda, a que se encontra nos confins do

acampamento grego, sinal tão expressivo do isolamento de Ajax33 como o

seu grande escudo defensivo, vestígio de tempos remotos e único no exér­

cito aqueu já em Homero34, e a que Ulisses se refere na primeira resposta

a Atena (18-19):

Kal vCv tnéyvmq su \i' èn' ávSpí Soa^ievei páaiv KUKA,OCVT', Al'avxi xãi axiKeacpópcor

Até agora me compreendeste perfeitamente — guio os meus passos a cercar um inimigo, Ajax, o do alto escudo.

O modo como se refere a Ajax deixa transparecer a predisposição

hostil e o total empenho na empresa.

Mas o que Ulisses não sabe e não logra até ao momento compreen­

der são as razões possíveis para a actuação do seu rival. É isso que a

deusa lhe faz progressivamente conhecer até se propor dar início ao

espectáculo da loucura. Ulisses confessa à partida o seu temor de encarar

um louco. Atena oferece-lhe o prazer possível de rir do inimigo, a coberto

das trevas da insanidade com que vela os olhos deste.

Contudo, Ulisses não ri. O silêncio a que Atena o obrigou (v.87)

para se proteger e para não quebrar, poderíamos dizer, a ilusão dramática

da pequena encenação que a deusa cria, é um silêncio de observação, inte­

riorização reflexiva da cena e aprendizagem do que ela traduz de mais

profundo.

Ajax, o caçador caçado, regozija-se com os despojos imaginários e

dá largas ao seu espírito de vingança numa situação que o torna deplorá-

32 U. Parlavantza-Friedrich, Taeuschungsszenen in den Tragoedien des Sophokles, Berlin, 1969, pp. 7 sqq. nota que, se o diálogo Atena-Ajax tem um especta­dor silencioso em cena, é a ele que Atena se dirige secretamente ao falar com o seu interlocutor.

33 Aspecto salientado por Ch. Segal, Tragedy and Civilisation, Cambridge, 1981, pp. 125 sqq.

34 Sobre o aproveitamento de traços do Ajax homérico, veja-se R.P. Winnington-Ingram, Sophocles. An Interpretation, Cambridge, 1980, pp. 14 sqq.

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110 MARIA DO CEU FIALHO

vel, completamente alheia ao seu normal comportamento d e guerreiro

sóbrio e prestigiado, conforme a própria Atena realça a Ulisses, terminada

esta breve cena (118-120):

ôpãiç, 'OSUCTCTSC, xf]v 9sœv io%bv ôCTT)' TOÚTOU tíç áv CTOl xâvSpòç f\ 7tpovoúaT8poç f\ Spãv á{j,eívcov TjopsGrj xò. tcaípia;

Tu vês, Ulisses, tamanho é o poder dos deuses. Que homem se mos­trava mais prudente do que este e mais corajoso no tempo oportuno?

Atena explora a distorção de sentidos e o júbilo frenético do louco

através do diálogo que com ele mantém, como se do seu lado estivesse.

O que este acredita.

O que Ulisses aprende é justamente a não seguir o riso a que a deusa

o convida, mas antes a ter compaixão, após a primeira reacção de terror

confessado, porque a loucura inesperada do inimigo, e provocada pela

divindade, lhe ensinou como é frágil tudo aquilo que é humano e incon­

sistente o que o homem pensa inabalável na existência. De antagonista de

Ajax, Ulisses passou a sentir aquilo que o identifica com o herói destruí­

do. Sombras vãs somos nós, reconhece Ulisses, fazendo ecoar a definição

do homem segundo Píndaro {sonho de uma sombra P. 8.95). Assim o

confessa à deusa, quando Ájax recolhe de novo à sua tenda e se encon­

tram ambos a sós (121-126):

... êíioiKxíp© 5s viv SúOTTJVOV E)j.7iaç, Kaííisp ovca SuansvTJ, ÓSOÓVEK' aXTJl CTUyKaTsÇsOKTGU KaKTJl, OÒ§SV TÒ TOÚTOU \lãXk0V f] T0Ò(XÒV O-K07TfflV.

cmcõ yàp fj|j,ãç oúSsv Õvxaç àXXo TTXTJV ei'ScoX', ôcjoiTiep ÇSjxsv, fj Koótpr|v criciáv.

