A Pedagogia Do Cinema

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    A PEDAGOGIA DO CINEMA

    De acordo com o socilogo francs Pierre Bourdieu (1979), a experincia das pessoas

    com o cinema contribui para desenvolver o que se pode chamar de competncia para ver,isto , uma certa disposio, valorizada socialmente, para analisar, compreender e apreciar

    qualquer histria contada em linguagem cinematogrfica. Entretanto, o autor assinala que

    essa competncia no adquirida apenas vendo filmes; a atmosfera cultural em que as

    pessoas esto imersas que inclui, alm da experincia escolar, o grau de afinidade que elas

    mantm com as artes e a mdia o que lhes permite desenvolver determinadas maneiras de

    lidar com os produtos culturais, incluindo o cinema.

    Significa dizer que, dependendo de suas experincias culturais e da maneira de ver

    do grupo social ao qual pertencem, onde uns veem um filme romntico com Leonardo di

    Caprio, outros vero um James Cameron exibicionista, em mais um produto do cinemoamercano.1

    Tomando essa anlise como ponto de partida, somos levados a admitir que o gosto

    pelo cinema, enquanto sistema de preferncias, est muito ligado origem social e familiar

    das pessoas. No por acaso que as pesquisas de mercado indicam que 79% do pblico de

    cinema no Brasil constitudo por estudantes universitrios: oriundos, em sua maioria, de

    camadas mdias e altas da sociedade, esses estudantes tm maiores oportunidades de ver

    filmes, desde muito pequenos, e de ter essa prtica valorizada no ambiente familiar e nos

    demais grupos dos quais participam.

    Nesse contexto, ir ao cinema, gostar de determinadas cinematografias, desenvolver os

    recursos necessrios para apreciar os mais diferentes tipos de filmes etc., longe de ser apenas

    uma escolha de carter exclusivamente pessoal, constitui uma prtica social importante que

    atua na formao geral dessas pessoas e contribui para distingui-las socialmente. Em

    sociedades audiovisuais como a nossa, o domnio dessa linguagem requisito fundamental

    para se transitar bem pelos mais diferentes campos sociais.

    E o que isso tem a ver com a educao? Por que o gosto ou preferncia por uma

    determinada forma de arte cultural deveria interessar professores e pesquisadores dessa

    rea? Se pensarmos a educao como um processo de socializao, esse tema torna-se

    bastante relevante para ns.

    O conceito de socializao uma ferramenta importante na anlise dos fenmenos

    sociais, razo pela qual seu uso e sua aplicabilidade cientficos vm sendo objeto de discusso

    desde que a Sociologia se constituiu como cincia autnoma. Na definio desse conceito,

    podem ser identificadas, na teoria sociolgica, duas correntes distintas, cujas concepes ora

    se opem ora se complementam.

    1

    Tomo Titanic como exemplo apenas porque esse foi o filme que registrou o maior nmero deespectadores no Brasil, nos ltimos anos cerca de 16 milhes. Cameron foi o diretor dessa obra, quecustou cerca de 200 milhes de dlares em 1997.

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    Uma delas v a socializao como um mecanismo segundo o qual o indivduo

    interioriza as regras sociais, assimila, de modo mais ou menos pacfico, as normas que a

    sociedade impe aos que dela desejam participar. Desenvolvida inicialmente por mile

    Durkheim, considerado um dos pais fundadores da Sociologia, essa concepo marcou

    fortemente a educao brasileira, sobretudo na primeira metade do sculo XX.

    Durkheim afirmava que os indivduos vm ao mundo egostas e associais, dispondo

    apenas de alguns instintos bsicos de sobrevivncia; caberia, ento, sociedade, inicialmente

    representada na figura dos adultos responsveis pelo recm-chegado, incutir nele os requisitos

    necessrios ao convvio com a sociedade. Para esse autor, a educao desempenha papel

    primordial nesse processo. Vista como socializao metdica das novas geraes pelas

    geraes mais velhas, ela que vai possibilitar a formao do social. Desse modo, tornar-se ser

    social significa interiorizar (colocar para dentro), pela ao educativa, um sistema de ideias,

    sentimentos e hbitos que exprimem em ns o grupo ou os grupos diferentes dos quais

    fazemos parte tais so as crenas religiosas, os valores morais, as tradies nacionais ou

    profissionais, as opinies coletivas de toda espcie (s/d, p.45).

