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Ana Lima Kallás A PAZ SOCIAL E A DEFESA DA ORDEM A Igreja Católica, o Governo Allende e o Golpe Militar de 1973 Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

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Ana Lima Kallás

A PAZ SOCIAL E A DEFESA DA ORDEM

A Igreja Católica, o Governo Allende e o Golpe Militar de 1973

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Universidade Federal do Rio de Janeiro

2008

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A PAZ SOCIAL E A DEFESA DA ORDEM

A Igreja Católica, o Governo Allende e o Golpe Militar de 1973

Ana Lima Kallás

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em História Social da

Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como requisito parcial para a obtenção do

Grau de Mestre em História.

Orientadora: Jessie Jane Vieira de Souza

Rio de Janeiro

2008

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A PAZ SOCIAL E A DEFESA DA ORDEM

A Igreja Católica, o Governo Allende e o Golpe Militar de 1973

Ana Lima Kallás

Dissertação a ser submetida ao Corpo Docente do Departamento de História do

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História Social.

BANCA EXAMINADORA:

_________________________________________________________________

Profª.Drª. Jessie Jane Vieira de Souza – Orientadora

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Renato Luís do Couto Neto e Lemos

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Norberto Osvaldo Ferreras

Rio de Janeiro

2008

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FICHA CATALOGRÁFICA

Kallás, Ana Lima. A paz social e a defesa da ordem: a Igreja Católica, o governo Allende e o golpe militar de 1973/ Ana Lima Kallás. - Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2008. xii, 256f.: il.; 30 cm Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ Programa de Pós-Graduação em História Social, 2008. Referências Bibliográficas: f.6 Orientadora: Jessie Jane Vieira de Souza 1. História – Chile. 2. Igreja e Política. 3. Unidade Popular. 4. Golpe de Estado. I. Souza, Jessie Jane Vieira de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em História Social. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que contribuíram de alguma forma para o desenvolvimento desta

dissertação durante o período de dois anos dedicado à pesquisa.

A Felipe Demier pela disponibilidade de leitura e debate, os quais me permitiram renovar meu

interesse pelo assunto ao longo deste período.

À recente amiga historiadora Teresa Marques, pois sem ela não teria condições de fazer a

minha pesquisa no Chile.

Às amigas chilenas Dina, Paz e Gladys que muito me ajudaram ao longo de minha estadia em

Santiago do Chile. Agradeço especialmente à Gladys, mi “mamá chilena” pela hospedagem e

carinho.

Ao amigo chileno Miguel Vergara pela longa estadia em sua casa durante o trabalho de

pesquisa. Agradeço-o profundamente pela confiança, companhia e conversas nesse período,

as quais me fizeram compreender um pouco mais da história política contemporânea do Chile.

À professora e psicóloga chilena Elizabeth Lira que me recebeu na Universidade Alberto

Hurtado em Santiago com disponibilidade e atenção, com quem compartilhei algumas

impressões comuns sobre o meu objeto de estudo.

À Ximena Galleguillos da editora chilena LOM pela conversa, dicas e contatos que me

proporcionou em Santiago referentes à pesquisa.

À minha orientadora Jessie Jane Vieira de Souza pelo incentivo ao estudo do tema e pela

orientação neste trabalho.

Ao professor Renato Lemos em cujas aulas me inspirei para o estudo de novos temas e

amadureci alguns debates teóricos.

A Tiago Rodrigues pelo tratamento dado às imagens desta dissertação.

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Às minhas companheiras Carla Medeiros e Maya Valeriano pela paciência, solidariedade e

cumplicidade neste momento difícil e incerto. À Pedro Castanheira pela ajuda na revisão

deste trabalho.

Aos meus pais, Marlis e Kallás, pelo apoio incondicional ao longo deste período. À Maria,

que mesmo distante, se disponibilizou pela revisão final desta dissertação.

Finalmente, à Universidade Federal do Rio de Janeiro e ao Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq que viabilizaram esta pesquisa.

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v

Miren cómo nos hablan de libertad

cuando de ella nos privan en realidad.

Miren cómo pregonan tranquilidad

cuando nos atormenta la autoridad.

¿Qué dirá el Santo Padre

que vive en Roma, que le están degollando

a su paloma?

Miren cómo nos hablan del paraíso

cuando nos llueven balas como granizo.

Miren el entusiasmo con la sentencia

sabiendo que mataban a la inocencia.

El que ofició la muerte

como un verdugo tranquilo está tomando

su desayuno. Con esto se pusieron

la soga al cuello, el quinto mandamiento

no tiene sello.

Mientras más injusticias, señor fiscal,

más fuerzas tiene mi alma para cantar.

...

...................................................................... Que dirá el Santo Padre (ou El Santo Padre)

de Violeta Parra (1960-1963)

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RESUMO

KALLÁS, Ana Lima. A Paz Social e a Defesa da Ordem: A Igreja Católica, o governo

Allende e o golpe militar de 1973. Orientadora: Jessie Jane Vieira de Souza. Rio de Janeiro:

UFRJ/IFCS; CNPq/UFRJ, 2008. Dissertação (Mestrado em História Social).

A dissertação discute o papel político desempenhado pela alta hierarquia da Igreja Católica do

Chile no período de governo da Unidade Popular (1970 – 1973) e sua participação como

legitimadora moral do golpe civil-militar que derrubou o presidente Salvador Allende. A

relação Igreja e política no Chile é compreendida como distinta dos demais países latino-

americanos devido à opção do episcopado pela Democracia Cristã a partir da década de 1960.

Entendendo a Igreja como uma instituição privada de organização hierárquica, partimos da

hipótese de que diante de um contexto de ativação popular – como era o que caracterizava o

Chile em meados de 1972 – a Igreja, por meio de pronunciamentos que invocavam a “paz

social”, a “reconciliação nacional” e a “defesa da democracia” acabou por legitimar e se

incorporar à frente civil-militar que derrubou Allende.

PALAVRAS-CHAVES: História - Chile, Igreja Católica, golpe militar, frente de oposição.

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ABSTRACT

KALLÁS, Ana Lima. Social Peace and the Defense of Order: The Catholic Church, the

Allende government and the military coup of 1973. Orientadora: Jessie Jane Vieira de

Souza. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS; CNPq/UFRJ, 2008. Dissertação (Mestrado em História

Social).

The dissertation discusses the political role played by Chile’s Catholic Church hierarchy

during the Popular Unity government (1970 – 1973), morally legitimating the civil-military

state coup that overthrown the president Salvador Allende. The relationship between Church

and politics in Chile is understood as distinct from other Latin-American countries due to the

Church’s hierarchy’s option for the Christian Democracy since the 1960’s. Understanding the

Church as a private institution with a hierarchical organization, we start from the hypothesis

that in a context of popular activation – as was what characterized Chile in the mid of 1972 –

the Church, by the means of pronouncements that invocated ‘social peace’, ‘national

reconciliation’ and the ‘defense of democracy’, ended up legitimating and incorporating itself

to the civil-military front that overthrown Allende.

KEY-WORDS: History - Chile, Catholic Church, military coup, opposition front.

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RESUMEN

KALLÁS, Ana Lima. La Paz Social y la Defensa del Orden: la Iglesia Católica, el

gobierno de Allende y el golpe militar de 1973. Orientadora: Jessie Jane Vieira de Souza.

Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS; CNPq/UFRJ, 2008. Dissertação (Mestrado em História Social).

El objetivo de la presente investigación es debatir el rol político de la alta jerarquía de la

Iglesia Católica de Chile durante el gobierno de la Unidad Popular (1970 – 1973) y su

participación como legitimadora moral del golpe civil militar que provocó la derrota del

presidente Salvador Allende. La relación Iglesia y política en Chile se dio de diferente manera

que en el resto de los países de Latinoamérica debido a la opción del episcopado por la

Democracia Cristiana desde los años sesenta. Tomando la Iglesia como institución privada de

organización jerárquica, partimos de la hipótesis de que frente a la coyuntura de activación

popular – como la que caracterizaba a Chile a mediados de 1972 – la Iglesia pronunciándose a

favor de la “paz social”, de la “reconciliación nacional” y de la “defensa de la democracia”

terminó por legitimar e incorporarse al frente civil militar que provocó la derrota de Allende.

Palabras Claves: Historia – Chile; Iglesia Católica; golpe militar; frente de oposición.

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LISTA DE SIGLAS

ALPRO Aliança para o Progresso

CECH Conferência Episcopal do Chile

CEPAL Comissão Econômica para a América Latina

CIA Central Intelligence Agency

CODE Confederação para a Democracia

CpS Cristãos para o Socialismo

DC Democracia Cristã

ENU Escola Nacional Unificada

FEDAP Federación de Centros de Padres y Apoderados de Colégios Particulares

FFAA Forças Armadas

FOCH Federação Operária do Chile

FRAP Frente de Ação Popular

JAP Junta de Abastecimento e Preço

MAPU Movimento de Ação Popular Unificado

MIR Movimiento Izquierda Revolucionaria

PC Partido Comunista

PDC Partido Democrata Cristão

PDN Partido Democrático Nacional

PDR Partido Democracia Radical

PIR Partido Izquierda Radical

PS Partido Socialista

PN Partido Nacional

SOFOFA Sociedade de Fomento Fabril

UCA Universidade Católica de Santiago

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UNCTAD Confederação das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento

UP Unidade Popular

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SUMÁRIO

Introdução

Apresentação _____________________________________________________________ 1

Reflexões teóricas sobre o objeto de estudo _____________________________________ 6

Método e fontes da pesquisa _________________________________________________ 15

A estruturação dos capítulos _________________________________________________ 18

Capítulo I – A Igreja e suas relações com a política _____________________________ 20

Parte I: A Igreja diante da modernização capitalista na América Latina

1.1 A Igreja como objeto de estudo ____________________________________________ 21

1.2 Adaptações e recriações do catolicismo na recente sociedade industrial:

a questão social ___________________________________________________________ 25

1.3 O uso da liberdade no direito de propriedade:

a Igreja no pós-revolução cubana (1959-1961) e o Concílio Vaticano II (1962-1965) _____ 32

Parte II: O episcopado chileno e a Democracia Cristã ___________________________ 36

1.4 Igreja Católica do Chile e participação na política:

a bibliografia e sua linha predominante _________________________________________ 36

1.5 Um partido, uma doutrina:

a Democracia Cristã, a Igreja e o processo político nacional (1960-1970) ______________ 38

Capítulo II – O governo da Unidade Popular, o golpe de 1973 e sua historiografia ___ 70

2.1 A América Latina e as transformações no pós-guerra: a crise do nacional-reformismo _ 71

2.2 A Unidade Popular e o governo Allende _____________________________________ 76

2.3 O papel da grande imprensa na derrubada do governo Allende:

El Mercurio como “partido” da burguesia chilena _______________________________100

Os principais temas abordados pela imprensa mercurial _______________________ 103

El Mercurio: a defesa dos valores cristãos e do pensamento católico tradicional ____ 111

2.4 A historiografia sobre o golpe de 1973: questões e problemas ___________________ 116

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Capítulo III - A alta hierarquia católica e a frente golpista:

a paz social e a defesa da ordem – aproximações discursivas e práticas ____________ 131

3.1 A defesa da democracia _________________________________________________ 133

A democracia regida por princípios cristãos _________________________________ 133

Em defesa da legalidade democrática: cumprindo as leis para preservar a ordem ____ 136

Legalismo democrático versus classe trabalhadora organizada ___________________ 157

3.2 A abordagem do socialismo e seus efeitos político-sociais no Chile ______________ 162

A concepção católica de socialismo:

socialização da propriedade, harmonia social e liberdade religiosa _______________ 164

Igreja Católica e Unidade Popular: qual o limite da cordialidade? ________________ 171

A alta hierarquia católica e o movimento “Cristãos para o Socialismo” ____________ 193

3.3 A oposição à reforma educacional do governo Allende ________________________ 203

Educação e catolicismo na modernidade ____________________________________ 204

As bases do projeto educacional da UP _____________________________________ 205

A oposição unificada no rechaço ao ENU ___________________________________ 209

3.4 Em nome da Reconciliação Nacional ______________________________________ 220

A Reconciliação Nacional como resultado da justiça social _____________________ 222

A Reconciliação Nacional como respeito à legalidade democrática _______________ 226

A Reconciliação Nacional como consenso __________________________________ 229

A Reconciliação Nacional como perdão ____________________________________ 234

Considerações Finais _____________________________________________________ 238

Bibliografia _____________________________________________________________ 248

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Introdução

Más allá del hecho histórico que podamos tener de la persona del general Pinochet, del gobierno que encabezó por 17 años, ante la majestad de la muerte sólo cabe de parte de todos una actitud de respeto. (…) Los que tenemos el don de la Fe y creemos en la vida eterna y en el Señor resucitado estamos llamados a orar por su eterno descanso y al mismo tiempo hacer un llamado fraterno a que se viva este acontecimiento con profundo respeto, en paz, evitando toda provocación a favor o en contra.1 Bispo Alejandro Goic, presidente da Conferencia Episcopal do Chile, 11 de dezembro de 2006

O falecimento do general Augusto Pinochet em 10 de dezembro de 2006 trouxe à tona

as lembranças partilhadas dos 17 anos de ditadura através do pronunciamento de diferentes

atores políticos, dentre eles a Igreja Católica. Em meio a diversas manifestações nas ruas de

Santiago, o bispo Alejandro Goic, representando a “voz oficial da Igreja”, fez um apelo por

respeito à morte do ditador e por pacificação de uma sociedade até hoje partida ao meio.

Neste 11 de dezembro, os chilenos se dividiram entre os que choraram e os que

comemoraram a morte do general. As clivagens também evidenciaram duas imagens do Chile

pós-regime militar: a de um país que se modernizou com a linha dos “Chicago Boys” e Milton

Friedman, tornando-se um “exemplo” de desenvolvimento econômico para o restante do

mundo; e a de um Chile destroçado socialmente, com grande percentagem de desaparecidos,

assassinados, exilados, alto índice de desigualdade social e com seus movimentos sociais,

organizações trabalhadoras e indígenas desestruturadas. No mesmo dia, o governo da

socialista Michelle Bachelet, a qual também passou pelos cárceres chilenos durante o regime

militar, reprimiu com jatos de água e gás lacrimogêneo as comemorações que tomaram as

ruas.

Foi diante deste cenário que o atual presidente da Conferência Episcopal do Chile,

Alejandro Goic, pediu uma atitude de respeito frente à morte de Pinochet, invocando o

convívio fraterno e a paz entre os chilenos. Curiosamente, a Conferencia Episcopal expôs um

pronunciamento muito semelhante ao discurso proferido há 33 anos, no período

imediatamente pós-golpe de 1973. Naquela ocasião, o bispo Raúl Silva Henríquez pedira

“respeito” à morte de Salvador Allende e o “fim do ódio entre chilenos” - era chegada a hora

1 JEREZ, Julio; MARTÍNEZ, Rolando; ZÚÑIGA, Víctor. Obispo Alejandro Goic llamó a tener “actitud de respeto”. El Mercurio, Santiago do Chile, 11 dez. 2006. Disponível em http://diario.elmercurio.com/2006/12/11/nacional/nacional/noticias/9F8A928E-8C33-... Acesso em: 11 dez. 2006.

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da “reconciliação” após tantos meses de distúrbios e “caos” social.2 Os bispos, numa visita à

Junta Militar, se mostraram disponíveis em colaborar com a “reconstrução do país” e com a

“pacificação dos espíritos”.3

O papel político desempenhado pela alta hierarquia da Igreja do Chile, representada

por sua Conferência Episcopal, é o objeto do presente estudo, que tem como recorte temporal

o governo de Salvador Allende até o golpe de Estado (1970-1973). Apesar da opção por estes

marcos cronológicos, não desconsideraremos a atuação da Igreja nas décadas anteriores e

posteriores, pois estamos lidando com uma instituição que se projeta no mundo com um

sentido de “permanência”. Em outras palavras, para os representantes católicos a sua

“missão” no presente será sempre coerente com a “missão” passada e futura da instituição.

Por esse motivo, o tema da “reconciliação” e da “paz social” continua aparecendo no discurso

atual da Igreja, apesar de ser proferido num contexto diferenciado e, por isso, ganhar um novo

tom.

Ao analisar o papel político da Conferência Episcopal durante o governo de Allende

também estamos interessados em compreender a relação deste setor com o projeto político da

Unidade Popular (UP) e com o seu processo de implementação. Nesse sentido, buscaremos

responder as seguintes interrogações: de que forma a alta hierarquia da Igreja se manifestou

ao longo do governo? A partir do acirramento dos conflitos sociais no Chile, como os bispos

se posicionaram? Existe alguma mudança na postura da Igreja oficial do início do governo até

o ano do golpe? Quais são os principais pontos de conflito entre Igreja e UP? Podemos traçar

convergências entre a postura da Conferencia Episcopal e a postura das classes dominantes

chilenas ao longo destes três anos? O que significou a defesa da “paz social” às vésperas do

golpe militar? A postura dos bispos no imediato pós-golpe pode nos ajudar a compreender as

suas movimentações no período anterior? Quais são as formas que a Igreja do Chile

apresentou para intervir na política contingente do país?

Nossa pesquisa se estrutura a partir da hipótese de que a Igreja Católica, após ter

adotado uma postura tida como harmoniosa com o governo de Allende nos seus dois

primeiros anos, acabou por, com a intensificação dos conflitos sociais a partir de outubro de

1972, contribuir para o fortalecimento dos setores golpistas do país. Se, de novembro de 1970

a meados de 1972, a Igreja defendeu a legitimidade do governo eleito chegando a considerar

2 Declaración del Sr. Cardenal Raúl Silva Henríquez y del Comité Permanente del Episcopado chileno sobre el 11 de septiembre. Santiago do Chile, 13 set. 1973. Disponível em http://www.archivochile.com. Acesso em: 15 mai. 2006. 3 Comunicado do Mons. Carlos Oviedo, secretario general de la Conferencia Episcopal de Chile, sobre la visita del Comité Permanente a la H. Junta Militar de Gobierno. Santiago do Chile, 28 set. 1973. Disponível em http://www.archivochile.com. Acesso em: 15 mai. 2006.

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positivas algumas de suas medidas, com o processo de ativação popular a alta hierarquia

eclesiástica, a partir de discursos que invocavam a “paz social” e a “reconciliação nacional”,

se integrou, na prática, à heterogênea frente golpista anti-UP.4 Em outras palavras, a nossa

hipótese se baseia na idéia de que a cúpula da Igreja procurou estabelecer uma relação cordial

com o governo da UP, considerando até às vésperas do golpe que a democracia era o regime

político mais adequado para manter um estado de “reconciliação nacional” – fator que

contribuía para a estabilidade do sistema capitalista no Chile. No entanto, com a mudança na

conjuntura, marcada por choques cada vez mais agudos entre classe trabalhadora organizada e

burguesia associada a grande parte dos setores médios, o regime democrático deixou de se

apresentar suficientemente capaz de conter o avanço da mobilização popular. Neste novo

quadro, a Igreja passou a desempenhar um papel junto à frente civil-militar de oposição, no

sentido de contribuir para a construção de um ambiente golpista, uma vez que continuou

defendendo a aliança de classes – mesmo na etapa revolucionária do processo político,

criticando a situação de “caos” instalada no país e a “indisciplina” no mundo do trabalho.

Um desdobramento desta hipótese se refere ao entendimento da relação de

“cordialidade” entre Igreja e UP. Compreendemos que esta só existiu no âmbito da política

formal, pois em nenhum momento a cúpula católica se mostrou aliada ao novo governo. A

Igreja como instituição da ordem, não apresentou concordância com um programa de governo

sustentado por dois partidos de inspiração marxista – o Partido Comunista e o Socialista -

salvo com as propostas que apontavam para uma perspectiva desenvolvimentista. Nesse

sentido, entendemos que a opção pela via chilena ao socialismo não foi a opção da Igreja, por

mais que esta via se baseasse numa transformação gradual por meio da manutenção da

institucionalidade democrática. Em suma, a Igreja como aparelho privado de hegemonia e

como instituição da ordem, acabou por, com o processo de autonomização da classe

trabalhadora nesses anos, se aliar aos setores que compuseram a frente de oposição ao

governo de Salvador Allende, invocando para isso o papel de mediadora dos conflitos que

assolavam o país.

Certamente para os estudiosos brasileiros, a época mais conhecida da história chilena

foi o período de governo de Salvador Allende, representante da frente intitulada Unidad

Popular – a primeira candidatura de esquerda na América Latina que havia incorporado um

projeto de transição para o socialismo em seu programa de governo. A via chilena para o

socialismo foi encarada como a proposta da esquerda chilena para superar a defasagem entre

4 É interessante observar que apesar de considerarmos que em 1973 a cúpula da Igreja tenha se aliado aos setores golpistas, não podemos afirmar que sua prática se confunda com as de grupos político- partidários.

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o mundo da política – entendido pelos atores da época como sendo composto por um sistema

partidário fortalecido e consolidado – e o mundo da economia – marcado por uma situação de

dependência estrutural, como no restante da América Latina.5 No Brasil, a maioria dos

estudos sobre o Chile de Allende, de brasileiros e estrangeiros, se concentrou na trajetória

política daquele país, na temática da via chilena para o socialismo, na discussão sobre

“democracia e socialismo”, e, entre as esquerdas, o debate sobre “reforma ou revolução”

ganhou um novo tom a partir da experiência que se desenvolvia no Chile.6 Constatamos,

portanto, a quase ausência de pesquisas que enfocaram outros atores políticos do período em

questão, como a Igreja Católica.

A bibliografia sobre a instituição católica do Chile dificilmente pode ser encontrada no

Brasil e se resume a estudos feitos por autores católicos chilenos, franceses e norte-

americanos ligados a universidades ou instituições católicas. Se examinarmos as produções

existentes, veremos que a Igreja praticamente não foi pensada pra além dos círculos católicos.

Logo, por mais que encontremos uma vasta bibliografia sobre a história política do Chile e

uma menor sobre a história da Igreja do Chile, nos deparamos com um vácuo no que se refere

a produções sobre a participação da Igreja na história política desse país.

Com relação aos estudos sobre a história da Igreja do Chile, podemos dizer que, em

geral, se assemelham mais a guias ou manuais de ação da Igreja ao longo da história e

apresentam uma visão por demais institucional e pouco crítica com relação às fontes

utilizadas tais como boletins, orientações pastorais, anuário da história da Igreja do Chile,

revistas eclesiásticas etc. Este é o caso dos livros de Marciano Barrios Valdés7 – autor que

apresenta uma vasta produção sobre a história da instituição católica do Chile - e Justino

Gómez de Benito.8

5 AGGIO, Alberto. Democracia e Socialismo – a experiência chilena. São Paulo: Annablume, 2002, p.19. Esta interpretação será melhor analisada no capítulo 2 de nossa dissertação. 6 Dentre a bibliografia mais acessível no Brasil podemos citar: LABROUSSE, Alain. A experiência chilena: reformismo ou revolução? Lisboa: Sa da Costa, 1978; SADER, Emir. Cuba, Chile, Nicarágua: Socialismo na América Latina. São Paulo: Atual, 1992 (Série História Viva) e Democracia e ditadura no Chile. São Paulo: Brasiliense, 1984; ALTAMIRANO, Carlos. Dialética de uma derrota: Chile 1970-1973. São Paulo: Brasiliense, 1979; CARLOS, Newton. Chile com Allende, para onde vai? Rio de Janeiro: Gernasa, 1970; BITAR, Sergio. Transição, socialismo e democracia: Chile com Allende. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980; CAVAGNARI FILHO, Geraldo Lesbat. A experiência revolucionária chilena. Rio de Janeiro: ECEME, 1975; ALEGRIA, Fernando. Salvador Allende. São Paulo: Brasiliense, 1983; FOXLEY, Alejandro. Chile: búsqueda de un nuevo socialismo. Santiago: Ediciones Nueva Universidad/Universidad Católica de Chile, 1971; DAVIES, Nathaniel. Os dois últimos anos e Salvador Allende. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990; DINIZ, Evaldo. O golpe que matou Allende – a tragédia chilena. Rio de Janeiro: Ato Editorial & Comunicação, 1983. 7 BARRIOS VALDES, Marciano. La Iglesia en Chile – sinopsis historica. Santiago: Ediciones Pedagogicas Chilenas, 1987. 8 GOMEZ DE BENITO, Justino. Proyectos de Iglesia y proyectos de sociedad en Chile (1961-1990). Santiago: San Pablo, 1995.

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Além desta grande linha de investigação, há também os trabalhos de autores, católicos

ou não, identificados com o engajamento de grupos cristãos em lutas sociais e com a chamada

“Igreja dos pobres” desenvolvida nas décadas de 1950 e 60 em muitos países da América

Latina. Esta bibliografia é marcada em geral por um atrelamento direto dos cristãos às

organizações políticas do momento, desconsiderando a vinculação destes à estrutura

institucional.9 Outra característica que perpassa este tipo de produção é o tom “profético”

atribuído à Igreja – vista pelos autores como uma instituição passível de ser ganha para um

projeto de transformação das sociedades latino-americanas. Nesta linha se encontram os

autores Charles Condamines, François Francou e Brian Smith.10

Dentre os trabalhos mais recentes sobre a história da Igreja no Chile, destacamos o de

Maria Angélica Cruz, socióloga formada pela Universidade do Chile. Em Iglesia, represión y

memoria. El caso chileno a autora investiga o processo de construção da memória da

instituição nos anos 1990 feita por seus próprios representantes sobre o período militar. Nos

anos 1990 evidencia-se o silêncio da hierarquia católica sobre as relações estabelecidas pela

instituição com a política. A pesquisa da autora mostra, por meio da análise dos documentos

episcopais e entrevistas, que a Igreja prefere ser lembrada ou constrói a sua própria memória

da ditadura como a “voz dos que não têm voz” e como “defensora dos direitos humanos” e

não como instituição dividida e participante das disputas políticas daquele contexto.

A importância da Igreja na cultura política do Chile e na realidade das diversas classes

sociais, sua influência direta nos processos políticos e o próprio reconhecimento de sua

intervenção pelos demais atores, governos, organizações e imprensa nos leva a um interesse

pelo estudo da história desta instituição e, particularmente, pela análise de sua atuação

política. É importante frisar a singularidade desta atuação, que se dá por meio de uma

estratégia entendida por seus próprios membros como “transcendental”, “a-histórica”,

“verdadeira” e “justa”, diferenciando-se fundamentalmente dos demais atores políticos.

9 Sabe-se que muitos destes grupos, principalmente os que se ligavam a alguma ordem como jesuítas, beneditinos, franciscanos, tinham certa autonomia para desenvolver seus trabalhos nas bases da Igreja, mas continuavam submetidos à lógica institucional e hierárquica ou, em outras palavras, às orientações de seus superiores. 10 CONDAMINES, Charles. L’Eglise Catholique au Chili: complicite au resistance? Paris: L’Harmattan, 1977; FRANCOU, François. O Chile, o socialismo e a Igreja. Lisboa: Ulisseia, 1978; SMITH, Brian H. The church and politics in Chile: challenges to modern Catholicism. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1982.

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18

Reflexões teóricas sobre o objeto de estudo

O estudo da movimentação política da alta hierarquia da Igreja Católica do Chile de

1970 a 1973 permite-nos entender seus pronunciamentos como o resultado dos debates

realizados no interior da instituição. Este produto, na maior parte dos casos, evidencia a

conformação de uma hegemonia conservadora a ser buscada permanentemente dentro da

Igreja, tendo em vista o processo de radicalização de alguns setores católicos e seu apoio ao

projeto de construção do socialismo no Chile.

Entendemos a hegemonia não apenas como uma forma de controle passiva

manifestada na “doutrinação” e “dominação”, mas como um processo que abrange o

“conjunto de práticas e expectativas sob a totalidade da vida” (sentidos, percepção sobre nós

mesmos e sobre o mundo), isto é, como um “senso da realidade para a maioria das pessoas na

sociedade”, vista como “realidade absoluta”.11 Por não ser exclusiva nem total, a hegemonia

precisa ser renovada continuamente, recriada, modificada e defendida, uma vez que sofre

resistência também continuada. Como afirma Williams, “a qualquer momento, formas de

política e cultura alternativas, ou diretamente opostas, existem como elementos significativos

na sociedade”.12 Na maioria dos casos, estas alternativas, que surgem na esteira do que é

hegemônico, são submetidas ao controle, sendo transformadas e incorporadas. No entanto, sua

importância não deve ser descartada, pois mesmo que afetadas pelo limite do que é

hegemônico, não deixam de ser rupturas significativas.

Sabemos que a prática social de sacerdotes e outros membros da Igreja junto aos

setores mais desfavorecidos e o contato direto destes com os conflitos políticos e sociais que

permeavam as sociedades latino-americanas, permitiu que muitos padres e freiras optassem

pelo engajamento em movimentos sociais, partidos e organizações políticas de esquerda. Se,

por um lado, esta prática fortalecia a linha oficial do Vaticano II - estendendo a evangelização

aos locais de trabalho urbanos e rurais, às comunidades locais e reforçando a imagem da

“Igreja que se fez povo”, por outro lado, este processo possibilitou que diversos membros da

Igreja se somassem a movimentos contra-hegemônicos nestes países e questionassem a voz de

seus superiores. Verificamos, portanto, nas décadas de 1960 e 1970 uma ebulição no interior

da própria Igreja Católica e a dificuldade de preservar a sua unidade aparente. No entanto,

durante os regimes militares e no período de transição democrática, estes conflitos deixaram

de ser explícitos. Após inúmeros casos de exílio forçado, desaparecimentos e assassinatos de

11 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p.113 12 Idem, p.116.

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grupos cristãos ditos “progressistas” e até “radicais” por estes regimes, a Igreja passou a

defender e reproduzir outra imagem de si: a “voz dos que não têm voz”. Esta imagem se

relacionava à idéia da Igreja como uma das poucas instituições da sociedade civil com alguma

liberdade para se manifestar publicamente durante os regimes militares e, desta maneira,

poder denunciar seus “excessos” e crimes. Para a renovação de sua imagem, a instituição

católica incorporaria o legado e a memória dos mesmos cristãos dantes considerados

“subversivos” e “contaminados” pelo comunismo.

Levando em conta as contribuições analíticas deixadas por Gramsci, cujos conceitos

também foram usados por Scott Mainwaring13 para analisar a Igreja no Brasil, entendemos

que a instituição católica chilena, apesar de apresentar uma autonomia relativa, não esteve

ausente do clima de politização da sociedade, que se exacerbou ao longo do governo da

Unidade Popular. A Igreja se constituiu num importante ator político do momento, já que seus

membros estiveram presentes nos debates da época, assumindo posições políticas claras.

Apesar de sua “voz oficial” não ter se pronunciado claramente nas eleições, a Igreja adentra a

década de 70 já claramente fragmentada - existiam católicos apoiando as três candidaturas na

eleição de 1970: a de Jorge Alessandri pelo Partido Nacional (PN), a de Radomiro Tomic pelo

Partido Democrata-Cristão (PDC) e a de Salvador Allende pela UP.14

Para entender a Igreja na sociedade moderna e no Chile destes anos, podemos utilizar

a categoria gramsciana de aparelho privado de hegemonia. O uso deste conceito,

compreendido como órgão da sociedade civil e, portanto, um componente de legitimação (ou

deslegitimação) do projeto hegemônico das classes e/ou frações de classe que ocupam o

aparelho de Estado, nos possibilita pensar a Igreja como uma instituição de caráter

relativamente autônomo e também como espaço atravessado por conflitos de classe. Em

outras palavras, achamos importante ressaltar o perfil multifacetado da instituição e, ao

mesmo tempo, sua forma própria de atuar na esfera temporal. Ao optar pela análise do

discurso dos bispos ou do setor hegemônico da Igreja, nossa pesquisa não pode ignorar o

simbolismo próprio do pensamento católico. Assim, buscaremos entender o significado de

tais discursos no contexto histórico do Chile, verificando em que medida a intervenção da

hierarquia católica, por meio de seu discurso próprio, pode nos ajudar a compreender a Igreja

como um dos componentes da frente de oposição ao governo Allende.

13 MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a Política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Brasiliense, 1983. 14 SMITH, Brian. The church and politics in Chile: challenges to a modern Catholicism. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1982, p.129.

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A identificação das estratégias de intervenção da Igreja naquele cenário nos leva a

entender o papel preponderante dos bispos como formuladores e difusores de uma concepção

de mundo que, em última análise, convergiu com o papel desempenhado por outros setores da

sociedade (outros aparelhos privados de hegemonia) tais como jornais de grande circulação,

partidos políticos de direita, associações patronais (os “gremios”) e o partido democrata-

cristão, tradicionalmente atrelado à instituição eclesiástica. A opção por este caminho nos leva

a compreender os bispos como intelectuais tradicionais, uma vez que, apesar de estes últimos

se entenderem como figuras “apolíticas” (estando mais atrelados às encíclicas papais do que

ao processo político em curso) ou se entenderem como parte de um corpo simbólico

transcendental voltado para a “salvação universal dos homens” e defenderem este

posicionamento como sendo “o” posicionamento do conjunto da “comunidade católica”, sua

intervenção (discursos e práticas) apresentou uma repercussão propriamente política. Além

disso, como veremos no capítulo 3, o discurso episcopal chileno esteve permeado por temas

como a “unidade”, a “salvação universal” e o “diálogo”, o que significa que estes membros da

Igreja não se entendiam como representantes de uma classe social específica, mas como

representantes dos católicos de todas as classes.15 Podemos pensar que parte dos intelectuais

católicos chilenos atuou em conjunto com os intelectuais orgânicos de uma fração da

burguesia nacional – a saber, o empresariado e os setores médios chilenos – e que esta aliança

se concretizou a partir da segunda metade do século XX no interior do Partido Democrata-

Cristão, partido este que se configurou como a opção política desta Igreja.16

Para verificar a forma pela qual a Igreja difundiu a sua concepção de mundo,

tentaremos compreender a relação do discurso hegemônico da Igreja com a ideologia das

classes dominantes chilenas (expressas em seus principais meios de comunicação impressos)

e a maneira pela qual esta hegemonia é constantemente conformada no interior da instituição

15 Nas décadas de 60 e 70, após o Concílio Vaticano II, a Igreja voltou a utilizar a idéia de “comunidade”, conceito que expressava a coletividade, a partilha e a igualdade entre os homens no sentido de enfatizar a harmonia ao invés do conflito. O termo “comunidade cristã” é definido como algo que surge do fato de pessoas irem atrás de Jesus (...), nele permanecem e vivem com ele. (...) Estes membros da comunidade são chamados a tornarem visível e a impulsionarem, em favor de todos os homens com os quais vivem em história e sociedade, qual seja a intenção de Deus não somente no tocante a si próprios, mas também para os muitos, a saber, todos (‘Ele quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade’: 1Tm 2,4). Ver: Comunidade. In: Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. São Paulo: Paulus, 1993, p.100-101. 16 Desde o fim do século XIX a Igreja do Chile se aliou ao Partido Conservador quando liberais e radicais começaram a propor leis de tolerância religiosa e de secularização. O clero considerava que os conservadores eram seus únicos aliados confiáveis e realizou uma campanha aberta pelos candidatos deste partido. É importante considerar que tanto o partido liberal quanto o conservador representavam a elite que se apoiava em uma base rural e, nesse sentido, se diferenciavam dos Partidos Radical e Democrata. Na verdade, a única diferença significativa entre conservadores e liberais era que os primeiros não eram anticlericais como os segundos. Sobre o tema ver DEUTSCH, Sandra McGee. Las Derechas – la extrema derecha en la Argentina, el Brasil y Chile (1890-1939). Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes Editorial, 2005, p.31-44.

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– sempre por meio de disputas e conflitos, além da utilização da coerção e do disciplinamento,

visto ser a Igreja uma instituição que, mesmo após as renovações eclesiásticas em âmbito

mundial, continuou apresentando uma estrutura hierárquica e verticalizada. No caso chileno,

veremos que para deslegitimar os rumos do país dirigido pela UP, a hierarquia utilizou a

defesa da “democracia” e de suas instituições, reforçando o “mito chileno da democracia”17 e

contrapondo-o ao projeto da via chilena. O clima de violência e hostilidade entre setores

divergentes, entendido como produto do governo “marxista” e da ação da esquerda

revolucionária, foi considerado uma ameaça para a “tradição democrática chilena”. Este

discurso também fortaleceu a falsa idéia de que o socialismo só poderia existir com

totalitarismo – jargão veiculado pela democracia-cristã e pela direita tradicional - e que,

conseqüentemente, a construção do socialismo era um elemento “estranho” à sociedade

chilena. A expulsão pela hierarquia dos setores católicos considerados “radicais” também se

constitui como fato empírico para pensarmos esta questão.

Alguns autores, ao analisar a relação entre a Igreja e o Estado em diferentes

conjunturas históricas, utilizaram ou se contrapuseram à categoria de Aparelhos Ideológicos

de Estado (AIE) desenvolvida por Louis Althusser. Centrando-se menos na relação Igreja-

Estado e mais no papel da ideologia religiosa cristã, Althusser apresenta elementos para a

discussão acerca do papel desempenhado pela Igreja na manutenção do status quo capitalista.

Para ele, a Igreja, assim como os demais AIEs (escolas, família, imprensa, direito etc) seriam

responsáveis pela difusão das visões de mundo das classes dominantes. Enquanto o Aparelho

(Repressivo) de Estado (governo, ministérios, exército, polícia, tribunais, presídios etc)

atuaria centralmente por meio da coerção, caberia aos AIEs, como função principal, veicular a

ideologia da ordem capitalista com vistas à disciplinarização das classes dominadas.18 Este

autor de matriz marxista estruturalista considerou a Igreja como uma instituição

disciplinadora (coercitiva) e reprodutora da ideologia das classes dominantes. Esta disciplina

seria direcionada pela própria hierarquia aos seus pares e pelos órgãos repressivos do

Aparelho de Estado aos considerá-los “subversivos”. Se, por um lado, o uso da categoria

Aparelho Ideológico de Estado nos permite visualizar a Igreja como instituição disciplinadora

que no Chile afastou os grupos católicos socialistas, por outro achamos que a mesma

categoria não nos permite entender as importantes disputas travadas internamente entre

distintos projetos teológico-políticos principalmente da década de 1970, e tampouco a forma

17 Cf. AGGIO, Alberto. Frente Popular, radicalismo e revolução passiva no Chile. São Paulo: Annablume/Fapesp, 1999. 18 Cf. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado: notas para uma investigação. In: ZIZEK, Slavoj (org.). O mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 116. p.105-142.

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própria da Igreja intervir na esfera temporal – sempre por meio de um discurso próprio, a-

histórico, metafórico e que situa a instituição numa ordem “transcendental”. Cabe aqui

lembrar da contribuição de Mainwaring19 quando afirma que “a questão não é se a Igreja está

ou não envolvida na política, mas como ela está envolvida”. Por isso a necessidade de

destrincharmos os pronunciamentos “oficiais” da Igreja do Chile, a fim de buscar a forma

singular que esta instituição tem de analisar as temáticas nacionais e de intervir no contexto

histórico para manter seus interesses e privilégios.

O importante papel da Igreja na sociedade chilena nos anos que antecederam a

derrubada de Salvador Allende nos permite pensá-la como uma espécie de partido político, no

sentido gramsciano do termo: como aquele que agrega e difunde uma visão de mundo com

vistas a dirigir politicamente a nação a partir dos interesses da classe ou fração de classe que

representa. Se, por um lado, a aplicação desta categoria à instituição eclesiástica poderia nos

levar, de certo modo, a ignorar suas características peculiares que a diferenciam dos outros

“partidos” (o seu discurso, sua organização interna, sua filosofia teológica etc.), por outro, nos

permite compreendê-la como organizadora e difusora de uma visão de mundo formulada por

seus próprios intelectuais e nesse sentido, como espaço de troca e aglutinação de uma

subjetividade específica. É interessante chamar a atenção aqui que esta visão de mundo

difundida pela Igreja pode, do ponto de vista da prática política, convergir com as propostas e

bandeiras políticas de partidos propriamente ditos, e, portanto, com as demandas de certas

classes e frações de classe sociais. No caso específico de nossa pesquisa, o entendimento

gramsciano da Igreja como partido político nos permite perceber o encontro das posturas

políticas da instituição católica chilena com os anseios dos setores que compuseram a frente

golpista.

Entretanto, por conta do caráter não homogêneo da Igreja do Chile expresso, por

exemplo, na existência desde grupos ideologicamente vinculados ao fascismo (Tradição,

Família e Propriedade ou TFP) até setores identificados com o socialismo (Movimento

Cristãos para o Socialismo, Iglesia Joven, Iglesia del pueblo etc.),20 talvez seja mais

adequado o uso do termo partidos ao invés de partido. Assim, nessa perspectiva, estes

diversos agrupamentos católicos poderiam ser compreendidos como correntes ou sub-

partidos que disputariam o controle de um partido maior (a própria Igreja), já que, não

obstante os antagonismos ideológicos e políticos manifestos entre estes diversos

19 MAINWARING, Scott. Op. cit. 20 Sobre os distintos grupos católicos ver SMITH, Brian H. The church and politics in Chile: challenges to modern Catholicism. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1982 e FRANCOU, François. O Chile, o socialismo e a Igreja. Lisboa: Ulisseia, 1978.

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agrupamentos, todos eles estavam submetidos à mesma lógica institucional e doutrinária. Vale

lembrar aqui a idéia de Romano21 de que constitui-se em equívoco a separação, em termos

analíticos, do militante católico da instituição na qual ele está inserido, o que acabaria por

despir o cristão político de sua roupagem religiosa, a qual condiciona a sua atuação na esfera

temporal. Esta ressalva é fundamental, pois o uso da categoria partido para entender a Igreja

não pode de forma alguma deixar de lado o projeto teológico dos distintos grupos católicos.

Seria muito simplista de nossa parte se atrelássemos os anseios e a atuação destes setores

diretamente às correntes políticas do momento e desconsiderássemos a sua formulação

enquanto intelectuais ou militantes católicos.

Seguindo esta linha de pensamento, poderíamos ainda utilizar o termo partido no

singular para pensarmos a Igreja como produtora de um conjunto de valores culturais, isto é,

de uma moral, de hábitos, de uma maneira de se comportar e de pensar.22 Neste sentido, a

instituição católica se apresenta como normatizadora, educadora e disciplinadora e busca, na

sociedade moderna laicizada, difundir esta maneira de ser e de entender o mundo. Por este

motivo, a questão da educação é uma das mais importantes para o catolicismo e foi em torno

dela que os bispos da América Latina travaram seus maiores embates ao longo do século XX.

Muitos dos estudos sobre Igreja que tiveram Gramsci como base teórica não se

preocuparam tanto em entender a lógica própria do pensamento católico, a existência milenar

da Igreja, a forma pela qual seus membros concebem a instituição e estão a ela ligados.23

Nesse sentido, o trabalho de Roberto Romano nos oferece um importante arcabouço para

compreendermos a permanência e a dominação da Igreja ao longo dos séculos.

Partindo de uma definição original da instituição eclesiástica, o autor se detém sobre

os principais elementos do discurso católico e sua capacidade de se transfigurar a cada novo

contexto histórico, mantendo-se forte e penetrante nas sociedades. O discurso da Igreja,

apesar de sofrer modificações e tornar-se sempre atual a partir de “novas roupagens”, mantém

uma base dogmática que perpassa as conjunturas.

21 ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado (crítica ao populismo católico). São Paulo: Kairos livraria e editora, 1979. 22 Aqui estamos nos referindo ao termo usado por Gramsci para entender uma das formas de partido: o partido constituído por uma elite de homens de cultura, que têm a função de dirigir do ponto de vista da cultura, da ideologia geral, um grande movimento de partidos afins (...). Ver GRAMSCI, Antonio. Maquiavel …, op. cit., p. 23. 23 Dentre alguns dos autores que utilizaram a contribuição teórica de Gramsci para entender a Igreja Católica podemos citar: LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2000; MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a Política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Brasiliense, 1983; PORTELLI, Hughes. Os socialismos no discurso social católico. São Paulo: Edições Paulinas, 1990 e PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questão religiosa. São Paulo: Paulinas, 1984 (Coleção sociologia e religião).

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Devemos destacar que a obra de Romano apresenta uma validade significativa no que

se refere à metodologia utilizada. Segundo ele, “atentar para o modo singular como os vários

discursos no interior da Igreja desenvolvem para si os elementos da cultura brasileira e os

recriam mediante a consideração teológica é, pois, conditio sine qua non para se abordar de

maneira adequada a política católica contemporânea”.24

Consideramos que esta perspectiva metodológica é muito interessante para a analisar a

Igreja na América Latina, pois possibilita aos leitores compreenderem a lógica do pensamento

católico e a forma pela qual seus membros entendem a instituição. Nesse sentido, Romano

ressalta a impossibilidade de tradução direta do discurso teológico para o sociológico, já que o

primeiro se apodera das racionalizações das ciências sociais interligando-as à gênese do

pensamento católico.25

Assim, ao expor a “salvação universal” como o principal objetivo da Igreja, o filósofo

afirma que este anseio perpassa as conjunturas. A “missão” estaria inscrita no contexto mais

amplo da luta entre a Igreja e os demais poderes da ordem capitalista – o Estado, a afirmação

das classes e de suas organizações, cujo movimento no século XIX foi negar toda e qualquer

transcendência.

A partir da análise de documentos de bispos progressistas do Nordeste do Brasil na

década de 1960, o autor aponta traços importantes da auto-identificação da Igreja Católica e

como ela utiliza estas imagens para se relacionar com o Estado. Achamos que, por se tratar de

uma instituição de caráter universal, estes aspectos podem, com as mediações e ressalvas

necessárias, ser utilizados para analisar a Igreja nos demais países do Cone Sul.