...de todo me condoo desse desgraçado, apesar de ser meu inimigo, pois ele cedeu ao jugo de uma sorte funesta e não pondero menos a minha condição que a dele. É que eu vejo que nós, os que vivemos, nada mais somos que fantasmas ou uma sombra vã.

Terá a deusa falhado o seu objectivo com a exibição da loucura do

príncipe de Salamina, uma vez que convida cruelmente Ulisses a regozi-

jar-se sobre o inimigo humilhado, lho põe em frente como uma presa de

caça sem defesa? Sendo assim, Ulisses teria aprendido a sophrosyne e a

compaixão a despeito da vontade divina e a disposição da deusa, na peça,

seria convidar o herói seu protegido a uma cruel desumanidade.

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A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 111

O que, de facto, se torna finalmente claro quanto à presença divina,

nas derradeiras palavras de Atena antes de partir, é que, se a punição de

Ájax está em curso, Ulisses, por seu turno, foi posto à prova durante o

prólogo, pelo convite ao cruel regozijo sobre o inimigo humilhado, mas

chegou, não obstante, à compreensão exacta de uma situação em que,

como homem, se sentiu envolvido e retratado35.

Diz a deusa, antes de abandonar a cena (127-133):

ToiaÕTa -roívuv eíaopSv vmépK07iov u.T]5év Ttox' si7ir|iç aúxòç stç Bsobç ereoç, U,T]5' ÔyKOV «pT)l |lT)Sév', et xivoç nXéov íl Xeipi Ppíôsiç f) patcpou nXoòxov pátíer òç fjpspa KXíVSI te Kàváysi náXiv ãnavxa TavOpciwrsicr xoòç SS adxppovaç 8 s O l CpiX,OVJCTl, K a l CTTVjyOÕCTl TOUÇ K a K O U Ç .

Pois ao obsei-vares tais factos, nunca tu mesmo pronuncies, em rela­ção aos deuses, uma palavra altaneira, nem te deixes tomar pelo orgulho se preponderares sobre outrem, quer pela força do teu braço, quer por uma vasta riqueza acumulada. E que o dia derruba e ergue de novo tudo o que ao homem diz respeito. Aos homens sensatos amam-nos os deuses — e abominam os pérfidos.

Que em Ulisses se operou uma mudança na sua disposição interior

desde o início até ao fim do prólogo, parece ter ficado claro36. O herói só

33 Um outro dos efeitos da divindade em cena — o que não parece ser comum em Sófocles — é acentuar o fosso que separa a imutabilidade divina da instabilidade do homem existente no tempo: B. M. W. Knox, «The Ajax of Sophocles», HSPh 65, 1961, 2.

36 Th. Rosenmeyer, The Masks of Tragedy, Austin, 1963, p. 159, salienta que a diferenciação das personagens na peça se faz a partir das suas diversas concepções de tempo.

Por sua vez, Ch. Segal, op. cit., no capítulo sobre o Ájax (V, pp. 109-151), enten­de ser fulcral a oposição entre Ájax e Ulisses, construída a partir da imutabilidade do primeiro, incapaz de ceder e de compreender que toda a vida social tem um curso, e da capacidade do segundo para reflectir sobre os acontecimentos e a partir deles aprender sobre si mesmo, ajustando-se à mudança. «Ajax' tragic isolation is defined against the coordinates of human time and human space» (p. 115), enquanto «Odysseus is the per­fect embodiment of social view of time: time acommodated to the flux and movements of the mortal condition, to the jarring of the circumstances» (p. 112).

Na esteira desta perspectiva, e fortemente influenciada por ela, veja-se J.Boulogne, «Ulysse: deux figures de la démocratie chez Sophocle», R Ph 62, 1988, 99-107.

A perspectiva contrária, de um Ulisses portador, à partida, dos traços de sophros-yne que vai manifestar posteriormente, infere-se de H. Gasti, «Sophocles' Ajax. The Military Hybris», QUCC, NS 40, 1992, 81-93.

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112 MARIA DO CEU FIALHO

voltará a aparecer no êxodo, após o suicídio de Ájax que, no prólogo, não

pode antever. A sua intervenção no final opõe-o aos Atridas, obcecados

pelo ódio e ressentimento contra um inimigo já impotente.

Quando Teucro parece estar a ponto de ver frustrado o piedoso pro­

pósito de prestar honras fúnebres a seu irmão, Ulisses acorre a reforçar a

causa e impõe a cedência de Agamémnon através da força da sua argu­

mentação.