    Uma outra perspectiva, desenvolvida, num primeiro momento, por Georg Simmel,

    entende a socializao como um processo no qual o indivduo socializado tem participao

    ativa, interfere nas condies em que ela acontece e modifica o mundo social. Desse ponto de

    vista, a socializao algo em permanente construo, em que os protagonistas so, ao

    mesmo tempo, agentes e produtos da interao social os indivduos se socializam

    produzindo o social, afirmava Simmel (1983).2

    No se trata, portanto, apenas de uma imposio/interiorizao no indivduo de

    esquemas culturais (normas, valores, regras) sempre preexistentes a ele prprio, mas de ummovimento dinmico de produo e de reproduo, de perpetuao e de transformao, no

    qual a adaptao de uma nova gerao ao mundo social sempre o modifica um pouco.

    No que diz respeito ao fenmeno educacional, a perspectiva defendida por Simmel

    ope-se quela formulada por Durkheim, na medida em que rompe com a iluso pedaggica

    de um par ativo/passivo um adulto que inculca, uma criana que interioriza, um mestre que

    ensina, um discpulo que aprende e compreende a aprendizagem como uma interao na

    qual o aprendiz tem intensa participao. Aqui, o ser social visto como produto de um

    conjunto de interaes, nas quais os sujeitos tm papel ativo a desempenhar, sejam interaes

    de carter deliberadamente educativo (famlia, escola, igreja etc.), sejam aquelas em que noesto presentes aes intencionalmente pedaggicas (grupo de pares, relaes de trabalho

    etc).

    Em ambos os casos, entretanto, a educao que ministrada no interior da escola

    vista como apenas uma das muitas formas de socializao de indivduos humanos, como um

    entre muitos modos de transmisso e produo de conhecimento, de constituio de padres

    ticos, de valores morais e competncias profissionais. Desse ponto de vista, evidencia-se a

    2

    Simmel desenvolve de modo mais preciso esse conceito no texto Sociabilidade, um exemplo desociologia pura ou formal, publicado no Brasil, em 1983, em uma coletnea do autor organizada por

    Evaristo de Moraes Filho.

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    necessidade de identificar e analisar todos os espaos e circunstncias nos quais esse processo

    acontece.

    nessa direo que caminha grande parte dos estudos destinados a investigar o papel

    social do cinema. inegvel que as relaes que se estabelecem entre espectadores, entre

    estes e os filmes, entre cinfilos e cinema e assim por diante so profundamente educativas. Omundo do cinema um espao privilegiado de produo de relaes de sociabilidade, no

    sentido que Simmel d ao termo, ou seja, forma autnoma ou ldica de sociao,

    possibilidade de interao plena entre desiguais, em funo de valores, interesses e objetivos

    comuns.

    Ver filmes, uma prtica social to importantes, do ponto de vista da formao

    cultural e educacional das pessoas, quanto a leitura de obras literrias, filosficas, sociolgicas

    e tantas mais. J em 1915, Vachel Lindsay, poeta norte-americano, reivindicava em livro o

    estatuto de stima arte para o cinema, anunciando o desejo de convencer as instituies

    culturais nos Estados Unidos de que o cinema deveria usufruir do mesmo prestgio culturalatribudo s demais formas de arte (TURNER, 1997).

    Embora isso ainda no seja de todo verdadeiro no Brasil, o valor cultural e social do

    cinema no est mais em discusso na maioria dos pases desenvolvidos, especialmente na

    Europa. Na Frana, o cinema, entendido como legtima forma de expresso cultural, recebe

    amparo oficial dos Ministrios da Cultura e da Educao e sua difuso integra os objetivos da

    educao nacional. L, ele parte de uma estratgia poltica de preservao do patrimnio

    cultural da nao e, principalmente, da lngua francesa.3

    Outros elementos da cultura referendam o reconhecimento da importncia do cinemana formao das mentalidades em sociedades nas quais se produz e consome esse tipo de

    artefato. O homem do sculo XX jamais seria o que se no tivesse entrado em contato com a

    imagem em movimento, independentemente da avaliao esttica, poltica ou ideolgica que

    se faa do que isso significa. Em um dos captulos de A Era dos Extremos, o historiador Eric

    Hobsbawm (1994) reafirma a centralidade do cinema nesse sculo e assinala que a era da

    reprodutibilidade tcnica (em que as obras de arte podem ser reproduzidas e passam a ser

    acessveis a uma imensa gama de pessoas) no apenas transformou a maneira como se d a

    criao, mas, tambm, a maneira como os seres humanos percebem a realidade.

    Muito da percepo que temos da histria da humanidade talvez estejairremediavelmente marcada pelo contato que temos/tivemos com as imagens

    cinematogrficas. Por mais que estejamos intelectualmente informados a respeito de como se

    passarem os chamados fatos histricos, John Wayne enfrentando ndios nas plancies do

    oeste americano, Mel Gibson lutando contra os ingleses pela independncia da Esccia, Tom

    Hanks comandando o desembarque de mariners no Dia D, Stallone em selvas vietnamitas e

    tantas outras cenas histricas teimam em ocupar nosso imaginrio, despertando

    sentimentos contraditrios e constrangimentos ntimos.