O primeiro aspecto de formação da identidade institucional que se projeta

externamente seria o papel de mediadora universal entre Deus e os homens, entre ricos e

pobres, isto é, a função de árbitro dos conflitos existentes no interior de qualquer sociedade.

Este traço é importante para pensarmos na insistência dos bispos em defender a “harmonia

social”, de forma a evitar o “perigo de uma sociedade fundamentalmente dividida e abalada

por conflitos”. A “inquietação social” ou a “desordem” seriam, para a Igreja enquanto

instituição, uma forma de ameaça ao seu “monopólio do sagrado”. Isto explicaria o seu

movimento próprio, marcado por “acomodações, perdas, substituições dos diferentes grupos

nela existentes expostos aos abalos mais amplos da sociedade”.26

24 ROMANO, Roberto. Op. cit., p.23. 25 “Os integrantes hierárquicos ou leigos da Igreja jamais se enfrentam com fatos brutos, desprovidos de interpretações anteriores”. Idem, p.26. 26 Ibidem, p.47.

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O segundo fator de conformação da identidade institucional católica seria o carisma

oficial da hierarquia eclesiástica, que possibilita que todos os seus membros aceitem, como

obrigação pessoal, “a diretiva de seus ministros”. Este seria o fator de garantia do princípio

monárquico e hierárquico da Igreja.

As noções de Bem Comum, Justiça e Lei Natural são apresentadas como constantes no

discurso católico, sendo apenas reelaboradas diante de novos fins. Nesse sentido, o Estado,

apesar de não representar mais para a Igreja a universalização da sociedade civil, é tido como

fator de ordem natural, devendo proteger a família e a propriedade para garantir o “bem

comum”. Este último seria sempre acompanhado das noções de “Liberdade” e

“Responsabilidade”. Teoricamente, a legitimação do poder público pela Igreja passa, pois,

pela garantia da propriedade ao maior número de pessoas, isto é, pela viabilização do

desenvolvimento econômico cujos fins não excluam os “direitos fundamentais da pessoa

humana”.27 Para a Igreja, a manutenção da propriedade é legítima principalmente se tiver uma

função social, isto é, se for produtiva. A liberdade católica dependeria da afirmação desta

propriedade e a doutrina social teria como premissa a diminuição da desigualdade entre as

classes sem a sua dissolução. Desta forma, caberia tanto à Igreja quanto ao Estado garantir a

ordem contra qualquer ameaça de ruptura.28

Romano apresenta em sua obra o que acredita ser a base de sustentação do pensamento

católico. Este último, ao afirmar a propriedade, a liberdade e a responsabilidade como

estratégias para a manutenção do “equilíbrio social”, se diferenciaria por completo das

concepções burguesas de progresso por um lado, e das aspirações socialistas por outro,

evidenciando a defesa de uma espécie de “terceira via” – a ordem social cristã, como veremos

nos capítulos que se seguem. Vale ressaltar, que este projeto de ordenamento do social

defendido pela Igreja não se restringe às relações entre instituições, mas é incorporado no

âmbito privado da sociedade civil: na família, na educação etc.

Apesar de não negar a existência de divergências internas na instituição, Romano

conclui que estas diferenças acabam apresentando a mesma repercussão em âmbito interno e

27 Ibid., p.55. 28 Um trecho que resume a visão de Romano acerca das relações entre Igreja e Estado no capitalismo é o seguinte: “o programa político global do episcopado não sai do horizonte capitalista: ele quer nele integrar o proletariado, garantir a propriedade, e valorizar o ser nacional, em cujo nome são válidos e dignos todos os sacrifícios exigidos. A partir do instante em que o Governo considera sem valor as declarações hierocráticas, ele se torna ilegítimo e é visto como um puro agente do capital estrangeiro. Se, ao contrário, voltar-se para a produção do capital nacional e se garantir um nível mínimo de vida à mão-de-obra, ele poderá contar novamente com a ‘leal colaboração’ dos bispos. Esta posição cautelosa em face do Estado se repete na política eclesiástica diante da sociedade civil. A Igreja, neste campo, não se compromete com este ou aquele partido ou tendência política, mas busca fazer com que a maioria assuma os valores da ‘ordem cristã’ na vida secular”. ROMANO, Roberto. Op. cit.,p.254. Grifos nossos.

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Método e fontes da pesquisa

Sabemos que a Igreja não é constituída apenas por sua hierarquia, mas que a sua

estrutura verticalizada e a conservação do princípio de autoridade determinam a construção de

sua “voz oficial” – sempre proclamada por bispos e arcebispos daquela localidade. É este

pronunciamento “oficial” que permite aos historiadores investigar as relações que esta

instituição trava publicamente com o Estado e, no caso de nossa pesquisa, com o projeto da

“via chilena ao socialismo”.

Nesse sentido, buscaremos compreender o processo de construção dos

pronunciamentos episcopais, detectando os eixos temáticos mais recorrentes para, a partir

disso, entendermos o posicionamento da Igreja institucional naquele período. O nosso

interesse é verificar os traços de ambigüidade e contradição característicos do discurso

“oficial” – como a defesa da “reconciliação nacional” e da “pacificação social” em

contraposição ao estado de “desordem” e de “superpolitização” - que, a princípio, nos

parecem legitimadores da nova ordem política-econômica-social implementada no Chile a

partir de 1973. Ressaltadas as especificidades da linguagem teológica e sua forma mediatizada

de intervir no mundo, achamos conveniente estabelecer pontos de contato entre o discurso da

cúpula católica e o discurso dos grupos dominantes, em especial da imprensa conservadora

que teve a sua máxima expressão no jornal El Mercurio. Tentaremos detectar aproximações e

diferenças, discursivas e práticas, nos posicionamentos destes atores quanto à questão da

“democracia” e sua associação à “estabilidade” e à “legalidade”; ao “socialismo” encarado

como “elemento estranho à sociedade chilena” e como “semeador de conflitos” e à

“superpolitização” como obstáculo à “disciplina no mundo do trabalho”.

A análise do corpo documental da Conferência Episcopal do Chile do ano de 1970 ao

ano de 1973 se baseará no método de abordagem dos campos semânticos do Centro de

Lexicologia Política de Saint-Cloud descrito por Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas em

“História e Análise de Textos”.30 Ao entendermos os documentos do Episcopado como voz

oficial da Igreja, nosso trabalho será o de “desconstruí-lo” com o intuito de entender o

posicionamento da instituição naquele contexto histórico sem fazermos, no entanto, uma

transposição direta e simplista dos “falas” da hierarquia. Neste caso, tentaremos detectar os

principais temas, formulações ou núcleos de sentido que aparecem nos pronunciamentos e que

se relacionam mais diretamente com as nossas hipóteses como, por exemplo, a defesa da

30 CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da História – ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: editora Campus, 1997, p.380.

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reconciliação nacional, da unidade, da ordem, a abordagem da justiça social, do socialismo e

das instituições democráticas. Em seguida, investigaremos suas redes de oposição, associação

e identidade. A princípio, sabemos que o discurso católico é constituído por pares de oposição

e que estes estão presentes em todas as épocas históricas (Bem/Mal, Realismo/Milagre,

Graça/Pecado etc). O que diferencia, pois, o discurso oficial da Igreja nas distintas

conjunturas é a associação contextual existente como, por exemplo, a vinculação da

democracia à ordem (capitalista) e à tradição da sociedade chilena (à “alma do Chile”), e a

identificação do projeto implementado pelo governo Allende com a desordem, com o

elemento estranho àquela sociedade, à indisciplina no trabalho, à violência e à ausência de

liberdades. As redes de identidade também podem ser detectadas a partir de um contexto

específico e indicam a possibilidade de substituição de um termo por outro num mesmo

documento. Um exemplo é a associação, nos discursos episcopais chilenos, entre a

“politização” da sociedade e o “excesso de paixões” – o que provocaria a “insegurança” - e

da “democracia” à “ausência de conflitos”, à “paz” e à “condição para a liberdade”. Será

fundamental levarmos em consideração o contexto específico em torno do qual os discursos

foram proferidos, para que possamos identificar a maneira específica dos representantes da

Igreja de se referirem às problemáticas nacionais.

Cabe ressaltar, novamente, que estamos lidando com discursos que trabalham com

categorias a-históricas e metafóricas – fato que nos faz considerar as mediações usadas pelos

representantes católicos para abordar o processo chileno de 70, buscando as continuidades e

rupturas deste discurso e a construção de um novo posicionamento de legitimação do golpe

militar em 1973. Neste caso, estaremos atentos aos elementos da história chilena resgatados e

resignificados pelos setores da alta hierarquia católica em seus pronunciamentos.

Por sua vez, o jornal El Mercurio será analisado como uma espécie de “partido” das

classes e frações de classe que ocuparam o aparelho de Estado em 1973, uma vez que ele

representa um dos principais meios difusores do pensamento da burguesia chilena e um dos

únicos jornais que não sofreu intervenção do regime militar, continuando a funcionar

normalmente após o golpe. Da mesma forma que Cardoso e Vainfas, entendemos que as

“condições de produção de um discurso têm a ver com o ideológico, com os valores sociais da

sociedade que o produz, ao passo que as condições de seu reconhecimento dependem do

poder, isto é, das instâncias capazes de legitimar ou não a sua aceitação na sociedade”.31

Nesse sentido, buscaremos identificar o papel da imprensa, neste caso do jornal El Mercurio,

31 Idem, ibidem, p.378.

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29

na derrota do governo Salvador Allende, tentando verificar os pontos de convergência entre o

discurso midiático e o discurso da alta hierarquia da Igreja. Entendemos que esta

convergência possibilitou a construção de um senso – que atribuiu ao governo Allende a

responsabilidade direta pelo clima de “instabilidade”, “desordem”, “inconstitucionalidade” e

“caos”. Foi a partir disso que se tornou possível a criação de uma ilusão de consenso no seio

de grande parte das classes médias e altas acerca da necessidade de “substituição” do governo

da UP por um outro (com participação das Forças Armadas) que garantisse a “ordem” e a

“integração” do país.

A análise e leitura do jornal se basearão no tratamento dado por este aos seguintes

temas: (1) a defesa da democracia; (2) a abordagem do socialismo e seus efeitos político-

sociais no Chile; (3) a oposição ao projeto de educação do governo e (4) a problemática da

reconciliação nacional. A partir disso, poderemos fazer uma análise comparativa das leituras

dos temas anteriores tanto pelo episcopado quanto pela burguesia chilena, destacando as

proximidades entre os posicionamentos de atores políticos aparentemente distintos, mas que

naquele contexto específico, se aproximaram em termos discursivos e práticos.

Nossa pesquisa no periódico se concentrou nos meses de publicização de documentos

episcopais e em períodos chaves do governo da UP. Assim, no ano de 1970 nos debruçamos

sobre as edições publicadas no intervalo do dia 21 a 26 de setembro – período das eleições

presidenciais; no ano de 1971 analisamos os jornais publicados no mês de maio e no intervalo

do dia 20 de novembro a 31 de dezembro – aprovação da política de nacionalização dos

principais recursos naturais chilenos e visita de Fidel Castro ao Chile; em 1972 analisamos as

edições de abril, outubro, novembro e dezembro – início da III Confederação das Nações

Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento em Santiago (UNCTAD), crise de outubro e

seus desdobramentos; no ano de 1973 analisamos os periódicos do período de 20 de março a

1º de junho e do dia 1º de agosto ao dia 17 de setembro – polêmica em torno do projeto de

educação do governo Allende e preparação do golpe.

Este material é numeroso, visto que o jornal El Mercurio tem publicação diária e é

composto por diversas partes dentre as quais estão os editoriais, páginas de política, economia

e cultura. A pesquisa foi feita na Biblioteca Nacional de Santiago do Chile, onde estão

presentes todos os números do periódico desde sua fundação até os dias atuais. As edições da

década de 1970 se encontram microfilmadas e foram por nós fotografadas diretamente da

película. Esta consistiu a primeira seleção de matérias. A segunda seleção foi feita no

momento de transcrição deste material, com o objetivo de facilitar o seu manejo, leitura e

posterior divulgação. Por fim, a terceira seleção se deu ao longo da divisão das matérias e seu

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reagrupamento dentre os quatro temas apresentados por nós anteriormente. Além da seleção

do material segundo os objetivos de nossa pesquisa, demos preferência à análise das páginas

editoriais por mostrarem de maneira mais clara a identificação política do jornal. Dentre as

sessões editoriais se encontram os editoriais diários, os de domingo (“La Semana Política”) e

os relativos aos debates econômicos (“Temas econômicos”). Também utilizamos em nossa

análise as propagandas políticas presentes no periódico, as quais em sua totalidade são

oriundas de partidos, organizações e instituições das classes e frações que compuseram a

frente de oposição ao governo de Allende. Além das propagandas, selecionamos algumas

charges de 1973 que foram incorporadas ao texto. Estas imagens serão utilizadas como fonte

histórica, pois, da mesma forma que os editoriais, expressam a concepção de mundo de um

grupo social que se sentia absolutamente atemorizado com os rumos que tomou o país a partir

de 1970 e o processo de ativação popular. Em outras palavras, as charges de tom irônico,

crítico e pejorativo caracterizaram o olhar das classes médias e altas sobre o processo social

conturbado vivido pelo Chile, principalmente a partir de meados de 1972, quando o governo

de Allende viu-se imerso numa crise econômica e política sem precedentes. Finalmente,

selecionamos matérias e notícias referentes à doutrina católica ou às questões internas da

Igreja Católica.

A estruturação dos capítulos

Partindo destas considerações, nosso primeiro capítulo contém um histórico das

relações entre Igreja e política na contemporaneidade. Inicialmente, buscamos situar o leitor

num debate mais geral sobre as formas de adaptação da Igreja no mundo moderno,

considerando seu processo de reinserção social e cultural na sociedade industrial. Nesta

primeira parte levaremos em conta o surgimento do catolicismo social como estratégia de

intervenção da Igreja diante da emergência da classe trabalhadora como ator político

significativo. Na segunda parte do capítulo o leitor poderá se debruçar sobre a especificidade

da relação Igreja e política no Chile contemporâneo. Para isso, torna-se fundamental

analisarmos o surgimento da Democracia Cristã e sua ligação com a Igreja, bem como as

convergências políticas entre as linhas de atuação do Partido Democrata-Cristão, da CEPAL

(Comissão Econômica para a América Latina), do Vaticano e do governo norte-americano

para a América Latina na década de 1960 - período marcado pelos impactos da Revolução

Cubana no continente.

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No segundo capítulo procuramos discorrer sobre a formação da UP, o governo de

Salvador Allende e o processo de constituição da frente golpista no Chile. Daremos especial

atenção à participação da grande imprensa na articulação da frente civil-militar por meio da

análise do jornal El Mercurio. Também é nosso intento discutir a bibliografia existente sobre

o golpe militar de 1973, identificando a linha predominante destes trabalhos que, em muito, se

assemelha à historiografia revisionista32 sobre o golpe de 1964 no Brasil.

No terceiro e último capítulo nos debruçamos sobre as fontes, buscando comparar os

pronunciamentos episcopais com os editoriais do Mercurio e com o conteúdo dos textos

presentes na revista do PDC - Política y Espíritu - sobre os quatro temas apresentados por nós

anteriormente. Acreditamos que esta comparação nos permitirá visualizar a forma específica

de intervenção da alta hierarquia católica na política chilena entre 1970 e 1973, assim como

compará-la com a avaliação do governo feita pelas elites expressa no jornal El Mercurio e

pelos dirigentes do PDC em sua revista.

Por último, devemos considerar as limitações objetivas que este trabalho apresenta no

que se refere às fontes. Em se tratando de uma abordagem do tema restrita a documentos

oficiais, procuraremos analisar e discutir o conjunto de idéias que permeou a sociedade

chilena naquele período. Nesse sentido, a comprovação ou não de nossa hipótese esbarra no

limite real da pesquisa histórica realizada nos arquivos e bibliotecas da capital do Chile. A

documentação da Igreja Católica dos anos 1970, aberta ao público, se restringe ao que foi

publicado naqueles anos, fator que limitou a nossa pesquisa à leitura e análise de seus

boletins, revistas e periódicos onde estão presentes documentos relativos à doutrina católica.

Quanto à documentação produzida pelos grupos, instituições e partidos que compuseram a

frente de oposição ao governo da UP, poderíamos buscá-la num número significativo de

arquivos – fato que não nos foi possível devido ao curto período de tempo disponível para a

elaboração da dissertação. Optamos, portanto, por trabalhar com um jornal que, desde seu

surgimento, se constituiu enquanto um dos principais porta-vozes do conjunto da classe

dominante chilena. Assim, considerando as possibilidades reais apresentadas, procuraremos

fazer uma primeira abordagem do tema de forma a abrir caminhos para um próximo estudo.

32 O termo “revisionista” foi cunhado pelo autor Caio Navarro de Toledo em seu artigo “1964: Golpismo e democracia. As falácias do revisionismo” In: Crítica Marxista, Campinas, n. 19, 2004, p.27-49. O termo foi ainda utilizado e seu uso aprofundado pelo historiador Demian Melo em seu artigo “A miséria da historiografia” In: Outubro, São Paulo, n.14, 2006, p.111-130.

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32

Capítulo I

A Igreja Católica e suas relações com a política

A Igreja Católica Romana tem uma posição dominante na região, mas outros grupos religiosos, seitas cristãs ou não, operam igualmente nas sociedades latino-americanas, algumas das quais enraizadas na espessura conflitual de um tecido social específico. É contudo ao catolicismo que devemos conferir aqui o primeiro lugar, e com ele tocamos, evidentemente, numa instituição singular. Primeiro por seu caráter transnacional, que se deve não apenas a sua universalidade e à direção do Vaticano, mas também ao caráter frequentemente estranho do clero latino-americano. Depois, porque na América Latina contemporânea, talvez mais do que em outra parte, o papel dessa Igreja, longe de estar acantonado no domínio espiritual e sacramental, é amplamente difundido, inextrincavelmente emaranhado nas dobras das evoluções sociais, no perfil dos comportamentos, nos eixos da vida nacional tanto quanto nos meandros da existência cotidiana.33

Neste capítulo buscaremos fazer uma breve análise histórica da relação Igreja e

política na contemporaneidade. Nossa intenção é partir de um enfoque geral para,

posteriormente, reduzir nosso escopo ao caso chileno. Dessa forma, o capítulo será dividido

em duas partes: na primeira nos dedicaremos a apresentar as formas de adaptação da Igreja da

América Latina às mudanças trazidas pela modernidade. Na segunda analisaremos a relação

Igreja e política no Chile, sublinhando as convergências entre a linha oficial da instituição

católica e o Partido Democrata Cristão.

Inicialmente, apresentaremos as linhas de estudo predominantes sobre a história da

Igreja, para em seguida abordarmos o processo de adaptação do catolicismo às inovações do

mundo moderno, em especial à emergência da classe trabalhadora com ator político

significativo na recente sociedade industrial. Discorreremos também sobre as formas de

influência da Igreja no contexto posterior à Revolução Cubana e a realização do Concílio

Vaticano II. A partir disso, nos voltaremos para o caso chileno com o objetivo de

compreender a especificidade da relação Igreja e política neste país.

Para entender esta relação, torna-se fundamental tecermos um histórico do Partido

Democrata Cristão (PDC), visto as proximidades de seu projeto teórico-político com o da

hierarquia eclesiástica chilena. Buscaremos traçar, portanto, o surgimento, atuação e

consolidação do cristianismo social no mundo da política levado a cabo pelo PDC e pelo

episcopado.

33 ROUQUIÉ, Alain. O extremo-ocidente. Introdução à América Latina. São Paulo: Edusp, 1987, p. 195.

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Centraremos a nossa análise na década de 1960 por entender que foi neste período que

a Democracia Cristã (DC) mais cresceu enquanto projeto político, recebendo apoios

significativos das classes médias e populares, da Igreja, do governo norte-americano e da

direita tradicional, ainda constituída por liberais e conservadores. Ao apontar as proximidades

teóricas e práticas entre estes atores, não desconsideraremos a conjuntura internacional

marcada pelos rebatimentos da Revolução Cubana no continente, a qual teria propiciado, num

primeiro momento, a opção de um setor da burguesia pelo “terceirismo católico” como

alternativa ao projeto socialista. Julgamos que este primeiro capítulo será importante para a

compreensão da relação construída posteriormente pela alta hierarquia católica com o governo

de Salvador Allende.

PARTE I: A Igreja diante da modernização capitalista na América Latina

1.1 A Igreja Católica como objeto de estudo

A maioria dos estudos sobre a história da Igreja Católica foi produzida por autores

católicos e teve como foco a análise das transformações vivenciadas pela instituição a partir

do Concílio Vaticano II (de 1962 a 1965) e da Conferência Episcopal de Medellín (1968).

Considera-se que neste período a Igreja teria consolidado seu movimento de abertura à

modernidade, tendência verificada desde o fim do século XIX na Europa, mas que teria

apresentado sua máxima expressão nas décadas de 1960 e 1970 na América Latina. A forte

presença e atuação de movimentos e organizações católicas de caráter laico no cenário

político-social destes países desde a década de 1930 inspiraram a produção de muitos

trabalhos que enfatizavam a Igreja Católica como um possível agente impulsionador da

transformação das sociedades latino-americanas no sentido de se alcançar uma maior “justiça

social”.34

Seria necessário tanto um conhecimento mais aprofundado das discussões travadas no

seio desta instituição quanto um estudo mais sistemático do processo histórico latino-

34 Dentre os autores que escreveram nas décadas de 1970 e 1980 e que consideraram a Igreja como uma possível aliada das lutas pela transformação das sociedades dependentes da América Latina podemos citar: DUSSEL, Enrique. De Medellín a Puebla: uma década de sangue e esperança. São Paulo: Edições Loyola, 1981-1983; _____ Historia liberationis: 500 anos de história da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas: CEHILA, 1992; LEVINE, Daniel. Churches and Politics in Latin America. London: Sage, 1980; BRUNEAU, Thomás C. Catolicismo Brasileiro em Época de Transição. São Paulo: edições Loyola, 1974; ALVES, Marcio Moreira. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979; MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a Política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Brasiliense, 1983; SMITH, Brian H. The church and politics in Chile: challenges to modern Catholicism. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1982; entre outros.

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americano no que concerne à relação “Igreja – lutas sociais” para analisarmos tal constatação.

Por ora, poderíamos apontar duas perspectivas. A primeira seria concordar com a afirmação

de que nas décadas de 1960 e 1970 a Igreja de fato passou por transformações profundas em

sua estrutura, as quais, juntamente com as mudanças na conjuntura política latino-americana,

possibilitaram o engajamento de muitos católicos em lutas sociais; na defesa da reforma

agrária; na organização dos trabalhadores; no processo de formação e conscientização política

das massas. A “nova face” da Igreja nos anos 60, marcada pelo crescente protagonismo de

seus movimentos de base, teria justificado o recorte temporal e temático que predomina na

bibliografia produzida nas décadas de 1970 e 1980. Poderíamos entender também estas

produções bibliográficas como parte de uma iniciativa de alguns setores da Igreja - os

chamados “cristãos progressistas” - de reivindicar um novo projeto político-teológico para a

instituição – projeto este que atribuía à Igreja como um todo um papel preponderante na luta

dos povos latino-americanos por sua emancipação política, econômica e cultural. Esta

reivindicação também passaria por considerar como “conservadores” todos os projetos da

Igreja anteriores ao Concílio Vaticano II.

A segunda perspectiva seria encarar a produção bibliográfica existente (produzida por

intelectuais católicos) como um movimento da instituição-Igreja para construir seus próprios

marcos temporais e historiográficos, ressaltando a sua atuação na década de 1960 e

silenciando sua trajetória anterior à realização do Vaticano II. Ao direcionar a sua própria

história e a construção de sua memória, a Igreja teria garantido uma melhor inserção na

modernidade e no conjunto da sociedade civil, além de preservar a sua influência nos novos

regimes políticos do pós-guerra.

Admitindo tanto uma quanto outra perspectiva (ou mesmo uma combinação entre

ambas), consideramos que a carência de estudos sobre a ação da Igreja no período anterior à

década de 1960 revela certo ocultamento por parte da maioria dos autores com relação ao

processo de transfiguração da instituição ao longo dos séculos e de sua reinserção na

sociedade moderna.35 Isto significa que, ao focar unicamente a “opção preferencial pelos

pobres”, muitos estudiosos do tema desconsideraram a atuação da Igreja no período da “longa

duração”, ou, pelo menos, não relacionaram sua existência milenar às formas de intervenção

assumidas na época recente. Verificamos, portanto, a importância de um estudo que, a

despeito da literatura que praticamente desconsiderou a Igreja pré-1960, resgate a

historicidade dos temas abordados pela instituição católica nas décadas de 60 e 70 – temas

35 Esta consideração sobre o silenciamento dos autores é feita por Jessie Jane Vieira de Souza em Círculos Operários – a Igreja Católica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Faperj/editora UFRJ, 2002.

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que vinham sendo desenvolvidos desde o século XIX, quando a instituição perdera sua

posição privilegiada na formulação da maneira de pensar dominante.

De igual importância é a análise do tratamento dado pelas Igrejas oficiais – os

episcopados nacionais – à bibliografia sobre a história da instituição produzida

majoritariamente nas décadas de 1970 e 80. Considerando, como afirmamos anteriormente,

que esta produção bibliográfica é, em grande parte, de autoria de membros da Igreja

identificados com a chamada “esquerda católica”, deveríamos nos perguntar como e porquê

ocupou espaço significativo no mercado editorial católico.36 Compreendemos que estes

trabalhos sofreram uma apropriação por parte da instituição católica – movimento que

ocorreu no período dos regimes militares e na conjuntura de redemocratização. Neste

contexto, como veremos ao longo deste capítulo, as conferências episcopais latino-

americanas, após terem apoiado os golpes militares, se voltaram para uma crítica aos

“excessos” dos mesmos, se engajando na luta pelos direitos humanos, realizando um trabalho

junto às famílias de desaparecidos e projetando a auto-imagem da “voz dos que não têm voz”.

Assim, ao mesmo tempo em que incorporaram a literatura que defendia a “Igreja dos pobres”

como a literatura “oficial” sobre a história da Igreja na América latina, seus membros mais

“radicais”, identificados com a esquerda política destes países foram expulsos ou entregues ao

regime militar, sendo assassinados, torturados ou exilados da mesma forma que a esquerda

revolucionária.

Este movimento de incorporação da bibliografia pelas Conferências Episcopais – a

qual incluía não apenas análises sobre a relação Igreja e política no continente a partir da

“nova” ótica do Vaticano II, mas também relatos de memória da participação de cristãos em

movimentos sociais e em processos revolucionários - permitiu que a Igreja oficial construísse

a sua própria memória e projeção no mundo contemporâneo como a “guardiã” dos direitos

humanos e, desta forma, preservasse a hegemonia de sua alta hierarquia internamente.

Considerando o desempenho político, cultural e social da Igreja na história

contemporânea do continente, após o período de sua separação do Estado e da vitória do

liberalismo como concepção de mundo dominante no século XIX, somos levados a afirmar

que o que ocorreu nesta instituição não é uma questão que diz respeito somente aos católicos.

A Igreja continua apresentando uma influência visível até os dias de hoje na educação formal;

em iniciativas “sociais”; em políticas públicas de educação; educação sexual, família ou saúde

reprodutiva; em formas de participação e organização social; em movimentos sociais e

36 Nesse caso, nos referimos às editoras católicas brasileiras como a Vozes, Paulinas, Paz e Terra, Loyola, dentre outras, pelo fato de a conhecermos melhor que suas congêneres latino-americanas.

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uma concepção de mundo própria (uma ideologia)39, formulada por seus intelectuais. Nesse

sentido, torna-se interessante considerar a forma pela qual os diferentes membros da Igreja a

entendem, como projetam esta imagem para fora e quais são as conseqüências políticas desta

intervenção no curso da história. Sabemos que existem diferentes concepções acerca do papel

a ser cumprido pela Igreja na sociedade moderna e estes projetos se encontram em constante

tensão e disputa no âmbito interno da própria instituição. Também é sabido que, mesmo após

o período de transformação, renovação e modernização desta Igreja no século XX, a sua

lógica organizacional se manteve a mesma, marcada por uma estrutura hierárquica,

verticalizada, com traços feudais e monárquicos. Esta forma de organização baseada no

princípio da autoridade garantiu que a Igreja, mesmo em tempos de conflitos internos mais

intensos como nas décadas de 1960 e 70, mantivesse uma frágil imagem de unidade. Esta foi

(e ainda é) alcançada não apenas por um conjunto de princípios e doutrinas católicas, mas

também pelo perfil disciplinador e normatizador da instituição que limita a intensidade dos

conflitos internos.

1.2 Adaptações e recriações do catolicismo na recente sociedade industrial: a questão

social

A abertura da Igreja aos problemas sociais é um processo que data de fins do século

XIX, embora tenha sido retratado pela maior parte dos autores como oriundo de fins da

década de 1950 e início de 1960. Após o “endurecimento” da instituição numa tentativa de

“auto-preservação” no século XIX e o estreitamento dos laços com Roma com o advento dos

39 Com o objetivo de entender a postura política da Igreja Católica, ou de sua “voz oficial” para além de sua auto-representação (que a coloca acima das disputas mundanas, no plano transcendental da salvação universal), utilizaremos aqui o conceito de ideologia no sentido atribuído por Marx, isto é, como uma representação “invertida” da realidade oriunda de uma “inversão” da própria realidade. Esta “inversão” teria por faculdade o obscurecimento das verdadeiras contradições existentes no campo real, as quais, dialeticamente, reproduziriam esta mesma “inversão”. Jorge Larrain, no verbete “ideologia” do Dicionário do pensamento marxista, afirma que a utilização do conceito de ideologia por Marx pode ser dividida em três fases. A primeira fase iria de seus primeiros escritos até 1844 e a noção de ideologia seria marcada por uma forte presença hegeliana (Marx concorda com a afirmação de que é o homem que cria a religião e que esta última é uma ilusão, conseqüência das contradições e sofrimentos do mundo real). A segunda fase balizar-se-ia entre 1845 a 1857. Neste período, em combate com os “jovens hegelianos” (principalmente Feuerbach), Marx se pôs a construir as premissas do materialismo histórico, rompendo definitivamente com a tendência feuerbachiana (Marx afirma que estas “idéias invertidas” são conseqüências das contradições sociais reais, logo para eliminá-las seria preciso transformar a própria realidade material). Na terceira e última fase (1858-1883), Marx lança-se a estudos profundos sobre o modo-de-produção capitalista, e o conceito de ideologia passa agora a possuir uma relação mais direta com estruturas “invertidas” do processo de produção e reprodução do capital. Consideramos que esta versão é a mais apropriada para a utilização do conceito. Ver LARRAIN, Jorge. Ideologia. In: BOTTOMORE, Tom (editor). Dicionário do Pensamento Marxista Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, [1988], p. 183-187.

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governos liberais,40 a Igreja daria início a um movimento embrionário rumo ao catolicismo

social - tendência já desenvolvida na maior parte dos países europeus. As origens deste

movimento estão nas encíclicas de Leão XIII, principalmente na Rerum Novarum de 189141

que teve reflexos na América Latina nas décadas de 1920 e 1930.

A Rerum Novarum foi a primeira encíclica a dialogar com os problemas da sociedade

industrial, criticando com veemência o socialismo como saída para a situação de miséria dos

trabalhadores e o capitalismo liberal, responsável pela eliminação da religião da vida pública,

privando-a de seu antigo papel de inspiradora das leis e das instituições. A recusa do

socialismo é feita a partir da crítica de três de seus aspectos principais: a abolição da

propriedade privada, considerada pela Igreja como um direito natural; a aspiração pela

igualdade de todos os homens, o que seria impensável do ponto de vista da doutrina católica,

pois as desigualdades econômicas são explicadas pelas diferenças naturais ou físicas; e, a luta

de classes como “motor da história”, pois a Igreja interpreta a sociedade em termos de

harmonia e não de conflito. Em outras palavras, o socialismo estimularia uma luta contra a

“lei da natureza”, contra a função do Estado e contra a paz social.42

Apesar de ser apresentada pelos próprios autores católicos como uma encíclica

“inspirada no [sic] temor dos operários católicos aderirem cada vez em maior número ao

socialismo”,43 a Rerum Novarum significou uma ruptura da nostalgia católica com relação ao

Antigo Regime na medida em que Leão XIII reconheceu a importância da sindicalização

operária numa época em que sua legitimidade era pouco aceita. O apoio da Igreja à

organização dos trabalhadores contribuiu para dissolver o caráter revolucionário que este

assumiu aos olhos de grande parte da burguesia. A defesa dos “direitos” dos operários e a

crítica às injustiças do sistema liberal em fins do século XIX caracterizaram o movimento do

então papa no sentido de atualizar e renovar a intervenção e influência da Igreja na sociedade

moderna. Sua estratégia não mais se basearia na negação da sociedade industrial moderna,

40 Datas do advento dos governos liberais em alguns países da América Latina: Colômbia em 1853, México em 1857, Brasil em 1889 e Chile em 1925. Ver BEOZZO, José Oscar. A Igreja frente aos Estados Liberais: 1880-1930. In: DUSSEL, Enrique (Org.). Historia Liberationis. 500 anos de História da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992, p.192. 41 A Rerum Novarum foi considerada a “carta dos trabalhadores” e celebrada no período entre as duas guerras mundiais. Foi o primeiro texto oficial da Igreja que abordou de forma global os problemas derivados da sociedade industrial. Nesta encíclica o socialismo é analisado e, em seguida rejeitado, como solução para a situação dos trabalhadores. A saída apontada pela Igreja é a doutrina social – que garantiria uma intervenção da instituição na conjuntura de miséria da classe trabalhadora. Alguns autores, inclusive católicos, consideram que o documento não partiu de uma análise concreta do capitalismo, mas de considerações de ordem moral e ética. Apesar disso, ganhou destaque, pois rompeu com o tradicionalismo católico de caráter rural e pré-capitalista, característico dos primeiros anos da sociedade burguesa. 42 CAMACHO, Ildefonso. Doutrina Social da Igreja: abordagem histórica. São Paulo: Edições Loyola, 1991, p. 53-58. 43 AUBERT, Roger. A Igreja na sociedade liberal e no mundo moderno. Petrópolis: Vozes, 1975, tomo 1, p.148.

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mas na defesa dos princípios católicos por esta mesma sociedade. Em suma, o pontificado de

Leão XIII representou uma espécie de reconciliação do catolicismo com a era moderna na

medida em que transformava a Igreja em força viva de influência na sociedade que se erguia.

A recusa do socialismo, portanto, não representava a defesa do liberalismo uma vez

que este seria o responsável pelo desaparecimento das associações gremiais dos trabalhadores,

pela consolidação da lógica do lucro e da competição e pelo afastamento da religião das leis e

das instituições. Nesta conjuntura o catolicismo já apresentava a sua solução para os

problemas da sociedade industrial: a ordem social cristã, que deveria permear todas as formas

de comportamento, atuação, organizações, instituições, leis, pensamento etc.

A abertura da Igreja para a análise do capitalismo e o desenvolvimento da doutrina

social configuraram uma “nova” forma de inserção da instituição na sociedade civil ao longo

das primeiras décadas do século XX. Verificou-se o início de uma batalha pela opinião

pública através de jornais católicos fundados em grande parte por leigos, que enfrentaram as

imprensas liberal, protestante e anarquista. A luta pela preservação do ensino católico contra o

caráter laicista da escola pública também constituiu embate de grande importância para a

Igreja que, em alguns países, durou até a segunda metade do século XX. Iniciou-se um

esforço por “socorrer” as vítimas do “progresso” capitalista através da criação de centros de

beneficência para órfãos, imigrantes, idosos, desempregados, mães solteiras, viúvas, doentes.

Por fim, a Igreja buscou se inserir nos movimentos e lutas operárias e camponesas,

estimulando a formação de organizações, sindicatos e partidos católicos.44

Podemos dizer que esta movimentação da Igreja ocorreu em todo continente,

assumindo traços específicos dependendo dos contextos locais. De 1930 a 1959 a América

Latina vivia os reflexos da crise de 1929, o fortalecimento e ascensão dos regimes ditos

populistas,45 a modernização e industrialização principalmente dos países do Cone Sul e

México e as influências da revolução russa. Juntamente com as crises do capitalismo mundial

que abalaram os interesses da Europa no continente, os governos aqui eleitos buscaram

tentativas de desenvolvimento capitalista nacional, reestruturando as instituições políticas e

44 BEOZZO, José Oscar. A Igreja frente aos Estados Liberais: 1880-1930. In: DUSSEL, Enrique (Org.). Op. cit., p.202. 45 Baseando-nos em renomadas obras das ciências sociais latino-americanas, lançamos mão do conceito de “populismo” para designar uma etapa específica do desenvolvimento do capitalismo na América Latina marcada pelo surgimento das massas populares enquanto sujeitos sociais a serem considerados pelas políticas de Estado. Entretanto, dada a natureza deste trabalho, não poderemos aqui entrar em uma discussão acerca das possíveis “falhas” que esse conceito encerra. Para uma crítica da noção de “populismo”, ver: FERREIRA, Jorge (org). O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Ao longo do texto, também utilizaremos o termo “nacional-desenvolvimentismo” para caracterizar a mesma etapa de desenvolvimento capitalista na América Latina.

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criando novas condições de participação para as classes emergentes no mundo urbano.46 A

grande depressão nos anos 1930 afetara negativamente o setor exportador de muitos países

dentre eles o Brasil, Argentina, Chile e Peru, provocando o enfraquecimento das velhas

oligarquias e favorecendo a expansão de novos setores econômicos vinculados à indústria e ao

setor terciário. De acordo com Ianni, este processo também foi marcado por uma expansão da

hegemonia norte-americana sobre a economia da América Latina como um todo.47

Com o declínio das estruturas de poder que vigoravam desde a formação dos Estados

Nacionais na América Latina, verificaram-se novas relações da cidade com o campo e a

negação pelas classes urbanas – formadas por setores médios, militares, intelectuais,

estudantes universitários, burguesia industrial e proletariado – do poder oligárquico, do

imperialismo e da economia agrário-exportadora. Em alguns países, como no Chile, a

organização destes novos setores possibilitou a ascensão do socialismo de cunho reformista

como tendência política dominante, possibilitando alianças entre partidos de esquerda com

partidos das pequenas burguesias nacionais.48

Neste contexto, verificamos uma atitude mais ofensiva da Igreja no sentido de garantir

a permanência e a reprodução de seus valores e interesses nessas sociedades em

transformação. Os pontificados de Pio XI (1922-1939) e Pio XII (1939-1958) se voltaram

para uma crítica atroz ao socialismo e apontaram limites ao fascismo, apesar das concordatas

com Mussolini (1929), Salazar (1930) e Hitler (1933).49 Alguns autores como Dussel e Smith

entenderam que a centralização das Igrejas em torno de Roma – movimento ultramontano - e

o incentivo do Vaticano ao desenvolvimento de frentes próprias de atuação desvinculadas das

disputas partidárias entre liberais e conservadores, fizeram com que estas instituições

perdessem um pouco de seus perfis locais, que só seriam recuperados na década de 1960. No

46 IANNI, Octavio. A formação do Estado populista na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, p.73. 47 Ibidem, p.80. 48 Ibid., p.95. Em 1938 chegou ao poder no Chile uma coalizão política formada a partir da aliança do Partido Radical com os Partidos Comunista e Socialista, a chamada Frente Popular. 49 A principal encíclica de Pio XI, Quadragesimo Anno (1931), seguiu a mesma linha da Rerum Novarum (1891): fez críticas ao socialismo e apontou como solução para os problemas da sociedade moderna a transformação dos costumes e a “racionalização cristã da economia”, “com moderação e caridade”. Neste texto aparece pela primeira vez a menção à “justiça social”, entendida como equilíbrio entre capital e trabalho e entre a dimensão social e individual da propriedade. A afirmação de Pio XI sobre a incompatibilidade entre cristianismo e socialismo somada à crítica ao capitalismo ajuda a explicar as expectativas provocadas na Igreja com o surgimento do sistema corporativista em sua versão fascista. Sobre isso ver CAMACHO, Ildefonso. Op. cit., p.121.

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entanto, o processo de centralização romana também possibilitou, na década de 1950, o

fortalecimento das Igrejas nacionais, com a conformação de conferências episcopais.50

Para ganhar terreno diante da modernização do capitalismo dependente, a Igreja

priorizou quatro tipos de iniciativa: o desenvolvimento da Ação Católica como um “modelo

de compromisso secular dos leigos sob a direção da hierarquia episcopal”;51 a criação da Ação

Católica especializada junto a estudantes, operários, camponeses etc.; a concretização de

obras sociais principalmente no meio operário e a profusão de um discurso anticomunista que

assumiu tons distintos em cada conjuntura. Este processo passou, portanto, por uma

modernização do aparato eclesial conformando, por um lado, uma renovação intelectual

através da difusão de publicações e universidades católicas52 e, por outro, uma renovação

pastoral que se concretizou com a criação de centros de pesquisa e ação social e através da

Pastoral de Conjunto.53

É interessante observar que a preocupação com a “ética social” ganhou terreno nas

Igrejas da América Latina principalmente após a II Guerra Mundial. Este discurso se

conformou a partir de uma crítica indireta ao capitalismo liberal predominante nas décadas

anteriores e de uma recusa frontal do socialismo. Com relação ao capitalismo, os episcopados

faziam uma crítica moral, destacando a busca desenfreada por riquezas e a tendência à

ambição – processo este que levaria a uma perversão moral, à desordem fundamental de um

sistema baseado no primado do econômico sobre o espiritual. O capitalismo em sua versão

liberal era encarado como uma ameaça à religião católica. Por sua vez, a crítica ao socialismo

– assimilado como comunismo e bolchevismo – ganhava maior destaque nos documentos

oficiais provocando a rejeição absoluta da luta de classes, considerada como “meio tático e

violento de instaurar a desordem e o caos, algo provocado intencionalmente pelos agentes do

50 A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, foi fundada em 1952 e a Conferência Episcopal do Chile, CECH, foi criada em 1955. 51 DUSSEL, Enrique. A Igreja nos regimes populistas (1930-1959). In: _____. Historia Liberationis. 500 anos de História da Igreja na América Latina.Op. cit., p.225. 52 O processo de difusão do ensino católico data do início do século XX. Em verdade, a Igreja, antes da década de 1960, tinha o monopólio completo sobre a educação fundamental, média e superior. Esse quadro começou a se modificar principalmente com o processo de laicização da educação, que esteve em curso até a década de 1960. Sobre o tema ver: CUNHA, Luiz Antonio. A Universidade Temporã - o ensino superior da Colônia à Era de Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980; A Universidade Crítica - o ensino superior na República Populista. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. 53 O Plano da Pastoral de Conjunto (1966/1970) foi um sistema de planejamento nacional das ações pastorais que visava atualizar o antigo Plano de Emergência (preparação do terreno das Igrejas nacionais para as resoluções que viriam do Concílio Vaticano II, como a renovação das estruturas da Igreja - paróquias, presbíteros, colégios católicos - e a promoção da “ação social”). A Pastoral de Conjunto foi responsável por abrir o debate interno acerca do papel da Igreja no mundo, isto é, de sua missão como partícipe desse mundo e como responsável pela “educação da sociedade humana”. Nesse processo os leigos ganhariam maior importância, apesar de continuarem submetidos à hierarquia eclesiástica. Ver CNBB. Plano de Pastoral de Conjunto 1966-1970. Rio de Janeiro: Livraria Dom Bosco, 1967. (Catálogo Geral, Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).

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mal”.54 A solução apontada era a fraterna colaboração de classes em contraposição aos

conflitos.

No Brasil, a passagem de uma posição defensiva para outra mais ofensiva ocorre nas

décadas de 1940 e 1950 quando, diante do avanço do pensamento marxista; da expansão do

número de votantes; ampliação da classe operária; penetração do protestantismo, espiritismo e

umbanda, os bispos foram obrigados a se aproximar das aspirações populares e a reformular o

modo de atuação da Igreja.55 Desde os anos 1930, a instituição concretizara uma aliança com

o modelo desenvolvimentista de Vargas e passara a defender um projeto próprio de reforma

agrária aproximando-se da realidade do país e do dia-a-dia das massas pauperizadas.56 Em

troca do apoio moral ao governo, a Igreja conseguiria ampliar sua rede de influências detendo

o controle das instituições de ensino, saúde, assistência e comunicação.