O motivo do direito à sepultura quanto a alguém que se excluiu de

uma comunidade — sejam quais forem os modos de exclusão — e o con­

fronto de posições em torno a esta situação mereceu particular interesse

por parte de Sófocles, que o retoma em Antígona e, parcialmente, em

Édipo em Colono.

É inegável, para o dramaturgo, que o direito a ser sepultado constitui

algo que se situa para além do âmbito da legislação criada pelo homem

— tem fundamento divino, naquela mesma Dike anterior a toda a acção

humana e que, a partir do espaço olímpico, lhe confere normas, como diz

Antígona37. E um imperativo religioso que converte quem se opõe a ele

num ímpio arrogante como o declara Ulisses a Agamémnon (1342-1345):

óDCTT' OúK av èVSÍKCOç y' cm|j,áÇon:ó aoi.

oú yáp TI TOCTOV, âXXà tobç Oecov vójxouç (pGeípoiç av. avSpa 5' où SíKCUOV, si Bávoi, pXaTixsiv TÒV SCTGXóV, Oí>5' èàv |iiaSv KUpTjlÇ.

De modo que não seria lícito que ele sofresse agora uma desonra por tuas mãos. Não seria a ele, mas às normas dos deuses que tu irias ferir. Pois não é justo, uma vez que esteja morto, maltratar um homem nobre.

A atitude e argumentação de Ulisses são a clara evidência de que a

pedagogia operada no prólogo foi aprofundada e, uma vez convertida em

visão do mundo, aplicada à situação concreta do funeral de Ájax. Ulisses

impõe a sua posição frente a um Agamémnon incapaz de entender como é

relativo o que é humano e arreigado ao seu ódio, viciado na preponderân­

cia absoluta do mais forte e do mais numeroso — avesso, afinal, ao ideal

democrático da isonomia38 e revelando uma conduta radicalmente oposta

à que Atena preconiza no fim do prólogo.

37 Ant. 450 sqq. Cf. OT, 865 sqq. 38 Vide Boulogne, op. cit., pp. 102-103.

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A PEDAGOCIA PELA LOUCURA NO AJAX DE SOFOCLES 113

Ájax é sepultado. E as honras fúnebres, pelas quais o seu inimigo de outrora pugna e que os Atridas não logram impedir, representam, afinal, a rendição da comunidade a um direito que é de Ájax e ao valor do herói, que Ulisses reconhece agora como o melhor depois de Aquiles 39. Está reposta a justiça através da compaixão aprendida. Como Atena preconiza­ra, um dia foi suficiente para destruir e reabilitar um homem. Para des­truir, bastou a mão divina; para reabilitar, o deus recorreu à capacidade humana de aprendizagem que o poeta enaltece no estásimo I de Antígona.

No Héraclès de Euripides, o herói é reabilitado, após a loucura infli­gida por Hera, através da solidariedade de Teseu; no Ájax é a sophrosyne de Ulisses, avivada pelo espectáculo da destruição, que desempenha papel fundamental na reintegração do morto na polis, através dos funerais con­seguidos. Num e noutro caso enaltece-se e ensina-se ao espectador o valor extremo dos sentimentos que aproximam os homens e que conduzem à entreajuda, fundamento do espírito de comunidade que constrói a polis.

No caso de Ájax, tal disposição moral e sentimentos são suscitados pelo processo de aprendizagem que analisámos, promovido pela divindade através do espectáculo de um isolamento humano radical — o da loucura — num homem de qualidades inegavelmente superiores, mas em cuja relação já problemática com a comunidade se agudizou o conflito até um ponto extremo.

Segai comenta40 que, mesmo na sua sede de autonomia, o apolis trá­gico necessita das virtudes e cooperação do politikos, para o caso, Ulisses. A observação tem toda a oportunidade, mas também a polis, por seu turno, testa a sua força e equilíbrio quando se manifesta apta a absorver e render homenagem àquela força excepcional, incompreensível e solitária que caracteriza o herói — capacidade que Ulisses manifesta e que o eleva acima dos outros chefes aqueus a quem se opõe.

Esta profunda interdependência, sancionada pela instância do divino, deve-a ter sentido profundamente o espectador ateniense de então, já que Ájax recebia em Atenas culto de herói, como uma das figuras tutelares mais queridas.

39 Representa também, para Segai, op. cit., p. 151, a importância que o ritual centrado na família desempenha naquilo a que chama o «universalismo» de Ulisses.

40 Op. cit., p. 150.

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