    3Uma brochura distribuda no Brasil, em meados dos anos 1980, para professores da Aliana Francesa

    d uma pequena idia da importncia do cinema para a educao, naquele pas trata-se de umregistro analtico de filmes realizados por crianas, com idades entre 6 e 13 anos, durante dez anos, nasescolas e centros de lazer de Paris. (ALAIN LECLERC, 1984)

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    Se isso verdadeiro no que diz respeito Histria, mais ainda no que se refere aos

    aspectos mais subjetivos da vida social, esses muito mais permeveis ao contato com as

    diferentes formas de expresso artstica. Certamente muitas das concepes veiculadas em

    nossa cultura acerca do amor romntico, da fidelidade conjugal, da sexualidade ou do ideal de

    famlia tm como referncia significaes que emergem das relaes construdas entre

    espectadores e filmes.

    Parece ser desse modo que determinadas experincias culturais, associadas a uma

    certa maneira de ver filmes, acabam interagindo na produo de saberes, identidades, crenas

    e vises de mundo de um grande contingente de atores sociais. Esse o maior interesse que o

    cinema tem para o campo educacional sua natureza eminentemente pedaggica.

    Nas sociedades mais ricas e desenvolvidas do mundo contemporneo, bens culturais

    audiovisuais, incluindo os cinematogrficos, so considerados recursos estratgicos para a

    construo e a preservao de identidades nacionais e culturais. Tanto que esse tema ocupa

    lugar privilegiado na agenda de negociaes e acordos internacionais da Organizao Mundialde Comrcio, que envolve as maiores naes do mundo. Esse fato deveria ser suficiente para

    que os educadores encarssemos a questo coma seriedade que ela merece.

    Por incrvel que parea, os meios educacionais ainda veem o audiovisual como mero

    complemento de atividades verdadeiramente educativas, como a leitura de textos, por

    exemplo, ou seja, como um recurso adicional e secundrio em relao ao processo

    educacional propriamente dito. Defendemos o direito de acesso amplo e universal ao

    conhecimento, mas no defendemos o direito de acesso ao cinema o Brasil um dos pases

    em que o ingresso de cinema est entre os mais caros do mundo. At quando ignoraremos o

    fato de que o cinema conhecimento?

    Enquanto os livros so assumidos por autoridades e educadores como bens

    fundamentais para a educao das pessoas, os filmes ainda aparecem como coadjuvantes na

    maioria das propostas de poltica educacional. Afinal, educao no tem mesmo nada a ver

    com cinema? Atividades pedaggicas e imagens flmicas so, necessariamente, incompatveis?

    Por que se resiste tanto em reconhecer nos filmes de fico a dignidade e a legitimidade

    culturais concedidas, h sculos, fico literria?

    possvel que essa atitude se deva, em parte, a uma crena, mais ou menos comum,

    de que a relao com produtos audiovisuais (cinema e tev, principalmente) atua de modonegativo na formao de leitores e contribui para o desinteresse por atividades pedaggicas

    assentadas em linguagem escrita. Mas, depois de mais de um sculo da criao do cinema,

    como podemos acreditar que existam fronteiras intransponveis entre linguagem escrita e

    linguagem audiovisual?

    Cabe questionar, ainda, por que o desconhecimento de obras e autores importantes

    da literatura visto como um grave problema a ser enfrentado pelos meios educacionais,

    enquanto o fato de a maioria dos brasileiros ignorar a existncia de incontveis obras da nossa

    cinematografia (algumas delas includas entre as melhores do mundo) tratado como algo

    totalmente irrelevante (mesmo ns, professores, muitas vezes desmerecemos essa produo).

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    Entretanto, se admitimos que a relao com filmes participa de modo significativo da

    formao geral das pessoas, precisamos entender como que isso se d e qual a extenso e

    os limites dessa participao. Precisamos estar atentos e dispostos a compreender a pedagogia

    do cinema4, suas estratgias e os recursos de que ela se utiliza para seduzir, de forma to

    intensa, um considervel contingente de pessoas, sobretudo jovens. Para isso necessrio nos

    dispormos a conhecer o cinema, sua linguagem e sua histria.

    4Em texto publicado por ocasio das celebraes que envolveram os 500 anos do descobrimento do

    Brasil, Guacira Louro desenvolve o conceito de currculo cultural e discute, de um modo muitointeressante, os efeitos da chamada pedagogia do cinema. O texto, intitulado O cinema comopedagogia um dos que compem a coletnea 500 anos de educao no Brasil, da Autntica Editora.