É importante ressaltar que alguns setores da Igreja do Brasil modernizaram a sua ação

na sociedade e passaram a atuar como “promotores do desenvolvimento”. Pa

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Diferente do caso brasileiro em que a Igreja, na década de 1930, se aproximou do

Estado através de grupos de pressão e desestimulou a organização de um partido católico, no

Chile a hierarquia católica optou pela Democracia-Cristã como via principal de inserção na

sociedade civil e de disputa no mundo da política propriamente dito. No Chile a Igreja, em

sua maioria, também atuou contra os interesses e privilégios da burguesia tradicional, já que o

PDC, além de representar os interesses do empresariado nacional e das classes médias,

transmitia a imagem da “modernidade” em oposição ao “conservadorismo”, baseando-se

numa nova concepção do mundo e da política que tinha como eixo a idéia de uma “revolução

em liberdade”.59

Na Argentina, a Igreja se constituiu enquanto uma importante base de apoio do

governo de Perón de 1946 a 1953, conseguindo, com isso, a manutenção do ensino religioso

nas escolas e as capelanias militares. No entanto, a partir deste ano, as hostilidades entre

Igreja e peronismo tornaram-se mais explícitas quando o governo aprovou uma série de

medidas contrárias aos interesses da instituição, como a revogação da lei do ensino religioso

obrigatório, a implantação do divórcio etc. Como afirmou Prado:

Um conflito com um dos sustentáculos do peronismo, a Igreja, eclodiu no segundo mandato presidencial, com conseqüências irreparáveis para o peronismo. A oposição, dentro dos grupos católicos, de um pequeno núcleo democrata-cristão antiperonista parece ter sido o fulcro do conflito. A partir daí, Perón acusou alguns sacerdotes e bispos de estarem sabotando a obra governamental. Este estopim levou a um desentendimento (...) que culminou numa oposição ferrenha, por parte da Igreja, com relação a Perón, particularmente depois que esse toma uma série de medidas contrárias à Igreja (...). Do lado peronista, um anticlericalismo generalizado tomou conta de seus adeptos, que passaram a ver a Igreja como responsável por quase tudo que ocorria.60

Podemos perceber, a partir dos breves exemplos mencionados acima, como a Igreja

acabou por se constituir em um importante sujeito político ao longo de um período de

mudanças estruturais no continente latino-americano, marcado pela substituição dos regimes

políticos liberal-oligárquicos (assentados no modelo econômico agro-exportador) por novos

padrões de relação entre Estado e classes trabalhadoras, surgidos diante de um processo

crescente de urbanização e industrialização da região.

59AGGIO, Alberto. Democracia e Socialismo. Op. cit., p.97. 60 PRADO, Maria Lígia. O populismo na América Latina (Argentina e México). 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 56-57.

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1.3 O uso da liberdade no direito de propriedade: a Igreja no pós-revolução cubana

(1959-1961) e o Concílio Vaticano II (1962-1965)

A partir de 1959 com a Revolução Cubana e seus desdobramentos nos países latino-

americanos, o discurso dos episcopados continuou a ser permeado por uma crítica ao

comunismo, porém de forma mais agressiva. O anticomunismo seguiu atrelado ao

antiliberalismo numa recusa ao materialismo e ao ateísmo. Como afirmam Souza e Camargo,

este movimento trouxe novamente à tona o chamado “terceirismo católico”. Para os autores, a

“história do pensamento social católico, ou, mais especificamente, da Doutrina Social da

Igreja, é bem a história desta embaraçosa procura de uma ‘terceira via’ que, pelo menos,

apresentasse alguma credibilidade”.61

No entanto, consideramos que não apenas no Brasil, mas também no Chile este

modelo não conseguiu se conformar como alternativa aos modelos ideológicos

predominantes, nem ser defendido na prática pelos militantes católicos ao longo das décadas

de 1950 e 1960. Diante dos compromissos assumidos pelos católicos com distintos grupos

sociais e da inevitabilidade de tomarem uma posição diante dos acontecimentos, as “soluções”

católicas se multiplicaram e o terceirismo não passou de uma proposta para “moralizar e

corrigir as regras do jogo capitalista”.62 Como afirmaram os autores, “(...) a terceira via

católica acabou reduzida aos reclamos por um capitalismo corrigido de seus desvios e

excessos, com base no pressuposto antiliberal de uma normatividade anterior e superior às leis

do mercado. Na prática, a Doutrina Social da Igreja acabava representando uma tomada de

posição no interior do sistema capitalista, reforçando a importância de uma legislação social e

trabalhista, a liberdade de organização, a normatividade ética na economia (via Estado) e o

caráter assistencialista. Num mundo marcado pela bipolaridade da guerra fria, a Igreja atuou

como um “apoio ideológico a Washington” – centro da internacionalização do capital.63

O período pós-revolução cubana caracterizou-se por uma outra postura dos EUA

diante do continente latino-americano. O novo eixo da política externa do presidente Kennedy

foi marcado pela promoção de reformas econômicas e sociais, o que não significou o

abandono das políticas preventivas e repressivas características das administrações anteriores.

A criação da Aliança para o Progresso (Alpro) em 1961 serviu para implementar esta nova

política visando prevenir experiências inspiradas no modelo cubano. Dentre os principais

61 SOUZA, Beatriz Muniz de e CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de, Op. cit., p.363. 62 Ibidem, p.364. 63 Idem.

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pontos do programa ganhou destaque o Plano Decenal de desenvolvimento com destinação de

uma verba de 500 milhões de dólares para “combater o analfabetismo, para melhorar a

produtividade e o emprego da terra, para exterminar as doenças, para derrubar as estruturas

arcaicas do sistema tributário e de posse da terra e para fornecer oportunidades

educacionais”.64 O programa também visava o apoio à integração econômica com a criação de

uma área de livre comércio, o estímulo à industrialização, a realização da reforma agrária, a

eliminação do analfabetismo, a redução da mortalidade infantil, a criação de programas de

emergência de alimentos para a paz e intercâmbio científico entre as universidades a serem

implementados ao longo de dez anos.65

O ano de lançamento da Alpro também foi um ano de preparação da Igreja para o

Concílio Vaticano II, que seria convocado por João XXIII em 1962 e duraria até 1965. Em

1961 o Papa lançou a encíclica Mater et Magistra na qual resgatava os principais eixos das

encíclicas Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931) e acrescentava outros

pontos, de forma a atualizar a relação Igreja-sociedade. Assim, ao mesmo tempo em que

condenava a situação econômico-social do capitalismo moderno, a violência como forma de

resolução dos problemas sociais e o isolamento das nações, o documento ressaltava a

importância da propriedade privada e de sua socialização, a preocupação com o “equilíbrio”

social e a busca permanente de posições não extremistas. A Mater et Magistra enfatizou a

necessidade de salários justos para que os trabalhadores mantivessem um padrão de vida

digno. Nesse sentido, representou a ampliação do conceito de justiça, introduzindo também a

idéia de participação dos trabalhadores nos lucros das empresas como maneira de garantir

uma melhor distribuição da riqueza social.

O trecho a seguir é ilustrativo da linha defendida pelo catolicismo no início da década

de 60 quanto à questão da justiça social, da propriedade e da liberdade:

Posto que a economia das nações se desenvolva com tanta rapidez em nosso tempo, e, sobretudo depois da última guerra mundial, julgamos oportuno advertir a todos sobre o gravíssimo preceito de justiça social, que expressamente exige o desenvolvimento econômico e o progresso social mutuamente ligados e ajustados, de modo que todas as classes se beneficiem, eqüitativamente, com o aumento da riqueza nacional. Para isso, é preciso vigiar e lutar, com todo empenho, a fim de que as discrepâncias entre as classes sociais, em razão das desigualdades econômicas, em vez de aumentarem, se atenuem quanto possível.

64 KENNEDY. Alliance for Progress Address to Latin American Diplomats (May, 1964), p.234 apud AYERBE, Luis Fernando. Estados Unidos e América Latina – a construção da hegemonia. São Paulo: Editora Unesp, 2002, p.117-118. 65 Cf. DONGHI, Tulio Halperin. História da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p.262-263.

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(...) O direito de propriedade privada, inclusive dos bens de produção, tem valor permanente, por fazer parte da própria natureza das coisas, que nos ensina ser o homem anterior à sociedade, a qual, por isso, a ele se ordena como a seu fim. (...) Além disso, a história e a experiência atestam que onde os regimes políticos não reconhecem aos particulares também a propriedade de bens de produção aí é violado (...) o exercício da liberdade humana em questões fundamentais. Donde, claramente, se deduz que o uso da liberdade encontra proteção e incentivo no direito de propriedade. (Mater et Magistra, 1961, João XXIII).66

A encíclica, ao recuperar os princípios fundamentais da “carta dos trabalhadores” e

sua atualização pela Quadragesimo Anno (1931), apresentou a “justiça social” como o

resultado do “desenvolvimento econômico” e do “progresso social”. O princípio da justiça

também foi visto como o produto de relações mais “fraternas e solidárias” entre patrões e

empregados. Quanto à temática do sindicato, este continuou a ser encarado como instrumento

de harmonia social e como organização fundamental para orientar a economia de um país. O

direito à propriedade foi defendido como direito natural e como a base da liberdade do ser

humano. O Estado deveria vigiar as condições de vida dos trabalhadores e os contratos de

trabalho, isto é, para a Igreja, o Estado também seria responsável pela “questão social”. Como

afirmou Romano, o discurso da Igreja seguiu sendo permeado pelo entrelaçamento das idéias

de “liberdade, propriedade e responsabilidade”.67

As temáticas presentes em Mater et Magistra foram citadas tanto por católicos

“progressistas” radicais para criticar a economia de mercado, a lógica do lucro e o

individualismo e reivindicar uma posição mais ativa da Igreja nas lutas populares, quanto por

grupos católicos “reformistas” que confiavam na Doutrina Social Católica e defendiam a

função social da propriedade privada, a participação dos trabalhadores nos lucros das

empresas, a reforma agrária etc. No Brasil, este documento também foi usado pelo

empresariado moderno e setores ligados ao capital estrangeiro agrupados no Instituto de

Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) para a divulgação do programa da Alpro nos círculos

intelectuais católicos. Esta instituição, segundo Dreifuss, cumpriu um importante papel na

articulação do golpe de 1964.68

O início do Concílio em 1962 daria continuidade ao movimento de aggiornamento da

Igreja, acelerando os debates no interior do mundo católico. Seus eixos centrais foram, por um

lado, a aceitação pelos católicos da autonomia da esfera temporal, e por outro, a redefinição 66 COMISSÃO TÉCNICA DE ORIENTAÇÃO SINDICAL (do Ministério do Trabalho e Previdência Social do governo João Goulart). As encíclicas sociais de João XXIII. Rio de Janeiro: Livraria Olympio Editora, 1963, p.79 e 88. Grifos nossos. 67 ROMANO, 1979, p.58. 68 Cf. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981, p.236.

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da realidade social e econômica como uma esfera na qual a Igreja deveria intervir para

solucionar os problemas do mundo. As renovações eclesiásticas perpassaram diversos planos

desde a interpretação de textos sagrados, a liturgia,69 a estrutura organizativa da Igreja, até a

redefinição do papel de seus membros. Na prática, estas renovações confirmaram a

necessidade de estudos bíblicos atrelados aos processos políticos e sociais em curso, a

adequação da comunicação entre sacerdotes e fiéis às mudanças da vida social, a substituição

do latim nas missas pelas línguas vernáculas e a formação de um colegiado episcopal que

relativizasse o princípio monárquico dentro da Igreja. Os laicos ganhariam maior importância

tanto internamente quanto no processo de neo-evangelização – movimento que já vinha

acontecendo nas décadas anteriores. Além disso, a Igreja deixou de ser concebida por seus

membros como “sociedade perfeita” e passou a ser entendida e auto-definida como “Povo de

Deus” – “uma comunidade viva e mutável que faz seu caminho pela história com fé”.70 Como

afirmou David Fernández “el Vaticano II no inventó nada, pero tuvo que desmantelar una

mentalidad católica que hundía sus raíces en la cristiandad”.71

De acordo com os autores Souza e Camargo, o clima de debate franco no interior da

Igreja aberto pelo Vaticano II desfez a frágil unidade de pensamento dos cleros locais que, em

grande parte dos países se ultramontonizara na primeira metade do século XX. Para estes

autores, “toda essa efervescência ideológica, interna e externa, favorecia a produção de

discursos – desta vez dissonantes, críticos em relação à postura anterior”.72

As novas orientações pastorais atribuíram um protagonismo aos leigos e a definição da

Comunidade Eclesial de Base como a prioridade de ação das Igrejas latino-americanas. Neste

mesmo período - ao final da década de 1950 e início de 60 – o alto clero se apresentava mais

organizado tendo em vista a conformação das conferências nacionais e os encontros

episcopais latino-americanos. Assim, ao mesmo tempo em que se alcançou um mais alto nível

de organização, pulverizaram-se as contradições nas análises e estratégias de intervenção nas

políticas nacionais. As hierarquias eclesiásticas locais não podiam mais disfarçar as suas

diferenças teológico-políticas.

69 A liturgia é constituída pelo conjunto de ritos e celebrações próprios do culto católico. 70 LEVINE, Daniel H. Churches and Politics in Latin America. London: SAGE publications, 1980, p.21. 71 FERNÁNDEZ, David. La Iglesia que resistió a Pinochet. Madrid: IEPALA, 1996, p.19. 72 SOUZA, Beatriz Muniz de , Op. cit., p.365.

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PARTE II: O episcopado chileno e a Democracia Cristã

1.4 Igreja Católica do Chile e participação na política: a bibliografia e sua linha

predominante

A maior parte dos estudiosos da Igreja do Chile, provenientes de instituições de

pesquisa católicas, parece querer dissociar a relação da Igreja com a política, entendendo a

primeira como uma instituição da ordem transcendental, portadora da “verdade absoluta” e da

“função evangelizadora”; e a segunda, em geral, como o espaço da degeneração, da disputa

mesquinha por poder e por interesses particulares. Nesse caso, estas produções acadêmicas

acabam cumprindo o papel de reafirmar as prerrogativas da hierarquia eclesiástica numa das

conjunturas mais difíceis para a Igreja (décadas de 1960 e 70) – conjuntura na qual esta se viu

ameaçada em sua unidade interna, ao ser permeada por conflitos e disputas que,

evidentemente, não se resumiram ao espaço da instituição católica, penetrando outros âmbitos

da vida social. Consideramos que estes autores fizeram (e fazem) “história da Igreja” já que

parte deles tem suas pesquisas financiadas e publicadas por instituições católicas e, em seus

trabalhos, não procuraram problematizar os grandes eixos temáticos defendidos pela alta

hierarquia católica nos contextos específicos das décadas de 1960 e 1970. Nesse sentido, os

documentos episcopais utilizados, bem como as mensagens e declarações eclesiásticas

parecem ter sido, na maioria dos casos, reproduzidos e expostos de forma pormenorizada, mas

não analisados criticamente. Esta bibliografia parece cumprir o papel de justificar as posturas

assumidas pela alta hierarquia em um momento de fortes tensões, de alta politização de alguns

setores católicos, de acusações feitas aos bispos (tanto por grupos de esquerda, quanto por

grupos de extrema direita) e em um período de articulação de um golpe militar, que mudou

drasticamente a história do país.

Dentre os autores que pretendemos dialogar, selecionamos o trabalho de Luis Pacheco

Pastene (El pensamiento sociopolitico de los obispos chilenos 1962-1973), publicado pela

editora Salesiana em 1985; o de Maria Antonieta Huerta (La Iglesia y los cambios

sociopolíticos), publicado em 1988 pela editora Pehuén; o de Brian H. Smith (The Church

and Politics in Chile: challenges to a modern catholicism) de 1982 e o de Eduardo Araya

(Iglesia, Sociedad y Política. Chile: 1958-1973) publicado em 1986 pelo ILADES (Instituto

Latinoamericano de Doctrina y Estudios Sociales, instituição criada pela Igreja em 1966).

As obras de Pastene e Huerta apresentam proximidades no sentido de que identificam

as principais linhas assumidas pela Igreja do Chile nas décadas de 1960 e 1970, entendendo o

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Concílio Vaticano II como um marco na história da Igreja latino-americana. Segundo os

autores, o Concílio representou uma nova relação “Igreja-mundo” e a Igreja do Chile teria se

sensibilizado para a importância de reformas sociais e para a necessidade de impulsionar os

cristãos a participarem do processo de construção de uma “nova sociedade”. Ao justificar a

concepção que a própria Igreja apresenta de si mesma, Pastene e Huerta defendem o papel

“moral” da instituição; sua distância com relação à política contingente; seu rechaço ao

socialismo e ao liberalismo; a Igreja como “povo de Deus” e a incompatibilidade entre

marxismo e cristianismo. Seus trabalhos são importantes, pois nos ajudam a compreender a

forma pela qual a instituição católica se apresentou neste período, apesar de não contribuir

para uma análise crítica acerca do papel desempenhado pela mesma naquele contexto.

Por sua vez, os trabalhos de Smith e Araya também reproduzem as posturas assumidas

pela Igreja neste momento, mas apresentam diferenças sutis com relação aos anteriores. Em

primeiro lugar, os autores não se colocam abertamente como porta-vozes das linhas de

atuação da Igreja. Apresentam os documentos episcopais e tentam problematizá-los, sem, no

entanto, conseguirem escapar à lógica predominante das pesquisas sobre a história da Igreja

do Chile. Para Araya, os bispos não invocavam a “neutralidade” política de seus fiéis; ao

contrário, pediam que os mesmos optassem pela corrente política que mais se adequasse ao

conteúdo do Evangelho. Quanto aos católicos com papel de direção, como sacerdotes e líderes

pastorais, estes deveriam se privar de optar publicamente por um partido ou uma corrente

política. O autor também não vê ambigüidade no discurso episcopal; para ele, os bispos

apenas procuravam medir as palavras para não serem atrelados a nenhuma posição política.

Por último, Araya considera que em nenhum momento os bispos fizeram uso de um discurso

condenatório, mas crítico com relação à conjuntura do Chile, em especial durante o governo

de Allende. Já o trabalho de Smith apresenta uma pesquisa aprofundada bem como o uso de

uma vasta documentação sobre a doutrina católica chilena e informação relevante sobre a

história da instituição neste país desde princípios do século XX. No entanto, Smith acaba

reproduzindo a concepção de que a Igreja, enquanto instituição, esteve mais aberta às

mudanças sociais a partir da década de 1960, procurou evitar a todo custo a efetivação de um

golpe militar em 1973 e desempenhou um papel “profético” durante o regime militar de

Pinochet, se constituindo como a “voz dos que não tem voz”. Ao longo do capítulo, veremos

outras semelhanças e diferenças com relação às linhas desta bibliografia.

Também usaremos uma bibliografia mais recente que não apresenta como temática

central a Igreja do Chile, mas que leva em conta, de forma breve, a sua relação com a política

neste período. Dentre ela, utilizaremos os trabalhos de Sofía Correa, estudiosa da direita

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chilena no século XX (Con las riendas del poder: la derecha chilena en el siglo XX, 2004);

Corvalán Marquez (Del anticapitalismo al neoliberalismo en Chile, 2001); Ricardo

Yocelevzky (“Los proyectos políticos de los años sesenta”, 2006), Elizabeth Lira e Brian

Loverman (Las ardientes cenizas del olvido: vía chilena de reconciliación política 1932-

1994, 2000)73. Estas produções nos abrem caminhos para compreender a relação da Igreja

com o PDC e com as outras esferas da vida política no Chile.

Para estudar as posturas assumidas pela Igreja do Chile no período que antecede o

golpe militar de 1973 é fundamental analisar a sua convergência com a Democracia Cristã nos

anos 1960, já que este fator compõe uma das facetas da relação da Igreja com a política no

Chile e que a diferencia de outros países da América Latina.

1.5 Um partido, uma doutrina: a Democracia Cristã, a Igreja e o processo político

nacional

O surgimento da Democracia Cristã deve ser compreendido como parte do processo de

adaptação da Igreja Católica às mudanças advindas com o mundo moderno e ao processo de

modernização capitalista de meados do século XX. Na Europa, especialmente na Itália, estes

partidos se desenvolveram após a II Guerra Mundial e ganharam as eleições apresentando um

programa de reformas sociais que apontava para a geração de empregos e para uma política

redistributiva.

No Chile o PDC,74 enquanto movimento, existiu desde a década de 1930, a partir de

uma divergência no interior do antigo Partido Conservador.75 Esta divergência se deu pela

influência do catolicismo social num setor do partido, influência esta ainda minoritária entre

as elites na primeira metade do século XX. Vale lembrar que a direita chilena até o final dos

anos 1930 era constituída basicamente pelos partidos Liberal e Conservador e a diferença

entre eles era de ordem doutrinária, isto é, diferenciavam-se pelo grau de adesão à Igreja

73 As referências completas destas obras virão ao longo do capítulo. 74 Sobre a Democracia Cristã no Chile ver: GRAYSON, George. El Partido Demócrata Cristiano Chileno. Santiago: Editorial Francisco de Aguirre, 1968; COELHO, Sandro Anselmo. Democracia Cristã e Populismo: um marco histórico comparativo entre o Brasil e o Chile. Revista de Sociologia e Política, UFPN, n.15, p.67-82, nov. 2000; HUNEEUS, Carlos. Un partido con alto grado de institucionalización. El PDC de Chile. In: MAINWARING, Scott e SCULLY, Timothy (Orgs.). Christian Democracy in Latin America. Stanford: University Press, 2003; DOONER, Patricio. Cronica de una democracia cansada: el partido Democrata Cristiano durante el gobierno de Allende. Santiago de Chile: ICHEH, 1985; FREI MONTALVA, Eduardo. El mandato de la historia y las exigencias del porvenir. Caracas: Nueva Política, 1976; BOYE, Otto. La Iglesia y los partidos democrata-cristianos en America Latina. In: RATZINGER, Joseph; SILVA HENRÍQUEZ, Raúl; SILVA SOLAR, Julio et al. Iglesia, Teologia, Política. Santiago: CESOC, 1984, p.52-59. 75 Cf. CORREA SUTIL, Sofía. Con las riendas del poder. La derecha chilena en el siglo XX. Santiago: Sudamericana, 2004, p.115-116.

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Católica. O primeiro era anticlerical e o segundo era uma “agrupação confessional: aspirava

representar politicamente os pontos de vista da Igreja Católica e os fiéis mais comprometidos

constituíam sua força eleitoral”.76

A divergência no interior dos Conservadores daria origem à Falange Nacional –

partido nascido em 1938, influenciado pela democracia cristã européia e que rejeitava tanto o

capitalismo liberal quanto o socialismo.77 Os falangistas, guiados pelos princípios lançados

pela Rerum Novarum, defendiam a importância das reformas sociais para a conservação do

capitalismo e a cristianização da vida econômica. O trecho a seguir evidencia as bases teóricas

do partido:

Rechazamos las restauraciones imposibles y las revoluciones destructoras. Actuamos dentro del marco de las leyes y condenamos la violencia como medio de acción política. (…) Condenamos el régimen capitalista, no el capital, como factor de producción que mantiene a las muchedumbres en la esclavitud moral y económica, y el sistema colectivista, que aniquila el individuo (…). Proclamamos el sentido humano de la economía.78

Até meados da década de 1950 a presença política da Falange era muito débil, sendo

rejeitada tanto pela direita tradicional chilena quanto pelo Vaticano.79 Desde o pós-guerra o

76 Ibidem, p.43. 77 O nome dado ao agrupamento formado basicamente por membros da juventude do Partido Conservador - Falange - e o ano de seu surgimento oficial – 1938 – coincide com a ascensão de regimes corporativistas na Europa e o apoio do Vaticano aos mesmos durante o papado de Pio XI. No entanto, a documentação e a bibliografia sobre o tema apontam que, apesar de no início haver entre os jovens falangistas chilenos uma atração pelo militarismo, isto é, por uma estrutura organizativa próxima a um exército, seus fundadores repudiavam o fascismo, da mesma forma que o comunismo. Este repúdio estava ligado à associação do fascismo a um regime estrangeiro, mas não especificamente a todo seu conteúdo. O autor George Grayson aponta que em 1934, após uma visita de três membros da então Juventude Conservadora à Itália, Manuel Garretón (membro da juventude) teria comentado que o fascismo se mostrava como “o mais interessante sistema para estudar, o maior intento de remediar os males do regime democrático-liberal” e Ignacio Palma teria ficado impressionado com a sua “organização e eficiência”. Ainda segundo Grayson, não se pode desconsiderar a influência, mesmo que apenas inicial, da Falange espanhola sobre a Falange chilena. Tendemos a considerar que esta influência ocorreu sobre um pequeno grupo de dirigentes e que estava mais explícita na forma de organização militarizada do agrupamento do que propriamente no conteúdo de seus documentos. Já na década de 1940, a Falange Nacional abdicaria do uso de uniformes e equipes, permanecendo apenas com o emblema da flecha vermelha em sua bandeira, que representava uma mescla de “missão social” com nacionalismo. Ver: GRAYSON, George. El Partido Demócrata Cristiano Chileno.Op. cit., p.145-147. 78 Los veinticuatro puntos fundamentales de la Falange Nacional apud GRAYSON, George. El Partido Demócrata Cristiano Chileno.Op. cit., p.473-481. 79 Ao querer se diferenciar dos liberais e conservadores, os falangistas se aproximaram, em determinadas conjunturas, dos partidos de esquerda. Um exemplo disso foi a condenação pela Falange da lei “de defesa permanente da democracia” que proscreveu o Partido Comunista em 1948 sob o governo de Gonzalez Videla. Para os defensores do catolicismo social, a única maneira de derrotar o comunismo era por meio de uma política reformista e não com medidas repressivas, já que o avanço da esquerda era entendido como conseqüência da piora das condições de vida da população. Esta postura foi condenada pela Igreja na época por mostrar certa “cumplicidade” com o comunismo. Em 1947, no ano anterior, os falangistas já tinham sido censurados pelo episcopado por apoiar as relações diplomáticas do Chile com a URSS.

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Vaticano manteve uma forte posição anticomunista principalmente a partir da ocupação

soviética do Leste Europeu e do amplo peso eleitoral do Partido Comunista Italiano. Uma vez

delineada a Guerra Fria, a Sagrada Congregação do Santo Ofício (antiga Inquisição) ameaçou

de excomunhão os católicos que apoiassem os partidos comunistas, o que significou para as

Igrejas da América Latina a proibição de qualquer cooperação entre ambos.80

Em 1957 a aliança entre falangistas e conservadores identificados com a doutrina

social deu origem ao Partido Democrata Cristão. O PDC ganhou muito espaço político nos

anos 1960, tornando-se a opção mais atraente para a burguesia, a qual se encontrava

enfraquecida politicamente e apresentava seu projeto liberal desarticulado diante do aumento

da pressão popular por reformas.

Em outras palavras, devemos entender a ascensão do PDC e a opção da Igreja do Chile

por este projeto político, tanto pelo fracasso e desgaste do projeto empresarial colocado em

prática no país ao longo da década de 1950, quanto pelo significado da Revolução Cubana na

América Latina.

Desde o início dos anos 1950, tornaram-se evidentes as contradições do projeto

populista do general Ibáñez81, que combinava políticas de maior controle estatal da atividade

80 VIDAL, Hernán. Las capellanías castrenses durante la dictadura. Hurgando en la ética militar chilena. Santiago: Mosquito Comunicaciones, 2005, p.38. 81 Carlos Ibáñez del Campo é considerado um nome importante da política chilena. Antes de sua primeira vitória eleitoral como presidente em 1927, havia participado de movimentos militares que caracterizaram o final da República parlamentar no Chile. Quando se tornou presidente em 1927 introduziu no país um regime autoritário, reprimindo a oposição, censurando a imprensa e submetendo o movimento sindical ao controle direto do Estado. Após um notável crescimento econômico e de obras públicas, o país foi assolado pela crise de 1929 e o governo se viu diante de um colapso fiscal, produtivo e financeiro. Ibáñez renunciou e se exilou, retornando ao Chile em 1937, quando foi novamente candidato à presidência apoiado pelo movimento nacional-socialista. Após um golpe de Estado efetuado por jovens nazistas, Ibáñez teve novamente que renunciar, retornando ao poder apenas em 1952. Neste ano o general deu início a um regime caracterizado por alguns autores como um “populismo autoritário” ou “populismo tardio” (se considerarmos as experiências populistas dos demais países do continente). A exemplo de Perón, com quem Ibáñez mantivera estreitas relações políticas e pessoais, o populismo ibañista pôs fim a uma forma de fazer política que perdurava no Chile há doze anos sob mandatos de presidentes radicais (do Partido Radical): a política dos acordos e negociações entre cúpulas partidárias, que asseguravam a estabilidade política nacional, mas haviam agravado os problemas econômicos e sociais do país. Ibáñez procurou vincular a sua imagem diretamente às massas, evitando mediações partidárias. Com isso, conseguiu um número significativo de votos não apenas das classes populares, como também dos que reivindicavam a “ordem”, isto é, um regime autoritário e ditatorial semelhante a seu primeiro governo. O general governou o Chile de 1952 a 1958 e seu governo foi dividido pelos historiadores em duas fases: a primeira foi a fase propriamente populista, quando foi criado o Banco do Estado e respaldada a formação da Central Única de Trabalhadores (CUT). Neste período se tornou visível uma política de maior controle estatal da atividade econômica e de apoio e controle dos sindicatos. A partir de 1955, o país se viu em sérias dificuldades econômicas que se traduziram no aumento da inflação, greves operárias nas áreas chaves como a mineração e crise política (entrada e saída de ministros ligados à correntes políticas distintas). Neste momento o governo passou a se aproximar da direita empresarial dando início à segunda fase da era Ibañista caracterizada por uma maior abertura da economia, a entrada de créditos externos norte-americanos, benefícios à iniciativa privada, maior repressão ao movimento operário e políticas antiinflacionárias. Ver: CORREA, Sofia; FIGUEROA, Consuelo; JOSELYN-HOLT, Alfredo; ROLLE, Claudio; VICUÑA, Manuel. Historia del siglo XX chileno. 3 ed. Santiago: Editorial Sudamericana, 2005.

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econômica e apoio aos sindicatos nos conflitos trabalhistas, com um gradual processo de

internacionalização econômica que se intensificou a partir de 1955, na segunda etapa do

governo. Nesta fase, o governo privilegiou os acordos com empresários nacionais e

estrangeiros, seguindo o receituário do Fundo Monetário Internacional, com o objetivo de

colocar em prática uma política estabilizadora que apontava para a contenção dos gastos, a

demissão de funcionários públicos e o arrocho salarial. Esta política marcaria um

distanciamento significativo com relação ao intervencionismo estatal reinante desde a crise de

1929.82

Com a vitória de Jorge Alessandri83 nas eleições presidenciais de 1958, os grandes

grupos empresariais se voltaram para a implantação de um novo projeto modernizador que

ganhara influência nas faculdades de economia de algumas universidades do Chile desde os

primeiros anos da década. O exemplo mais conhecido de intercâmbio acadêmico entre

universidades norte-americanas e chilenas foi o que se deu entre a Universidade Católica de

Santiago (UCA) e a Universidade de Chicago.84 A chegada de acadêmicos norte-americanos

para ensinar na UCA no início da década de 1950 é considerada um marco na formação de

uma geração de economistas ligados à orientação de livre mercado e, críticos, portanto, da

intervenção direta do Estado na economia. Além do convênio que contemplava o envio de

recém-formados da UCA para a pós-graduação em Chicago, foi criado um centro de pesquisa

de economia chamado “Projeto Chile”.85 Este obteve forte apoio do grande grupo empresarial

ligado à família Edwards – proprietária do jornal El Mercurio. Desde 1955, este jornal vinha

realizando críticas ao protecionismo, ao intervencionismo estatal e às visões estruturalistas da

CEPAL. Sua propaganda ideológica defendia as “vantagens” da modernização da indústria,

agricultura e mineração com fins de obter maior competitividade no mercado externo. O

discurso utilizado pelo jornal atrelava a proposta econômica à “liberdade” em meio ao

, p.197-205. 82 Ibidem, p.202. 83 Jorge Alessandri Rodríguez, filho de Arturo Alessandri (presidente do Chile nas décadas de 1920 e 1940), foi o candidato dos liberais e conservadores em 1958 e ganhou as eleições com 31.2% dos votos. Representava um empresário “independente” dos partidos políticos. Fora presidente de Confederação da Produção e Comércio – organização máxima do empresariado chileno - desde 1943 e em 1955 havia se convertido em porta-voz do projeto econômico da direita que defendia a abertura dos mercados com o objetivo de “modernizar” a economia capitalista. Além disso, Alessandri era conselheiro da Sociedade de Fomento Fabril; presidente da Papelera (Companhia Manufatureira de Papéis e Cartões); membro da direção de várias sociedades industriais e financeiras; presidente da empresa Pizarreño e vice-presidente do Banco Sud Americano. Ver: CORREA, Sofia et al.Op. cit, p.207. 84 Cf. VALDES, Juan Gabriel. La escuela de Chicago: operación Chile. Buenos Aires: Zeta, 1989. 85 Cf. CORVALÁN MARQUEZ, Luis. Del anticapitalismo al neoliberalismo en Chile. Op. cit., p.98.

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contexto internacional da Guerra Fria.86 Segundo esta concepção, a “decadência nacional” era

resultado do intervencionismo do Estado, o qual limitava a iniciativa privada. O Projeto Chile

constituiu um dos importantes eixos de modernização do pensamento da direita chilena,

provendo-a de quadros de alta qualificação científica, isto é, de verdadeiros intelectuais

orgânicos que teriam enorme influência no posterior processo de implantação do modelo

neoliberal após 1973 no Chile.

Os anos 1950 também foram caracterizados pela expansão do ensino técnico e pela

criação de institutos de pesquisa ligados a associações empresariais. A nova política

econômica também ganhou o apoio de economistas norte-americanos e convergiu com os

interesses dos partidos Liberal e Conservador; da Câmara Central de Comércio; Sociedade de

Fomento Fabril; Sociedade Nacional de Agricultura e Confederação de Produção e Comércio.

Em suma, podemos dizer que o projeto de modernização capitalista que venceu as eleições em

1958, cujo principal porta-voz foi o candidato Jorge Alessandri, foi formulado pelos partidos

de direita em conjunto com as associações empresariais chilenas e o governo norte-americano,

devendo ser entendido no contexto político da Guerra Fria.

O fracasso do governo dos “Gerentes”, como foi chamado o governo alessandrista

pelos historiadores chilenos,87 representou a derrota do modelo liberal num contexto de

irrupção das massas na vida política e de maiores demandas sociais. Não era possível manter

a ordem - preservar a propriedade privada intacta e o projeto classista dos grupos empresariais

sem fazer concessões de reformas. Correa atenta para outros fatores causadores do fracasso do

projeto liberal, dentre eles a recessão econômica dos EUA e a eclosão da Revolução

Cubana.88 O início da década de 1960 inspirou novas políticas por parte do Vaticano e do

governo norte-americano para o Chile, além de estimular a reorganização política dos setores

da burguesia representados pela direita tradicional.

Em 1961 o governo Alessandri foi intimado a iniciar um tímido processo de reforma

agrária diante das novas exigências oriundas da política da Aliança para o Progresso. Não

apenas a diplomacia norte-americana, mas também os teóricos cepalinos (a sede da CEPAL

estava localizada em Santiago do Chile) e a Igreja Católica (que em 1961 lançara a encíclica

social Mater et Magistra) reconheciam o problema agrário do Chile – encarado pela baixa 86 CORREA SUTIL, Sofía. Con las riendas del poder.Op. Cit.,p.207. Desde 1947, como afirma a autora, o jornal Mercurio lançava seus editoriais contra a “economia dirigida”, afirmando que a intervenção estatal era “ineficaz” e “escravizante” e que a economia liberal dos EUA era o exemplo de democracia e liberdade. 87 Esta denominação foi utilizada por Sofía Correa Sutil, Julio Pinto e Gabriel Salazar. Estes últimos são autores de Historia Contemporánea de Chile. Santiago: LOM, 1999 (tomos 1-5). Esta denominação foi dada, pois o governo privilegiou os empresários em detrimento dos partidos políticos. Os altos cargos da administração alessandrista foram ocupados por empresários, muitos deles dirigentes da Sociedade de Fomento Fabril. 88 CORREA SUTIL, Sofía, Op. cit., p. 227.

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guerrilheiro para o restante da América Latina. Este fator teria introduzido a Guerra Fria

diretamente nas sociedades latino-americanas. Nesse sentido, a Igreja do Chile

como institución de naturaleza esencialmente transnacional y con un estilo de administración de un discurso cultural universalizante y su capacidad de oscurecer su conexión con intereses sociales contingentes, (…) era el canal óptimo para la radicación local de los elementos materiales de las contiendas globales de la Guerra Fría, canal más eficiente para estos efectos que los partidos políticos, el Parlamento y las Fuerzas Armadas. Este es el punto en que se puede observar ya claramente las coincidencias con el modelo de operación encubierta revelado por la acción conjunta de Estados Unidos y el Vaticano.92

Antes de analisarmos o conteúdo dos documentos episcopais do período, é importante

acrescentar que a antiga política anticomunista de Pio XII, somada ao anticomunismo do papa

João XXIII (1958-1962) convergiu com a política do Departamento de Estado norte-

americano.93 Neste período, o Chile recebeu altos empréstimos para a modernização de sua

infra-estrutura nacional. Este processo também contou com a instalação no país de

subsidiárias dos conglomerados multinacionais e a reorientação das funções das Forças

Armadas (FFAA) para a luta contra o “inimigo interno”. A Igreja participou desta política ao

investir em programas sociais o financiamento recebido do Catholic Relief Service dos EUA,

da USAID e das Agências Católicas de ajuda social e de educação provenientes da Alemanha

Ocidental.94 Calcula-se que entre 1960 e 1964 foram transferidos 34 milhões de dólares aos

92 VIDAL, Hernán. Las capellanías castrenses durante la dictadura. Hurgando en la ética militar chilena. Op. cit., p.38. 93 Entendemos que o anticomunismo de Pio XII, cujo papado foi uma continuação de seu antecessor Pio XI, se expressou pelo reforço dos princípios da encíclica Quadragesimo Anno, lançada no período entre as duas guerras mundiais. Esta rechaçava tanto o liberalismo quanto o “coletivismo”, atribuindo um novo enfoque à questão do equilíbrio entre capital e trabalho. A preocupação da Igreja se voltou para a relação entre Estado e Igreja – relação que deveria se realizar por meio de associações, em especial as de cunho sócio-econômico. Com isso, a instituição se aproximou do sindicalismo corporativo, acentuando os interesses comuns entre operários e patrões para que a sociedade fosse organizada segundo a harmonização dos interesses. O critério econômico de organização da sociedade deveria ser substituído por um critério social, de forma a enfatizar a atividade profissional na qual coincidissem patrões e empregados. Esta concepção buscava um modelo de organização da sociedade que superasse os impasses do liberalismo e do socialismo no que se referia à luta de classes, propondo uma “terceira via” baseada no princípio da harmonia. A análise desta encíclica também nos permite visualizar uma clara simpatia de Roma pelo corporativismo fascista. Por sua vez, o anticomunismo de João XXIII se expressou principalmente por meio da encíclica Mater et Magistra lançada em 1961. Nesta encíclica enfatizou-se a necessidade de salários mais justos para os trabalhadores, introduziu-se a idéia da participação dos empregados nos lucros das empresas, o sindicato continuou sendo entendido como instrumento da harmonia social. Em resumo, a Igreja seguiu defendendo condições de dignidade para os trabalhadores e uma melhor distribuição dos bens materiais como forma de preservação da harmonia social e o afastamento das idéias socialistas, que após a Revolução Cubana tornaram-se ameaças maiores na América Latina. 94 Cf. VIDAL, Hernán, Op. cit., p. 39 e SMITH, Brian H, Op. cit., p.123.

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projetos pastorais e sociais vinculados à Igreja. No período seguinte, entre 1965 e 1970, a

Igreja do Chile recebeu da Europa e dos EUA um total de 35,8 milhões de dólares.95

Além disso, a escassez de sacerdotes na América Latina fez com que o Vaticano

solicitasse ao Episcopado norte-americano e europeu cerca de dez por cento de seus religiosos

para serem missionários no continente. Estes religiosos estrangeiros ficaram conhecidos como

“voluntários do papa”. Outra iniciativa do Vaticano neste período, com relação às Igrejas

nacionais, foi o estímulo à criação de institutos de pesquisa sociológica diretamente ligados às

Conferências Episcopais. O incentivo ao estudo das ciências sociais foi considerado pela

Igreja como fundamental para auxiliar na implementação de programas de desenvolvimento e

combate à dependência. No Chile, estes centros surgiram desde 1958 e se expandiram na

década de 1960. Dentre eles podemos citar o Centro San Roberto Bellarmino, o Instituto

Latinoamericano de Doctrina y Estudios Sociales (ILADES) e o Centro para el Desarrollo de

América Latina (DESAL) os quais tiveram uma grande projeção nacional e continental,

formando uma geração de estudiosos voltados para a realidade sócio-política chilena e para o

pensamento social católico.96

Em 1962 o episcopado chileno lançou duas importantes declarações que buscaram

adequar a Igreja do Chile à linha do Vaticano apresentada em 1961 com a encíclica Mater et

Magistra - já destacada por nós anteriormente. Em ambos os documentos os bispos buscaram

analisar a conjuntura do país e orientar os cristãos diante da situação de miséria dos

trabalhadores do campo e da cidade. A primeira declaração - La Iglesia y el problema del

campesinado chileno97 - colocou a necessidade de uma reforma agrária integral que

possibilitasse a incorporação das massas camponesas “no trabalho pelo desenvolvimento

nacional”. Ao ter acesso à pequena propriedade, os camponeses passariam para a condição de

trabalhadores “autônomos” e o Estado garantiria seu compromisso com a responsabilidade

social. Os bispos, ao reconhecerem o atraso agrícola como um sério entrave para o progresso

nacional, encamparam o projeto da Aliança para o Progresso, citando a Carta de Punta del

Este como um marco na tomada de consciência dos grupos dominantes da América Latina

para a questão agrária.

95 Cf. CORREA, Sofia; FIGUEROA, Consuelo; JOSELYN-HOLT, Alfredo; ROLLE, Cláudio et al. Historia del siglo XX chileno. Op. cit., p.219. 96 HUERTA, Maria Antonieta. La Iglesia chilena y los cambios sociopolíticos. Santiago: Pehuén, 1988, p.245-246. 97 Conferencia Episcopal de Chile. La Iglesia y el problema del campesinado chileno (março de 1962). In: ALIAGA ROJAS et al (Org.). Documentos de la Conferencia Episcopal de Chile (1952-1977). Santiago: ESEJ, [1974], p.126-161.

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Após reconhecer o atraso agrícola como fator de dependência, o episcopado expôs a

situação dos pequenos proprietários chilenos, afirmando que:

La situación del pequeño agricultor ha sido por lo general, muy deficiente, por falta de una política agraria y sobre todo de la mano de obra que lo favorezca. Sin créditos oportunos, sin suficiente asistencia técnica, sin maquinaria agrícola, sin vivienda ni edificios adecuados, sin organizaciones regionales de tipo cooperativo ni gremial, sin facilidades de transporte, ha quedado de hecho en condiciones deprimentes.98

Diante da situação retratada acima, os bispos defenderam a solução cristã para os

problemas do campo, reafirmando a importância da reforma agrária com as devidas ressalvas:

Urge poner a los agricultores no propietarios en condiciones de salarios, de contratos y de renta, tales que favorezcan su estabilidad sobre las tierras por ellos cultivadas y facilitar el acceso a la plena propiedad (siempre dejando a salvo la consideración debida a la productividad, a los derechos de los propietarios y sobre todo a sus inversiones).99

De forma geral, o documento episcopal ofereceu as bases cristãs para o problema do

campo, defendendo a função social da propriedade privada, o direito à organização sindical e

associativa dos camponeses, o papel do Estado como provedor do “bem comum”, a

propriedade como forma de preservação da família e o comunismo como falsa solução para o

problema da terra por incitar “ocupações violentas” e “ilegais”, por pregar o fim da

propriedade, além de se utilizar da massa camponesa para fazer avançar suas “idéias

subversivas”.100 Quanto a este último aspecto, devemos ressaltar que, para a hierarquia

católica nesse momento, a bandeira da reforma agrária defendida pela esquerda não passava

de uma tática demagógica para a construção de uma base social no campo. Sendo assim, a

redistribuição de terras só seria possível para a Igreja se fosse feita de forma pacífica já que

“nunca las ocupaciones violentas, que son ilegales, pueden conferir título de propiedad”.101

Na segunda declaração - El deber social y político en la hora presente102 - os bispos

ressaltaram o dever dos cristãos diante das péssimas condições de vida da maioria da

população latino-americana, ressaltando que o Chile, apesar de seu “exemplo de inteligência e

maturidade cívica” e de “estabilidade política e prosperidade econômica”,103 ainda não

conseguira solucionar seus problemas sociais. Nesta declaração, o episcopado chileno 98 Ibidem, p.142. 99 Ibid., p.143. 100 Ibid., p.147. 101 Ibid., p. 156. 102 Conferencia Episcopal de Chile. El deber social y político en la hora presente (18 set. 1962). In: ALIAGA ROJAS et al (Org.), Op.cit., p.14-44. 103 Ibidem, p.15.

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apresentou a doutrina social católica como o melhor caminho para a solução da miséria,

contrapondo-a ao comunismo, que “despoja o homem de sua liberdade, suprime na pessoa

humana toda dignidade e todo freio moral”.104 O comunismo também foi apresentado como

um sistema responsável pelo fim da família e da religião; baseado no Estado “patrão” e no

partido único como o novo “Deus”.105 Após a caracterização, os bispos apontaram os atrativos

das idéias comunistas junto aos trabalhadores afirmando que:

(...) El comunismo jamás se ha impuesto por la convicción, por el valor de su doctrina; siempre se ha valido de las debilidades de los Estados y partidos llamados democráticos, y ha escalado el poder para constituirse, después en el amo implacable de todos los que no piensan como él, comenzando por aquellos mismos que han hecho posible su ascensión. Del triunfo de Comunismo en Chile, la Iglesia y todos sus hijos no pueden esperar sino persecución, lágrimas y sangre.106

Ao descartar a alternativa socialista e qualquer possibilidade de colaboração entre

cristãos e comunistas em 1962, a alta hierarquia da Igreja do Chile se aproximou da política

externa norte-americana para o continente e também atuou no sentido de prevenir o Chile da

influência cubana. Outro elemento a ser destacado no documento é a responsabilização dos

governos liberais e partidos ditos “democráticos” pelo crescimento das idéias comunistas

visto que estes governos teriam atuado no sentido de reproduzir as desigualdades sociais. Ao

se referir às problemáticas nacionais, o episcopado criticou o projeto político da direita

tradicional que, a partir de 1958 retornara ao poder sob a presidência de Jorge Alessandri.

Diferenciando-se do programa “falido” da direita ligada às antigas oligarquias rurais, os

bispos defenderam a “democracia com justiça social”, que de maneira vaga, relacionava-se

aos conceitos de “comunidade nacional” e “convivência”, remetendo à idéia de harmonia ao

invés do conflito.107

De fato, a Igreja responsabilizava a direita tradicional – sua antiga aliada política –

pelos problemas sociais do Chile. Essa movimentação da alta hierarquia católica, de abandono

das antigas alianças partidárias, deve ser entendida levando-se em consideração alguns fatores

já citados anteriormente, como o desencadeamento da Revolução Cubana; a crescente votação

obtida pela esquerda chilena desde as eleições presidenciais de 1958; as propostas do

Vaticano lançadas na encíclica Mater et Magistra e os vínculos construídos entre militantes

laicos e eclesiásticos com dirigentes do PDC nestes anos. Como afirmou Smith, a nova

104 Ibid., p.26. 105 Ibid., p.27. 106 Ibid., p.28-29. 107 Cf. PACHECO PASTENE, Luis. El pensamiento sociopolítico de los obispos chilenos 1962-1973. 1 ed. Santiago: editorial Salesiana, 1985, p.40.

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no processo de modernização capitalista se tornou ainda mais evidente com a vitória da DC

nas eleições de 1964, cujo projeto político era coerente com os princípios sociais católicos

lançados nos documentos episcopais.

O PDC recebeu o apoio dos setores mais empobrecidos do campo e da cidade, das

novas classes médias qualificadas – grupo social que havia se beneficiado com o processo de

modernização capitalista das primeiras décadas do século XX – e dos setores da juventude

universitária, definindo-se como uma alternativa de mudança e renovação da sociedade

chilena, opondo-se tanto à direita liberal e capitalista quanto ao socialismo marxista dos

partidos da Frente de Ação Popular (FRAP).113 Para Carlos Altamirano, o PDC, ao compor

sua base social com setores médios, grupos de trabalhadores e a população pobre da cidade e

do campo, conseguiu cobrir algumas “ramas do sistema de classes” e oferecer um “quadro

ideológico multifacetado, confuso e contraditório” – fator que lhe permitiu ampliar sua

capacidade de atração.114

A linha de intervenção política da DC se baseava na idéia da “sociedade comunitária”,

que deveria ser construída por meio da unidade entre capital e trabalho e da adesão

incondicional ao legalismo vigente. O comunitarismo era o “meio de integrar grandes setores

da população na estrutura orgânica do país” através da reforma agrária e da participação dos

trabalhadores na gestão de empresas, mantendo assim uma economia mista com setores

privados, públicos e cooperativos.115 Rechaçando a luta de classes como princípio explicativo

da história, a DC estimulava em seu programa a formação de “maiorias sociais e políticas”

baseadas na adesão de sujeitos pluriclassistas ativados em torno dos princípios de

solidariedade e participação. Ao se identificar como um “movimento multiclassista”, a DC se

definiu como um partido “acima da política tradicional” apelando para as idéias de “bem

jornal, o aumento do número de proprietários era a melhor maneira de defender o direito de propriedade. Ver CORREA SUTIL, Sofía, Op. cit., p.241. 113 Cf. CORVALÁN MARQUEZ, Luis. Del anticapitalismo al neoliberalismo en Chile. Santiago: editorial Sudamericana, 2001, p. 74. 114 O autor entende por setores médios “a pequena burguesia não-assalariada da indústria, do comércio, mineração e serviços (pequenos proprietários dos meios de produção com pouca utilização da mão-de-obra alheia; proprietários de pequenas oficinas e negócios; pessoas que vivem de rendas e pensões; o minifúndio da área rural; e os artesãos e trabalhadores autônomos); a pequena burguesia assalariada, fundamentalmente no setor de serviços; empregados; funcionários; administradores; e (...) burocracia estatal; as camadas intelectuais (...) e os estudantes”. In: ALTAMIRANO, Carlos. Dialética de uma derrota. Chile 1970-1973. São Paulo: Brasiliense, 1979, p.69-85. 115 GRAYSON, George. El Partido Demócrata Cristiano Chileno. Santiago: editorial Francisco de Aguirre, 1968, p.351.

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comum” e de “unidade nacional”.116 As bases filosóficas da proposta comunitária estavam

constituídas pelo catolicismo social e pelas elaborações de Jacques Maritain.117

Além do comunitarismo, a Democracia Cristã defendia o regime democrático como

forma de garantir “formalmente os direitos” e “permitir a todos os cidadãos o pleno acesso

para exercê-los”. A esta concepção de democracia somava-se a idéia, ainda mais genérica, de

“ordem orgânica”, ligada ao “sistema social baseado na fraternidade e dotado de instituições

que assegurem e encarnem com vigência real os direitos da pessoa humana”. Nesse sentido, o

Estado “não é a concentração de poder de uma classe como no individualismo e no

totalitarismo, mas a expressão jurídica do conjunto dessas comunidades [associações

familiares, profissionais, culturais e de trabalho]”.118 Estes princípios reforçavam a concepção

de que o cumprimento das leis, encaradas como representantes dos interesses universais,

possibilitaria a construção de uma sociedade mais “equilibrada”, já que cada “classe de

indivíduos” (ou agrupamento formado de acordo com a atividade exercida), por meio de seu

trabalho, poderia contribuir para a construção do “bem comum”, isto é, da estabilidade

política e econômica do país.

É nesse sentido, portanto, que devemos compreender o reconhecimento do

sindicalismo por parte dos democratas cristãos. Os sindicatos, segundo a concepção

expressada na Rerum Novarum, não deveriam ser local de “pura trincheira política”, mas um

instrumento para se chegar “a uma sociedade em que o trabalho seja o veículo da fraternidade

e não o símbolo da injustiça”. Por meio da organização sindical, os trabalhadores poderiam

lutar pela estabilidade no emprego, pela sua participação e acesso paulatino na gestão e

propriedade da empresa.119 Por fim, identificamos na carta de princípios do partido a mesma

preocupação da doutrina social da Igreja com relação à propriedade privada, defendida como

um direito natural, devendo ser usada para “assegurar aos homens o desenvolvimento de sua

personalidade e o bem de sua família”, sendo esta última considerada a “célula fundamental

da sociedade”.120

Se compararmos os documentos episcopais dos primeiros anos da década de 1960 com

a Declaração de Princípios do PDC, encontraremos muitas semelhanças no que se refere à

defesa dos “valores humanos” por meio da “libertação dos trabalhadores da injustiça”; à 116 LOVERMAN, Brian e LIRA, Elizabeth. Las ardientes cenizas del olvido: vía chilena de reconciliación política 1932-1994. Santiago: LOM, 2000, p.251. 117 Cf. BOYE, Otto. La Iglesia y los Partidos Democrata Cristianos en America Latina. In: RATZINGER, Joseph; SILVA HENRÍQUEZ, Raúl; SILVA SOLAR, Julio et al. Iglesia, Teologia, Politica. Santiago de Chile: CESOC, 1984 (publicación del Centro de Estudios Sociales – CESOC), p.52-59. 118 Declaración de Principios del Partido Demócrata Cristiano apud GRAYSON, George, Op. cit., p.482-487. 119 Ibidem. 120 Ibidem.

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defesa do “regime democrático” baseado na legalidade; defesa da “ordem orgânica”

fundamentada na reconciliação nacional e na idéia do Estado como “expressão jurídica” do

conjunto das comunidades; à defesa da integridade da família contra qualquer ameaça de

desintegração como o divórcio; às associações profissionais, em especial a sindical, como

realização do bem comum e, por último, à defesa do conceito cristão de propriedade, isto é,

sua manutenção por meio de uma maior distribuição e seu usufruto por uma maioria.

O crescimento político do PDC e a sua transformação num dos principais partidos

chilenos em 1964 deve ser entendido, dentre outros fatores, pelos apoios centrais que obteve

da Igreja Católica e do governo norte-americano. Em 1962, a Igreja iniciava um processo de

renovação com a abertura do Concílio Vaticano II, assumindo como parte de sua política

oficial uma inserção mais ativa no mundo e um comprometimento com os problemas sociais,

apesar desta iniciativa já existir muito antes por parte de alguns setores católicos. No Chile, a

corrente “reformista” se tornou hegemônica no interior da Igreja nesse período pois entre

1955 e 1964 a instituição passou por uma renovação de sua alta hierarquia: 14 bispos, num

total de 28, foram substituídos e a maior parte dos ingressos tinha uma formação social com

trabalhos pastorais em paróquias pobres. Os novos bispos orientados pela doutrina social,

como o cardeal Raúl Silva Henríquez (1961) – antigos assessores dos movimentos apostólicos

– demonstraram um forte entusiasmo e expectativa com o projeto democrata cristão.

Para George Grayson, autor que analisou a relação do PDC com a Igreja durante as

eleições de 1964,

aunque manteniéndose aparte de cualquier compromiso político, la jerarquía chilena ha manifestado su aprobación al programa de Frei. Cuando fue interrogado acerca de su opinión sobre el programa de reforma agraria de la administración, el arzobispo de Santiago, cardenal Raúl Silva Henríquez, respondió que coincidía con la doctrina social de la Iglesia.121

Soma-se a isso o esforço da Companhia de Jesus em difundir no mundo católico a

opção pelas mudanças estruturais, numa linha congruente com a Aliança para o Progresso. A

influência dos jesuítas no episcopado chileno foi decisiva, chegando ao ponto de convencer os

bispos de que, para não dividir as forças católicas na eleição de 1964, era imprescindível que

eles declarassem seu respaldo à DC.122

O posicionamento favorável da hierarquia católica chilena à DC não se baseava apenas

em posturas éticas, também correspondia à política do Vaticano para as Igrejas da América

121 GRAYSON, 1968, p.420. 122 CORREA; FIGUEROA et al, 2005, p.216.

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Latina, que pretendia unir elementos ético-religiosos com as ciências sociais para, desta

maneira, elaborar ferramentas modernas capazes de intervir eficientemente no mundo da

política propriamente dito.123

Por outro lado, o giro da Igreja para uma ação mais comprometida com a atenuação

dos problemas sociais estava ligado à conjuntura da guerra fria. É importante, portanto,

diferenciarmos a ação social da Igreja nas diversas conjunturas históricas. Apesar do trabalho

social católico entre os setores populares chilenos existir desde antes da década de 1930, esta

iniciativa ainda estava muito relacionada aos princípios tradicionais do catolicismo ligados à

caridade e à piedade. Na esfera política, eram práticas que reforçavam a postura da Igreja

junto aos setores oligárquicos tradicionais, mantendo a relação de dominação característica do

sistema agrário-exportador. Na década de 1960 verificamos uma outra forma de “engajamento

social”. Aqui, a luta social da Igreja convergiu com o processo de mudanças do próprio

capitalismo internacional, onde as periferias passaram a cumprir um novo papel na divisão

internacional do trabalho, principalmente a partir da sucessão de golpes militares na América

Latina. Consolidada a revolução na ilha caribenha, a instituição católica passara a defender a

importância das reformas estruturais, o combate ao comunismo com justiça social, o rechaço a

qualquer forma de violência e o regime democrático como o mais apropriado para alcançar os

“valores humanos”. Em 1964 esta opção estava claramente representada pelo candidato

Eduardo Frei Montalva124 da DC.

Apesar da proximidade teórica entre os projetos, a Igreja buscou distanciar-se da

imagem do partido, defendendo, no ano da eleição, sua identidade “apolítica” e transversal.

Em um texto intitulado “Arzobispado desmiente afirmaciones del senador socialista Salvador

Allende”, os bispos afirmaram a importância de:

123 Em 1957 o jesuíta Roger Vekemans foi enviado ao Chile para ajudar a “deter o avanço do comunismo”. Ele criou o Centro de Investigação Social dos Jesuítas no Chile que tinha como objetivo difundir a doutrina social da Igreja. Este Centro acabou funcionando como uma espécie de “conselheiro” para os dirigentes da DC. Sobre o tema ver CORVALÁN MARQUEZ, 2001, p.75. 124 Eduardo Frei Montalva foi militante da juventude do Partido Conservador, participando em fins da década de 1920 e início de 1930 da Associação Nacional de Estudantes Católicos (ANEC) e da Ação Católica. Ao final da década de 1930 fundaria, junto a outros militantes, a Falange Nacional que posteriormente se transformaria em Partido Democrata-Cristão, movimento influenciado pela doutrina social da Igreja e pelas idéias de Maritain – filósofo que conheceu pessoalmente numa viagem à Europa em 1933. Foi eleito senador em várias ocasiões desde o ano de 1949, além de ser advogado, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Chile e jornalista. Foi presidente da república de 1964 a 1970 pelo PDC, sendo eleito com o apoio dos partidos da direita tradicional do Chile. Durante o governo de Salvador Allende, de 1970 a 1973, Frei se tornou um dos principais nomes da oposição, defendendo a conformação de uma frente política com o Partido Nacional contra o governo da Unidade Popular. Após o golpe militar de 1973, Frei publicou do exterior um texto em que justificava a intervenção das Forças Armadas contra o estado de “guerra civil” em que se encontrava o Chile.

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(...) declarar en forma más terminante que la Iglesia, de acuerdo con su misión, no se siente comprometida ni lo quiere con éxitos y fracasos políticos que por su naturaleza son problemas temporales absolutamente marginados de su obra religiosa y espiritual.125

O fato é que nos próprios documentos episcopais de 1962, como vimos anteriormente,

os bispos haviam condenado veementemente a opção socialista, pregando a mesma “terceira

via” proposta pela DC. Em abril de 1964, o cardeal Raúl Silva Henríquez ministrou uma aula

inaugural na Universidade Católica de Valparaíso, onde deixou muito clara a opção política

da hierarquia católica nas eleições daquele ano:

(...) ante los problemas del mundo actual se ofrecen tres soluciones: una inspirada en la doctrina individualista, contraria al cristianismo; otra marxista, igualmente contraria a los principios cristianos; y, finalmente la solución cristiana, tantas veces expuesta en las Encíclicas Papales y en Cartas Pastorales de los señores Obispos.126

A convergência teórica entre os postulados da Igreja e os princípios políticos do PDC,

além da trajetória comum entre a hierarquia da Igreja e os dirigentes do partido evidenciam, a

nosso ver, o duplo fortalecimento destes atores políticos a partir das eleições de 1964. No

entanto, este não é um elemento de análise comum aos estudiosos do tema. Para Pastene, a

Democracia Cristã apesar de representar uma oportunidade real para que a Igreja realizasse as

suas orientações doutrinárias em todas as esferas da vida chilena, não poderia ser confundida

com a própria instituição católica. Segundo o autor “sería un error histórico pretender

encontrar un compromiso entre la Iglesia y el Partido Demócrata Cristiano. La coincidencia

(...) está en la inspiración que recoge ese partido de la doctrina social de la Iglesia para su

diagnóstico y proyecto de sociedad, lo que por sí no constituye garantía de buen gobierno”.127

Em seguida conclui que o triunfo da DC não pode ser considerado um triunfo para a Igreja

nem para os católicos, uma vez que as diferenças entre doutrina e exercício político

permaneceram muito bem demarcadas.128

Outros autores, apesar de não confundirem partido político e Igreja, avaliaram de

forma distinta este momento histórico. Para Araya, o triunfo da DC parecia a “coronación de

una larga tarea de la Iglesia, aunque (...) de un sector de la Iglesia, que sólo a partir de 1962

125 El arzobispado desmiente afirmaciones del senador socialista Salvador Allende. Revista Católica (27 out. 1964), Santiago do Chile, ano LXIII, n. 1000, p.4430, set./dez. 1964. 126 Declaración en relación con opiniones del Cardenal. Emitida por el arzobispado de Santiago (14 abr. 1964). Revista Católica, Santiago do Chile, ano LXIII, n. 998, p.4163, jan./abr. 1964. 127 PACHECO PASTENE, 1985, p.56. 128 Idem, p.59.

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logra consenso en torno a su posición de mayor compromiso social”.129 Huerta, por sua vez,

também compartilha desta perspectiva quando afirma que “la llegada al poder de la DC

representa el resultado valioso de toda una trayectoria histórica, de un movimiento político

generado al interior de los cristianos y que la misma Iglesia había, de alguna manera,

promovido, desde la perspectiva del compromiso social de los católicos”.130 Smith corrobora

com esta visão, apesar de, da mesma forma que Araya e Huerta, não fazer uma análise política

mais profunda sobre o significado desta opção política pela Igreja naquele contexto.131

Consideramos que tanto o episcopado chileno, orientado pelo Vaticano, quanto os

democrata-cristãos apresentavam interesses de fato convergentes e a vitória eleitoral de

Eduardo Frei com 56% dos votos representou um passo à frente para a política norte-

americana em meio à Guerra Fria. No mesmo ano, o Brasil e a Bolívia assistiram a golpes

militares e a Argentina assistiria ao seu primeiro golpe dois anos depois. O Chile se mostrava,

aos observadores externos, como um caso a parte, já que Frei era um homem de confiança dos

EUA e propunha levar a frente um conjunto de reformas estruturais para prevenir eventuais

estalos revolucionários.

Ao formular e difundir a doutrina social neste contexto, não apenas por meio de

declarações episcopais e cartas pastorais, mas orientando uma cruzada religiosa com trabalho

social nos bairros pobres dos centros urbanos e regiões rurais, a alta hierarquia da Igreja

Católica teria corroborado, mesmo que não intencionalmente, com os interesses dos setores

mais dinâmicos da burguesia chilena – os quais foram os mais beneficiados com o projeto

posto em prática pelo governo Frei.132

Além do apoio da Igreja Católica, o projeto democrata cristão recebeu forte incentivo

do governo norte-americano assim como assistência técnica relativa a métodos de propaganda

eleitoral, como ficou evidente no informe elaborado para o Congresso dos EUA sobre as

ações encobertas da CIA no Chile, chamado Informe Church.133 O documento revela que

129 ARAYA, Eduardo. Iglesia, Sociedad y Política. Chile: 1958-1973. Santiago: ILADES, 1986, p.100. 130 HUERTA, Maria Antonieta. La Iglesia chilena y los cambios sociopolíticos. Op. cit., p.241-242. 131 Cf. SMITH, Brian H. The Church and Politics in Chile. Challenges to a modern catholicism. Op. cit., p.111. 132 Sabemos que o contato de alguns setores da Igreja com as classes populares, com a esquerda e com o próprio marxismo, também possibilitou a formação de um movimento católico “progressista” que teve uma atuação intensa durante o governo de Salvador Allende, defendendo, em alguns casos, a ruptura com o capitalismo. Vamos analisar a formação destes grupos mais adiante. 133 Em 2003, no 30° aniversário do golpe, os EUA liberaram mais de 24000 documentos de seu governo – documentos que antes foram classificados como “secretos”. Estes documentos foram publicizados como resposta a petição de juízes espanhóis que preparavam o caso contra Pinochet depois de sua detenção em 1998 em Londres. Na verdade, os tais documentos secretos desclassificados incluíam ações encobertas dos EUA no Chile ao longo das décadas de 60 e 70. Podem ser encontrados no livro The Pinochet File: A Declassified Dossier on Atrocity and Accoutability, NY, New Press, 2003 ou no sítio eletrônico www.nsarchive.org.

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desde abril de 1962 os EUA iniciaram o financiamento à DC e uma das razões foi impedir a

vitória do Partido Comunista nas eleições em 1964. De acordo com o informe:

The Christian Democratic Party is the fastest growing party in Chile. Its social program and evangelical fervor has enabled it to compete successfully with the Communists for the votes of students and workers. The Christian Democratic Party is the only non-Communist party in Chile in a position to attack directly the Communist Party at its mass base. This has been demonstrated in the municipal elections of April of last year, in the student elections, and in the fight for control of labor unions, which, though still controlled by the Communists, are showing the signs of Christian Democratic Party inroads.134

Para o governo norte-americano era imprescindível frear a candidatura de Allende

sustentada pelos partidos Comunista e Socialista, a qual estava marcada por um discurso

antiimperialista que não apenas se contrapunha ao poder hegemônico da potência do Norte,

mas também aos interesses das empresas estrangeiras, em sua maioria norte-americanas, que

haviam investido grandes somas de capital no país. Em 1964 a DC lançaria seu candidato à

presidência por meio do lema “Revolução em Liberdade” que, de forma indireta, criticava a

via revolucionária de Fidel Castro. O programa defendia, dentre outros pontos, a reforma

agrária para a eliminação do latifúndio improdutivo, a chilenización do cobre a partir da

associação do Estado chileno com empresas norte-americanas, o incentivo às indústrias

modernas e às exportações industriais. A vitória de Eduardo Frei Montalva, com maioria

absoluta, também é explicada pelo apoio dado pela direita tradicional, que retirara a sua

candidatura própria para evitar o “mal maior” representado por uma eventual vitória do

candidato da FRAP (Frente de Ação Popular – coalizão dos partidos de esquerda).

Além do financiamento à DC, foi montada uma campanha massiva de propaganda

anticomunista chamada “Campanha do Terror”. Esta se baseava na dicotomia derivada da

Guerra Fria e induzia o eleitor a escolher entre a “democracia” e o “totalitarismo”. Tratava-se

de uma campanha dirigida principalmente às mulheres, em sua condição de mães e donas-de-

casa, que denunciava nas rádios, jornais, revistas e muros os perigos da opção marxista para a

sociedade chilena. A atuação da CIA no Chile vinha desde 1961, data em que foram

estabelecidos os primeiros contatos com os partidos antimarxistas, além do financiamento e

criação de organizações sociais, meios de comunicação e propaganda.135

A vitória de Frei com 56% dos votos (a maior porcentagem de votos obtida em

eleições presidenciais no Chile até os dias de hoje) foi seguida por um caminho conturbado de

134 Selected Documents on the 1964 Election in Chile from Foreign Relations, 1964-1968, Volume XXXI, South and Central America; Mexico. Disponível em www.nsarchive.org. Acesso em: 3 mai 2007. 135 CORREA; FIGUEROA et al, 2005, p.242.

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implementação de seu projeto político. O governo sofreu oposição tanto da direita quanto da

esquerda, além da intensificação dos conflitos em seu núcleo dirigente. O conjunto das

reformas econômicas levadas a cabo pela equipe de Frei apresentava dois objetivos: diminuir

os desequilíbrios sócio-econômicos para alcançar um maior desenvolvimento da economia e

incentivar a participação política de setores sociais que até então se encontravam excluídos de

representação institucional. Isso se daria por meio do fomento ao sindicalismo e da criação de

novas instâncias de participação no âmbito dos bairros, como Juntas de Vizinhos e Centros de

Mães. Tratava-se, neste caso, do programa de “Promoção Popular”, iniciativa oriunda dos

jesuítas nos anos anteriores e que se sustentava no rechaço à política das “cúpulas”, na medida

em que esta restringia a participação política apenas àqueles setores organizados em partidos

políticos. Para viabilizar seu projeto, a DC defendeu a reorganização de duas áreas

econômicas fundamentais: a mineração e a agricultura.

Quanto à primeira, sabe-se que até 1964 cerca de 85% da produção de cobre chileno se

encontrava sob o controle de grandes companhias norte-americanas, como a Kennecott e a

Anaconda. Sendo este o principal produto de exportação do país, a administração Frei propôs

a participação mais ativa do Estado na produção mineira, respeitando a iniciativa privada. A

“chilenização” do cobre tinha como objetivo assegurar o controle estatal sobre a maior parte

das ações das grandes companhias produtoras do cobre para, dessa forma, ampliar a produção,

melhorar a situação dos trabalhadores e outorgar um papel mais ativo do Estado na

comercialização. No entanto, o modelo de empresa mista acabou não trazendo tantos êxitos

para o país, pois o governo se subordinou às reivindicações das empresas estrangeiras, que

continuaram a manter o total controle administrativo do ramo. Isso gerou grandes

insatisfações não apenas na oposição de esquerda, mas também em alguns setores do PDC.

Com relação ao projeto de reforma agrária, o governo pretendia fazer uma profunda

redistribuição de terras com o objetivo de modernizar os processos produtivos e aumentar

substancialmente a produção agrícola. Também pretendia “cumprir com o princípio de

justiça” ao entregar a terra a quem nela trabalhava. O projeto apontava para a incorporação da

população camponesa na vida política, “libertando-a do tradicional paternalismo com que os

latifundiários a haviam subordinado”.136 Além disso, a reforma do campo pretendia legalizar

os sindicatos rurais para modernizar as relações de trabalho agrícolas. Tudo isso garantiria aos

democrata-cristãos a criação de base eleitoral sólida nas regiões rurais e o afastamento dos

partidos de esquerda. A partir de 1966, no entanto, a organização dos sindicatos rurais e o

136 Ibidem, p.248.

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aumento das expectativas dos camponeses em serem proprietários de terra proporcionaram

um aumento vertiginoso das greves no campo.

Em 1965 os democrata-cristãos conseguiram obter uma grande percentagem de

cadeiras na Câmara de Deputados, o que significou um desastre para os partidos da direita

tradicional. Para alguns autores como Correa, o enfraquecimento de liberais e conservadores

deve ser entendido a partir da irrupção das massas na vida política, o que pôs em xeque a

política das “cúpulas” que prevalecia até então. A DC se constituiu enquanto um partido

“novo” e “moderno”, com grande poder de atração sobre os trabalhadores e os católicos de

várias classes sociais. O apoio dirigido à ele pelos EUA e pela Igreja também contribuíram

para o enfraquecimento da direita tradicional e de seu projeto vinculado ao passado

republicano e apelidado de “momio, reflejando con ello una percepción de que la tradición era

sinónimo de inamovilidad y de muerte”.137 Em 1966, conservadores e liberais somados aos

setores nacionalistas e nazistas fundariam o Partido Nacional (PN).138 Vendo fechados seus

canais tradicionais de negociação no Parlamento, a direita reorganizada apelou para outros

caminhos como a ação direta, que caracterizaria a sua atuação durante todo o governo de

Salvador Allende.139

A política de reforma agrária do governo Frei provocou reações por parte de setores da

burguesia, os quais se sentiram ameaçados com relação às expropriações de terra e à perda de

sua base eleitoral rural. Além da formação do PN em 1966, surgiram outras organizações para

137 CORREA SUTIL, 2004, p.265. 138 O Partido Nacional faria duras críticas ao governo da DC, principalmente com relação à Reforma Agrária e às mudanças na política tributária que afetavam as grandes propriedades rurais e urbanas. Também o acusou de estar abrindo caminho para o comunismo. O PN conseguiu ganhar os setores das classes médias por meio do discurso da “ordem” e da “autoridade” – considerados pré-requisitos para a prosperidade econômica e o desenvolvimento da iniciativa individual. Sua estratégia era formar um bloco amplo com a presença das FFAA, empresários e setores conservadores das classes médias. Nos comícios presidenciais de 1970, o PN expressou suas concepções por meio do documento “La Nueva República: respuesta al desafio de Chile”. Neste documento os nacionalistas apontavam a dicotomia “teorias estrangeiras versus realidade nacional”, identificando os partidos de esquerda e a própria DC como “portadores de uma prática decadente e destruidora da nacionalidade”. Consideravam os militares como uma força ligada ao “ser nacional”, capaz de servir aos fins de uma reação retificadora. Em termos de política econômica defendiam a “modernização técnico-científica” pela via da iniciativa privada, livre do controle burocrático-estatal. Em 1973, após efetivado o golpe militar, o Partido Nacional se desfez, muitos de seus membros ocuparam cargos no novo governo e na década de 1980 antigos nacionalistas do PN ingressaram na chamada Renovación Nacional (RN) – partido criado para enfrentar as novas etapas da abertura política. Sobre o PN ver: CORVALÁN MARQUEZ, Luis. Del anticapitalismo al neoliberalismo en Chile. Op. cit., p.101-106. Sobre a nova direita chilena ver: CORREA SUTIL, Sofía. Op. cit., p.279-284. 139 Como aponta Correa, nos anos 1960 se desenvolveu, juntamente com a formação do Partido Nacional, um grupo de jovens da Universidade Católica proveniente do Partido Conservador que, inspirados no corporativismo católico, iniciaram o movimento gremialista. Estes jovens faziam uma dura crítica aos partidos políticos e reivindicavam a autonomia dos “gremios”. Este grupo se somou à atuação dos economistas neoliberais formados na pós-graduação da Universidade de Chicago e se opuseram à reforma universitária realizada nestes anos. Este foi o primeiro passo para a formação de uma frente comum em torno ao projeto neoliberal colocado em prática durante a ditadura. Ver CORREA SUTIL, 2004, p.268-269.

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se opor ao projeto, defender o direito de propriedade e buscar outros aliados políticos entre os

setores da classe média. Dentre elas estavam os gremialistas da Universidade Católica e o

grupo Fiducia, organização militante de jovens católicos ligados internacionalmente à

fundação Tradição, Família e Propriedade (TFP). Este grupo começou a aparecer em 1963

por meio da publicação de uma revista que levava aquele nome. Os editores haviam

estabelecido contato com o brasileiro Plinio Correa de Oliveira, autor integralista que

rechaçava o “processo revolucionário”, o qual, segundo ele, tinha começado com o

Renascimento, seguido com a Reforma e o Liberalismo e alcançado seu ponto alto com o

marxismo. Defendiam a “hierarquia natural” da sociedade contra qualquer tipo de

igualitarismo e a “contra-revolução” para restaurar a ordem legítima baseada na cristandade

medieval.140 O grupo Fiducia atacaria duramente o governo Frei e o episcopado chileno por

“prepararem o terreno para a coletivização marxista” com a reforma agrária. Segundo esta

concepção, os bispos estariam passando por cima dos dogmas católicos e “destruindo” a

Igreja Católica do Chile.141

Como aponta Ricardo Yocelevsky, a implantação do projeto “Revolução em

Liberdade” acentuou as contradições no seio da burguesia chilena. Os setores empresariais se

dividiram entre a defesa do “estatismo” dos democrata-cristãos e do “anti-estatismo” dos

setores ligados ao capital monopolista. Para manter a ação do Estado nos limites de seus

interesses, alguns destes grupos, vinculados ao capital estrangeiro, ingressaram no governo e

foram ganhando influência no interior do próprio PDC. O resultado, segundo o autor, foi a

paralisação do programa de reformas a partir de 1967.142

De forma resumida, poderíamos caracterizar o tipo de desenvolvimento econômico

privilegiado por Frei pela ênfase dada à industrialização, particularmente a de bens de

consumo duráveis e infra-estrutura, com a participação do Estado em conjunto com as

transnacionais. Este modelo provocou a concentração de renda, com a acumulação de capital

(principalmente o multinacional-associado) e a aglomeração de produtos no mercado que não

podiam ser consumidos pela maioria da população.143 Os acordos com o governo norte-

americano e com a classe dominante impediram que o governo aprofundasse as reformas e,

140 Em um livro de Plinio Correa sobre a TFP chilena, o autor chama Frei de “Kerensky chileno” e afirma que “a ascensão do PDC ao poder não era senão a primeira etapa da marcha do Chile para o comunismo”. Ver OLIVEIRA, Plinio Corrêa de. A Igreja ante a escalada da ameaça comunista. Apelo aos bispos silenciosos. São Paulo: editora Vera Cruz, 1976, p.121. 141 Idem, p.122. 142 YOCELEVSKY, Ricardo A. Los proyectos políticos de los años sesenta. In: ZAPATA, Francisco (Org.). Frágiles Suturas. Chile a treinta años del gobierno de Salvador Allende. México, D.F.; Chile, Santiago: Fondo de Cultura Económica, 2006. p.199-218. 143 Ibidem, p.210.

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em alguns casos, até de iniciá-las. Ao reter as reformas, Frei optou por seguir com um

discurso demagógico direcionado aos setores populares e acabou se convertendo na melhor

opção para os setores modernos da burguesia chilena.

A opção por esta política gerou conflitos acirrados no interior do partido, já dividido

desde os primeiros anos da década de 1960, entre “oficialistas” (ala ligada a Frei que se

tornou majoritária na segunda metade do governo); “inconformistas” ou “rebeldes” (ala mais

à esquerda que defendia o aprofundamento das reformas, formada por Jacques Chonchol,

Julio Silva Solar, Rafael Gumucio, entre outros) e “falangistas” (ala centrista).144 Em 1969

uma fração do grupo “inconformista” rompeu com o partido para fundar o Movimento de

Ação Popular Unitário (MAPU). Este partido buscaria superar o divórcio entre cristianismo e

socialismo marxista, defendendo, desde o início, um projeto socialista.

A partir de 1967 as contradições do governo se mostravam insuperáveis e o número de

ocupações de terrenos urbanos, protestos e greves aumentara. Diante disso, a administração de

Frei recorreu à força pública para aplicar a lei e manter a ordem. As mudanças nos rumos do

governo e a intensificação das mobilizações sociais também acirraram os debates no interior

da Igreja Católica.

Apesar da hierarquia católica lançar seus posicionamentos oficiais por meio de

declarações episcopais e cartas pastorais, alguns bispos apoiaram os diversos movimentos que

se definiam no interior da instituição. Contra a posição “reformista” adotada por grande parte

do episcopado e do governo Frei, se incorporaria o bispo de La Serena, Monsenhor Alfredo

Cifuentes. Este bispo apoiava a organização católica Fiducia, a qual se apresentava como um

grupo religioso e “não político”. Seus integrantes se expressavam por meio de manifestos, os

quais rechaçavam os documentos episcopais de 1962, apesar de não fazerem nenhuma

referência direta à hierarquia. Por outro lado, como afirma Araya, a hierarquia não podia

impugnar um documento que tinha sido assinado por um bispo.145 Apesar de não proibir a

manifestação político-religiosa da TFP, o episcopado emitiu um pronunciamento na Revista

Católica no qual desaprovava o conteúdo dos panfletos, procurando se distanciar da

organização:

La Autoridad Eclesiástica de Santiago, en cumplimiento de su deber pastoral, manifiesta a los fieles cristianos y a la opinión pública lo siguiente:

144 Cf. GRAYSON, 1968, p.397-399. 145 ARAYA, 1986, p.102.

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Na conjuntura identificada pela Conferência Episcopal, os grupos privilegiados

economicamente, tais como políticos, empresários e latifundiários, teriam responsabilidade

pelo aumento da violência como meio para se exigir mudanças eficazes, pois não faziam

concessões ao “povo”, de forma a manter intactos seus privilégios e bens. Nesse sentido, o

episcopado afirmou:

Habrá tanta más violencia cuanta mayor resistencia opongan aquellos grupos privilegiados para que se hagan comunes los beneficios que hoy día sólo son patrimonio de ellos porque cada derecho usurpado es una forma de violencia que engendrará la represalia.149

Ao falar em nome de toda “comunidade nacional”, isto é, como representantes da

vontade e da voz do “povo”, os bispos sugeriram a “convivência” como forma de aceitação e

respeito de todos por todos. Em outras palavras, a saída encontrada e defendida pela voz

oficial da Igreja em meio a um contexto marcado pela crescente mobilização social das

classes populares e da politização da própria instituição católica foi pregar a harmonia de

classes contra a exacerbação do conflito, o qual poderia levar a uma ruptura com a “ordem

democrática”. A harmonia deveria ser conquistada por meio de um maior desenvolvimento

nacional que estaria sendo obstruído com a transferência sistemática de capital para o exterior

e com a fuga de profissionais chilenos, formados “custosamente” pelas universidades do país.

Em 1968 surgiria um grupo católico de esquerda formado a partir de um movimento

de ocupação da catedral de Santiago. Denominado Iglesia Joven, o grupo criticara a estrutura

hierárquica da Igreja e seu distanciamento real dos setores populares. É importante aqui trazer

à tona a reação da hierarquia da Igreja diante do movimento de ocupação, pois tal iniciativa se

diferenciou da resposta dada no mesmo mês à intervenção do grupo Fiducia. Após o

incidente, os bispos tornaram público os seguintes pronunciamentos:

Ante los hechos producidos en la madrugada de hoy en la Iglesia Catedral de Santiago, los Vicarios de la Arquidiócesis en ausencia del señor Cardenal por labores pastorales en la zona rural lamentan y condenan profundamente la forma en que se ha procedido, reñida con el espíritu del Evangelio.150

Los sacerdotes autores de los hechos ocurridos el domingo último en la Iglesia Catedral de Santiago han sido suspendidos de sus funciones ministeriales por orden de la autoridad eclesiástica.151

149 Ibid., p.93. 150 ARIZTÍA, Fernando et al. Declaración del arzobispado sobre los sucesos de la catedral (12 ago. 1968). Revista Católica, Santiago do Chile, ano LXVII, n. 1011, p.5480, jul./ago. 1968. 151 MOLINA S., Augusto; CUITIÑO C., Rafael. Suspensión a los sacerdotes que intervinieron en los sucesos de la catedral. Declaración del Sr. Cardenal y del cabildo metropolitano (13 ago. 1968). Revista Católica, Santiago do Chile, ano LXVII, n. 1011, p.5480-5482, jul./ago. 1968.

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Este pequeño grupo que quiere cambios radicales y bruscos debe saber que tales medidas no deben ser eficaces, sino, por el contrario, causa efectos desastrosos al vulnerar el principio de respeto a la Iglesia.152

Como evidenciam os documentos, o episcopado optou pela suspensão dos sacerdotes

responsáveis pelo ato, afirmando que eles haviam se separado da “comunhão com seu bispo”

e, portanto, não poderiam continuar exercendo sua função sacerdotal no interior da instituição

católica.

Para o autor Pacheco Pastene, a hierarquia teve uma atitude acertada com relação ao

grupo Iglesia Joven pois “estava aberta ao diálogo e às mudanças” e não poderia “se

comprometer politicamente”, logo, as ações do grupo ser-lhe-iam “inaceitáveis”.153 O autor

mais uma vez parece justificar a atitude dos bispos, defendendo a repressão aos responsáveis

pela manifestação e o não envolvimento da hierarquia com a política. Sabe-se, no entanto, que

as ações do episcopado com relação aos diferentes grupos católicos foram diferenciadas.

Apesar dos bispos terem condenado tanto a TFP quanto a Iglesia Joven, apenas os últimos

foram suspensos. Este fato não foi apresentado pelos estudiosos da Igreja Católica do Chile.

Já o autor Brian Smith concentrou a sua análise sobre o período nas declarações

episcopais, afirmando que a partir de 1968 estas se mostravam mais distantes do

posicionamento da DC, refletindo uma intenção dos bispos de cumprir outro papel na

sociedade chilena – de maior proximidade com a luta dos “excluídos”. O episcopado deixara

de condenar veementemente o marxismo, passando a defender a paz e os “processos

democráticos”.154

Compreendemos que a polarização no âmbito clerical gerou uma série de críticas à

autoridade da Igreja. Estudantes e clérigos ativos no movimento estudapelumda T30U(D)n5(i)-2.0019v3(e)4(r)2.9980posidaa

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Os documentos dos bispos de 1969 se caracterizaram pela defesa da unidade da Igreja

contra a sua instrumentalização pelos partidos de esquerda e pela ênfase no “regime

democrático”, como apontou Smith. Ao final do mandato de Frei, a Igreja se encontrava

bastante dividida internamente, resultado do acirramento das contradições sociais no país. A

preocupação dos bispos era, portanto, com relação à preservação da unidade da instituição e

com a manutenção de um regime democrático sem “tantos” conflitos sociais, que garantisse a

plena liberdade de atuação da Igreja e de sua influência na sociedade chilena.

Em Declaración de los Obispos sobre los problemas de la actualidad, o episcopado

reconheceu a participação dos católicos nos processos sociais vividos pelo país, na luta por

mudanças e na crítica às classes dominantes. Apontaram que, ao longo deste caminho, muitos

fiéis se distanciaram da Igreja, optando por uma atuação política em partidos e movimentos de

esquerda. Com relação aos perigos de instrumentalização política da instituição católica, os

bispos afirmaram:

No nos dejemos instrumentalizar por quienes nos llaman a unirnos a ellos en la empresa de liberar al hombre por caminos que pasan por el odio, el ateísmo y la reducción del cristianismo a mera ideología o “alienación”. Somos nosotros quienes debemos ejercer con firmeza y lucidez nuestra fe en el porvenir absoluto del amor testificado por la comunidad eclesial a la que pertenecemos y desalinear así a quienes esperan otros mesías.156

O trecho evidencia que o temor de instrumentalização da Igreja se deu principalmente

com relação à esquerda política. Percebemos que o rechaço aos partidos marxistas continuava

existindo por parte dos bispos, apesar destes últimos não citarem nomes. Diferentemente do

que afirmou Smith, as organizações de esquerda ainda constituíam um fator de “competição”

para os dirigentes da Igreja, pois ameaçavam a sua unidade e afastavam seus fiéis. A solução

apontada pelo episcopado para o problema da fragmentação política dos setores católicos foi a

unidade:

A nuestros sacerdotes, religiosas y fieles pedimos comprensión y su fraternal colaboración para construir día a día la unidad de la Iglesia.157

Mais uma vez é importante destacar a ausência de menção nos documentos episcopais

aos grupos ultra-direitistas que se formavam e ganhavam espaço entre uma parte dos

156 Declaración de los Obispos de Chile sobre los problemas de la actualidad (ago. 1969). In: ALIAGA ROJAS et al (Org.). Op. cit., p. 115-125. 157 Ibidem, p.122.

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católicos, como o Fiducia e o Opus Dei.158 O que era visto como ameaça pela hierarquia

eclesiástica era apenas a esquerda e não a direita política, a qual contava com inúmeros

quadros católicos, muitos pertencentes ao Partido Nacional. O apelo à unidade foi visto por

alguns católicos ligados a organizações e movimentos de esquerda como uma forma de

repreensão por parte da alta hierarquia, isto é, como exigência de disciplina e obediência aos

superiores, o que representava afirmar uma orientação de afastamento do engajamento

político direto.

No pronunciamento seguinte, intitulado Declaración Episcopal sobre la situación del

país, os bispos defenderam a manutenção das liberdades democráticas contra qualquer regime

“imposto pela força”. A declaração constituiu uma resposta ao incidente denominado

“Tacnazo” – levante militar protagonizado pelo general Roberto Viaux contra as baixas

remunerações dos militares. A manifestação foi rapidamente controlada pelo general

Schneider – nomeado pelo presidente Frei para enfrentar as possíveis insubordinações no

interior das tropas. A chamada doutrina Schneider fazia referência à não-intervenção dos

militares na vida política do país e reivindicava o apoio irrestrito à Constituição.159 O

incidente demonstrava o nível de politização da sociedade chilena, o qual se intensificaria no

ano seguinte com as eleições presidenciais. O governo interpretou o movimento militar como

um atentado ao sistema democrático e como um ato de subversão.

Consideramos que este documento episcopal é importante para a nossa análise, pois

nos permite identificar a concepção de democracia defendida pelos bispos neste contexto. Em

termos de análise conjuntural, o pronunciamento ressalta o clima de “intranqüilidade e

insegurança políticas” do país e o descontentamento de alguns grupos com as limitações do

sistema democrático. Estes grupos apresentariam, cada vez mais, a esperança em “soluções de

força”, defendendo a ruptura radical com o sistema capitalista para a construção de uma

sociedade mais justa. Os bispos também demonstraram ter consciência dos golpes militares

ocorridos em outros países da América Latina, afirmando que estes suspenderam as liberdades

democráticas em nome do “benefício de pequenos grupos, militares ou civis, políticos ou

158 Opus Dei é um movimento apostólico que surgiu em 1928 na Espanha e se espalhou para várias partes do mundo católico após a II Guerra Mundial. Tinha como objetivo formar profissionais e técnicos católicos que pudessem se infiltrar em instituições seculares e influenciá-las sob uma perspectiva católica tradicionalista. Em geral, seus membros eram provenientes das classes altas e médias e o movimento apresentava um caráter extremamente autoritário, machista, secreto e corporativista. No Chile, tanto a Opus Dei quanto a TFP se declaravam “apolíticos”, mas reivindicavam o retorno da ordem política anterior à Frei. Apesar de não serem rechaçados pela Igreja, também não eram oficialmente aceitos pelos bispos. Muitos deles apoiaram a candidatura de Alessandri pelo Partido Nacional em 1970 como a melhor forma de defender a ordem e respeitar a propriedade privada. Sobre o tema ver SMITH, 1982, p.140. 159 Interessante lembrar que o general Schneider, conhecido por sua inclinação ao “legalismo”, seria assassinado após o golpe de 1973 pela polícia política de Pinochet.

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antipolíticos, que pretendem decidir pelo povo”.160 A hierarquia apresentou a sua posição

contrária às possíveis tentativas golpistas (da direita ou da esquerda, militares ou não) e o seu

entendimento sobre democracia.

No trecho abaixo os bispos explicitaram claramente a sua desaprovação com relação

aos golpes de Estado:

(...) creemos que la supresión del sistema democrático, sea por partidos políticos, por grupos terroristas o por las fuerzas armadas traería tales daños a la nación, a las instituciones y organizaciones nacidas de la voluntad libre de los chilenos, que nos parece indispensable recordar ahora el valor profundamente humano de la convivencia democrática.161

Os bispos entenderam que a única garantia de liberdade e de respeito ao homem era a

“participação de todos os membros da sociedade política na tomada de decisões”. Nesse

sentido, o clima de inquietação social e político vivido pelo país teria sido decorrente da

ausência de “democracia real”, definida como “participação ampla do povo nas tarefas e bens

da nação”. Em seguida lançaram a questão:

Si nuestra democracia es débil aún y a veces solo formal, no es precisamente porque la justicia, el bienestar y la educación son todavía patrimonio de grupos minoristas?162

Apesar de reconhecerem o distanciamento da sociedade chilena de um regime de fato

democrático, rechaçaram absolutamente qualquer tentativa de mudança por meio da força e da

violência – fato que só poderia trazer “novos males para o país”. Em seguida, esclareceram o

que consideravam um regime de força e o porquê de sua reprovação:

Cuando se desata el dinamismo de la fuerza nadie puede asegurar su control final. La imposición de una política por el terror, por la dictadura o por las armas, trae consigo o la represión brutal de los que se oponen, y la supresión de todas las libertades consideradas peligrosas por los que detentan el poder. El país entraría en la vía de los juicios políticos, de las relegaciones, de las injusticias flagrantes, de la supresión de toda prensa libre, de toda posibilidad de defenderse, de las sospechas, de las calumnias, y por último del paredón.163

De forma simplificada, poderíamos confirmar aquilo que viemos afirmando desde o

início do capítulo, de que na década de 1960 a alta hierarquia católica chilena se empenhou na

defesa de reformas que proporcionassem a melhora das condições de vida da maioria da

160 Declaración episcopal sobre la situación del país (22 dez. 1969). In: ALIAGA ROJAS, 1974, p.125. 161 Ibidem. 162 Ibid. 163 Ibid.

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população e possibilitassem o enfraquecimento de saídas que estimulassem qualquer tipo de

ruptura. Num contexto de Guerra Fria, esta opção se somou, inicialmente, à política norte-

americana de prevenção contra a influência cubana, ao projeto desenvolvimentista dos

cepalinos e ao programa da DC. Na medida em que estes projetos passaram a não dar conta

das demandas sociais das classes populares e que houve um acirramento das contradições

sociais e conflitos políticos, a alta hierarquia da Igreja se encontrou num grande impasse. Os

bispos se viram incapazes de conter a crescente politização e fragmentação dos setores

católicos e, como representantes da Igreja institucional, sentiram a ameaça do avanço da luta

de classes.

Ao concluir o documento, os bispos fizeram um apelo para que todos os chilenos,

principalmente os “políticos”, contribuíssem para o “aperfeiçoamento” da convivência

democrática. Aqui a “democracia real” tornara-se sinônimo de realização do “bem comum”,

concepção relacionada às idéias de “reconciliação”, “convivência” e “harmonia”. A atuação

política foi vista como desagregadora na medida em que reforçava as “ambições partidárias” e

os “interesses pessoais”. Os “políticos”, eleitos pelo conjunto da “comunidade nacional”,

deveriam superar suas disputas mesquinhas para realizar o “bem de todo povo”. Da mesma

forma, as organizações sociais e sindicatos deveriam “trabalhar pela defesa de suas

conquistas”, insistindo mais nos elementos que os unificavam do que nos que os separavam.

As FFAA, por sua vez, deveriam “ser mais responsáveis com a missão que a nação lhes

confiou” de modo a encontrar uma forma adequada de se integrar às grandes tarefas

nacionais. Por último, os bispos reivindicaram a paz nas eleições presidenciais de 1970 e o

esforço de todos no sentido de evitar a divisão da sociedade chilena:

(...) solicitamos a los políticos para que en la campaña electoral que se aproxima mantengan la paz, el respeto por las ideas y las personas, procurando que esta lucha electoral sea un ejemplo más de verdadera democracia, de lección cívica sin que divida a la comunidad chilena en sectores irreconciliables. 164

No capítulo 3 aprofundaremos a análise sobre a concepção de democracia veiculada

pelos bispos chilenos. Por ora, é importante colocar que a partir da segunda metade do

governo Frei, a alta hierarquia eclesiástica buscou distanciar a sua imagem daquele partido

como forma de evitar as constantes críticas que recebera de distintos grupos católicos. Os

documentos episcopais publicizados nos últimos anos da década de 1960 revelam o incômodo

da Igreja diante das mobilizações sociais do país e em seu interior. Para isso, os bispos

164 Declaración episcopal sobre la situación del país (22 dez. 1969). Op. cit., p.125.

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defenderam o aprofundamento das reformas, a “conciliação nacional” e a consolidação da

“democracia real”.

Com relação à DC, consideramos que de 1964 a 1970, os democrata-cristãos não

conseguiram se impor como uma fórmula politicamente estável. Mesmo buscando um

discurso antioligárquico e desenvolvimentista, a DC não aprofundou as reformas estruturais

que defendia. No campo, tornou-se impossível ao governo sustentar os efeitos políticos da

reforma agrária - iniciativa que afetava diretamente o núcleo tradicional da classe dominante e

criava uma expectativa crescente nos camponeses, os quais se encontravam organizados

politicamente a partir de 1964. Como apontou Valenzuela Feijóo, o governo Frei foi uma

tentativa de “reforma burguesa” por meio de mudanças na propriedade tradicional do setor

agrário; de captação de uma maior parte do excedente do setor exportador e de avanços na

industrialização do Chile. Estas medidas acabaram cindindo o bloco dominante e

impulsionando também os movimentos sociais. Frente ao avanço popular, o reformismo de

Frei passou a fazer uso da repressão violenta e o país foi palco de assassinatos de operários

das minas de cobre, de camponeses, pobladores do sul do país e estudantes.165

Nestes anos, se tornaram evidentes os limites tanto da modernização econômica,

quanto dos avanços referentes à justiça social. O “terceirismo católico”, levado a cabo pelo

PDC, apresentou fragilidades políticas claras ao tentar ser aplicado. O partido assistiu à saída

de muitos de seus militantes em 1969, que viram com desconfiança as moderadas medidas

sociais do governo Frei.

Diante do quadro traçado, poderíamos entender os bispos chilenos como “intelectuais

tradicionais” no sentido gramsciano do termo, pois apesar de ao longo de todo processo

político nacional se afirmarem como representantes “apolíticos”, ligados a uma instituição

que buscava a “salvação universal” e que, portanto, se encontrava acima da luta política,

difundiram, na década de 1960, um projeto de sociedade que coincidia e fortalecia o projeto

político da Democracia Cristã. Vimos também o significado da defesa desta opção em um

contexto de Guerra Fria e sua proximidade com a política externa traçada pelo governo norte-

americano para a América Latina, além dos benefícios trazidos a setores modernos da

burguesia com a implantação de tal projeto.

Procuramos apresentar os postulados da DC, a composição social deste partido e o

resultado econômico do governo Frei, o qual privilegiou o setor mais dinâmico da burguesia

165 VALENZUELA FEIJÓO, José. El gobierno de Allende: aspectos económicos. In: ZAPATA, Francisco (Org.) Frágiles Suturas. Chile a treinta años del gobierno de Salvador Allende. México, D.F.: El Colegio del México/Fondo de Cultura Económica, 2006. p.283-310.

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em contraposição a uma política que beneficiasse as classes populares, ao contrário da idéia

de “multiclassismo” que apresentara em seu programa. Desde a segunda metade da década de

1950, a Igreja Católica do Chile vinha se aproximando da linha programática dos ainda jovens

democrata-cristãos, fator que possibilitou a atuação e a formação conjunta nos movimentos

apostólicos e na Universidade Católica, do clero, laicato e militantes democrata-cristãos.

Muitos leigos que animavam estes movimentos apostólicos posteriormente ocuparam cargos

no governo Frei e contribuíram para a construção de uma base social significativa para o PDC

dentre as classes populares. Outros, particularmente membros do clero, ocuparam cargos na

alta hierarquia da Igreja quando da substituição de seus antigos membros por novos. De fato,

podemos dizer, assim como outros autores o fizeram, que houve uma grande aproximação

entre os intelectuais da Igreja e os membros do PDC.

A alta hierarquia católica, ao atuar em conjunto com a DC, contribuindo para a vitória

eleitoral de Eduardo Frei em 1964 e para a legitimação deste projeto na sociedade chilena em

contraposição a um projeto socialista que vinha ganhando força nos anos anteriores, também

caminhou em aliança com os intelectuais orgânicos de determinada fração da burguesia

representada e beneficiada pelo governo de Frei. Esta aliança não estava dada a priori, foi

construída naquele momento histórico tendo em vista algumas variantes tais como a Guerra

Fria, a eclosão da Revolução Cubana e o gradual crescimento eleitoral da esquerda chilena. A

unidade de interesses representou a defesa de uma opção política na conjuntura vivida pelo

Chile e pelo continente latino-americano na década de 1960.

Os documentos episcopais de 1969 nos ajudam a compreender o papel político da

Igreja naquele contexto, instituição que, por meio de seus próprios intelectuais, defendia a

democracia como o tipo de regime mais adequado para manter a “reconciliação nacional” por

meio de um Estado que proporcionasse o “bem comum”. Nesse sentido, tornaram-se

evidentes não apenas as semelhanças mas também os atritos entre a instituição católica e o

PDC – atores que podem ser aproximados, mas não confundidos.

Vimos que, apesar da concepção teórica funcionalista de democracia levada a cabo

pelo PDC, o governo Frei vivenciou uma enorme contradição, pois sua boa relação com a

diplomacia norte-americana e com a classe dominante chilena lhe impediu de aprofundar as

reformas propostas, reformas estas fundamentais para substituir a esquerda como influência

dominante nos setores populares. O resultado econômico e político do governo da DC

terminou por forçar um aparente afastamento da Igreja Católica com relação a este partido,

considerando a ebulição social que cresceu a partir de 1967 como um elemento que afetou a

unidade interna da instituição católica.

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O distanciamento pontual evidencia que estamos lidando com dois atores políticos

distintos, que mesmo apresentando proximidades de princípios, expressaram comportamentos

diferenciados diante de determinadas conjunturas. Por outro lado, a recusa do marxismo e de

uma saída socialista por meio de uma possível vitória de Salvador Allende nas eleições

presidenciais de 1970, ainda constituía um fator de unidade entre os intelectuais tradicionais

da Igreja e os intelectuais orgânicos da fração da burguesia agrupada na DC.

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Capítulo II

O governo da Unidade Popular, o golpe de 1973 e sua historiografia

O objetivo deste capítulo é analisar a conjuntura de emergência da esquerda no Chile,

bem como a formação da coalizão política que deu origem à Unidade Popular (UP), o

governo de Salvador Allende e articulação do golpe civil-militar de 1973.

A compreensão do papel político desempenhado pela alta hierarquia católica nesta

conjuntura só é possível de ser entendido se antes discorrermos sobre o próprio período vivido

pelo conjunto da sociedade chilena – contexto que serviu de objeto de pesquisa para diversos

estudiosos, principalmente nas décadas de 1970 e 1980.

Entendemos que a conjuntura de ascensão e crise da UP está inserida num processo

comum a toda América Latina marcado pela crise do modelo nacional-reformista166, o qual

precedeu os golpes militares e a consolidação de regimes ditatorial-militares. No entanto, o

Chile apresenta particularidades com relação aos demais países do Cone Sul que, por isso,

merecem ser destacadas.

Nesse sentido, torna-se importante não apenas discorrer sobre a experiência chilena,

como também situá-la historicamente com relação ao processo vivenciado pelos demais

países latino-americanos desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Levando em conta estas considerações, faremos uma breve exposição sobre o contexto

de crise do modelo nacional-reformista na América Latina para, em seguida, destacarmos o

período do governo de Salvador Allende e a articulação do golpe que levou a sua destituição.

Neste item, é nosso intento abordar o processo de formação da UP, os principais aspectos do

governo Allende, a crise política e econômica e a formação da frente heterogênea de

oposição, vitoriosa em setembro de 1973.

No que concerne à constituição da frente civil-militar que derrubou o governo da UP,

daremos especial atenção à participação da empresa jornalística El Mercurio, propriedade da

família Edwards – uma das mais influentes econômica e politicamente no Chile até os dias de

hoje. Dedicaremos um item do presente capítulo para analisar este jornal, procurando

demonstrar o seu papel de “partido” da burguesia chilena no sentido de constituir uma

166 No primeiro capítulo apontamos a forma pela qual utilizaremos o conceito de populismo. Ao longo da dissertação, também nos referiremos a este tipo de regime como “nacional-reformista”, apesar da existência de diferenças entre ambas as denominações. O uso do termo “nacional-reformismo” será melhor explicitado ao longo deste capítulo.

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expressão dos interesses e anseios do conjunto desta classe. Esta análise nos será útil

posteriormente para compararmos o discurso mercurial com os pronunciamentos oficiais da

Igreja Católica do Chile.

Por último, faremos um debate historiográfico sobre o tema do golpe, destacando as

principais obras de autores chilenos que procuraram analisar o significado político e as causas

da derrota da democracia no Chile em 1973. Tentaremos identificar a linha teórica

predominante nestes trabalhos, buscando problematizá-la e apontar caminhos para pesquisas

futuras.

2.1 A América Latina e as transformações no pós-guerra: a crise do nacional-

reformismo

Um dos mais importantes estudos que aborda o sentido histórico dos golpes militares

na América Latina ao longo das décadas de 1960 e 1970 e a origem das ditaduras militares no

continente é o de Guillermo O’Donnell.167 Este autor analisou a emergência dos novos

Estados Burocrático-Autoritários (BA) como uma “resposta a processos de alta e rápida

ativação política do setor popular que é percebida por outros setores como uma ameaça à

continuidade dos parâmetros sócio-econômicos (aumento da inflação, quedas do produto

bruto e na taxa de investimentos, fuga de capitais, déficit na balança de pagamentos e

outros)”.168 Em outras palavras, O’Donnell se referia ao período pré-golpe como uma situação

de crise econômica e política antagônica às necessidades de estabilidade de uma economia

complexa, em especial à economia dos capitalismos dependentes. O autor admite que a crise

que precedeu os golpes assumiu variações de país a país e que esta repercutiu nas

características específicas dos regimes ditatorial-militares consolidados posteriormente. Estes

últimos, em nome da “ordem social” e da “estabilidade” sócio-econômica – condições

necessárias para atrair o capital internacional – se fundamentaram na exclusão do setor

popular e na desarticulação de suas organizações políticas. De forma resumida, poderíamos

dizer que O’Donnell entendeu os golpes como produtos da crise geral de um padrão de

acumulação do capital e da ascensão das classes populares na cena política contemporânea.

Por sua vez, o cientista político chileno Manuel Antonio Garretón,169 ao analisar os

novos regimes militares na América Latina, identifica traços comuns entre os mesmos,

167 O’DONNELL, Guillermo. Reflexões sobre os Estados Autocrático-autoritários. São Paulo: Vértice, 1987. 168 Ibidem, p.22. 169 GARRETÓN, Manuel Antonio. El proceso político chileno. Santiago: Flacso, 1983.

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apresentando uma análise bastante semelhante à do argentino O’Donnell. Na concepção de

Garretón, a emergência dos regimes autoritários constituiu uma resposta à crise política da

sociedade e representou a intenção de materializar um projeto histórico social. A expressão

política desta crise teria sido marcada por mobilização e pressão populares, evidenciando um

momento de enfrentamento entre o movimento popular e os grupos dominantes, os quais

teriam percebido o contexto como “crise de dissolução da ordem vigente”.170 Assim, o autor

privilegia em sua análise a face repressiva do regime ditatorial, afirmando que seu intento de

“colocar ordem, desmobilizar, normalizar e apaziguar” seria resultado da crescente

mobilização das classes trabalhadoras acompanhada de um processo de radicalização

ideológica, polarização e, em alguns casos, de crise do funcionamento da sociedade. Em

seguida o autor expõe, mas não aprofunda, os fatores determinantes do projeto histórico dos

novos regimes, a saber, a crise do capitalismo nacional – marcada pela passagem para uma

fase distinta de seu processo de acumulação e desenvolvimento - e a reestruturação do

capitalismo em nível mundial – a partir do qual se deu uma redefinição do papel dos países

periféricos no sistema capitalista internacional. Nesse sentido, evidenciou-se uma estreita

relação entre o modelo econômico de reestruturação e reinserção capitalista e o modelo

político autoritário dos novos regimes ditatoriais militares. Isso significa que, por um lado, a

crise política e social precedente, marcada por crescentes demandas de democratização e

redistribuição atentava contra a estabilidade exigida pelas novas formas de acumulação. Por

outro lado, a implantação de outras formas de acumulação de capital implicou na

desarticulação das organizações e canais de expressão, pelos quais se exigiam mudanças. O

resultado teria sido a ruptura com as conquistas, expectativas e demandas não apenas dos

chamados setores médios, mas principalmente dos setores populares.171

Analisando o caso brasileiro, René Dreifuss172 compreendeu o mesmo processo como

uma ação de classe, dirigida pela fração da burguesia emergente associada ao capital

multinacional e às corporações burocrático-empresariais em resposta ao regime populista, o

qual, por não conseguir mais atender às demandas dos trabalhadores, possibilitava uma

crescente mobilização política dos mesmos e ameaçava a estabilidade do sistema capitalista.

O estudo de Dreifuss, de grande precisão, também pode nos servir para pensar a emergência

dos regimes ditatorial-militares em outros países da América Latina, já que, apesar das

170 Ibidem, p.70. 171 Ibid., p.73. 172 DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.

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especificidades nacionais, todos eles estavam submetidos a formas semelhantes de

desenvolvimento capitalista dependente.173

É importante compreender que o populismo (ou nacional-reformismo) se formou, na

maior parte do Cone Sul, desde a década de 1930 e este fenômeno esteve inserido no processo

de modernização capitalista vivenciado por estes países. Paralelamente às crises do

capitalismo mundial, os países do continente assistiram à crise do modelo liberal-oligárquico,

baseado no caráter agrário-exportador, juntamente com a perda de poder das oligarquias

exportadoras. A crise de 1929 teria possibilitado que estes países colocassem em prática um

sistema de substituição de importações e privilegiassem uma política de industrialização

nacional. Como afirmou Dreifuss, após a II Guerra Mundial os interesses multinacionais

passaram a reingressar nas economias periféricas, apesar de ainda não possuírem uma

“adequada representação nos canais formuladores de diretrizes políticas”.174 Este é o

momento de consolidação econômica e supremacia política do capital monopolista nos

grandes centros industriais e financeiros caracterizando a nova fase do capitalismo baseada

nas corporações multinacionais. Assim, não apenas o capitalismo brasileiro, mas também o

chileno e o argentino, por exemplo, viriam a ser transnacionais, oligopolistas e subordinados

aos centros de expansão capitalista.175

Podemos dizer que a partir da década de 1950, este tipo de modelo, que se

caracterizou pela forte intervenção do Estado na economia e pela ampliação parcial dos meios

de expressão e organização de setores até então alijados da cena política, começou a declinar.

Sua estrutura contraditória, que combinava por um lado, um fator nacionalista, criador das

bases da industrialização nacional, e por outro, um processo de crescente internacionalização

do capital, explica – conjuntamente com a “ativação dos setores populares”176 – seu declínio

na década de 1960. Como afirmou Dreifuss, “as grandes empresas ‘nacionais’ e os grupos que

as controlavam eram predominantemente multinacionais, firmemente interligadas através de

uma dependência tecnológica ou financeiramente integrados a grupos multinacionais”.177 A

utilização de capital estrangeiro para financiar a indústria nacional e a instalação das

173 Nesse caso, pensamos que as proximidades podem ser traçadas especialmente entre os grandes países do Cone Sul como Brasil, Chile, Argentina e Uruguai. 174 DREIFUSS, René Armand. Op. cit., p.32-33. 175 Ibidem, p.49. 176 A expressão “ativação popular” foi utilizada por Guillermo O’Donnel para caracterizar a “presença no cenário público mas também uma que tende a se exercer continuamente” das classes populares, em especial a classe operária e as classes sindicalizadas dos setores médios, cujas bases de organização não se encontram “totalmente subordinadas ao Estado ou às classes dominantes”. Aqui farei o mesmo uso da expressão para analisar o aprofundamento da luta de classes no Chile. Cf. O’DONNELL, Guillermo. Reflexões sobre os Estados Autocrático-autoritários. São Paulo: Vértice, 1987, p.63. 177 DREIFUSS, 1981, p.51.

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multinacionais nos países periféricos possibilitara a formação de uma nova fração da

burguesia monopolista. Contra os interesses desta nova classe “moderna” estariam as antigas

oligarquias, ligadas a agroexportação, a burguesia produtora de bens de consumo e o

movimento de trabalhadores urbanos e rurais em ascensão. Os interesses do bloco

multinacional-associado objetivavam uma ruptura definitiva do “corporativismo populista”,

visando novos espaços e focos de poder econômico no interior do aparelho de Estado e de

novas formas de “comunicação de classe” com os centros de tomada de decisão.178

Por “bloco multinacional associado” o autor uruguaio entendeu a organização da

chamada intelligentsia empresarial (ou intelectuais orgânicos da burguesia moderna),

formada por diretores das corporações multinacionais, administradores de empresas privadas,

técnicos e executivos estatais que compunham a tecnoburocracia, e oficiais militares. Em

síntese, a ação dos chamados “tecnoempresários”, juntamente com os interesses dos

empresários das multinacionais e empresas associadas formariam um bloco burguês

“modernizante-conservador” que atuaria como oposição à estrutura econômica oligárquico-

industrial e ao regime político populista. Para Dreifuss, os “tecnoempresários” se tornariam as

principais figuras da reação da burguesia contra a ascensão das forças populares no início da

década de 1960, assim como “os articuladores-chave de sua classe na luta pelo poder do

Estado”.179

Com o objetivo de obter um domínio político compatível com sua liderança

econômica, o bloco multinacional e associado se expressaria, num primeiro momento, por

meio de grupos de pressão, federações profissionais de classe, escritórios técnicos e “anéis

burocrático-empresariais” que trabalhariam no sentido de difundir seu conjunto de interesses.

Fracassados os intentos de atuação por meio de canais político-partidários, passariam à

imposição de meios extra-políticos. A articulação de um bloco civil-militar com a presença de

distintas frações da burguesia, subverteria, enfim, a ordem política populista, freando as

aspirações nacional-reformistas.

Ao longo da década de 1960, estas contradições chegariam ao ápice juntamente com a

crise política provocada não apenas pela pressão do grupo multinacional-associado por maior

influência nas diretrizes políticas destes países, mas também pela consolidação e avanço do

movimento operário. Se analisarmos as medidas tomadas por grande parte dos governos de

cunho populista, em função da necessidade destes de atender às reivindicações das massas

populares que os sustentavam, veremos que a maioria das medidas afetava diretamente os

178 Idem, ibidem, p.66. 179 Ibidem, p.73.

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interesses multinacionais. Exemplo disso foram as leis que restringiam as remessas de lucro

das empresas estrangeiras às suas matrizes; o nivelamento, com igualdade de condições, do

capital estrangeiro com o nacional; as nacionalizações dos principais recursos naturais dos

países; o reajuste do salário mínimo; a realização de uma reforma agrária; a limitação do

desconto bancário (e em alguns casos, a estatização dos bancos); a postura independente na

Organização dos Estados Americanos (OEA); a reestruturação dos sistema tributário baseado

na taxação da renda; a reforma educacional que favorecia a participação popular; a

redistribuição de renda por meio de incentivos à educação pública, à assistência médica

gratuita, à habitação popular e ao transporte público; entre outros exemplos.

A realização de mudanças estruturais na economia destes países seria acompanhada

por crises políticas e econômicas marcadas por um aumento desmedido da inflação e por

novas demandas populares. A exigência do grande capital por uma “estabilização” da

economia gerou um maior controle dos salários e o corte das despesas públicas para serviços

sociais. As greves e a tendência estatizante destes governos (Goulart, Perón ou Allende)

“ameaçavam a capacidade de acumulação do Estado em favor da comunidade empresarial”.180

Nos anos 1960, em meio ao acirramento da luta de classes, o populismo, em crise, permitira a

participação e a expressão de demandas dos setores populares e isso foi percebido pelo

conjunto da classe dominante como o início do processo de erosão da ordem capitalista. Este

contexto criou condições para a reconciliação política das diversas frações e setores das

classes dominantes que reagiram de forma unificada à emergência da “sociedade de massas”.

Por fim, tanto no Brasil quanto no Chile, os golpes contra os governos de cunho

“populista” (ou “nacional-reformista”) seriam efetuados por meio de uma política de

desestabilização, em grande parte encoberta, da burguesia contra o Executivo e contra as

organizações das classes subordinadas. O bloco de poder multinacional-associado envolveria

a opinião pública em uma cruzada contra o “caos, a estagnação, a corrupção e a subversão” e

faria uso da intervenção militar como uma forma de árbitro de uma sociedade infestada pela

“desordem”, o que maquiava seu duplo significado:

o de um movimento de classe para conter as forças populares, e outro de ser uma manobra política de uma fração da classe dominante tentando subjugar as forças sócio-econômicas populistas e seu bloco dominante oligárquico. A ação dos militares mostrava que o poder de classe era preparado previamente no interior do Estado.181

180 Ibid., p.135. 181 Ibid., p.143.

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De acordo com esta concepção, a crise do regime político seria materializada pela

aceleração da luta de classes, pelo avanço dos níveis de organização das classes trabalhadoras

e pela ação deliberada do novo bloco de poder multinacional. Soma-se a isso os

desdobramentos da Revolução Cubana no continente, a qual se conformou numa séria ameaça

para a estabilidade dos regimes populistas, para as oligarquias e para o capital monopolista.

Por último, fracassado o projeto da Aliança para o Progresso na América Latina – analisada

por nós no capítulo anterior - o governo norte-americano retornaria ao uso de uma política

abertamente intervencionista e altamente repressiva, formulando doutrinas de contra-

insurgência (de origens bem anteriores) e aparelhando as Forças Armadas destes países para

combater o “inimigo infiltrado”. Os golpes foram, portanto, vitoriosos pela força e os porta-

vozes do novo regime se utilizaram de um discurso que enfatizava temas como a

“reconciliação nacional”, a “paz social”, a defesa da “ordem” e da “democracia”. Derrotadas

as democracias populistas, as ditaduras militares abriram caminho para a construção e

consolidação de um modelo de desenvolvimento capitalista baseado na livre iniciativa, na

concentração de renda, na oligopolização do capital e na centralização do poder.

2.2 A Unidade Popular e o governo Allende

Podemos dizer que o modelo nacional-reformista no Chile teve seu último suspiro a

partir da vitória de Salvador Allende nas eleições presidenciais de 1970 – candidato da

coalizão política intitulada Unidade Popular (UP). Este processo teve seu desfecho em

setembro de 1973 com a efetivação do golpe militar articulado pelo conjunto das frações da

burguesia juntamente com o corpo de oficiais das Forças Armadas. O golpe soterrou a

experiência chilena de construção do socialismo pela via institucional, mas principalmente

significou uma derrota para o conjunto da classe trabalhadora e setores populares, os quais

nos anos seguintes viram destruídas grande parte de suas conquistas históricas.

Inicialmente, é importante destacar que, tal como outros autores,182 não identificamos

o governo Allende como um governo propriamente populista. No entanto, sem podermos nos

deter aqui nas diferenças entre o governo da UP e os governos populistas que dominaram o

cenário latino-americano em especial nas décadas de 1940 e 50, consideramos fundamental,

para o propósito de nosso trabalho, ressaltar o fato de que, tal como os governos populistas, o

governo da UP apoiava-se na colaboração de classes, tanto em seu conteúdo programático,

182 Cf. GARRETÓN, Manuel Antonio; MOULIAN, Tomás. La UP y el conflicto político en Chile. Santiago: Ediciones Mingo, 1983.

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quanto em sua composição política, como veremos um pouco mais à frente. Por este motivo,

utilizaremos a denominação “nacional-reformista”, já que esta nos permite atentar para o fator

“nacional” do governo e sua ação no sentido “chilenizar” os principais recursos naturais do

país, estatizar as empresas e bancos e expropriar os grandes proprietários. O fator “reformista”

nos permite entrever a linha programática do governo Allende, a qual tinha como objetivo

promover mudanças estruturais no país rumo ao socialismo por meio de reformas no sistema

político e econômico com a preservação da legalidade burguesa.

Em outras palavras, tratava-se de um governo que pretendia construir o socialismo no

Chile pela via democrática, isto é, por meio da manutenção e respeito à ordem burguesa e às

diversas instituições do Estado capitalista, tais como o Executivo, o Parlamento, o Poder

Judiciário, a Controlaría Geral da República, o corpo de oficiais das Forças Armadas etc.

Este caminho de revolução “com empanadas e vinho tinto”, como afirmava Allende, se

justificava, para além da linha “etapista” do Partido Comunista chileno (que compunha a UP),

pela crença de longa data na “tradição democrática” do Chile. Esta crença de parte da

esquerda chilena remetia à existência de instituições nacionais fortes e representativas que

poderiam, por meio de mudanças graduais que ampliassem a participação popular, levar o

país ao socialismo sem a necessidade de uma ruptura brusca com a ordem burguesa.183

Não é necessário dizer que a História desmentiu estas construções interpretativas que

apontavam para a solidez das instituições democrático-burguesas no Chile e para o caráter

183 O Partido Comunista chileno foi fundado em 1922 e sua constituição foi determinada primeiramente pela linha da III Internacional e posteriormente pela do PCUS. Em 1932 quando o Chile vivenciou a experiência da República Socialista, o PC defendia a tese de uma ofensiva geral contra o capitalismo em oposição às alianças com setores pequeno-burgueses. Em 1935 com o 7º Congresso da Internacional, o PC chileno passou a defender a tese da Frente Popular. Finalmente, diante da guerra fria, os soviéticos desenvolveram a teoria do papel preponderante da contradição imperialista a qual subordinava ou “inferiorizava”, em ordem de importância, a contradição com as burguesias nacionais. Nesse contexto, se definiu a linha da “Frente Democrática de Libertação” com a aprovação de uma “transição pacífica” para o socialismo. Em suma, podemos dizer que desde 1936 o PC defendia uma frente política ampla que agrupasse o maior número de forças possível e uma via gradual de construção do socialismo. Por sua vez, o Partido Socialista chileno (PS) diferentemente dos países como Itália, França ou Alemanha onde parte da representação da classe operária estava encarnada por uma ala social-democrata no interior do PS, priorizou a unidade de ação com outras forças políticas de representação operária como o PC. O PS era um partido que vinculava a classe operária com profissionais liberais e a pequena burguesia. Em seu interior havia uma influência trotskista por parte de alguns intelectuais o que permitiu, dentre outros fatores, que o PS desenvolvesse uma outra concepção acerca da revolução no Chile, que rechaçava o estalinismo. Por outro lado, a existência de tendências muito diversas no interior deste partido dificultou uma ação mais unificada durante os anos 60 e 70. Desde 1958 os socialistas defendiam a linha da “Frente de Trabalhadores” como alternativa à linha da “Frente de Libertação” na qual enfatizavam a necessidade do caráter armado e socialista da revolução. Em um país como o Chile, onde a esquerda desde 1938 havia ensaiado diversas alianças e compromissos políticos com setores da pequena burguesia, a eclosão da Revolução Cubana apareceu para os socialistas como uma demonstração das possibilidades de luta armada e da necessidade de uma rápida transformação da revolução democrática em socialista. Cf. GARRETÓN, Manuel Antonio; MOULIAN, Tomás. La UP y el conflicto político en Chile. Op. cit., p.140-143.

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profissional e apolítico de suas forças armadas.184 Torna-se importante, a princípio,

compreender a conformação da coalizão que deu origem à Unidade Popular para,

posteriormente, passarmos ao programa levado a cabo por Salvador Allende em 1970 e a

conjuntura que permitiu a sua vitória.

A UP tinha como eixo de sustentação política os tradicionais partidos da esquerda

chilena, o comunista e o socialista. Em aliança com os mesmos, encontravam-se o Partido

Social-Democrata (que organizava a burguesia agrária do sul do país), o Partido Radical

(onde se concentravam setores da pequena e média burguesia e, sobretudo, os funcionários da

administração pública), a Ação Popular Independente (empresários médios), o Movimento de

Ação Popular Unificado (MAPU) e a Esquerda Cristã (IC). Desde a segunda metade da

década de 1930, tanto socialistas quanto comunistas compartilharam uma plataforma política

de caráter reformista, a qual estava centrada na industrialização, na reforma agrária, no

fortalecimento do sindicalismo operário – onde residia a sua principal força – e na

consolidação da intervenção estatal nos processos econômicos. O PC, orientado pela linha de

unidade nacional antifascista, fez a opção “democratizante” que consistia em lutar, em aliança

com setores da burguesia e sob hegemonia do proletariado, pelo aperfeiçoamento das

instituições do Estado, de forma a transformá-lo por dentro a partir da pressão das massas. A

constituição da Frente de Ação Popular (FRAP) em 1957 apontava para esta linha

colaboracionista, conformada desde as primeiras décadas do século XX com os partidos que

representavam os interesses da pequena-burguesia chilena como os radicais (Partido Radical)

e os falangistas (Falange Nacional).

Em meados da década de 1960 o Partido Socialista (PS), influenciado pela Revolução

Cubana e com uma importante influência no movimento operário, passara a questionar a

ênfase na via eleitoral e a ilusão na legalidade burguesa, se definindo em 1967 como um

partido marxista-leninista defensor da luta armada. De acordo com a orientação do PS, a

esquerda chilena não poderia mais se projetar por meio de alianças com setores da burguesia,

expressos no Partido Radical e posteriormente no Partido Democrata Cristão, sendo

necessário conformar uma Frente de Trabalhadores onde estivessem agrupados somente os

partidos que representavam os interesses destes. Esta orientação foi minoritária na

conformação da Unidade Popular.

184 Mais à frente nos debruçaremos sobre algumas obras publicadas durante e depois da ditadura por autores que analisaram o governo de Allende e o golpe militar de 1973. Importante ressaltar que, apesar de a História ter desmentido a “crença” na solidez democrática do Chile, esta interpretação continuou presente na maioria dos estudos, em especial no de Manuel Antonio Garretón, Tomás Moulian e Arturo Valenzuela, e, mais recentemente no de Luís Corvalán Marquez e no trabalho do brasileiro Alberto Aggio.

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A tese da Frente Popular defendida pelo PC obteve maioria no interior da UP e

predominou em 1970. Ela se caracterizou pela defesa de um caminho gradual e institucional

para o socialismo. Sustentado pelos núcleos operários mais tradicionais e por parte da

intelectualidade chilena, o PC defendia a construção do socialismo pela via pacífica, isto é,

por meio da construção de maiorias sociais e políticas expressas eleitoralmente. A partir da

vitória eleitoral, o governo da UP, apoiado na mobilização popular, operaria as

transformações institucionais rumo a um Estado popular sem rupturas com a legalidade. Esta

concepção o impulsionava a buscar alianças sociais e políticas muito amplas que incluíam,

para além do proletariado e camponeses, a pequena-burguesia, as camadas médias e o

empresariado não monopolista. Neste campo de ação, as oligarquias tradicionais e o

imperialismo eram considerados os inimigos principais.185 Apesar de ser militante do Partido

Socialista (PS), Salvador Allende defendia uma linha política que também o colocava junto às

posturas “etapistas” e, portanto, próximas ao PC. Por outro lado, diferentemente do marxismo

soviético, Allende opinava que as chamadas liberdades burguesas e reivindicações do

liberalismo relativas às garantias individuais não constituíam superestruturas do capitalismo e

da dominação burguesa, mas eram conquistas da humanidade e por isso deveriam ser

integradas ao socialismo.186

Esta concepção predominou na conjuntura de 1970, o que se refletiu não apenas no

tipo de aliança, como no conteúdo programático da coalizão de esquerda. Com relação ao

Estado, a UP defendia a sua substituição por outro de caráter popular. Esta transição se daria

de forma gradual e pacífica e não por meio da “ditadura do proletariado”.187 O programa da

UP teve como base, portanto, a defesa da nacionalização da Gran Minería del Cobre, dos

monopólios industriais estratégicos, do comércio exterior, dos bancos, seguros e grandes

empresas relacionadas aos principais eixos da economia, tais como a distribuição, a energia e

o transporte. Todos estes setores passariam a constituir a Área de Propriedade Social que seria

controlada pelo Estado. Além disso, a UP propunha a realização de uma reforma agrária mais

ampla que a realizada pelo governo anterior, uma reestruturação do Poder Legislativo de

modo a substituí-lo por uma Assembléia do Povo e uma maior distribuição da riqueza por

185 Cf. CORVALÁN MARQUEZ, Luis. A treinta años del golpe 11 de septiembre: el imperativo ético de ‘reescribir la historia’. In: ZAPATA, Francisco (compilador). Frágiles Suturas: Chile a treinta años del gobierno de Salvador Allende. México, D.F.: El Colegio del México/Fondo de Cultura Económica, 2006. p.219-258. 186 Ibidem, p.243. 187 VALENZUELA FEIJÓO, José. El gobierno de Allende: aspectos económicos. In: ZAPATA, Francisco (Org.) Op. cit. p.283-310.

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meio de programas específicos nas áreas da saúde, educação e moradia.188 Em conjunto com

estas medidas, defendia-se a manutenção do pluripartidarismo e o pluralismo ideológico

explícito na ampla aliança com a social-democracia. As transformações seriam realizadas pela

via eleitoral, institucional e legal, sem qualquer intenção de promover uma ruptura

revolucionária. Em suma, o objetivo da ala majoritária da UP não era derrotar o sistema

capitalista, mas modificá-lo com vistas a construir um processo de democratização do Estado,

respaldado por reformas sócio-econômicas que garantissem a participação real das forças

populares nos centros de poder.189 Tratava-se de um programa que afetava principalmente os

interesses do setor primário-exportador (ligado a extração do cobre, salitre, ferro etc),

controlado pelo capital norte-americano, além de afetar os interesses da burguesia industrial

monopolista, burguesia financeira e grandes latifundiários.190

Por outro lado, a sua concretização implicava na definição de uma política de alianças

com alguns setores da burguesia de forma a “aproveitar” as contradições que haviam ganhado

terreno no seio desta classe fundamental desde fins da década de 1960. Dentre as frações da

burguesia e da pequena-burguesia aliadas estavam os estratos assalariados, funcionários

públicos e setores ligados a indústria de bens de consumo.191 A definição das três áreas da

economia (privada, mista e estatal), presente no programa da UP, era a expressão

programática desta estratégia. Como afirmou Marini, o propósito do PC (partido mais forte do

bloco) era realmente abrir caminho para o socialismo “pero se enmarcaba en su concepción

rígida de la revolución por etapas por la cual siempre se había guiado. Completar la

revolución burguesa, reformando las estructuras socioeconómicas y el Estado, y ampliar la

188 CORREA, Sofia; FIGUEROA, Consuelo; JOSELYN-HOLT, Alfredo; ROLLE, Claudio; VICUÑA, Manuel. Historia del siglo XX chileno. Op. cit., p.263. 189 Programa Básico de Gobierno de la Unidad Popular. In: GONZALEZ PINO, Miguel & FONTAINE TALAVERA, Arturo (Org.). Los mil dias de Allende. Santiago: Centro de Estudios Publicos, 1997, tomo 2, p.947-960. 190 O governo da UP pode ser aproximado de outros governos de frente popular marcados pela defesa sistemática do aparato de Estado burguês, das Forças Armadas e da burocracia estatal. Desde a década de 1930 os comunistas defenderam esta linha priorizando a unidade contra as forças fascistas. A ascensão dos governos de frente popular como o de Cárdenas no México e Perón na Argentina, mesmo apresentando particularidades, também expressavam a vitória eleitoral das classes populares e a derrota da burguesia num primeiro momento. Este contexto inaugurara uma fase de intensificação da luta de classes e fortes embates que poderiam levar ou à conquista operária do poder, ou à guerra civil e golpes militares. No caso do Chile, o período de ascensão da UP e seus três anos de governo colocaram em crise o regime nacional-reformista, desencadeando um processo revolucionário sem precedentes. No entanto, a insistência por parte do governo na defesa da estrutura burguesa num momento de acirrada polarização, contribuiu, dentre outros fatores, para a posterior vitória das forças conservadoras. 191 VALENZUELA FEIJÓO, José. El gobierno de Allende: aspectos económicos, Op. cit., p.288.

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influencia del Estado sobre el sector privado - tales eran las metas que el partido se proponía

para el período”.192

O contexto da vitória da UP é analisado, como vimos anteriormente, como o resultado

de um processo de mudança estrutural que evidenciava a crise de um modelo de acumulação

de capital. De acordo com Marini, este processo se caracterizou, desde a década de 1960 pelo

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médias ainda eram, em sua maioria, adeptas da permanência do regime democrático. Um

exemplo da divisão interna da burguesia nesse período foi a existência de mais de uma

candidatura das classes dominantes chilenas, o que, segundo muitos analistas, acabou por

possibilitar a vitória de Allende no pleito de setembro de 1970.

A segunda alternativa diante da crise do “Estado de compromisso” seria a adoção, por

parte da esquerda chilena, de um projeto que levasse ao fim da sociedade capitalista por meio

de uma estratégia de ruptura construída pelo conjunto dos trabalhadores e setores populares.

Em 1970 esta alternativa também não era possível de ser realizada tendo em vista a

inexistência de um partido com tradição revolucionária que se diferenciasse, portanto, da

política colaboracionista da esquerda comunista. Como vimos, o projeto levado a cabo pela

esquerda chilena consistia na democratização das instituições existentes no próprio

capitalismo, o que possibilitava a efetivação de mudanças estruturais no sistema, mas não a

sua superação.

A vitória de Allende foi obtida com 36,3% dos votos - porcentagem menor do que a

obtida nas eleições de 1958 - sendo seguida pela de Jorge Alessandri pelo Partido Nacional

(PN) com 34,9% e a de Radomiro Tomic, candidato da Democracia Cristã (PDC), que obteve

27,8%. Tendo em vista que nenhum dos candidatos obtivera a maioria absoluta dos votos,

coube ao Congresso, segundo uma disposição constitucional, definir o futuro presidente entre

as duas primeiras candidaturas. Apesar da tradição de confirmar como eleito o candidato com

maior número de votos, não faltaram tentativas por parte da direita e de alguns setores da DC

de desconhecer este imperativo. Na verdade, as leis permitiam à direita obter a vitória devido

à sua maioria no Congresso, impedindo desta forma a posse da esquerda. Num intento de

concretizar esta possibilidade, os políticos do PN ofereceram a Frei, em troca de seu voto em

Alessandri no Congresso, a posterior renúncia da candidatura de Alessandri para que, em uma

eleição seguinte, Frei pudesse se apresentar como candidato e ser eleito novamente com os

votos da direita e da DC.

Em meio a grandes manifestações de rua por parte de grupos adeptos à esquerda e à

direita e de uma tentativa por parte da CIA de impedir a confirmação do candidato da

esquerda com uma estratégia de propaganda massiva e de suborno de alguns parlamentares, a

DC, seguindo a sua longa tradição “legalista”, decidiu ratificar o triunfo de Allende com a

condição de que este assinasse um Estatuto de Garantias Constitucionais elaborado pelos

próprios democrata-cristãos. Nas palavras dos membros deste partido, a aprovação do

documento tinha como objetivo “salvaguardar o país de qualquer intento ditatorial por parte

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da esquerda no governo”.195 Dentre os pontos defendidos no Estatuto estavam a preservação e

manutenção dos elementos fundamentais da institucionalidade política e de garantias

constitucionais com respeito à liberdade de associação, de imprensa e opinião; a manutenção

do sistema de três poderes do Estado; a preservação do caráter profissional e da neutralidade

política das FFAA; o compromisso de impedir a criação de organizações armadas paralelas; a

liberdade de educação em todos os níveis, com discussão democrática das possíveis reformas

educacionais e autonomia acadêmica e financeira às universidades; a liberdade sindical e

também para as organizações comunitárias, com reconhecimento dos direitos de petição e

greve.196

Em dezembro de 1970, logo após a aprovação do documento por Salvador Allende, o

senador e presidente nacional do PDC, Narciso Irureta, afirmaria:

Para garantizar a todos los chilenos que ese proceso guardaría una fidelidad permanente a la vocación democrática y libertaria de nuestro pueblo, exigimos, en su hora, la consagración constitucional del Estatuto de Garantías que hoy se ratifica por el Congreso Pleno. (…) No podemos, sin embargo, dejar pasar en silencio, esta tarde, algunos hechos negativos que ensombrecen la imagen democrática del gobierno y de los partidos que lo apoyan. (…) No son los cambios los que nos apartarán del gobierno del señor Allende, son las actitudes antidemocráticas de algunos grupos que dicen apoyar su gobierno, y que pueden, antes de lo que muchos creen, terminar convertidos en los más peligrosos enemigos tanto del gobierno del señor Allende como del país entero.197

Ao longo do governo Allende, o PDC, apesar de continuar defendendo uma postura

“legalista”, passaria para a oposição em conjunto com os setores tradicionais da direita

chilena. Esta mudança se deu em função dos rumos seguidos pelo país, principalmente a partir

de 1972, com o avanço do movimento de massas e da organização dos trabalhadores. Fazendo

uso de uma postura que procurava se diferenciar da oposição frontal levada a cabo pelo PN,

os democrata-cristãos buscaram, até meados de 1972, manter a oposição nos marcos

institucionais por meio de vetos às medidas do governo no Congresso. Assim como a Igreja,

defendiam em seus discursos públicos as mudanças sociais propostas pela UP; no entanto,

buscavam enquadrá-las no limite da institucionalidade burguesa. Como veremos mais à

frente, a medida levada a cabo pelo governo que pretendia nacionalizar o cobre chileno foi

amplamente aceita pelo conjunto dos partidos políticos e pela Igreja. Por outro lado, a

proposta de estatizar as 91 maiores empresas do país receberia diversas críticas, sendo

195 CORREA, Sofia et al. Op. cit., p.264. 196 GARRETÓN; MOULIAN, 1983, p.43-44. 197 IRURETA, Narciso. La reforma constitucional sobre garantías democráticas (22 dez. 1970). Política y Espíritu, Santiago do Chile, ano XXVI, n. 319, p.57-59, mar. 1971.

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concebida como um intento de “coletivização total” e, portanto, de confirmação da “tendência

totalitária” do “governo marxista”. O trecho abaixo, extraído da revista do PDC de março de

1971, nos informa sobre o posicionamento do partido no início do governo da UP:

Nos parece que para evitar caer en las tentaciones del ‘choque frontal’ que le hacen el juego a la derecha, el Partido Demócrata Cristiano debe partir por rechazarlo, buscando, en cambio, enfrentar a la Unidad Popular sobre la base de ‘una confrontación de alternativas globales’. (…) Cuando el gobierno de Salvador Allende plantee un tema de trascendencia y de interés nacional, la Democracia Cristiana no debe basar su conducta en la simple crítica del proyecto de ley o de los planes propuestos por el Ejecutivo, sino que debe responder proponiendo en una forma detallada sus propios planteamientos y soluciones en la materia de que se trata. Si Allende propone nacionalizar el cobre, la respuesta de la Democracia Cristiana debe ser la presentación de su propio proyecto de nacionalización; si Allende propone la estatización de la banca, la respuesta de la Democracia Cristiana debe ser someter a la consideración pública sus propias ideas acerca de las reformas del sistema bancario; si Allende propone la creación de granjas estatales dentro del proceso de Reforma Agraria, la respuesta del PDC debe consistir en definir de inmediato la organización y estructuras que se consideran más adecuadas para dar forma a la nueva economía campesina.198

O primeiro ano de governo da UP é considerado pela maior parte dos autores como de

relativo sucesso no sentido de concretização de parte importante de seu programa.199 Allende

buscou, como o prometido, colocar em prática as mudanças propostas se utilizando da

legalidade vigente. Para avançar na constituição da Área de Propriedade Social, o governo

utilizou uma estratégia de compra de ações dos bancos e grandes indústrias para transferi-las

para o domínio do Estado. Além disso, fez uso de alguns “resquícios legais” que remetiam à

aplicação de uma lei de expropriação criada durante a República Socialista de 1932 e que,

apesar de ter sido abafada, nunca fora derrubada. Esta estratégia permitia que o Estado

interviesse em empresas que trouxessem algum risco para o abastecimento da população. Para

isso era necessário reportar um motivo, como por exemplo, a baixa produtividade da empresa.

A aplicação desta lei expropriatória incentivou uma parte da classe operária a fazer uso

de greves para paralisar a produção das fábricas nas quais trabalhavam e estimular a

intervenção de agentes do Estado para obter a expropriação das mesmas. Desta forma, em um

ano de governo, o Estado passou a controlar 62 indústrias, além de ter 39 sob sua

administração.200 Torna-se fácil entender porque o uso desta disposição, mesmo apresentando

uma justificativa do ponto de vista da legalidade, foi condenado e até mesmo rechaçado pelas

instâncias do Judiciário e pelo conjunto da oposição. O governo foi criticado por estar

198 MAIRA, Luis. Un método popular para hacer oposición. Política y Espíritu, Santiago do Chile, ano XXVI, n. 319, p.35-38, mar. 1971. Grifos nossos. 199 Cf. MARINI, 1976; GARRETON, 1983; CORREA, 2005; AGGIO, 2002 etc. 200 CORREA; FIGUEROA et al, 2005, p.266,

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interpretando a lei de forma “interesseira” e “oportunista”, não atribuindo à ela o seu real

significado de “representar os interesses gerais da Nação”. A temática da

legalidade/ilegalidade, que posteriormente se tornaria o principal eixo da luta oposicionista

contra o governo, foi utilizada neste primeiro ano de maneira ainda bastante cautelosa.

Na linguagem do jornal El Mercurio, o governo começava a insinuar uma tendência

ilegal, sendo necessário evitá-la por meio de uma postura crítica ao mesmo. Um editorial de

maio de 1971 apresentava a seguinte análise:

Los partidos de la Unidad Popular aceptan formalmente el juego democrático, pero su concepto de que la sociedad está dividida en clases antagónicas y excluyentes, su convicción de que una clase postergada debe constituirse en la única dominante, y su idea de que los principios del Derecho vigente forman en general el subproducto de la explotación del hombre por el hombre son trés elementos ideológicos que han tenido en la historia repetidas expresiones totalitarias. De ahí que el empeño por la legalidad socialista, aún mediante la fractura violenta de la juricidad, deba mirarse como una amenaza para la verdadera justicia, para la paz y para la libertad.201

Assim, desde o primeiro ano de governo Allende, este periódico já apontava a

tendência totalitária do socialismo, fosse ele “adaptado” à realidade chilena ou não. Nesse

sentido, contrapunha a “legalidade socialista” à legalidade (burguesa) vigente, caracterizando

a primeira como antidemocrática, violenta e injusta. Voltaremos ao papel desempenhado pelo

El Mercurio um pouco mais adiante.

A DC, por sua vez, afirmava que a ilegalidade ainda era uma tendência ligada aos

grupos “extremistas” de esquerda, mas não uma tendência geral do governo Allende. Para

impedir a generalização desta tendência era necessário que o governo neutralizasse estes

grupos, fazendo uso da autoridade presidencial por cima dos partidos. Em um editorial da

Revista Política y Espíritu de 1971, o PDC explicitou esta posição, afirmando que:

(...) no es el Gobierno el que hoy por hoy impulsa un estado de ánimo antidemocrático o que acarrea inquietud por la suerte de las personas o de las instituciones. Como se ha dicho ya innumerables veces, la responsabilidad moral e indirecta de los altos dignatarios del poder es indiscutible. Pero, hoy por hoy, el peligro viene de aquellos que insisten sobre la vía armada. Es muy difícil saber el grado de amenaza que ellos representan. (...) Veremos pues en el próximo tiempo una pugna creciente de las fuerzas organizadas de Gobierno y los partidarios de tácticas basadas en la violencia. Esto sería altamente peligroso, pues la opinión pública chilena no está acostumbrada a defenderse de esas operaciones. No hay consciencia intelectual ni poder material frente a ellos.202

201 Hacia la legalidad socialista. El Mercurio, Santiago do Chile, 25 mai. 1971. Editorial, p.3. 202 La democracia amenazada. Política y Espíritu, Santiago do Chile, ano XXVI, n. 322, p.3-4, jun. 1971.

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Podemos dizer que um dos maiores pontos de controvérsia deste período foi a

conformação da Área de Propriedade Social, que afetava diretamente os interesses do alto

empresariado chileno e norte-americano. A aplicação das medidas de expropriação gerou

muitos embates entre os setores do governo e da oposição, a ponto de criar uma situação de

impasse entre o Executivo e o Parlamento. Consideramos que um dos exemplos mais notáveis

deste embate foi a tentativa de estatizar a chamada Compañía Manufacturera de Papeles y

Cartones, a Papelera, por meio de tentativa de compra pelo governo de suas ações. A

possibilidade de estatizar uma das maiores empresas produtoras de papel para a imprensa

escrita permitiu que a oposição, tendo à frente o jornal El Mercurio, deslocasse o conflito em

torno do “direito de propriedade” para situar a disputa em torno da “liberdade de expressão”.

Por meio de uma intensa campanha publicitária, a oposição acusou a UP de querer

“monopolizar a produção de papel” para, desta forma, “cercear a imprensa”. Em dezembro de

1971, o editorial do El Mercurio apontava:

(...) las empresas del área estatal están adquiriendo un predomínio tan grande en la utilización de los recursos de la economía interna, que por una sóla gravitación, en una competencia que no es leal pues no está determinada por un criterio de ganancias ni de eficiencia, puede llevar el área privada a una lenta desaparición o a ser víctima de un proceso obligado de absorción. Esa característica avasalladora del socialismo se manifiesta en el intento de controlar la Companhía Manufacturera de Papeles y Cartones en términos que el imparcial aprovisionamiento de papel para periódicos pasaría a depender de la buena voluntad gubernativa y no sería como ahora un imperativo emanado de la naturaleza de la empresa privada, que es el de hacer una utilidad o beneficio atendiendo impersonalmente a un mercado que es, a su vez, no controlado e impersonal en el cual la discriminación se hace de hecho imposible. (...) Los hechos demuestran que se hace carne en el sentir colectivo la convicción de que, en definitiva, la nueva cara que presenta ahora el socialismo como sistema de organización social pugna con los principios democráticos fundamentales.203

Além de rechaçar a estatização da Papelera, o jornal apresentava uma linha mais geral

de defesa da empresa privada e da liberdade de mercado como evidências de um sistema de

fato “democrático”. Como veremos posteriormente, ao final do primeiro ano de governo, a

oposição levada a cabo pelos representantes das grandes empresas privadas do país, atrelaria

ainda mais a democracia ao anticomunismo, defendendo uma perspectiva de “regime

democrático” que garantisse a legalidade burguesa, a liberdade do grande capital e a não

regulação da economia pelo Estado. A campanha “¡La Papelera no!” foi apoiada por outros

setores da sociedade chilena como os estudantes universitários, em especial os da

Universidade Católica, que em novembro de 1971 tornaram público o seguinte manifesto:

203 Socialismo Avasalador. El Mercurio, Santiago do Chile, 1 dez. 1971, Editorial, p.3.

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El lunes antepasado el Gobierno decidió emprender definitivamente la estatización de la producción y distribución del papel en Chile. Esto significa que, de tener éxito dicho intento, la existencia de todos y cada uno de los diarios y revistas chilenos quedarán entregados al arbitrio del Estado y, a través suyo, del Gobierno y de los sectores políticos que lo sustentan. Con ello, la libertad de prensa dejará de ser un derecho que los chilenos podemos ejercer y disfrutar sin presiones, y pasará a convertirse en un simple, precaria y seguramente concesión de la autoridad política. (...) Más fuerte que eso, es el deseo del marxismo por controlar toda la información en Chile para emplear ese poder con la misma falta de objetividad, de respeto a las personas y de espíritu pluralista, que han caracterizado durante el último tiempo las transmisiones de Televisión Nacional, en clara contravención a la ley que la creó. La libertad de un país es indivisible. No puede concebirse la vigencia de ninguna de las libertades públicas o garantías ciudadanas que configuran una democracia, sin una plena y verdadera libertad de expresión. Allí donde no hay información libre, siempre termina fatalmente imperando una dictadura política.204

Por sua vez, a tentativa do governo de nacionalizar as grandes companhias de cobre

acentuou os conflitos entre o governo e os empresários norte-americanos. A partir da

aprovação da medida, com unanimidade dos votos no Congresso Nacional, o governo norte-

americano deu início a um boicote ao comércio exterior e às fontes de crédito, o que somado à

paralisação dos investimentos privados, gerou grave crise econômica e política para o

governo.

Outra medida geradora de conflitos foi a aplicação da Reforma Agrária. Com o

objetivo de aprofundar o processo iniciado pelo governo anterior de Eduardo Frei, Allende

acelerou as expropriações e limitou a extensão de propriedade permitida (de 80 hectares para

40). Em um ano de governo da UP foram expropriadas mais terras que em seis anos da

administração anterior. Este processo foi acompanhado pelo aumento das greves no campo,

além das ocupações de terrenos e fazendas - ações incentivadas por grupos de esquerda da UP

e pelo MIR.205

Apesar dos obstáculos econômicos enfrentados pelo governo em seu primeiro ano,

este obteve alguns resultados positivos, dentre eles a diminuição da taxa de desemprego; o

aumento do rendimento da produção agrícola e industrial; a redução da inflação; a elevação

dos salários do setor público e privado; a estatização de grande parte dos recursos minerais, de

80% dos bancos, de um grande número de empresas do setor manufatureiro e mais de 30% da

terra cultivável. Mesmo com os êxitos iniciais, nesta primeira fase era possível observar os

germes das futuras dificuldades. Como ressaltou Marini, a expansão da oferta não se deu com

base em novos investimentos no setor privado, mas com a utilização da capacidade instalada e

dos estoques acumulados no período anterior. Em outras palavras, não houve uma

204 No a la estatización de la Papelera. Estudiantes universitarios defienden la libertad de expresión escrita. El Mercurio, Santiago do Chile, 20 nov. 1971. Manifiesto Público, p.32. 205 CORREA, 2005, p.267.

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modificação da base produtiva existente, mas a sua reprodução em escala ampliada. A

burguesia manteve seu lucro, mas não o investiu na expansão da estrutura produtiva - o que

acarretou o atraso da produção diante das necessidades crescentes de consumo derivadas do

aumento de poder aquisitivo das classes populares.206

Ao longo do segundo ano começaram a se manifestar os primeiros sinais de crise

econômica, devido não apenas ao boicote nos planos interno e externo, como por exemplo a

queda do preço do cobre no mercado internacional e a desaceleração da produção agrícola e

industrial a partir do estado de mobilização social que abarcou todos os setores operários. A

produção de alimentos se tornou insuficiente para atender às crescentes demandas e o governo

teve que recorrer à importação de gêneros alimentícios e produtos básicos, o que provocou

enormes gastos para o Estado. A taxa de inflação também aumentou consideravelmente,

atingindo um total de 353% em meados de 1973. A tentativa de controlar a inflação por meio

da fixação de preços, juntamente com o desabastecimento de bens de consumo básicos deu

origem às longas filas de compradores à espera de algum produto disponível no comércio -

vendido com preço tabelado. Os mesmos produtos podiam ser encontrados e comprados mais

rapidamente no mercado negro, com preços três vezes mais altos que o oficial. O surgimento

do mercado negro também foi resultado da política de especulação de preços por parte da

burguesia. Se num momento anterior, as camadas médias puderam ser neutralizadas com a

redistribuição da renda, a partir do segundo ano de governo elas tiveram a possibilidade de se

associar ao negócio da especulação. Os lucros dos comerciantes já não derivavam da política

governamental, mas da oposição à ditas medidas, com a venda de produtos básicos, por

exemplo, no mercado negro. Além disso, o enfrentamento entre a pequena-burguesia

assalariada e as classes operárias e populares na luta pela obtenção de bens de subsistência

também se constituiu em fator importante para o aumento do descontentamento da primeira

com relação ao governo. Isso explica, em parte, a incorporação das classes médias, temerosas

da proletarização que as ameaçava, à esfera de influência do grande capital, o qual alcançava

gradativamente sua unificação na oposição ao governo da UP.

Com o objetivo de contornar o grave problema do desabastecimento, o governo

Allende orientou a formação das Juntas de Abastecimento e Preço (JAP) - organizações

populares que buscavam regularizar a distribuição comercial de produtos essenciais visando

combater o mercado negro. Esta medida receberia duras críticas por parte da oposição não

apenas porque afetava diretamente o desenvolvimento das atividades do comércio

206 MARINI, 1976, p.35-36.

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estabelecido e, portanto, os interesses da pequena-burguesia, mas porque correspondia de fato

a uma medida que descentralizava o poder, passando-o para o controle da classe trabalhadora

e dos setores populares. Tanto o El Mercurio quanto a DC, convencidos dos propósitos

“totalitários” do governo, viram as JAP como um mecanismo de “controle da população”,

condizente com a instalação da “ditadura do proletariado”. Apesar do rechaço às JAP estar

presente desde 1972, este se fez mais enfático em 1973 como mostra o editorial a seguir:

Los comunistas pusieron en marcha las Juntas de Abastecimiento y Precios o JAP, después de haberse apoderado el Gobierno de la distribución comercial mayorista. Fue inútil que los alcances y naturaleza de las JAP quedaran precisadas por la Contraloría. En vano se insistió en que el papel de esos organismos era, a lo más, de simple asesoramiento de la autoridad pública. Poco a poco las JAP han ido tomando en algunos barrios el control de los abastecimientos y todo indica que son las células de la dictadura económica así como las herramientas del futuro racionamiento.207

A crítica do jornal El Mercurio à escassez de produtos de primeira necessidade e às

formas do governo de solucioná-la também esteve presente por meio de charges, como mostra

a imagem abaixo:

Figura 1: “Don Memorario”. Lukas. Fonte: El Mercurio, 17 abr. 1973, s/p.

Nesta charge, o personagem Dom Memorario comenta com seu companheiro a

dificuldade de comprar produtos. A imagem mostra uma longa fila de pessoas com os mais

variados tipos sociais. O diálogo entre as personagens remete à idéia de que a fila estendia-se

por vários metros chegando a dar voltas no quarteirão e, no entanto, a sensação era a de que

ninguém se movia do lugar. O tom de estranheza do comentário (“Aquí hay algo malo...”)

207 Orden público y expresión democrática. El Mercurio, Santiago de Chile, 8 mai. 1973. Editorial, p.5.

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evidencia certa decepção com a iniciativa do governo e a charge leva os leitores a concluir

que tal tentativa de abastecimento era ineficiente, pois obrigava a população a esperar muito

tempo para obter produtos básicos.

À intensificação das manifestações de rua se somaram ações violentas como o

assassinato em junho de 1971 de Edmundo Pérez Zujovic, ex-ministro do Interior do governo

Frei, por membros da Vanguarda Organizada do Povo (VOP).208 Dias depois do assassinato,

os mesmos militantes teriam se envolvido em outras situações de violência, acarretando a

morte de mais pessoas e novos feridos. O atentado ao ministro teve enormes repercussões,

principalmente na postura da DC diante do governo. Após o incidente, os democrata-cristãos

se negaram a travar qualquer acordo com o governo Allende, apesar das inúmeras tentativas

deste último, e se aproximaram ainda mais do Partido Nacional. Esta mudança de orientação

acarretou a saída de alguns de seus dirigentes para as filas da UP.

Em fins de 1971, a oposição optou pelas mobilizações de rua para demonstrar a sua

insatisfação e rechaço ao governo. Na verdade, a opção por atuar via pressão direta foi feita

desde fins da década de 1960, quando a direita tradicional perdera parte de sua influência no

Congresso e necessitava de novos caminhos. Em 1969 já se tornara evidente a recuperação de

seu terreno político e seu enorme respaldo entre as mulheres.209

A participação das mulheres de classe média nos atos da oposição ficou evidente com

a realização da “marcha das panelas vazias” convocada por organizações sociais que se

apresentavam “independentes politicamente” e que, por isso, conseguiram abarcar os setores

médios para manifestar a sua indignação diante da escassez de produtos básicos. O ato

também contou com a participação de militantes da organização fascista Patria y Libertad,

além de integrantes do PN e da DC, os quais se enfrentaram em violentos ataques com

membros da esquerda que repudiavam a concentração. O enfrentamento durou vários dias e as

ruas se transformaram em arena para os conflitos de classe abertos. Após o ato, o Mercurio

publicou um artigo escrito pelas próprias mulheres participantes, no qual afirmavam:

El miércoles 1º de diciembre, las mujeres independientes, obedeciendo a un espontáneo llamado de solidaridad, hicimos una marcha por las calles de la capital para protestar por el desabastecimiento de artículos esenciales a la vida de un pueblo civilizado: alimentos, movilización, telas, agujas, hilos, medicinas, repuestos varios etc. Para ejercer nuestro derecho de elegir la educación de nuestros hijos y para pedir una tregua a la violencia que la politización y la concientización han desatado en nuestra juventud. (...) Nos movía sólo el fin de hacer sentir al Supremo Gobierno, el

208 Alguns autores atrelam a origem desta organização política à uma estratégia da CIA para desestabilizar o governo Allende, causando pânico nos setores médios e conflitos no interior da própria esquerda. 209 Nas eleições de 1970 cerca de 38% do voto feminino foi para a candidatura de Jorge Alessandri do Partido Nacional.

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descontento, la inseguridad y la desesperanza que está minando las bases mismas de nuestra convivencia democrática. (...) Desgraciadamente nos equivocamos. La siembra de miedo y de violencia, los bastardos apetitos de Poder de aquellos que quieren arrasar lo que costó más de un siglo construir, ha cavado ya muy hondo en sectores minoritarios de nuestro pueblo. Y tuvimos que asistir al hecho insólito de ver la mano cobarde empuñar la piedra, lanzar la bomba, el ácido corrosivo y escuchar, impávidas, la infamia del insulto degradante. (...) Dulce Patria, ante el símbolo sagrado de nuestra bandera, las mujeres venimos a protestar, a pedirte ‘asilo contra la opresión’ y a jurarte que en tu historia nunca más se repetirá el doloroso suceso de ese 1º de diciembre, porque aquí tienes, a tus pies, el alma heroica de tus mujeres que están dispuestas, si ello es necesario, a entregarte la vida para que sigas siendo al amparo de la Constitución y las leyes, el pueblo libre, democrático e independiente...210

O primeiro semestre de 1972 também foi marcado pela realização de grandes

manifestações organizadas pela oposição com a participação ativa de setores médios. Se a

concentração de dezembro feita pela frente de mulheres teve como eixo temático a questão do

desabastecimento, a de abril de 1972 reforçou a questão da “ilegalidade” do governo.

Intitulada “Marcha pela Democracia”, a manifestação contou com a presença dos tradicionais

partidos da oposição, além das organizações “independentes” de mulheres, jovens e outros

setores da pequena-burguesia. A adesão destes grupos foi utilizada pela burguesia para

afirmar que a oposição ao governo era “ampla” e “popular”, o que significava que este era

apenas representante dos interesses de uma minoria. Sendo um governo da minoria, deveria

receber o rótulo de “inconstitucional” e “ilegítimo”, como expressa o editorial de abril de

1972:

Le ha costado trabajo a la Unidad Popular convencerse íntimamente de que es una minoría en el país, de que su nombre no es sinónimo real de popularidad y de afirmación de masas. (...) La opinión mayoritaria entre tanto sufre las consecuencias de la aplicación de la ideología marxista-leninista por parte de la Unidad Popular, con evidentes amenazas para la subsistencia de la democracia y de las libertades públicas. El sentimiento general en el país de que el marxismo está destruyendo los cimientos del orden jurídico aunque en apariencias los respete y, sobre todo, los graves errores e ilegalidades que se cometen por elementos de la Unidad Popular en el Gobierno llevaron a los partidos democráticos a organizar la marcha del miércoles, después que habían sido denegadas las autorizaciones para dos actos análogos en otras fechas. El desfile fue una enorme caravana de mujeres, de hombres, de jóvenes, de pobladores, de trabajadores. Nadie puede sostener que ese acto cívico es la sola obra de un partido o de un grupo social. Fueron a el miembros de todos los grupos democráticos y de todos los grupos que muestran preocupación por el avance del marxismo sobre Chile. (...) La marcha democrática fue una expresión elocuente de la mayoría del país, y de una mayoría que no parece dispuesta a permanecer silenciosa.211

210 ¡Las mujeres protestamos! El Mercurio, Santiago do Chile, 5 dez. 1971. Inserción, p.41. 211 Elocuente expresión de la mayoría. El Mercurio, Santiago do Chile, 14 abr. 1972. Editorial, p.3. Grifos nossos.

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A greve dos caminhoneiros em outubro de 1972 marcaria o ápice deste enfrentamento

iniciado em fins de 1971. Apoiada pelos demais setores da burguesia e pequena-burguesia,212

e do apoio financeiro do governo norte-americano, a greve desembocaria na paralisação total

do país por cerca de 30 dias. Interrompeu-se a distribuição de produtos básicos, muitas

empresas aderiram ao movimento e o comércio foi congelado. A burguesia optara pelo

combate ao governo por meio de ações de massa que assegurassem a ela uma base social e

uma certa legitimidade – fundamental para colocar as FFAA a seu favor. Diante desta

situação, os trabalhadores partidários do governo, mesmo diante da greve dos patrões

tentaram manter o funcionamento das indústrias por meio dos Comitês de Vigilância das

Fábricas; as JAP preservaram as suas atividades de distribuição e se constituíram outras

formas de organização popular para contornar os problemas de abastecimento, tais como os

Cordões Industriais e os Comandos Comunais. Os primeiros possibilitaram o intercâmbio de

produtos entre indústrias produtoras de bens diferentes e os segundos permitiram a ação

conjunta de operários e camponeses tanto em ocupações de fábricas quanto de terras.213

A greve dos caminhoneiros e seu apoio por setores da burguesia e classes médias foi

bastante retratada pelo El Mercurio, como nos mostra a imagem abaixo:

Figura 2: “Motor de Protesta”. Lukas. Fonte: El Mercurio, 21 ago. 1973, s/p.

212 A greve recebeu apoio de diversas organizações empresariais como a Sociedade Nacional de Agricultura e a Sociedade de Fomento Fabril, porta-vozes dos interesses do grande capital nacional e estrangeiro. Diversas organizações, que se proclamavam “apolíticas”, como a Confederação Única de Autônomos do Chile e muitos colégios profissionais apoiaram a iniciativa. O objetivo desta ação era atribuir à greve um caráter corporativista e não político para que ela ganhasse a adesão de mais setores médios. Esta polêmica foi bastante noticiada pela imprensa, com destaque para o jornal El Mercurio. 213 O surgimento do Poder Popular impressionou a esquerda chilena, ao mesmo tempo que aumentou a sensação de insegurança das classes dominantes. Era constituído pelos grupos mais avançados e politizados da classe operária que impulsionaram novas formas de organização social dos trabalhadores. Foi apoiado e incentivado por partidos como o MIR, fortes núcleos do PS, parte do MAPU, setores da base do PC e grupos de orientação maoísta do mesmo.

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Esta charge apresenta uma cidade absolutamente paralisada e tomada por caminhões e

ônibus atravessados. Seu título, “Motor de protesta”, indica a categoria dos motoristas como

dirigentes do protesto. A palavra “motor” é usada para se referir aos meios de transporte, mas

também para designar a força do protesto liderado pelos caminhoneiros. A sensação de

paralisação total oferece ao leitor a idéia de um protesto de fôlego, sendo ele também

“legítimo” já que sustentado por “amplos setores” da sociedade.

De acordo com Marini, a crise de outubro apresentou três conseqüências importantes

que devem ser aqui evidenciadas.214 A primeira foi o enfrentamento aberto entre as classes

fundamentais da sociedade chilena - a burguesia e o proletariado - e o processo interno a cada

uma de unificação e radicalização. Sendo assim, apesar das divergências de posição que

prevaleciam no seio da burguesia – expressas, por um lado, no golpismo do PN e da direita da

DC, e, por outro, na política de “substituição” do governo pela via legal defendida pelo

restante da DC - tornou-se evidente que o conjunto das classes dominantes estava

gradativamente aderindo à perspectiva golpista. Da mesma forma, este contexto produziu uma

maior unidade de ação política no campo do proletariado, além de fazer avançar as posições

revolucionárias no seio das massas. Os trabalhadores se mostraram mais avançados não

apenas em termos organizativos, como também no que diz respeito às suas reivindicações.

A segunda conseqüência da crise foi a confusão gerada no interior da pequena-

burguesia. A violência do movimento levado a cabo pelos gremios de caminhoneiros e demais

profissionais liberais, assim como a adesão da organização fascista Patria y Libertad,

provocaram ações e posturas diferenciadas no interior desse setor. Uma parte minoritária

aderiu ao governo da UP, somando-se às iniciativas dos trabalhadores, e outra parte mostrou-

se ainda mais atemorizada diante do ascenso da classe operária e setores populares e da

possibilidade de proletarização, com o desencadeamento de uma guerra civil. Neste contexto,

a DC procurou conter os setores da burguesia mais adeptos ao golpismo para tentar uma saída

institucional para o conflito com a incorporação das FFAA no gabinete do governo.

Esta constituiu a terceira conseqüência da crise. O objetivo de colocar os militares no

governo foi garantir a realização das eleições parlamentares de março de 1973, além de

acalmar os temores das classes médias. Na prática, a medida conteve temporariamente não

apenas a burguesia de seu intento golpista, mas também o avanço do movimento de massas. A

conjuntura que se seguiu de outubro de 1972 até as eleições de março do ano seguinte foi

marcada por uma série de contradições que revelaram a crise da economia capitalista chilena,

214 MARINI, 1976, p.40-44.

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com os estoques de produtos, a especulação, o mercado negro, o desabastecimento da

população, além da ausência de soluções alternativas por parte do governo e dos trabalhadores

organizados. Em novembro de 1972 o presidente integrou três altos oficiais das FFAA em seu

gabinete. Esta medida pôs fim à greve dos caminhoneiros e garantiu um ambiente “tranqüilo”

para a realização das eleições parlamentares de março de 1973.

A formação do gabinete civil-militar evidenciou a opção levada a cabo pela UP diante

de uma conjuntura altamente polarizada: criar condições propícias para a continuação do jogo

político e concretizar um acordo com a DC. Afetada a sua estabilidade, a UP acabou não

recorrendo a sua principal força, a classe trabalhadora e setores populares, mas preferiu se

refugiar no interior do aparato de Estado. Como afirmaram os autores Correa, Figueroa, Holt,

Rolle e Vicuña:

Allende, siendo más bien un socialdemócrata antes que un revolucionario, prefirió echar mano de un expediente para él mucho más conocido: los militares en el gabinete, solución que había visto utilizar a los Presidentes radicales, sin graves consecuencias para la convivencia nacional ni para la disciplina de las Fuerzas Armadas y su sometimiento al poder civil. Así, fue la incorporación de los militares a la arena política el expediente utilizado por el gobierno para restituir el orden.215

Nesta conjuntura, as FFAA se transformariam em objeto de propaganda tanto da

esquerda quanto da direita, favorecendo a disputa política no interior da instituição. A

oposição lançou uma ofensiva política contra os militares afirmando a sua ineficácia em

limitar a ação da UP dentro dos parâmetros que a própria direita definia como legais. Por

outro lado, o MIR e outros setores mais à esquerda redobraram a sua propaganda no sentido

de precipitar a diferenciação de tendências entre os militares, romper com a sua disciplina

interna e liberar a base de suboficiais e soldados favoráveis ao governo. A luta de classes

exacerbava-se no interior das FFAA, deixando suspensa no ar, como pura ideologia, a idéia de

uma coorporação meramente “profissional”, desprovida de conteúdo político.

Com a aprovação da Lei de Controle de Armas no final de 1972 – lei que objetivava

impedir a formação de grupos armados civis, mas que foi aplicada somente nos locais de

trabalho, em especial nas fábricas, contra a organização dos trabalhadores – a direita iniciaria

um movimento para pressionar o governo a afastar os setores militares “legalistas”. Ao longo

de 1973 a UP buscou evitar a cisão no interior das FFAA, chegando inclusive a ceder às

exigências da direita no sentido de retirar os oficiais “legalistas” (vistos por esta como

“esquerdistas” ou aliados destes) dos altos mandos. Ao final, esta política levou à substituição

215 CORREA; FIGUEROA et al, 2005, p.271.

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do general Carlos Prats por Augusto Pinochet, tido como um militar estritamente

“profissional” e respeitador das instituições democráticas, favorecendo assim a conformação

de uma hegemonia dos setores golpistas no interior da instituição.216

As eleições parlamentares de março de 1973 dividiram o país em dois blocos políticos

que expressavam interesses de classe opostos: a UP e a Confederação para a Democracia

(CODE), esta última formada pelas duas principais forças políticas da oposição, o PN e a DC,

além das organizações de extrema-direita como o Patria y Libertad e as organizações

patronais mais influentes como a Sociedade de Fomento Fabril (SOFOFA), Sociedade

Nacional de Agricultura (SNA) e a Confederação do Comércio e da Produção. Para a CODE,

os comícios de março apresentavam um caráter de plebiscito. A DC, no entanto, esperava que

o processo eleitoral, ao tornar evidente a deterioração do governo, o fizesse retificar,

assumindo uma linha de alianças e compromissos. Para o PN, a derrota do governo nas

eleições significaria a sua substituição por meio de uma acusação constitucional por parte do

Congresso. Por sua vez, a juventude nacionalista (do PN) e o Patria y Libertad viam as

eleições como um mero acidente – nenhum resultado impediria a sua luta desenfreada contra

o “marxismo”.217 A conformação da CODE já expressava uma certa solidez na unidade dos

partidos e organizações políticas que representavam os interesses da burguesia chilena.

Apesar da DC reafirmar a sua postura diferenciada com relação aos outros partidos, seu

interesse em derrotar o governo Allende e frear o movimento de massas era exatamente o

mesmo que o do PN e setores de corte fascista.

O resultado das eleições desencadeou uma espécie de terremoto político, pois

diferentemente do que esperava a oposição, os partidos da UP alcançaram 43,4% dos votos,

perdendo apenas 6% de seu eleitorado inicial e a CODE atingiu seus 54,7%. Isso significou a

impossibilidade por parte da burguesia de exigir constitucionalmente a denúncia de Allende e

de obrigar a UP a construir um processo de transição. Derrotada a chance de destituir Allende

por meios constitucionais, restaria à oposição costurar com mais intensidade nos meses

seguintes a saída golpista para o restabelecimento da estabilidade do sistema capitalista.

Após o processo eleitoral, os militares se retiraram do gabinete e o país assistiu a uma

nova onda de ativação popular e manifestações de rua por parte da oposição, agora fortalecida 216 Vale lembrar aqui que também Humberto Castelo Branco, primeiro presidente do regime militar brasileiro (1964-1985), até dias antes do golpe de Estado, era considerado, inclusive no interior das FFAA, como um militar “constitucionalista”. Não coincidentemente, acreditamos, fez-se necessário aos golpistas de ambos os países alçarem à liderança de suas investidas figuras não preteritamente identificadas com as forças declaradamente reacionárias. 217 GARRETÓN, Manuel Antonio; MOULIAN, Tomás. Analisis conyuntural y proceso político. Las fases del conflicto en Chile (1970-1973). Costa Rica, San José: Editorial Universitaria Centroamericana EDUCA, 1978, p.91-92.

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com a incorporação de extensos setores das classes médias, como profissionais liberais,

comerciantes e donas-de-casa. A decisão do governo de postergar o projeto da Escola

Nacional Unificada (ENU), após inúmeros atos e protestos de rua contra a sua aplicação, foi

resultado da violenta ofensiva desatada pelo conjunto da burguesia - tendo à frente as

organizações patronais (gremios) – cuja voz encontrou eco em setores que até então não

haviam se mostrado abertamente comprometidos com ela, como a Igreja Católica. Até abril de

1973 o conflito predominante se deu em torno do projeto ENU. O conjunto de reformas

presentes no “Informe sobre a Escola Nacional Unificada” objetivava a construção de um

sistema único de ensino que oferecesse oportunidades iguais para todos; a superação gradual

da divisão entre o trabalho manual e o intelectual por meio da combinação do ensino teórico

com o prático, do estudo com o trabalho produtivo; a superação das barreiras impostas pela

especialização estreita com a adoção do princípio da educação politécnica, a qual impediria a

transformação do ser humano em uma simples engrenagem do aparelho produtivo via

educação; o fim do elitismo nas universidades com o ingresso de estudantes da educação

regular e do campo de trabalho; a racionalização do sistema educacional, expressa na criação

de Complexos Educacionais inseridos na vida comunitária e articulados com a base produtiva

das mesmas comunidades.218 O projeto, devido a seu forte tom ideológico, e pelo fato de

propor pela primeira vez o debate público em torno de uma proposta de reforma profunda do

sistema educacional, desencadeou uma intensa campanha da oposição no sentido de

deslegitimar o governo e reafirmar a sua tendência ao “totalitarismo” com o predomínio

ideológico “marxista-leninista”. Antes mesmo do lançamento do Informe, a Controladoria

Geral da República havia impedido a constituição de Conselhos de Educação, sem os quais o

projeto não poderia ser adequadamente discutido. O lançamento do Infome, portanto, causou

um estrondo no seio da oposição, a qual se manifestou pela ação dos gremios, da DC e do PN,

e entre a alta hierarquia da Igreja, que viu no projeto a perda de sua influência e o fim da

possibilidade de reprodução da doutrina católica na sociedade chilena. Por último, o projeto

também foi rechaçado pelos militares e por associações de pais de colégios particulares,

demonstrando a conformação de um movimento de oposição de fato heterogêneo. O editorial

abaixo evidencia o papel do jornal El Mercurio como articulador dos diferentes setores da

sociedade chilena na oposição ao governo por meio do rechaço ao ENU:

Simultáneamente la Iglesia y las Fuerzas Armadas han rechazado el intento gubernamental de imponer en las escuelas del país una reforma que vulnera la libertad

218 Cf. MARINI, 1976, p.208; GARRETÓN; MOULIAN, 1978, p.96-97.

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de enseñanza expresada en términos de inequívoca amplitud en el texto de la Constitución Política. (...) Al desconocimiento de la disposición institucional se agrega un engaño sin precedentes, a través de declaraciones oficiales como la que se ha puesto en boca del Presidente de la República, quien habría asegurado al Jefe de la Iglesia Católica, Su Eminencia el Cardenal Raúl Silva Henríquez, que es propósito del Gobierno que cualquiera reforma tendiente a alterar las bases de la educación chilena será debatida con amplitud y no resolverá sobre ellas hasta dar por agotadas todos los trámites para alcanzar acuerdo sobre asunto tan trascendental. (...) Por otra parte, simultáneamente se realizaba una reunión de los Comandantes en Jefe de las Fuerzas Armadas y de otros altos jefes superiores para expresar su inquietud frente a un proyecto que se lo presenta por el Ministro de Educación como democrático y sin definición política, en circunstancia que los mismos documentos suscritos por el Ministro Tapia y sus subordinados le dan un sentido ideológico y definidamente socialista-leninista.219

Além da polêmica em torno do ENU, a conjuntura foi marcada pela denúncia, por

parte do governo, do caráter “fascista” da oposição e da possibilidade de desencadeamento de

uma guerra civil, dada a ofensiva violenta do conjunto dos setores oposicionistas. Por sua vez,

a acusação por parte da direita acerca da inconstitucionalidade do governo se intensificou. A

partir de abril de 1973 teve início a greve dos mineiros de El Teniente com duração de 75

dias. Este conflito teve conseqüências graves para o governo, pois significou a paralisação da

produção do principal produto de exportação do país.

Em junho ocorreria a primeira tentativa de golpe de Estado, iniciativa fracassada,

dentre outros fatores, pela rápida atuação dos oficiais “legalistas” com destaque para Prats e

Pinochet que impediram o êxito do movimento. Diante da gravidade da situação em que o

país se encontrava e da impossibilidade de decretar estado de sítio por um veto do Congresso,

colocou-se em prática novamente a Lei de Controle de Armas que permitia às FFAA invadir

lugares “suspeitos” para encontrar armas. No entanto, as operações militares foram dirigidas

somente contra as sedes e locais vinculados aos partidos de esquerda e ao governo, sem

qualquer ida aos centros de operação da extrema-direita. Sem poder ditar a lei do estado de

sítio o governo perdera os instrumentos legais de desarmar os dispositivos civis do golpe.

A ofensiva golpista foi seguida por uma contra-ofensiva popular, com a retomada dos

movimentos de trabalhadores verificados no mês de outubro do ano anterior. Foi em meio a

esta conjuntura, também marcada por uma atitude agressiva da direita com denúncias contra o

governo, novas greves patronais e atentados de diferentes tipos, que o presidente Allende,

com o auxílio do cardeal Raúl Silva Henríquez, buscou um novo acordo entre a UP e a DC.

As conversações desencadearam muitas polêmicas no interior da esquerda e entre os

dirigentes operários dos Cordões e Comandos Comunais. A DC exigira um reconhecimento

219 Máxima desconsideración a la Iglesia y las FFAA. El Mercurio, Santiago de Chile, 13 abr. 1973. Editorial, p.5.

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público por parte do governo de haver atuado à margem da legalidade e a formação de um

“gabinete de garantias”, sem representantes dos partidos de esquerda e no qual os cargos

fundamentais fossem assumidos por militares. Estas condições foram legitimamente

rechaçadas pela esquerda já que alterariam radicalmente o caráter do governo e freariam por

completo o movimento de massas.

Com o fracasso do acordo, Allende tentou mais uma vez formar um gabinete com a

participação de militares, mas a fórmula desencadeou novos conflitos com a demissão do

general Prats e o recrudescimento do golpismo no interior das FFAA. Em agosto o

Parlamento decretou a ilegalidade do governo, apesar do intento golpista já estar configurado

por meios extra-constitucionais. A retomada da ação dos gremios de transportistas e

comerciantes contribuira para a criação de um clima ainda mais claro de caos e violência. O

golpe foi levado a cabo no dia 11 de setembro, mesma data em que Allende anunciaria a

convocatória de um plebiscito que permitisse uma saída política ao impasse no qual se

encontrava o governo.

Podemos dizer que na articulação do golpe de 1973 estiveram presentes, sob a forma

de uma ampla frente heterogênea, as várias frações do capital – industrial, agrário, financeiro,

comercial - prejudicadas em seu desempenho econômico e ameaçadas pela ascensão do

movimento de massas, além dos militares que cultivaram uma saída extra-parlamentar como

solução para a crise nacional. A esta frente se somaram, ao longo do governo Allende, outros

setores sociais, como as classes médias – que, por representar uma classe intermediária,

estava desprovida de um projeto próprio que lhe atribuísse autonomia. Num período de crise

econômica e política, como o que caracterizou o governo desde fins de 1971, este setor se

colocou diante de duas possibilidades: aderir ao Poder Popular, defendendo a aceleração das

reformas propostas pela UP, a sua radicalização e a transferência do poder aos trabalhadores,

ou se incorporar ao movimento de oposição dirigido pelo grande empresariado industrial, o

qual visava a destituição de Allende. Apesar de parte da pequena-burguesia ter se aliado à

esquerda, a sua grande maioria optou pelo rechaço ao governo da UP, como expressaram as

manifestações da oposição, em especial a das “Panelas Vazias” e a “Marcha pela

Democracia”. Este deslocamento esteve relacionado à crise econômica vivida pelo país a

partir do segundo ano do governo, a qual levou a população a enfrentar o problema do

desabastecimento e da escassez, colocando lado a lado o operário e o funcionário público, na

fila para obter o pão e o calçado. O Chile, a seu modo, reeditava experiências típicas da

acuidade da luta de classes, quando a pequena-burguesia, sufocada pelo capital monopolista e

aterrorizada pelo medo da proletarização, acabava por, descrente nas instituições

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golpismo foram utilizados pela burguesia para legitimar as suas ações e acusar o governo de

atuar na ilegalidade. Foi a partir da unificação das frações da burguesia com as classes médias

e os militares que a saída golpista pôde então ser concretizada.

Por último, resta-nos apresentar o principal articulador da frente heterogênea de

oposição ao governo Allende. Operando como agregador e difusor de interesses imediatos

distintos da burguesia, o jornal El Mercurio acabou funcionando como um verdadeiro

“partido” da classe vitoriosa a partir de 1973.

2.3 O papel da grande imprensa na derrubada do governo Allende: El Mercurio como

“partido” da burguesia chilena

Fundado em Valparaíso em 1827 e comprado por Augustín Edwards Ross em 1879, o

jornal El Mercurio se constituiu enquanto um importante porta-voz das classes dominantes

chilenas, para além de seus partidos políticos tradicionais e associações empresariais. Mesmo

sendo reconhecida como sociedade anônima, esta empresa jornalística esteve sob o controle

direto da família Edwards, tornando-se, no início do século XX, o periódico mais influente do

país ao inaugurar um novo estilo de imprensa.

À imagem e semelhança do jornalismo inglês, especialmente o Times de Londres, o

Mercurio de Santiago trouxe a influência do estilo informativo, escrito por funcionários

especializados que aspiravam à “imparcialidade” e “objetividade”. Os comentários e opiniões,

escritos de forma desapaixonada e impessoal, ganharam seu espaço na página editorial, com a

intenção de consagrar a objetividade da notícia.

Soma-se a isso a função de se constituir como um “formador de opinião pública”, não

estando diretamente relacionado a nenhum partido político de direita. Isso permitiu que o

jornal fosse identificado como um meio “independente, objetivo, sério e moderno”.224 Ao se

afastar das frações da burguesia e oferecer um olhar para além dos distintos interesses

imediatos, o Mercurio pôde se apresentar como representante da opinião pública, dos

interesses comuns, defendendo como universais os valores específicos das classes dominantes

e da ordem capitalista e transformando estes últimos em perspectivas nacionais, ligadas à

“civilização cristã ocidental” e ao “bem comum”. Buscando a “neutralidade”, o discurso

224 CORREA SUTIL, Sofía. Con las riendas del poder.Op. cit., p.53.

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mercurial conseguiu criar a ilusão de um jornal de caráter onipresente, objetivo, dono da

verdade, abordando os acontecimentos “tais como se sucederam”.225

Segundo Correa, o El Mercurio exprimia bem o fato de que a direita, apesar de

apresentar conflitos setoriais menores ao longo do século XX, compartilhava de uma visão

comum sobre o país e por isso, sempre privilegiou o interesse de longo prazo em oposição aos

interesses econômicos imediatos de cada fração de classe. Como afirmou a autora, “una de las

expresiones más lúcidas de esa visión común se difundió a través del diario El Mercurio, que

se constituyó en el portavoz de la derecha en su conjunto, logrando gran eficacia como

defensor de sus intereses globales y de sus valores fundamentales”.226

Por ser considerado uma das principais expressões dos anseios da burguesia chilena,

optamos por trabalhar com este jornal em nosso estudo e tentar verificar de que forma o

governo da UP foi retratado em suas páginas editoriais e reportagens. Nosso objetivo é

demonstrar que este veículo expressou a oposição de classe burguesa ao governo de Allende.

Também procuraremos atentar para o conteúdo das propagandas políticas presentes no jornal,

chamadas de “inserción”. A totalidade das propagandas no período analisado é proveniente

das organizações e partidos políticos que compuseram a frente de oposição ao governo de

Salvador Allende, a saber, a Democracia Cristã, o Partido Nacional, o Patria y Libertad, as

associações empresariais, os sindicatos patronais, as federações de estudantes da Universidade

Católica, o movimento de mulheres de classe média, entre outros. Assim, para além de

divulgar de forma “independente” e “neutra” os interesses comuns do conjunto da burguesia

chilena em seus editoriais diários - compostos por diversas colunas que se revezavam

dependendo do dia, como La Semana Política, Tribuna, Temas Económicos – o jornal

também tornava público os interesses específicos de cada setor ligado às diversas frações da

classe dominante (financeira, agrária, industrial) e da classe média oriunda do setor terciário,

de transportes, serviços etc.

Dessa forma, o veículo de imprensa mercurial cumpriu um importante papel na

articulação dos distintos setores oposicionistas funcionando como um organizador

fundamental da frente civil-militar que derrubou Allende. Em termos de conteúdo, a

articulação de interesses se deu por meio da publicação de editoriais e reportagens que

enfatizavam a defesa da propriedade privada; da livre iniciativa; da liberdade de expressão

225 Para uma análise do discurso jornalístico na primeira fase do regime militar brasileiro ver: VASCONCELOS, Cláudio Beserra. A preservação do Legislativo pelo regime militar brasileiro. Ficção legalista ou necessidade de legitimação? (1964-1968). 2004. 334 p. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 226 CORREA, 2004, p.56.

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associada à preservação dos meios de comunicação privados; da ineficiência do Estado como

principal regulador da economia; da face “totalitária” do marxismo e a “obsolescência” de sua

teoria; do atrelamento da legalidade democrática à ordem capitalista burguesa; da

“neutralidade política” das Forças Armadas, da Igreja, instituições educacionais e sindicatos

patronais. Com relação à ação prática, o jornal atuou na convocação dos atos e manifestações

contra as medidas do governo; na publicização das reivindicações dos sindicatos patronais em

greve; na divulgação das posições da alta hierarquia da Igreja Católica e do Vaticano e no

isolamento dos militares “legalistas” ao acusá-los de cúmplices do marxismo. Em outras

palavras, poderíamos dizer, concordando com Rui Mauro Marini, que o Mercurio se

conformou no “centro de aglutinación y dirección de las fuerzas reaccionarias, desde los

gremios fascistas hasta los círculos dirigentes de la gran burguesía nacional y extranjera”.227

Após o golpe esta constatação se tornou ainda mais evidente pois a política econômica

delineada pela Junta Militar era a mesma que “desde las páginas del Mercurio, el gran capital

reclamaba”.228

A análise do Mercurio, exposta a seguir, nos permite compreendê-lo como uma

espécie de “partido” no sentido atribuído por Gramsci. Segundo este autor, em conjunturas de

crise ou de acirramento da luta de classes um jornal pode exercer a função de “partido” ou até

mesmo de “Estado-Maior” de determinada classe social, no sentido de operar como o

dirigente ou organizador de seus interesses, “como uma força dirigente superior aos partidos e

às vezes reconhecida como tal pelo público”. Segundo o autor italiano:

Esta função pode ser estudada com maior precisão se se parte do ponto de vista de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista (ou um grupo de revistas), são também eles “partidos”, “frações de partido” ou “funções de um determinado partido”. Veja-se a função do Times na Inglaterra, a que teve o Corriere della Sera na Itália, e também a função da chamada “imprensa de informação”, supostamente “apolítica”, e até a função da imprensa esportiva e da imprensa técnica.229

Veremos a seguir os temas e os argumentos mais recorrentes utilizados no jornal desde

1970 até 1973. Em primeiro lugar, buscaremos mostrar a maneira pela qual este veículo pode

ser analisado como um “partido” da burguesia chilena, ou seja, que interesses foram

defendidos e de que forma foram organizadas as ações diretas (e indiretas) contra o governo

de Allende. Em um segundo momento tentaremos expor o seu papel junto à Igreja Católica no

sentido de divulgar e legitimar as posições do Vaticano e da alta hierarquia católica do Chile, 227 MARINI, 1976, p.238-239. 228 Ibidem. 229 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado Moderno. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p.23.

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condenando a atuação da esquerda católica, em especial do grupo de sacerdotes denominado

“Cristãos para o Socialismo” e defendendo a “neutralidade” da instituição católica.

Se procurarmos identificar os principais eixos temáticos retratados pelo Mercurio ao

longo do período por nós estudado, veremos que o periódico não alterou o conteúdo principal

de seus editoriais – marcados, nos primeiros anos da década de 1970, pelo clima político da

Guerra Fria e suas “simples” oposições. Devemos levar em conta em nossa análise o contexto

em que estes discursos foram produzidos e as condições em que circularam e foram

“consumidos”. Com isso queremos dizer que os embates da luta social travados na sociedade

chilena naquele contexto também foram travados no plano lingüístico, na imprensa e de forma

geral, na comunicação social. Como afirmou Cardoso “os códigos fundamentais de cada

sociedade são o lugar privilegiado da luta de classes”, ou seja, os códigos são vivos, móveis e

podem se transformar em cada contexto histórico.230

Os principais temas abordados pela imprensa mercurial

Como porta-voz da classe empresarial, o jornal desde 1970 apontou para o “perigo”

das medidas propostas pela UP, principalmente as que se referiam à criação da Área de

Propriedade Social. Os editoriais defendiam a propriedade como um bem obtido pelo “esforço

individual” e, nesse sentido, a sua transposição para o controle do Estado significava o “fim

da liberdade” dos indivíduos e sua adequação forçada a uma forma “única” de produzir e

pensar. O Estado foi retratado como o “novo patrão” e a UP como uma coalizão “oportunista”

que almejava obter “todo o poder” em seu próprio benefício.

Os editoriais de setembro de 1970, mês das eleições presidenciais, atrelavam o

socialismo ao subdesenvolvimento, afirmando que a construção do sistema socialista no Chile

significaria um “retrocesso” para este país, pois poria fim à sua “tradição democrática” e

extinguiria a sua classe de industriais. No dia 21 de setembro de 1970 o editorial apontava:

Chile ha estado lejos de constituir un ejemplo de economía libre. El intervencionismo estatal se ha agudizado paulatinamente durante décadas. Pero aún se preservaba en importante medida el juego entre la necesidad del consumidor y la disposición del empresario para satisfacerla. Ha habido iniciativa privada, aunque interferida normalmente y en algunos casos monopolizada por el Estado. Lo que nos resulta visible es que la ruta hacia el socialismo integral nos vuelva al estado de subdesarrollo.231

230 CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios Racionalistas. Filosofia, Ciências Naturais e História. RJ: Campus, 1988, p.84. 231 Socialismo y subdesarrollo. El Mercurio, Santiago de Chile, 23 sep. 1970. Editorial, p.3. Grifos nossos.

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Em dezembro de 1971, ao retratar a reunião dos representantes da Área Privada, o

jornal novamente criticou o modelo econômico de intervencionismo estatal:

Cómo es posible que un estatismo retrógrado esté ahuyentando fuera del país a quienes nos son valiosos para hacer todo lo que tenemos que hacer! Cómo es posible que la gestión económica del Estado esté dilapidando por fanatismo y sectarismo recursos humanos que toma decenios rehacer! (...) Cómo es posible que cuando en todas partes se busca la forma de multiplicar los trabajadores dueños de su propio destino, aquí estemos buscando la fórmula del Patrón Único llamado Estado! 232

Nesta ocasião, os empresários criticavam a fuga de profissionais chilenos para o

exterior ao longo do primeiro ano de governo em conseqüência da aplicação de sua política de

expropriações. Nesta passagem, a defesa da livre iniciativa é encarada como uma política

mais “moderna” em contraposição ao “estatismo retrógrado” levado a cabo pela UP.

Durante o ano de 1972, especialmente a partir de outubro, a expressão dos interesses

da burguesia no jornal se deu por meio da defesa do lockout levado a cabo pelos

transportistas. A grande maioria dos editoriais, reportagens e propagandas políticas presentes

no Mercurio buscaram legitimar a greve patronal, caracterizando-a como a expressão mais

evidente do descontentamento popular com relação ao governo. Multiplicaram-se as notas,

cartas e declarações emitidas no periódico pelas associações empresariais, sindicatos de

transportistas, dirigentes do Partido Nacional e da Democracia Cristã e, inclusive, da

Confederação dos Partidos pela Democracia (CODE) – que na segunda metade de 1972 já

iniciara sua campanha massiva contra a UP para concorrer às eleições parlamentares de março

de 1973. A partir de outubro de 1972, a oposição burguesa passou a utilizar o argumento de

que o governo era “antidemocrático” e “ilegal” – acusando-o de representar somente os

interesses de uma minoria de chilenos, alguns “iludidos” com a “demagogia marxista”. O

Mercurio procurou construir a idéia de que a oposição crescia a cada dia e, diferentemente do

que afirmavam os defensores do governo, era formada não apenas por empresários,

“oligarcas” e “imperialistas” (adjetivos atribuídos pela esquerda), mas também por parcela

considerável das classes médias e populares. Paralelamente a isso, se tornaram mais regulares

o número de reportagens e editoriais que retratavam a crise econômica vivenciada pelo país e

a ineficácia dos líderes da UP em solucioná-la.

No editorial do dia 12 de outubro de 1972, o jornal fez um apelo à necessidade de ação

conjunta dos transportistas, para que, desta forma, pudessem se contrapor mais eficazmente ao

governo Allende: 232 Un año de gobierno arroja balance ampliamente negativo. El Mercurio, Santiago de Chile, 3 dez. 1971. Capa, p.1.

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tal quadro. O retrato de um Chile destroçado política e economicamente ganhou mais

evidência no ano seguinte e foi usado para justificar a intervenção das FFAA.

Durante o ano de 1973 os editoriais do Mercurio se caracterizaram por atacar

frontalmente o governo e a acusação de seu caráter “ilegal” ganhou centralidade nos atos da

oposição. Neste ano, a CODE aprovou oficialmente a inconstitucionalidade do governo na

Câmara de Deputados. Além de mencionar a ameaça de “pauperização” da burguesia por

meio da aplicação da política econômica da UP, o periódico também se utilizou da crítica ao

Poder Popular para fundamentar a sua acusação de “ilegalidade”. O avanço da organização

dos trabalhadores foi retratado como “indisciplina laboral” e como a causa principal da queda

da produtividade econômica. Em termos políticos, o governo foi criticado por sua “tendência

totalitária”, principalmente com relação ao projeto da Escola Nacional Unificada, retratado

pelo Mercurio como parte de uma estratégia maior da UP para implantar uma “ditadura” no

Chile e fazer uma “lavagem cerebral” nas crianças e jovens chilenos. Por fim, o jornal passou

a publicar de forma contínua inúmeros artigos sobre a importância das FFAA, seu

profissionalismo e seu papel de defensoras da ordem nacional. Apresentando a crise

econômica como insolúvel, surgiram editoriais com alternativas para a “reconstrução

nacional”.

Ao estudar a imprensa conservadora chilena, o autor Patricio Dooner afirmou que um

dos grandes objetivos da mesma foi mostrar a imagem de crise generalizada no país causada:

por incapacidad de los funcionarios del régimen o por intento expreso en socavar toda la institucionalidad existente con el fin de poder erigir un nuevo sistema sociopolítico de acuerdo a los cánones del marxismo. Había que demostrar que todo se derrumbaba: la familia, la educación, la justicia, la Iglesia, las Fuerzas Armadas. Había que mostrar a un gobierno represivo y sometido a los dictámenes del marxismo internacional y un ambiente de violencia generalizada.235

Com o objetivo de criar um clima de ameaça para as classes médias e preparar um

ambiente golpista, o jornal descrevia a situação de crise e violência generalizada em 1973,

com mostra o editorial abaixo:

... la durísima escasez actual, con sus colas inmensas para la obtención de pan, de carne, de aceite, de arroz, de azúcar y de otros artículos esenciales, se tornará más grave y colmará la desesperación de los chilenos, ya próximos a la zona del hambre que se perfila como una de las metas del régimen marxista. Sin embargo, nada de lo que debería hacerse para restaurar la producción agrícola en esta fase crítica es llevado a ejecución, sino todo lo contrario. (...) La ineficiencia técnica en la agricultura que se

235 DOONER, Patricio. Periodismo y Política. La Prensa de Derecha en Chile. 1970 – 1973. Santiago: ICHECH (Instituto Chileno de Estudios Humanísticos), [1985], p.35.

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denomina ‘reformada’ llega al punto de que dicho sector, que está en posesión de la mayor parte del suelo laborable del país, produce menos que lo que aún queda de la agricultura privada, siendo así que esta última sólo dispone de una ínfima parte.236

Nesse caso, a fome e a escassez foram denunciadas como parte da estratégia da UP de

proletarização das classes médias. A reforma agrária teria levado à queda da produção

agrícola, comprovando a ineficiência do Estado para gerir a economia. O novo modelo

econômico proposto nas páginas editoriais do Mercurio era reiterado pelos artigos de

representantes das associações empresariais, como é o caso do discurso pronunciado pelo

presidente da Sociedade de Fomento Fabril (SOFOFA), Orlando Saenz, tornado público pelo

jornal em março de 1973:

Queremos que todos los chilenos vean por dentro la empresa industrial privada y comprueben si es la cueva de esclavitud e idnominia, de dolor para unos y riqueza fácil para otros que siempre ha tratado de pintar el marxismo totalitario. Reconocemos que en esta labor hemos recibido una importante ayuda del Gobierno que ha cumplido la mitad de la tarea, demostrando cabalmente lo que es la empresa estatizada, convertida a estas alturas para la abrumadora mayoría de los chilenos en sinónimo de ineficacia, escasez, abuso, despilfarro y atropello. (...) Recién empezamos a mostrar que la empresa libre, manejada técnicamente, puede ser sinónimo de progreso, justicia, abundancia y eficiencia. (...) Le señalaremos sistemáticamente al pueblo chileno, preparado por la experiencia de dos años terribles, que no hay libertad política sin libertad económica, que no hay progreso sin libre iniciativa, que no hay igualdad ni justicia en un Estado totalitario. (...) Queremos que la nueva empresa privada chilena, nueva no sólo en equipos y edificios sino que en principios y conceptos, tenga una amplia base social, de manera que nunca más sea posible en Chile la indignidad de la cola, del obrero despedido por no ser marxista, del mercado negro creado por los sátrapas del Gobierno, de la producción chilena al servicio de partidos y consignas. (....) Lucharemos por la recolocación en Chile de los técnicos desplazados por el sectarismo. (...) Porque todo Chile debe saber de nuestros labios que la industria chilena está siendo sistemáticamente destruida.237

O rechaço ao “Estado empresarial” não era algo novo no discurso da SOFOFA, que

desde 1955 defendia uma política econômica que pusesse fim ao intervencionismo estatal.

Para aumentar a produção, estes empresários eram favoráveis à redução dos gastos públicos e

a transferência de recursos do setor público para o privado.238 Ressaltamos no texto a

reivindicação dos industriais de recolocar os “técnicos” no sistema produtivo chileno. Por

“técnicos” entendemos “especialistas” da engenharia, economia e outros profissionais, que no

primeiro ano de governo UP, deixaram o país depois de afetados em seus interesses

236 Camino hacia el hambre. El Mercurio, Santiago de Chile, 25 abr. 1973. Editorial, p.5. 237 Dijo Orlando Saenz en Sociedad de Fomento Fabril – ‘La salvación de Chile es tarea de todos, de cada uno depende que vivamos en libertad o esclavitud’. El Mercurio, Santiago de Chile, 29 mar. 1973, p.24. Grifos nossos. 238 Cf. CORREA SUTIL, Sofía. Con las riendas del poder. Op. cit., p.195-196.

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de desajustes, de inexperiencia y de violencia. Pero el caso chileno rebasa todos los límites de la ineficiencia y envuelve un costo moral inapreciable, pues compromete la capacidad misma de los chilenos para trabajar y convivir en un ambiente de justicia, dignidad y decencia.241

Em agosto de 1973 a coluna “Temas Econômicos” decretava o fracasso da experiência

UP e apresentava um novo modelo econômico para a “reconstrução nacional”, o qual, devido

à grave crise econômica, não poderia contar com as “regras do jogo” vigentes. Em outras

palavras, o Mercurio anunciava o que seria a política econômica do regime militar chileno:

La experiencia de la vía chilena hacia el socialismo parece estar llegando a su fin; en efecto, la magnitud de la crisis económica es tal que hace imposible visualizar salidas positivas con las actuales reglas del juego. (...) No corresponde discutir acá las alternativas de salida política que el país posee; supondremos que este país, como muchos otros, encontrará una forma de Gobierno con poder y permanencia suficientes para permitir el desarrollo de una política económica coherente y racional. (...) El primer problema que debe resolverse es el de la organización de la producción; en este sentido la experiencia de la UP de estatización ha resultado claramente un fracaso y debe en consecuencia cambiarse, por la vía de descentralizar el aparato productivo; la descentralización se puede llevar a cabo entregando el manejo de los medios de producción al sector privado a través de empresas privadas con diversos grados de participación; puede pensarse en fórmulas diversas como empresas integradas, de autogestión, de cogestión, cooperativas o empresas privadas como las existentes en los países desarrollados europeos. Las formas descentralizadas de producción han probado ser superiores a las estatales, porque en ellas existen sistemas de incentivos claros que tienden a favorecer la inversión, el trabajo, la eficiencia, etc. No sucede ello con las empresas estatales, donde lo que conviene es trabajar poco y mal. No hay disciplina, innovación y en general no hay incentivos para que las personas desarrollen sus capacidades.242

Como apontou Correa, desde fins da década de 1960 se delineava uma ação conjunta

entre os economistas formados em Chicago que retornaram para reorganizar os estudos em

economia na Universidade Católica do Chile, as organizações empresariais e a empresa

Mercurio que criou colunas no jornal para a publicação de temas específicos, como a que se

intitulava “Temas Económicos”, citada anteriormente. Na conjuntura de 1970, estes

economistas em conjunto com Agustín Edwards, proprietário do jornal, desenvolveram o

Centro de Estudos Sócio-Econômicos para elaborar o programa econômico da candidatura de

Jorge Alessandri.

Levando em conta estes elementos, torna-se interessante analisar uma declaração da

Federação de Estudantes da Universidade Católica publicada pelo Mercurio no final de agosto

de 1973. Os estudantes invocaram a intervenção das FFAA no país, considerando o

241 Insuficiente explicación de un fracaso. El Mercurio, Santiago de Chile, 22 mai. 1973. Editorial, p.5. Grifos nossos. 242 Ideas para la Reconstrucción Nacional. El Mercurio, Santiago de Chile, 11 ago. 1973. Temas Económicos, p.2. Grifos nossos.

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argumento de que a instituição castrense seria a única força “neutra”, “acima das disputas

políticas partidárias” e a verdadeira representante dos interesses nacionais:

Chile necesita volver integralmente a la democracia, pero sobre la base de crear una nueva institucionalidad, que adapte los valores permanentes de nuestro Estado de Derecho a las profundas transformaciones que la ciencia y la técnica han ido introduciendo en el mundo contemporáneo. De este modo se podrá dar paso a un Gobierno de integración nacional que, entregando la resolución de los problemas a los más capaces y a los que más saben, colocará a Chile en la ruta del desarrollo, de la cual hoy se aleja en forma cada vez más alarmante. La insuperable pugna actual entre los diversos Poderes Públicos, reflejo de la honda división cívica entre los chilenos, les impide llevar a cabo tan indispensable y trascendental tarea. Para emprenderla sólo existe una fuerza organizada idónea que, en virtud de su autoridad moral y de su situación por encima de grupos y partidos, representa una garantía de unidad para todos los chilenos: las Fuerzas Armadas. Sólo bajo la dirección unitaria de nuestras Fuerzas Armadas, Chile puede reunir a sus mejores hombres en la misión de proponer la nueva institucionalidad que el país necesita para restablecer su democracia, y que el pueblo tendría que refrendar con su voto libre, secreto e informado. Abrir el camino hacia ello es la única alternativa realista para evitar toda forma de enfrentamiento fratricida, de totalitarismo de estado, o de dictadura arbitraria e indefinida.243

Por último, cerca de dois dias antes do golpe, o jornal publicou um editorial que

afirmava a existência de um “amplo consenso com respeito à inconstitucionalidade e

ilegalidade do governo”. Segundo o texto, o país se encontrava “inevitavelmente condenado à

destruição se continuasse aplicando a política de transição ao socialismo”.244 A capa do dia 13

de setembro informava sobre o suposto “suicídio” de Allende e o editorial do mesmo dia

justificava a intervenção das FFAA no país:

Tanto la opinión pública nacional como la extranjera habían llegado a la evidencia de que Chile entraba en un proceso fatal que debía llevarlo a la dictadura marxista o a la guerra civil. La intervención de las FFAA, vino en este caso a liberar a la ciudadanía de la inminente dictadura marxista y a salvar a Chile del aniquilamiento político, social y económico. Se abren ahora perspectivas de recuperación mediante un intenso y disciplinado esfuerzo que restablezca el hábito del trabajo, normalice las faenas, detenga la destrucción del patrimonio nacional y reinicie el proceso de capitalización indispensable al futuro bienestar.245

De forma surpreendente, no mesmo dia do golpe de Estado o presidente da empresa

jornalística El Mercurio, Fernando Léniz, fora nomeado para um dos cargos ministeriais mais

decisivos do período: Economia. Também é importante lembrar que seu irmão, Jorge

Fontaine Aldunate, presidente da Confederação da Produção e Comércio, fora chamado a

243 Federación de Estudiantes de la Universidad Católica de Chile (FEUC) y Federación de Estudiantes de la Universidad Católica de Valparaíso (FEUC-V). Hacia una nueva institucionalidad a traves de la renuncia de Allende. El Mercurio, Santiago de Chile, 30 ago. 1973. Inserción, p.7. 244 Presión en la base social. El Mercurio, Santiago de Chile, 9 set. 1973. La Semana Política, p.31. 245 Hacia la recuperación nacional. El Mercurio, Santiago de Chile, 13 set. 1973. Editorial, p.3.

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ocupar o cargo da Direção de Organizações Civis, de caráter econômico, atuando como

diretor do Projeto Chile.246 Os exemplos se multiplicam se buscássemos as convergências

entre a empresa Mercurio e as bases do regime militar. No entanto, neste estudo apenas

objetivamos demonstrar que esta grande empresa jornalística desempenhou a função de

“partido” da burguesia chilena durante os anos que antecederam o golpe militar no Chile.

Com isso, entendemos que o jornal cumpriu o importante papel de difundir e organizar as

aspirações do conjunto desta classe, se materializando como expressão da oposição ao modelo

“nacional-reformista” que não oferecia mais as condições de acumulação de capital almejada

pela fração mais moderna da burguesia chilena.

El Mercurio: a defesa dos valores cristãos e do pensamento católico tradicional

Apresentando-se também como porta-voz dos valores cristãos, podemos dizer que o

Mercurio teve uma atuação importante no que se refere à divulgação do posicionamento da

alta hierarquia católica do Chile nas disputas internas da Igreja. Nesse sentido, o jornal

funcionou como um difusor do pensamento católico tradicional.

Ao analisar as reportagens e editoriais do Mercurio referentes aos temas do mundo

católico, percebemos que o jornal procurou destacar os assuntos que convergiam ou eram

funcionais à linha política do jornal. O mais freqüente foi a defesa da incompatibilidade entre

o marxismo e o cristianismo, visto que neste período, uma parte considerável de cristãos –

laicos, sacerdotes e freiras – aderiram à construção do projeto da UP e se somaram às

organizações políticas de esquerda. Paralelamente, os jornalistas do Mercurio também se

preocuparam em divulgar artigos, entrevistas e reportagens que enfatizavam a “neutralidade”

da Igreja Católica e seu distanciamento com relação aos conflitos de ordem política. Veremos

a seguir, por meio de alguns exemplos, de que forma o Mercurio, buscando se identificar

como um órgão puramente “informativo” também utilizou elementos do pensamento católico

tradicional para defender como universais, os valores específicos da classe dominante. Nesse

sentido, a defesa da “civilização cristã ocidental”, da “justiça”, do “bem comum”, da

“democracia” e da “propriedade privada” são elementos comuns, presentes no discurso

católico tradicional e usados pela burguesia nesse contexto de defesa da ordem capitalista

ameaçada.

246 CORREA, op. cit., p.272. Sobre o Projeto Chile ver capítulo 1, p.41 desta dissertação.

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Logo no primeiro ano de governo da UP, o Mercurio publicou uma notícia que frisava

a preocupação da Igreja com os problemas sociais, ressaltando no entanto que o marxismo

não era o caminho adequado para solucioná-los:

Paulo VI también criticó el llamado ‘marxismo cristiano’, al decir que ‘el nombre cristiano no es anticuado, ni ineficaz, ni necesita de alianzas equivocadas’. Este mes, el Papa expidió uno de los documentos claves de su reinado, una extensa carta apostólica actualizando las enseñanzas de ‘Rerum Novarum’ y repudiando el marxismo por su ‘materialismo ateo y su dialéctica de violencia’.247

No mesmo mês, o jornal publicou um artigo em que rechaçava o envolvimento dos

católicos com a política, em especial com a ação política da esquerda. O autor do artigo

também condenou a adesão dos cristãos ao liberalismo, da mesma forma que pregara o Papa e

a alta hierarquia da Igreja do Chile nesse período. No entanto, a ênfase dos pronunciamentos

referia-se ao marxismo, entendido como uma doutrina que, se aplicada, levaria

“inevitavelmente” a sociedade a um regime “totalitário”:

El cristiano que quiere vivir su fe en una acción política, concebida como servicio, tampoco puede adherirse sin contradicción a sistemas ideológicos que se oponen radicalmente o en los puntos sustanciales a su fe y a su concepción del hombre: ni a la ideología marxista, a su materialismo ateo, a su dialéctica de violencia y a la manera como ella entiende la libertad individual dentro de la colectividad, negando al mismo tiempo toda trascendencia al hombre y a su historia personal y colectiva; ni a la ideología liberal que cree exaltar la libertad individual sustrayéndola a toda limitación, estimulándola con la búsqueda exclusiva del interés y del poder, y considerando las solidariedades sociales como consecuencias más o menos automáticas de iniciativas individuales y no ya como un fin y un criterio más elevado del valor de la organización social. (...) Si a través del marxismo, tal como es concretamente vivido, pueden distinguirse estos diversos aspectos (...) seria ilusorio (...) el aceptar los elementos del análisis marxista sin reconocer sus relaciones con la ideología, el entrar en la práctica de la lucha de clases y de su interpretación marxista dejando de percibir el tipo de sociedad totalitaria y violenta a la que conduce este proceso.248

Em 1972, em meio à polêmica interna da Igreja sobre o surgimento do grupo “Cristãos

para o Socialismo” (CpS), formado por sacerdotes empenhados na construção do socialismo

no Chile, o Mercurio publicou a carta de um grupo de padres que defendia o não

envolvimento do sacerdote com a política:

Nuestro compromiso con Chile se traduce, por eso, en dos palabras: ser sacerdotes. Sacerdotes sin más adjetivos o apellidos. Nuestro sacerdocio no se limita a un territorio, ni está al servicio de una ideología, de una facción, de un partido, o de una clase en forma excluyente. (...) Somos sacerdotes de la Iglesia, presencia paternal de un Dios que no discrimina ni excluye a nadie de entre sus hijos, y que sólo sabe tener

247 Paulo VI condena la insensibilidad social. El Mercurio, Santiago de Chile, 17 mai. 1971, p.26. 248 Iglesia, política y acción social en el mundo hoy. El Mercurio, Santiago de Chile, 23 mai. 1971, p.6.

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preferencias por el más pobre y el más necesitado. (...) No es para eso que fuimos ordenados sacerdotes. No tenemos derecho a oscurecer, de ese modo, el verdadero rostro de la Iglesia, ni a defraudar las legítimas expectativas de nuestro pueblo. El pueblo espera, y tiene derecho a exigirmos que seamos lo que somos: padres, pastores y educadores de la fe.249

Em 1973, o Mercurio noticiou amplamente aquela que foi a maior polêmica

envolvendo a Igreja, qual seja a discussão em torno do projeto da Escola Nacional Unificada

(ENU), desenvolvido pela UP. O ENU foi utilizado para agregar outros setores à oposição

aberta ao governo, dentre eles a Igreja Católica e as FFAA. A UP foi acusada de “ideologizar

a educação sobre a base de postulados marxistas e de querer destruir a família”.250 Nesse

sentido, o Mercurio de 1973 esteve repleto de manchetes que afirmavam o rechaço de

distintos padres e arcebispos ao ENU, além de posteriormente publicar a posição conjunta da

Conferência Episcopal do Chile sobre o mesmo. O rechaço dos bispos ao ENU deu uma

legitimidade a mais para o conjunto da oposição em sua luta contra o governo. Neste ano, o

jornal também deu voz aos setores mais conservadores da Igreja, como o padre Raúl Hasbún,

diretor do Canal 13 de Televisão, que posteriormente apoiou o golpe militar.

Em março de 1973, após o pronunciamento individual do bispo Emilio Tagle contrário

ao ENU, o Mercurio lançou um editorial que convocava a Igreja, em seu conjunto, a se

posicionar contrariamente ao projeto de educação do governo:

El derecho de los padres a escoger los establecimientos para educar a sus hijos; la violación de los derechos que asisten a los progenitores si se impone un sistema único de educación, del cual se excluya totalmente la formación religiosa; la ilegitimidad de que la cultura sea forzada a servir al poder político o económico; el derecho que asiste a los jefes de familia de velar por la formación cristiana de su prole fueron algunos de los principios básicos recordados por el prelado del puerto. (...) La Iglesia Católica no debe permanecer indiferente frente a iniciativas que amenazan la esencia misma de obras que realiza, como es el caso de la docencia, cuyos fueros garantiza por lo demás la propia Constitución Política del Estado. (...) La oportuna alocución de Monseñor Emilio Tagle constituye, además, una defensa de posiciones que hacía falta en el debate promovido por un proyecto que – conviene insistir una vez más – subordina la educación particular a las orientaciones marxistas.251

No mês seguinte, após o rechaço de todo episcopado chileno ao projeto, o jornal

lançou uma matéria que justificava o posicionamento da alta hierarquia:

(...) porque ve venir a continuación de la intolerancia política el atropello a la libertad de creencias, con desconocimiento de garantías constitucionales básicas. Además, no

249 Sacerdotes no están al servicio de partidos. El Mercurio, Santiago de Chile, 27 abr. 1972, p.16. 250 DOONER, Patricio. Periodismo y Política. La Prensa de Derecha en Chile. 1970 – 1973. Op. cit., p.39. 251 Rechazo Episcopal a Escuela Nacional Unificada. El Mercurio, Santiago de Chile, 22 mar. 1973, p.3. Grifos nossos.

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pudiera olvidar los católicos que el marxismo-leninismo es en sí una fe política incompatible con la que ellos profesan y que las iglesias han sido atropelladas en todos los países donde prevalece el socialismo.252

Neste trecho está presente o posicionamento do jornal quanto às problemáticas

internas da Igreja assim como a tentativa de criar um “clima de ameaça” envolvendo os

católicos e sua instituição com relação diante de uma possível implantação do socialismo no

Chile. Curiosamente, o mesmo tema foi abordado pelo Papa Paulo VI com relação às “Igrejas

do Silêncio” nos países comunistas e publicado pelo jornal no dia seguinte à reportagem

acima. A matéria levava a seguinte manchete: “Paulo VI exhorta a orar por la Iglesia

sometida al comunismo”.253

Retomando a polêmica em torno ao ENU, o Mercurio ainda publicaria um editorial

cujo tom agressivo insinuava a intenção do comunismo em acabar com a liberdade religiosa

por meio da reforma educacional. No trecho a seguir é explícito o chamado à Igreja a compor

a frente de oposição ao governo “marxista” de Salvador Allende com o objetivo de se

autopreservar enquanto instituição. Dessa forma, o jornal apontava para a impossibilidade de

sobrevivência do catolicismo - ou de qualquer atividade religiosa - sob um governo de

inspiração marxista:

En Chile han reinado por largos años una tolerancia y una libertad de conciencia que enorgullecen al país. La Escuela Nacional Unificada tiene el triste privilegio de inaugurar entre nosotros el monismo ideológico, la unilateralidad sectaria e infecunda en el seno de la educación. El trasplante a Chile de un ideologismo oficialista inspirado en Marx y Lenin reinicia también una era de conflictos religiosos, ya que es legítimo que los cristianos vean amenazada la fe de sus mayores y busquen en las jerarquías de la Iglesia una orientación que les permita resistir los avances del ateísmo beligerante. La ideología del materialismo dialéctico empezará a insinuarse en formas aparentes libres y tolerantes, pero su propia lógica interna lo llevará a la intolerancia y la persecución de las religiones, como bien pueden contarlo no sólo los cristianos de todas las sectas sino también los judíos y hasta los que profesan un deísmo no necesariamente religioso.254

Observa-se a legitimação dos posicionamentos da alta hierarquia da Igreja e um

chamado ao conjunto de fiéis para que recorressem à orientação de seus “superiores”, não se

deixando levar, ingenuamente, por ideologias “atéias”.

Por último, às vésperas do golpe, o Mercurio apresentava em sua capa o pedido de

renúncia de Allende feito pelo padre Raúl Hasbún, membro da Igreja que mais recebeu

252 La familia y el nuevo modelo escolar. El Mercurio, Santiago de Chile, 1 abr. 1973. Capa, p.1. 253 Paulo VI exhorta a orar por la Iglesia sometida al comunismo. El Mercurio, Santiago de Chile, 2 abr. 1973, p.27. 254 Comunismo y religión. El Mercurio, Santiago de Chile, 11 abr. 1973. Editorial, p.5.

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atenção por parte do periódico nos anos de governo UP. Por ser um homem importante da

instituição católica – diretor de um canal de televisão e do boletim Iglesia de Santiago -, além

de expressar o pensamento dos setores mais conservadores do catolicismo no Chile, o jornal o

tinha como uma figura de confiança e até como um aliado na conformação da frente de

oposição. O trecho abaixo é revelador nesse sentido:

Nuevas manifestaciones para que el Presidente de la República rectifique la política de su gobierno o renuncie se hicieron sentir ayer en Santiago y en diversas partes del país. Los estudiantes de la Universidad Católica comenzaron a recolectar firmas en la zona céntrica de esta capital para solicitar la renuncia de Allende. El Padre Raúl Hasbún, Director del Canal 13 de Televisión, en un editorial que leyó ante las cámaras al término del informativo ‘Tele 13’, tuvo expresiones encaminadas a persuadir al Presidente de la República, y a quienes lo acompañan en su gestión gubernativa, para que dejen sus cargos. El sacerdote apoyó sus términos en una sentencia del Papa Juan XXIII, contenida en la Encíclica Pacem in terris: ‘La razón de ser de un gobernante, radica por completo en el bien común de su pueblo’. (...) [La autoridad] en concepto de la cristiandad, es servicio y el poder se tiene como un medio y no como un fin, un medio para servir el bien común del pueblo. De acuerdo a ello, los actuales momentos que vive el país nos presentan a un gobernante enfrentado a un dilema: que por una parte posee la grandeza de servir y por otra el drama de un país empobrecido. Exasperado, ‘desgarrado en su cuerpo y enfermo en su alma, y esto es más dramático aún – agregó Hasbún – cuando uno ha sido encarnado de una gran esperanza de redacción’. (...) Hasbún sostuvo que la experiencia marxista-leninista ha comprobado la verdad de una ley expresada por el Papa Paulo VI: ‘Cada vez que los hombres tratan de organizar la tierra sin Dios, terminan organizándola contra el hombre’.255

Em suma, buscamos, por meio destas passagens, mostrar que o Mercurio, enquanto

um dos jornais mais influentes do Chile pode ser analisado como uma expressão dos

interesses da burguesia chilena. Torna-se notório o papel ativo do periódico na organização do

conjunto da oposição ao governo e na tentativa de criar um consenso em torno da necessidade

de uma intervenção militar no Chile, país “destroçado pelo marxismo” em 1973. A

publicização das orientações oficiais da Igreja do Chile, assim como as do Vaticano, também

nos permite avaliar seu papel na legitimação do pensamento católico conservador em um

momento de crise interna da instituição. A doutrina católica foi de fato utilizada para justificar

oficialmente o golpe militar256 e uma parte da Igreja apoiou abertamente o novo regime.

255 Piden renuncia de Allende. El Mercurio, Santiago de Chile, 5 set. 1973. Capa, p.1. Grifos nossos. 256 “(...) Las fuerzas Armadas han asumido el deber moral que la Patria les impone de destituir el Gobierno que, aunque inicialmente legítimo ha caído en la ilegitimidad flagrante, asumiendo el Poder por el sólo lapso en que las circunstancias lo exijan, apoyado en la evidencia del sentir de la gran mayoría nacional, lo cual de por sí, ante Dios y ante la Historia hace justo su actuar y por ende, las resoluciones, normas e instrucciones que se dicten para la consecución de la tarea de bien común y de alto interés patriótico que se dispone cumplir” apud “Bando nº 5 de la honorable Junta de Gobierno de Chile”. In: Libro Blanco del cambio de gobierno en Chile. 11 de septiembre de 1973. Santiago de Chile: Lord Cochrane, 1973, p.249.

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2.4 A historiografia sobre o golpe de 1973: questões e problemas

Para compreendermos a perspectiva predominante na bibliografia existente sobre o

governo de Allende e o golpe militar de 1973 optamos por trabalhar com alguns autores cujos

estudos parecem ser mais influentes no meio acadêmico chileno e brasileiro e que apresentam,

de certa forma, uma semelhança em termos de conteúdo teórico com grande parte da

historiografia sobre o golpe de 1964 no Brasil. Entre eles destacamos Arturo Valenzuela,

Manuel Garretón, Tomás Moulián, Luis Corvalán Márquez e o brasileiro Alberto Aggio.257

Estes autores, por meio de suas produções acadêmicas, buscaram “superar” os trabalhos

publicados durante o governo Allende e no período imediatamente posterior ao golpe –

bibliografia produzida predominantemente por militantes políticos da esquerda chilena.

De forma geral, a maioria das produções posteriores priorizou a análise dos aspectos

políticos do processo histórico chileno de 1970, deixando de lado as demais esferas da vida

social. Assim, a política assumiu uma posição isolada, “sujeita às suas próprias determinações

e cega perante a economia nacional e internacional, às classes sociais e suas lutas e às

características de um Estado que é muito mais do que esta ou aquela agência governamental

ou arena institucional”.258 A crítica de O’Donnell à bibliografia de cunho “politicista” da

década de 1980 – resultado de uma reação aos estudos estruturalistas e supostamente

economicistas que predominaram na década anterior – nos parece ainda pertinente para

pensarmos parte importante da bibliografia chilena sobre o processo que desencadeou no

golpe de 1973.

Nesse sentido, ao excluir a estrutura econômica e de classes de sua análise, estes

autores terminaram por reduzir a política à sua esfera formal, isto é, ao papel desempenhado

pelos órgãos políticos tradicionais da democracia burguesa, a saber, os partidos políticos, o

Parlamento, o Congresso, o Poder Judiciário, a Assembléia Legislativa, entre outros. Desta

constatação, deduz-se outra: compreendendo a política apenas por meio de seu sistema

político formal, os autores se aproximaram da concepção teórica, já clássica, de Samuel

Huntington e de sua formulação acerca do pretorionismo.259

De acordo com Huntington, as sociedades menos institucionalizadas (ou capitalistas

dependentes como no caso dos países latino-americanos) apresentariam instituições políticas

257 Neste trabalho vamos nos deter na análise das obras de autores chilenos, fazendo apenas algumas menções à pesquisa de Alberto Aggio que os tem como base em sua dissertação de mestrado. 258 O’DONNELL, Guillermo. Reflexões sobre os Estados Burocrático-autoritários. São paulo: Vértice, 1987, p.9. 259

HUNTINGTON, Samuel P. A ordem política nas sociedades em mudança. SP: Forense universitária, [1968].

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frágeis, incapazes de “mediar, refinar e moderar a ação política dos grupos”, ou seja,

instituições políticas ou grupos políticos profissionais que não seriam reconhecidos ou aceitos

como “intermediários legítimos para moderar os conflitos”. Nesse sentido, seriam sociedades

onde não haveria acordo “quanto aos métodos legítimos e conclusivos para dirimir os

conflitos”.260 A ausência de instituições fortes levaria ao envolvimento político de grupos de

natureza “não-política”. Em outras palavras, estes países assistiriam, ao longo de seu processo

de modernização, à politização de suas Forças Armadas, da Igreja, das Universidades

(incluindo aí seu corpo docente, discente e administrativo), sindicatos e outras corporações

especializadas. Todos estes atores tenderiam a se envolver com problemas políticos de ordem

geral e “não apenas [com] assuntos que lhe dizem respeito diretamente”.261 Esta excessiva

politização de grupos “naturalmente apolíticos” levaria, gradativamente, a uma situação de

caos e instabilidade social.

A perspectiva elaborada por Huntington foi muito utilizada na década de 1980 para o

estudo dos golpes militares na América Latina e das origens dos regimes militares. Em certo

sentido, também podemos identificá-la em alguns trabalhos sobre o processo chileno, apesar

do desenrolar dos acontecimentos históricos neste país demonstrar a completa falência deste

modelo analítico. O Chile é retratado pela maior parte da historiografia como um país que

desde o início do século XX apresentou uma tradição democrática, com instituições políticas

fortes, partidos representativos e estabilidade política. Nesse sentido, se diferenciava do

restante dos países da América Latina. Para alguns autores, tratava-se de uma espécie de

“arreglo democrático” ou “entendimento tácito”262 – política marcada por alianças e

consensos que deram organicidade ao sistema político do país e teriam demonstrado a solidez

de seu regime democrático. Sendo assim, de 1930 a 1973 o Chile teria sido marcado por um

ethos desenvolvimentista no plano econômico, garantidor do processo de modernização da sociedade chilena que, via Estado, possibilitou o desenvolvimento industrial e consubstanciou as pautas integradoras vivenciadas no plano social que substituíram os vínculos de tipo tradicional, permanecendo aí vigente um regime democrático e em crescente ampliação participativa.263

260 Idem, ibidem, p.208. 261 Ibidem, p.206. 262

AGGIO, Alberto. Socialismo e Democracia– e experiência chilena. 2 ed. São Paulo: Annablume, 2002. 263

Ibidem, p.62.

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Pelo fato de apresentar uma “defasagem” entre sua “comunidade política

institucionalizada”264 e o caráter dependente de sua economia, a sociedade chilena seria

caracterizada, segundo esta concepção, como “semi-pretoriana”, estando mais próxima das

sociedades ocidentais européias e se destacando entre as demais sociedades latino-

americanas.265 Para analistas e cientistas políticos estrangeiros tratava-se de um país que

apresentava, portanto, indicadores de amadurecimento que o colocavam como a segunda

nação da América Latina mais próxima do “primeiro mundo”, apesar de sua inserção tardia no

capitalismo.266 Isto era evidenciado pelo “profissionalismo” de suas FFAA – característica

muito destacada pelos estudiosos até os dias atuais. Vejamos, então, de que forma alguns

autores chilenos analisaram a crise que precedeu o golpe militar de 1973.

Dentre os trabalhos publicados durante o regime ditatorial-militar de Augusto Pinochet

destaca-se o de Arturo Valenzuela, El quiebre de la democracia en Chile, de 1978.267 Partindo

da hipótese de que a quebra da democracia no Chile foi resultado do fracasso na busca de um

“centro político viável”, o autor busca explicar o golpe por meio da excessiva polarização da

sociedade chilena em 1973, a qual não teria permitido que os atores alcançassem uma

resolução pacífica nos marcos institucionais do regime democrático. Como afirmou

Valenzuela:

Tanto los sectores del gobierno como los de oposición que eran partidarios de una resolución pacífica del conflicto se encontraban permanentemente acosados desde ambos extremos. Las presiones políticas eran tan grandes que se privilegiaban las medidas de corto plazo destinadas a lograr ventajas partidistas en desmedro de acuerdos necesarios para el bien del país. El gobierno se vio incapaz de abandonar su política redistributiva y de exigirle orden a la clase obrera por miedo no sólo a la oposición sino también a elementos rivales dentro de su propia coalición.268

O autor identifica a existência de setores “legalistas” ou partidários de uma “resolução

pacífica” tanto no interior do governo da UP quanto na oposição, e afirma que se a

polarização da sociedade não tivesse alcançado níveis tão altos, seria possível estabelecer um

“acordo tácito” entre ambos os lados e, desta forma, preservar a ordem democrática. Nesse

sentido, Valenzuela concebe a democracia como uma forma política representativa do “bem 264 Por “comunidade política institucionalizada” nos referimos, a partir da concepção de Huntington, às sociedades com instituições reconhecidamente capazes de mediar os conflitos entre os grupos, tais como os partidos de centro no caso do Chile (Partido Radical e posteriormente Partido Democrata-Cristão); além da presença de FFAA de tradição constitucionalista; Parlamento e Congressos fortes e representativos; enfim, sociedades nas quais a maioria dos atores políticos tenderia a respeitar as regras do jogo estabelecidas. 265 Eugenio Tironi é o principal defensor da “teoria da defasagem”. Cf. TIRONI, Eugenio. La torre de Babel – ensaios de crítica e renovación política. Santiago de Chile: SUR, 1984. 266 Segundo estes analistas, a “primeira” nação seria o Uruguai. 267 VALENZUELA, Arturo. El quiebre de la democracia en Chile. Santiago de Chile: FLACSO, 1978. 268 Ibidem, p.166. Grifos nossos.

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comum” capaz de conciliar interesses distintos entre grupos de uma sociedade. O autor

chileno acredita, portanto, que as crises e possíveis conflitos devem e podem ser resolvidos no

interior do sistema político. Seguindo essa linha de pensamento, a democracia seria composta

por instituições capazes de harmonizar os interesses se todos os grupos estivessem dispostos a

cumprir as regras do jogo estabelecido. Da forma pela qual a questão é colocada, somos

levados a entender que foram os setores mais “extremistas” de ambos os lados que não

permitiram a efetivação de acordos para o “bem do país”.

Em seguida Valenzuela afirma:

La fragmentación de las dirigencias políticas, la autonomía de los medios de comunicación altamente politizados y combativos, y la continua movilización de masas apoyada por ambos bandos y por elementos al interior de cada bando contribuía a una mayor confusión e hizo más difícil llegar al consenso mínimo necesario para preservar el régimen. Con el tiempo, sectores centristas de ambos bandos se desplazarían cada vez más hacia posiciones ‘semileales’ o ‘desleales’. (...) Aunque las presiones políticas aportaban los parámetros básicos que definían los límites y las potencialidades de las opciones y acciones políticas, el desenlace no era inevitable. En Chile había espacio para opciones alternativas. La conciencia de clase no llegaba a tal punto que la clase obrera no habría aceptado otra cosa, y por cierto un acuerdo político era incompatible con la solución maximalista. Tampoco existían grandes sectores de la clase media tan reaccionarios que sólo habrían aceptado un gobierno autoritario de derecha.269

Nesse caso, o excesso de politização dos grupos, dos meios de comunicação e das

massas – “dirigidas” pelos partidos tanto da “situação” quanto da “oposição” – não teriam

permitido o consenso.

Notamos, em primeiro lugar, que está ausente na análise de Valenzuela a identificação

dos reais interesses de classe colocados e a própria luta social que permearam aquela

conjuntura. O autor se refere com freqüência ao longo do texto às idéias de “centro”, “forças

do governo” e “forças da oposição”, como se aquele contexto histórico se resumisse a uma

espécie de jogo onde o jogador tivesse que cumprir as regras previamente estabelecidas para

obter o equilíbrio, a estabilidade e a continuidade do próprio jogo. Sabe-se, no entanto, que o

Chile estava diante de uma crise real que remetia à luta entre interesses antagônicos. O avanço

da organização dos trabalhadores chilenos e o surgimento do Poder Popular ameaçaram

diretamente os interesses não apenas dos grandes proprietários, mas também das classes

médias – estas últimas historicamente marcadas pela ausência de capital efetivo, mas pelo

desejo de obtê-lo e, nesse caso, pela reprodução e defesa da ideologia dominante burguesa. A

269 Ibid., p.167-168.

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luta esteve colocada na prática e não apenas no imaginário deste atores, sendo praticamente

impossível chegar a um simples consenso.

Em segundo lugar, ao afirmar que o golpe não era inevitável o autor aponta que

naquele contexto estavam colocados caminhos outros que não a radicalização das lutas

sociais. Se a “consciência de classe não houvesse alcançado níveis altos” e a “classe média

não fosse tão reacionária” seria possível ter “bom senso” e defender uma saída democrática e

consensual. A conclusão lógica deste pensamento é que o “maximalismo” na luta pelas

reformas teria sido a principal causa do golpe militar. Seguindo a leitura, Valenzuela aponta:

En un momento coyuntural crítico no se quiso escuchar las voces solitarias en el gobierno y la oposición que llamaban a la conciliación. Hubo poca preocupación que una crisis de régimen pudiera provocar no sólo la destrucción de cualquier esperanza de una revolución socialista, sino que también podría destruir las propias reglas del juego democrático. Los chilenos en general estaban convencidos de que eran distintos al resto de los latinoamericanos, que pese a todas las dificultades era imposible que se produjera un quiebre del régimen. Prevalecieron los estrechos intereses de grupos, los intereses parciales.270

Nesta passagem o autor identifica a predominância dos “interesses parciais” sobre os

interesses comuns na conjuntura que precedeu o golpe. Os chamados de conciliação por

elementos do governo e da oposição teriam sido atropelados pela disputa entre “estreitos

interesses de grupos”. Segundo o autor, os atores políticos da época acreditavam na solidez da

democracia chilena e na impossibilidade de um golpe militar. Por este motivo, teriam levado a

luta até as últimas conseqüências e com isso destruído não apenas a possibilidade de

construção do socialismo, como também as regras do “jogo democrático”.

Observa-se que o principal foco de atenção do autor é a radicalização do processo

político. Valenzuela não considera outros elementos, como os interesses reais dos atores em

questão. Sabe-se que o golpe foi sendo articulado por forças conservadoras e liberais, além

dos setores “duros” das FFAA, e que este processo teve início desde a posse de Allende na

presidência da República. Estes setores apresentavam convicções anti-populares, eram

contrários ao estabelecimento de uma democracia com ampla participação popular e estavam

dispostos a aceitar a supremacia econômica, militar e ideológica norte-americana. Além disso,

eram setores que reproduziam um anticomunismo radical. A este fator podemos agregar

outro: as experiências brasileira, boliviana e argentina de golpes militares já tinham mostrado

a incompatibilidade entre o princípio democrático da soberania popular e o princípio liberal

(primado dos interesses individuais sobre os interesses sociais), principalmente em situações

270 Ibid., p.210. Grifos nossos.

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de acirramento da luta de classes ou em conjunturas revolucionárias. Queremos dizer, como

bem lembrou Moraes,271 que “o compromisso dos que detêm privilégios econômicos com a

democracia nunca ultrapassa (...) os limites da ordem burguesa”, ou seja, as classes

dominantes, inclusive as chilenas, não se inclinariam diante de um governo eleito por sufrágio

universal se este mesmo governo ameaçasse seus privilégios e interesses. Nesse sentido, não

renunciaram a recorrer uma ditadura para preservar a “economia liberal”, ou “não hesitaram

em apelar para os generais quando o ‘método democrático’ se tornou disfuncional para

eles”.272

Outra questão a ser problematizada no estudo de Valenzuela é a sua caracterização das

classes populares e operárias durante o processo de implantação da via chilena ao socialismo:

Fuera de unas pocas iniciativas dispersas de grupos como el MIR, con anterioridad a octubre de 1972 los partidos de gobierno habían mantenido un control político sobre sus adherentes y el grueso de los obreros chilenos. Fue la masiva embestida de las huelgas patronales la que comenzó a consolidar un grado de conciencia de clase y de acción autónoma. Aún así, durante el gobierno de Allende los sectores radicalizados de la clase obrera siguieron constituyendo una minoría, y la movilización descontrolada y desestabilizadora más relevante continuaría siendo la contramovilización de la clase media. El quiebre de la democracia chilena fue más el resultado de la contramovilización frente a amenazas percibidas, que una excesiva movilización de sectores que demandaban sus reivindicaciones.273

Valenzuela busca explicar o golpe de 1973 como um resultado da “contra-

mobilização” das classes médias – movimento que mostrava a agonia destes setores numa

conjuntura de instabilidade social e econômica. As classes médias seriam, portanto, as

protagonistas da derrota da UP, uma vez que, atemorizadas com o processo de mudanças e

reformas, passaram a apoiar a saída golpista para a crise como a única forma de restabelecer a

ordem no país e a sua “segurança” enquanto classe.

Nesse sentido, o contexto de mobilização que precedeu o golpe é entendido pelo autor

chileno como produto da “histeria” dos setores médios e não como mobilização e luta das

classes operárias e populares por interesses próprios. A atuação dos trabalhadores chilenos é

compreendida a partir de sua vinculação aos partidos de esquerda, como simples “massa de

manobra”, ou a partir da reação à ofensiva burguesa e não por sua militância enquanto classe

autônoma e protagonista do processo político. Sabe-se que o conjunto dos trabalhadores

chilenos apresentava uma longa tradição de luta desde fins do século XIX, principalmente por

271 MORAES, João Quartim de. Contra a canonização da democracia. Crítica Marxista, Campinas, n. 12, p.9 – 40, 2002. 272 Idem, ibidem, p.19. 273 Ibidem, p.215. Grifos nossos.

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estar concentrado nas minas de ferro, cobre, estanho e salitre – todas elas apropriadas pelo

grande capital estrangeiro, em especial o norte-americano e o inglês. O fato de a economia

chilena ter se constituído como uma economia de enclave possibilitou que estes trabalhadores

desenvolvessem, no cotidiano de suas próprias lutas contra o patronato estrangeiro, uma forte

consciência de classe. Não é à toa que a história do movimento operário chileno foi sangrenta,

como recordaram os autores Alain Rouquié e Emir Sader.274

A redução da análise do golpe a sucessivas ondas de “mobilização” e “contra-

mobilização” entre “posição” e “oposição” acaba levando o leitor a concluir que para as

classes médias e dominantes o “sentimento de crise” era maior do que a própria crise, como

indica a oração: “El quiebre de la democracia chilena fue más el resultado de la

contramovilización frente a amenazas percibidas (...)”. O autor retrata os conflitos sociais

como se estes tivessem sido transferidos do imaginário dos atores políticos para a ordem real-

material. Assim, a mobilização social dos setores médios teria ocorrido em função da

“ameaça” de crise estimulada pelos grandes meios de comunicação que naquele contexto se

encontravam altamente politizados. Já comentamos anteriormente que não apenas existiu a

“sensação de ameaça”, estimulada pelos próprios setores golpistas e seus meios, como

também existiu a luta real, de “carne e osso”, entre setores de classes antagônicas e, por este

motivo, torna-se absurdo querer substituir a realidade pelo imaginário.275

Há ainda um outro elemento que merece ser analisado na obra de Valenzuela. Trata-se

do papel atribuído às FFAA como instituição “neutra” diante de uma sociedade cujas

instituições políticas tradicionais se encontravam “deterioradas” no que se refere ao

cumprimento de seus papéis “previamente” estabelecidos pelo jogo democrático:

El fracaso de las negociaciones, el consecuente deterioro del rol de las instituciones y procedimientos mediadores tradicionales, la política de movilización social y el deterioro de la autoridad del liderazgo político sobre sus militantes, llevaron a la incorporación de lo que Juan Linz denomina poderes “neutrales” al juego político, en la expectativa que ellos pudieran resolver los conflictos de fondo. La Controlaría, los tribunales, el Tribunal Constitucional y, finalmente, las Fuerzas Armadas se vieron involucrados poco a poco en agudas controversias, que claramente pertenecían a la

274 Rouquié aponta que o primeiro grande massacre de operários chilenos se deu em 1907 em Santa María de Iquique com um total de 2000 mortos, em seguida o de Punta Arenas em 1920 e o de Coruña em 1925 com 3000 mortos, dentre outros. Todos eles teriam ocorrido em função da repressão às greves. Cf. ROUQUIÉ, Alain. O Estado Militar na América Latina. São Paulo: Alfa Ômega, 1984, p. 270. Sader afirma que a primeira central sindical chilena foi criada em 1909 – a Federação Operária do Chile (FOCH). Cf. SADER, Emir. Chile (1818-1990): Da independência à redemocratização. São Paulo: Brasiliense, 1991. 275 Esta concepção também parece ser defendida por Eugenio Tironi quando afirma que “a crise de 1973 desenhou-se como uma crise de direção política em seu sentido mais amplo, nascendo e desenvolvendo-se muito mais no mundo das concepções das elites políticas do que no mundo real. (...) Por seu tradicionalismo, a classe política chilena (...) não soube reproduzir mecanismos racionais de regulação política baseados na negociação, na concertação, no compromisso” apud AGGIO, Alberto. Op. cit., p.65.

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arena política y legislativa, y que requerían de negociación y acuerdos para alcanzar una solución.276

Como afirma o autor, na medida em que as instituições políticas tradicionais da

democracia chilena como o Congresso, o Parlamento e os partidos políticos passaram a não

mais desempenhar seus papéis de mediadores dos conflitos entre os grupos, tornou-se

necessário incorporar “agrupamentos especializados” de natureza “apolítica” no jogo político,

a fim de que estes mediassem os conflitos. Valenzuela vai além ao afirmar que a incorporação

política destes setores “neutros” teria contribuído para a politização dos mesmos e,

consequentemente, para a deterioração da legitimidade do sistema democrático. Conclui-se

disso que o “excesso” de politização de forças sociais, não criadas para fazer política, levou à

intensificação da crise e à destruição da democracia chilena.

A avaliação do papel cumprido pela Democracia Cristã se aproxima da análise sobre

as FFAA. Segundo o autor:

A pesar de que mucha gente ya no estaba interesada en conservar el sistema tradicional, un acuerdo entre el Presidente y el mayor partido opositor [Democracia Cristã] habría convertido cualquier intento de golpe de Estado – por ende cualquier intento por incitar a las masas a una confrontación armada – en un acontecimiento demasiado costoso.277

O fato de a DC ser considerada um partido de centro e não ter cumprido este papel na

ocasião da articulação do golpe é considerado por este e outros autores como um dos

principais fatores explicativos da ruptura da democracia no Chile. Da mesma forma que

Huntington, Valenzuela acredita na existência de instituições mediadoras dos conflitos, como

o Partido Democrata-Cristão e as instituições consideradas “neutras” como os tribunais e as

FFAA. A politização dessas instituições e o não cumprimento de seus papéis de mediadores

contribuiriam para o desencadeamento da crise e para a preparação do ambiente golpista.

É importante ressaltar, no entanto, que o PDC, apesar de apresentar uma base social

significativa entre os trabalhadores, se configurou desde sua origem como um partido

burguês278, no sentido de que seu programa apontava para a realização de reformas nos

marcos do capitalismo. A questão a se pensar é que este partido, que se constituiu a partir de

uma tradição legalista, tendo inclusive legitimado a vitória de Allende nas eleições

presidenciais de 1970, diante do processo de ativação popular incorporou-se à frente golpista

276 VALENZUELA, Op. cit., p.219. 277 Ibidem, p.249-250. 278 No capítulo 1 abordamos o surgimento da DC e fizemos uma caracterização do programa deste partido, bem como do governo de Frei e das frações de classe beneficiadas com a realização da “revolução em liberdade”.

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que derrubou o presidente eleito. Retornaremos a esta análise mais à frente na exposição de

argumentos de outros autores que defenderam semelhante tese.

Devemos ressaltar ainda nesta passagem a identificação, por parte do autor, de setores

“constitucionalistas” e “golpistas” tanto na esquerda quanto na direita chilenas. Os setores

“golpistas” da direita e da esquerda são responsabilizados pelo autor da mesma forma que os

constitucionalistas, na medida em que não se mobilizaram para fechar um acordo entre si e

evitar tal desfecho. Segundo esta concepção, nenhum dos atores políticos estaria muito

comprometido com os “valores democráticos”. A crítica à historiografia “revisionista” sobre o

golpe de 1964 no Brasil feita por Caio Navarro de Toledo também pode ser endereçada,

segundo acreditamos, à historiografia chilena sobre o golpe. De acordo com Toledo “não há

uma preocupação em distinguir as motivações e atuações específicas de cada um dos agentes

políticos – nem de avaliar os recursos materiais e simbólicos que detinham”.279 É como se

todos (direita, esquerda, militares, Allende...) estivessem em igualdade de condições e

“absolutamente nivelados em termos de responsabilidade pela destruição da democracia”.280

Ao final, Valenzuela faz a seguinte crítica à esquerda chilena:

El hecho de que la izquierda revolucionaria, al intentar radicalizar el proceso político, contribuyó en gran medida a destruir precisamente el éxito de la estrategia del gobierno llamada la “vía chilena”. Con sus acciones, la izquierda revolucionaria, que siempre había ridicularizado la posibilidad de una transformación socialista a través de medios pacíficos, se vio atrapada en una profecía autocumplida.281

Segundo o argumento acima exposto, a esquerda revolucionária chilena, a saber o

MIR e parte dos socialistas (PS), esteve “pouco comprometida” com as questões democráticas

e com a própria via chilena de Allende ao defender a ruptura com o Estado burguês e a

transferência do poder aos trabalhadores organizados no Poder Popular. A partir desta

afirmação deduz-se que o autor responsabiliza igualmente a esquerda e a direita pelo golpe de

Estado, caracterizando ambos os lados por seu perfil “autoritário”. Esta opção interpretativa

retira do golpe todo seu conteúdo classista, de ação coordenada por setores civis e militares

contrários à ampliação da democracia política, oposição que veio se formando há décadas. A

alternativa apresentada por Valenzuela, de um “acordo” entre Allende e a DC, não poderia se

concretizar visto que a esquerda não poderia recuar em seu programa sem prejuízo de sua

279 TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: Golpismo e democracia. As falácias do revisionismo. Crítica Marxista, Campinas, n. 19, 2004, p.27-49. 280 Ibidem, p.34. 281 Ibid., p.286.

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que al fin son capitalizadas por quienes poseen los medios de comunicación, el capital o las armas.285

Nesta passagem, os autores defendem um projeto de transformação de caráter popular,

nacional e amplo, isto é, que não estivesse restrito à perspectiva classista. Os cientistas

políticos chilenos parecem olhar para o passado e fazer uma auto-crítica ao projeto da UP.

Nesta crítica, apontam os fatores que deveriam ter sido levados em consideração pela

esquerda da época.

Dentre estes fatores afirmam a necessidade de um projeto de transformações “reais”

que respeitasse os limites do sistema político formal, traçasse alianças e acordos com outros

setores sociais que não apenas as classes populares e trabalhadoras. Esta estratégia evitaria a

exacerbação das “paixões” e o excesso de polarização da sociedade, preservando a “ordem” e

a “segurança”. Por fim, teria “poupado” o Chile da dura e longa experiência da ditadura

militar.

Ao longo da obra, a crise da sociedade chilena em 1970 é entendida pelos autores

como uma crise “parcial”, pois não afetava o regime político democrático, mas sim o

chamado “Estado de Compromisso”. A ruptura com a democracia é explicada por uma

evolução da “crise parcial” para uma “crise total”. A polarização político-ideológica e os

conflitos sociais teriam produzido a desinstitucionalização, atingindo a legitimidade do

regime. Nesta construção teórica identificamos a influência da “teoria da defasagem” que

combina subdesenvolvimento econômico e a institucionalização política da sociedade, ou em

outras palavras, uma espécie de “semi-pretorianismo”.

A derrota da via chilena é explicada a partir da hipótese de que a estratégia da UP não

incluía a expansão da democracia como parte de seu programa máximo, mas sim a construção

da etapa histórica de transição do Chile para o socialismo. Assim, segundo os autores, houve

uma combinação entre a tendência que visava “buscar compromissos” entre distintas forças

políticas e a estratégia do “duplo poder”.

Outro autor, contemporâneo aos anteriores, mas com formação em história, é Luis

Corvalán Márquez. Em um artigo publicado na ocasião dos trinta anos do 11 de setembro

chileno, Corvalán defende a hipótese de que o golpe não pode ser entendido se não

considerarmos a metamorfose política e ideológica da direita chilena entre 1966 e 1970. Esta

285 GARRETÓN, Manuel Antonio; MOULIAN, Tomás. La UP y el conflicto político en Chile. Op. cit., p. 17-18. Grifos nossos.

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mudança teria sido marcada pela passagem do “liberalismo” para o “nacionalismo”.286

Segundo o autor, a ação da direita contra os processos democratizantes e anticapitalistas em

curso no país veio associada à intervenção norte-americana e à ação do grande empresariado.

No entanto, outras variáveis explicativas do golpe são identificadas e aí parece residir o

problema de sua análise. Dentre elas estaria o comportamento do centro e da esquerda

política, que terminaram sendo “funcionais aos propósitos golpistas”.287

Como apontou o historiador, tanto a DC quanto o PS e MIR contribuíram para a

deslegitimação do marco institucional dos conflitos, questão indispensável para a vitória das

forças golpistas. A DC é caracterizada pelo autor como um “centro anti-aliancista”, incapaz

de chegar a acordos moderados com o governo, fator que contribuiu decisivamente para a

polarização buscada pelos golpistas. Os socialistas também teriam cumprido o papel de

polarizadores do conflito, “atuando contra” a via chilena de Allende, bloqueando seus

esforços no sentido de travar acordos com o centro.

Corvalán, da mesma forma que Valenzuela, divide os atores políticos em dois grupos:

os “disruptivos”, favoráveis à ruptura com a ordem institucional; e os “gradualistas” ou

“institucionalistas” favoráveis à manutenção do sistema político. Em ambos os grupos

estariam concentrados membros da direita e da esquerda política – aproximados não por seus

interesses de classe, mas pela adesão ou não à democracia formal. Nesse sentido, a esquerda

do PS, o MIR e o PN (Partido Nacional) são compreendidos como setores “disruptivos” e o

PC e a DC como “gradualistas”.288

Ao reivindicar o estrito cumprimento dos papéis preestabelecidos pelo sistema

democrático formal aos partidos políticos e não levar em conta os interesses de classe que

representavam naquela conjuntura, Corvalán compartilha da concepção apresentada por

Valenzuela – cujo trabalho serviu de base para os seus contemporâneos. Corvalán parte do

princípio de que uma vez cumpridas as regras do jogo político, os conflitos tenderiam a se

solucionar de forma pacífica e por meio de acordos, não sendo necessário, portanto, a ruptura

com a institucionalidade. Também visualizamos em sua obra a crença na “solidez”,

“maturidade” e “representatividade” do sistema democrático chileno. Considerando estas

questões, o golpe é explicado por uma “irresponsabilidade” tanto da Democracia Cristã 286 Esta mudança teria sido marcada pelo abandono da perspectiva democrático-liberal e pela defesa de um nacionalismo de direita com feição altamente autoritária. Ver CORVALÁN MÁRQUEZ, Luis. A treinta años del 11 de septiembre: el imperativo ético de ‘reescribir la historia’. In: ZAPATA, Francisco (compilador). Frágiles Suturas. Chile a treinta años del gobierno de Salvador Allende. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 2006. p.219-268. 287 Idem, ibidem, p.220. 288Cf. CORVALÁN MÁRQUEZ, Luis. Del anticapitalismo al neoliberalismo en Chile. Santiago: Sudamericana, 2001, p.230.

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quanto da esquerda revolucionária que, ao radicalizarem as suas ações, se tornaram funcionais

aos setores golpistas de direita. Como afirmou Corvalán:

El PDC (...) jugó un rol altamente polarizante del sistema político chileno, y en tanto tal, no cumplió el rol propio de un centro; es decir, mediar, hacer de puente, lograr acuerdos con los polos del sistema político, y por esa vía contribuir a estabilizar el marco institucional de los conflictos.289

Consideramos que o ponto nevrálgico de seu trabalho é o tratamento dado à esquerda e

à criação do Poder Popular em uma conjuntura de intensa ofensiva burguesa contra o governo

e contra o processo de ascensão organizativa dos trabalhadores. Corvalán aponta:

Ahora bien, más allá de toda consideración subjetiva, lo cierto fue que el descontrol de masas impulsado por la izquierda rupturista y su sistemática oposición a que el gobierno negociara con el PDC, fue muy útil a una derecha que perseguía la ingobernalidad como condición del golpe. Era en efecto el marco institucional de los conflictos el que en beneficio de aquélla resultaba de tal modo cuestionado, abriéndose paso a las soluciones de facto. Sin decir nada sobre el efecto producido en los estratos medios que, asustados por el curso de los acontecimientos, tendieron crecientemente a pasarse a la oposición. La retórica ultrarrevolucionaria de la izquierda radical tuvo en este sentido devastadores efectos para el gobierno.290

Outros pontos da obra de Corvalán merecem ainda ser citados e discutidos. Um deles é

a compreensão do papel da DC como “polarizadora dos conflitos”. Ao aprofundar esta

questão, o autor responsabiliza a hegemonia interna da direita freísta (ligada ao ex-presidente

Eduardo Frei) pelo golpe, em contraposição aos setores progressistas que teriam incentivado a

realização de acordos com o governo se estivessem no controle do partido:

No es menos cierto que el rol polarizante del PDC también estaba vinculado al peso específico de sus corrientes internas y en particular a la imposición del liderazgo virtual de Eduardo Frei en detrimento de los sectores progresistas del partido. En efecto mientras estos últimos mantuvieron el control, no hubo polarización en el país: la derecha quedó aislada en su principal repliegue, mientras que a contrapelo se exploraron consensos entre el PDC y el gobierno.291

Segundo o autor, enquanto os setores progressistas da DC mantiveram influência

decisiva interna, a polarização do país pôde ser evitada, pois foram travados acordos com o

governo. A análise de Corvalán apenas destaca a movimentação dos partidos políticos da

“situação” e da “oposição”, deixando de lado outros fatores que também poderiam nos ajudar

a compreender a experiência chilena. Sua obra reduz o golpe à movimentação “irresponsável” 289 CORVALÁN MÁRQUEZ, Luis. A treinta años del 11 de septiembre: el imperativo ético de ‘reescribir la historia’. Op. cit., p.249-250. 290 Ibidem, p.252. 291 Ibid., p.252-253.

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de alguns atores políticos, que se tivessem agido de outra maneira, teriam evitado o desenlace

violento.

Ao concluir, Corvalán identifica quatro elementos que segundo ele foram

determinantes na radicalização dos conflitos e na efetivação do golpe. Seriam eles: a

habilidade tática do setor “disruptivo” da oposição, que orientou sua base social para uma

perspectiva deslegitimadora do marco institucional dos conflitos e “convenceu” o PDC de que

esta era a melhor opção a ser tomada naquele momento; o papel desestabilizador do governo

norte-americano através da intervenção da CIA por meio de atividades encobertas; o peso das

forças “disruptivas” de esquerda que contribuíram para criar as condições de “desgoverno”

que a direita precisava para dar o golpe e impediram o diálogo com o centro político,

deslegitimando o marco institucional dos conflitos e inviabilizando a via chilena; a influência

dos setores conservadores da DC, que permitiram que este partido se somasse à ação conjunta

com o PN.292

Em resumo, é importante destacar que esta perspectiva de análise, predominante na

historiografia sobre o golpe militar no Chile, parte de um entendimento funcionalista e

sistêmico da sociedade, caracterizando-a como um conjunto de sub-sistemas que visam a

harmonia e o equilíbrio, mas não o conflito. Com isso queremos dizer que para estes autores,

uma vez cumpridos os papéis determinados pelo sistema político vigente, a estabilidade da

democracia formal não seria abalada e os golpes poderiam ser evitados. Ainda segundo esta

perspectiva, seria possível alcançar a conciliação entre interesses distintos e estabelecer um

consenso nacional. A opção dos estudiosos por uma análise dos fatores políticos que ignora a

compreensão do conjunto dos aspectos constituintes da sociedade reforça a afirmação

anterior, pois descola o regime político do sistema econômico, da mesma forma que reforça a

concepção “reificada” de Estado, isolando-o dos interesses de classe que o permeiam. A

ruptura da democracia no Chile em 1973 é analisada por grande parte dos pesquisadores

chilenos como resultado de um “desvio” dos atores de seus papéis tradicionais e pela

politização de instituições que “não foram criadas para fazer política”. Nesse sentido, suas

obras reforçam e atualizam a perspectiva elaborada por Huntington.

Por último, entendemos que a opção por esta via interpretativa acaba por legitimar a

ação golpista vitoriosa e atenuar a responsabilidade dos militares e dos grupos civis pela

supressão da democracia em 1973. A hipótese de que a esquerda, ao não abrir mão de seu

programa máximo, não estava suficientemente comprometida com a democracia vigente,

292 CORVALÁN MÁRQUEZ, Luis. Del anticapitalismo al neoliberalismo en Chile. Op. cit., p.230.

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reforça o discurso utilizado pela frente golpista de que para “evitar o golpe da esquerda

marxista totalitária” os militares, em nome de “interesses nacionais”, contragolpearam, em

defesa da democracia ameaçada. Em resumo, concordamos com Toledo quando afirma que

“não são as reformas moderadas que permitirão transcender as dimensões formalistas que

caracterizam os regimes democráticos no capitalismo dependente e periférico. Historicamente

são as lutas políticas dos trabalhadores”,293 isto é, as lutas entre classes de interesses

antagônicos. Por isso, se a esquerda chilena deve ser criticada, não será por seu excesso de

radicalidade, mas sim pela crença prolongada na construção do socialismo via reformas no

regime democrático burguês.

293 TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: Golpismo e democracia. As falácias do revisionismo. Op. cit., p.45.

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Capítulo III

A alta hierarquia católica e a frente golpista:

a paz social e a defesa da ordem – aproximações discursivas e práticas

Nosso objetivo neste capítulo é analisar a movimentação política da alta hierarquia

católica do Chile durante o governo da Unidade Popular e ao longo do processo de articulação

do golpe civil-militar efetuado em setembro de 1973. É importante ressaltar que, apesar de

apresentarmos a Igreja como objeto principal de estudo, não estamos interessados unicamente

em seus processos internos, mas na relação que esta instituição constrói com o Estado, com as

classes sociais e demais aparelhos privados de hegemonia.

Por este motivo, optamos por centrar o nosso estudo na análise de quatro temas

abordados não apenas pela Igreja, mas pelo conjunto das organizações da sociedade civil da

época. Isso nos permitirá buscar as semelhanças e diferenças, bem como as alianças e

divergências entre distintos atores políticos no período de preparação do golpe.

Quanto ao primeiro tema, que se refere à defesa da democracia, nossa intenção é

discutir a associação efetuada entre democracia, legalismo e ordem, e a suposta contraposição

entre democracia e socialismo levada a cabo pelos diferentes setores que se colocaram na

oposição ao governo da UP. Também é nosso objetivo identificar as diferenças entre os atores

políticos que veicularam a retórica de defesa da “legalidade”, demonstrando o seu processo de

unificação a partir do fortalecimento da organização dos trabalhadores chilenos em 1972. O

item terá início com uma discussão histórica acerca da concepção católica de democracia,

seguida da análise do discurso “legalista” proferido por distintos setores da oposição. Por

último, discutiremos de que forma a defesa da legalidade democrática foi utilizada pela

oposição contra a classe trabalhadora organizada.

O segundo item, a abordagem do socialismo e seus efeitos político-sociais no Chile,

será dividido em três partes. Na primeira focaremos a nossa análise na discussão conceitual

realizada pela Igreja, pelo El Mercurio e pela DC em torno do “socialismo” e do “marxismo”

para, em seguida, abordarmos a concepção dos atores sobre a “via chilena para o socialismo”.

É importante destacar que nos documentos oficiais a relação entre a Igreja e o governo de

Allende parece por demais diplomática. Tentaremos, portanto, problematizar esta questão -

dentro dos limites impostos pelas fontes disponíveis para esta pesquisa – pois, não obstante

estabelecerem relações de cordialidade, Igreja e UP nunca estiveram aliadas. Lembramos que

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não constitui nossa intenção fazer uma análise teórica aprofundada sobre a idéia de

socialismo, mas sim demonstrar de que forma este tema foi utilizado na disputa ideológica

contra o governo da UP e na construção do golpe. Na segunda parte buscaremos apresentar a

relação construída entre a alta hierarquia da Igreja e o governo de Allende, identificando as

mudanças nesta relação ao longo do período. Constitui nosso objetivo detectar, por meio da

análise das fontes, que medidas do governo tiveram a aprovação da Igreja e em que momentos

esta relação se deteriorou. Para isso, torna-se necessário destrinchar o discurso católico

“oficial”, considerar as suas ambigüidades e compará-lo com o conteúdo dos editoriais do

Mercurio do mesmo período. Na terceira parte nos dedicaremos à relação estabelecida pelo

episcopado chileno com o movimento “Cristãos para o Socialismo” e a polêmica em torno do

engajamento da esquerda católica no projeto da UP.

Quanto ao terceiro tema, a oposição à reforma educacional do governo Allende,

procuraremos apresentar as diversas críticas feitas ao projeto da Escuela Nacional Unificada

(ENU) elaborado pela UP, demonstrando a centralidade que a educação obteve no discurso

católico. Além disso, buscaremos ressaltar a forma pela qual este tema foi utilizado,

principalmente pelo jornal El Mercurio, para agregar outros setores, como a Igreja e as Forças

Armadas, na oposição ao governo de Allende. Nosso objetivo é compreender a maneira pela

qual a recusa ao ENU funcionou como um elemento importante na unificação dos diversos

elementos da oposição. Neste item não nos dedicaremos a uma discussão mais aprofundada

sobre educação e socialismo, educação e sociedade, educação e política. Nos limitaremos

apenas a expor o tratamento dado ao tema pelos setores que compuseram a frente civil-militar

de oposição e de que maneira o mesmo foi utilizado para “justificar” e dar “legitimidade” à

saída golpista.

O quarto e último item, em nome da reconciliação nacional, será abordado a partir das

caracterizações feitas pela Igreja na defesa do tema. O item foi assim dividido em quatro

partes: a Reconciliação Nacional como resultado da justiça social; a Reconciliação Nacional

como respeito à legalidade democrática; a Reconciliação Nacional como consenso e a

Reconciliação Nacional como perdão. Em cada um deles apresentaremos a perspectiva

católica sobre o tema e buscaremos identificar o resultado político dos pronunciamentos

episcopais no contexto em que se tornaram públicos.

Torna-se fundamental reafirmar que, em se tratando de documentos oficiais,

levaremos em consideração a conjuntura específica em que foram pronunciados, uma vez que

é a contextualização que nos permite romper as “permanências” e a “atemporalidade” do

pensamento católico, identificando sua “intenção” política. A apresentação dos atores

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políticos e de sua disputa político-ideológica entre 1970 e 1973 por meio da análise de seus

próprios meios de comunicação nos permitirá compreender o papel político desempenhado

pela Igreja Católica do Chile no processo de construção de uma suposta legitimidade para a

saída golpista.

3.1 A defesa da democracia

A democracia regida por princípios cristãos

La sociedad democrática es un conjunto de autonomías sociales, comunidades de vida (familia, vecindad, trabajo) en las cuales el pueblo se organiza para establecer un hogar, una ciudad, el trabajo. (...) El Estado no se confunde ni se identifica con el pueblo. Es el órgano político general en que el pueblo construye su vida social. Su papel, en circunstancias ordinarias, es el de promover la vitalidad y autonomía de las entidades sociales, enmarcándolas en el interés común a través de un plan. Identificar al pueblo con el Estado, o al pueblo con su líder o a una clase o raza con el Estado, es el principio de todo totalitarismo.294

Devemos buscar as origens da aceitação do regime democrático pela Igreja Católica

no final do século XIX e mais especificamente a partir do Pontificado de Leão XIII com a

conhecida encíclica Rerum Novarum (1891). O contexto foi marcado pela busca de novas

relações da Igreja com os Estados Modernos e, de certa forma, pela sua reconciliação com a

nova ordem liberal. Este movimento encontrou seu eixo doutrinário na formulação da

chamada “questão social” que significou, dentre outras coisas, o reconhecimento do Estado

como um campo independente da influência religiosa e, portanto, a separação e autonomia

entre as esferas espiritual e temporal. Contra a burguesia e sua revolução, as quais teriam

provocado a “desordem social” que teria influenciado o posterior surgimento do socialismo, a

Igreja se apresentou como defensora do “povo cristão”, dos mais pobres e desafortunados –

classe esquecida pela nova ordem burguesa.

Ao passar para as ações concretas, o catolicismo, descobrindo a miséria da vida

operária e camponesa, se lançaria em movimentos de ação social e em seguida à defesa da

“democracia cristã”. Esta atitude significou em parte a rejeição dos valores liberais, mas não o

abandono de relações com a burguesia; ao contrário, a Igreja tentou reconquistá-la e abrir

caminho para uma futura aliança “clérico-moderada”.295

294 La crisis económica y las elecciones parlamentarias. Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVIII, n. 340, p.6-8, jan. 1973. 295 POULAT, Emile. “Integralismo”. In: BOBBIO, Norberto; METTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (Org.). Dicionário de Política. 5 ed. São Paulo: editora UNB, 2004, p.635-637. p.636.

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A partir da Segunda Guerra Mundial, a Igreja se deparou com o que consideraria

posteriormente como seus “grandes inimigos” – os chamados “totalitarismos materialistas” –

frente aos quais não tinha possibilidade de propor uma sociedade regida por princípios

cristãos. Por “totalitarismo” o catolicismo entendeu tanto a Alemanha nazista quanto o

comunismo soviético, uma vez que ambos os regimes atuaram no cerceamento de suas

liberdades. Nesse sentido, a democracia se transformou no sistema político aceito pela Igreja,

no qual ela poderia preservar sua sobrevivência enquanto instituição na sociedade moderna.

Esta democracia reconhecida pela Igreja derivava do liberalismo, sistema que esta havia

rechaçado inicialmente. Conformou-se então um duplo movimento. Por um lado, a instituição

católica buscou renascer a partir de si mesma, adaptando a sua doutrina às mudanças trazidas

com a modernidade. Por outro lado, o liberalismo, a partir de fins do século XIX, mudou de

direção rumo a uma espécie de ordem “social-liberal” que atrelava o bem do indivíduo ao

bem de toda comunidade, reconhecendo desta forma as conseqüências da industrialização –

pobreza, desemprego, enfermidades – como questões sociais que deveriam ser tratadas em um

nível mais amplo.296

Como apontou Vivanco del Solar,297 a forma democrática aceita pela Igreja deveria

apresentar certas características, como o reconhecimento de uma ordem superior

transcendental que permitisse que a Igreja se desenvolvesse em plenas condições e mantivesse

sua influência política e cultural. Isso significava estabelecer uma relação de respeito mútuo

entre Estado e Igreja em que os governantes aceitassem que a “dignidade da autoridade

política é a dignidade derivada de sua participação na autoridade de Deus”.298 De acordo com

a perspectiva católica, os dirigentes políticos deveriam ser aqueles capazes de discernir o

“bem comum” com desinteresse. Assim, cada indivíduo ou grupo de indivíduos colaboraria

nos distintos trabalhos e necessidades da sociedade. As diferenças sociais foram encaradas

não como desigualdades de ordem econômica, mas como aptidões que se complementavam e

visavam o equilíbrio social. No entanto, a Igreja não desconheceu a desigualdade social que

permeava as sociedades modernas. Esta última, em sua concepção, correspondia aos excessos

296 VICENT, Andrew. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1995, p.41. Apesar do desenvolvimento do social-liberalismo na década de 1880, cujas idéias foram posteriormente adotadas pelos partidos socialistas reformistas europeus, o liberalismo chamado “clássico” ganhou uma forma moderna em algumas escolas como a de Chicago cujo expoente era Milton Friedman e na escola austríaca de economia onde se formou Hayek. 297 VIVANCO DEL SOLAR, Carolina. La Iglesia y la segunda guerra mundial: perspectiva de la Iglesia chilena frente al conflicto. Santiago: Pontifícia Universidade Católica de Chile, 2004 (tesis para optar al grado de Licenciado en Historia), p.80. 298 Idem, ibidem, p.81.

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do individualismo e do comunismo e deveria ser superada por meio da justiça e da caridade

social.

A idéia de democracia defendida pelo catolicismo fazia alusão ao funcionamento do

organismo humano em que cada parte do corpo seria responsável por uma função específica.

Estas partes juntas possibilitariam o funcionamento de um todo orgânico. O regime

democrático seria, portanto, um sistema que permitisse a participação de cidadãos com a

“livre” opção de escolher seus governantes, desde que estes não fossem “ditadores, proletários

ou políticos” e onde a “intrínseca” dignidade do indivíduo ficasse a salvo de qualquer forma

de dependência ou manipulação. Nesse sentido, o “sagrado” da personalidade individual que

o capitalismo desconheceu e o comunismo rechaçou seria um elemento de vital

importância.299 Ao buscar tanto a realização do bem comum quanto do bem da pessoa

humana, isto é, do indivíduo, a Igreja sofreu uma adaptação à ordem liberal-industrial,

“ajustando-se a uma concepção individualista do homem e da sociedade que a legitima”.300

Este sentido atribuído à democracia se relacionava não apenas com as suas motivações

próprias enquanto instituição, como também com seu programa de reforma social que tinha

por objetivo sanar a sociedade daquilo que o catolicismo considerava contrário à “ordem

natural”. Como solução para os problemas do capitalismo e do comunismo, a Igreja propôs o

chamado “corporativismo” – um sistema representativo no qual se equilibravam as funções de

Estado, das associações profissionais e dos indivíduos em particular. Como vimos no primeiro

capítulo, a origem desta concepção está na encíclica Rerum Novarum, sendo reafirmada por

Pio XI na Quadragesimo anno (1931). O corporativismo serviria para evitar os equívocos de

uma democracia liberal ilimitada ou uma de corte socialista em que o Estado adquirisse

funções que não lhe correspondiam, como, por exemplo, dirigir as mesmas corporações

profissionais. Seu objetivo seria estimular a organização dos trabalhadores e a sua unidade de

ação junto aos patrões, promovendo a aliança do capital com o trabalho. As corporações

agrupariam trabalhadores ligados a uma determinada atividade econômica, que juntas

contribuiriam para o funcionamento saudável de toda nação. Nesse sentido, a idéia

corporativa de sociedade – fundamental na definição de uma ordem democrática verdadeira –

possibilitaria a união de pessoas não por sua condição sócio-econômica, mas de acordo com a

atividade exercida. Por sua vez, a concretização deste sistema permitiria a realização do bem

particular do indivíduo e do bem de toda comunidade. A conquista do equilíbrio social por

299 Ibidem, p.82. 300 SOUZA, Jessie Jane Vieira de. Círculos Operários – a Igreja Católica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Faperj/editora UFRJ, 2002, p.67.

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meio de organismos intermediários evitaria a dupla desordem: aquela provocada pela

iniciativa individual não controlada e a aquela advinda da intervenção arbitrária do Estado,

além de pôr fim ao problema da luta de classes.

Nesta perspectiva, o Estado teria a função de assegurar as condições necessárias para o

desenvolvimento do bem comum cujo fundamento seria a propriedade privada. Em outras

palavras, ao Estado foi atribuída a tarefa de manter a lei e a ordem pública, fomentando o bem

da comunidade e administrando os negócios públicos. Sendo a propriedade a base deste bem

coletivo e do próprio indivíduo, ela deveria ser garantida por intermédio das leis.

Cabe aqui fazer um breve apontamento sobre este último item, visto que neste capítulo

buscaremos discutir o atrelamento da concepção de democracia à de legalidade, veiculada

pela Igreja e pela imprensa burguesa nos primeiros anos da década de 1970 – formulação

muito difundida por diversos atores políticos no contexto que antecedeu o golpe militar no

Chile. De acordo com a perspectiva cristã de democracia, o bem comum apenas poderia ser

concretizado no campo da política e no exercício do poder por meio do ato de legislar. Nesse

sentido, a lei, como uma expressão do direito natural e da justiça, tornava-se o limite e a

essência do poder.301

Em suma, no que se refere ao sistema político, a Igreja defendeu principalmente a

partir da década de 1930 a necessidade de uma colaboração com o Estado e a concepção de

um sistema democrático corporativo como a forma de governo mais adequada. No que tange

ao sistema econômico, propôs a aliança entre capital e trabalho, o direito à propriedade

privada, denunciou as injustiças provocadas pelo capitalismo, responsabilizando-o pelo

surgimento do comunismo e defendeu salários mais justos para os trabalhadores e terras para

os camponeses que nelas trabalhavam.

Em defesa da legalidade democrática: cumprindo as leis para preservar a ordem

Ao analisarmos os documentos oficiais da Igreja Católica do Chile de 1970 a 1973

podemos identificar semelhanças entre a concepção de democracia defendida nestes anos pela

grande imprensa e a que expusemos acima, que se refere à linha universal da Igreja Católica a

partir da Segunda Guerra Mundial. Cabe-nos, no entanto, compreender de que forma esta

perspectiva foi defendida nas conjunturas específicas que marcaram o período de governo da

UP, quais foram os pontos de contato entre a concepção da Igreja e a que foi expressa pelo

301 Idem, ibidem, p.69.

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jornal El Mercurio e em que medida podemos considerá-la funcional à legitimação do golpe

militar de setembro de 1973.

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“mudanças precipitadas e excessivas”, ao “desemprego”, à “escassez”, à “crise econômica”, à

“ditadura”, ao “doutrinamento compulsivo” e à “perda do patrimônio espiritual da pátria”.

Em abril de 1971 o episcopado reconheceu o governo de Allende e legitimou a sua

autoridade, evidenciando mais uma vez a sua concepção de democracia:

(...) Frente al legítimo Gobierno de Chile reiteramos la actitud que nos viene de Cristo: respeto a su autoridad, y colaboración en su tarea de servicio al pueblo. Todo esfuerzo por construir una sociedad más humana, eliminando la miseria, haciendo prevalecer el bien común sobre el bien particular, reclama el apoyo de quien, como cristiano, está comprometido en la liberación del hombre. La tradición democrática del país permite que este apoyo pueda realizarse también a través de una crítica seria y de genuina perspectiva de bien común.303

O episcopado demonstrou seu apoio ao governo, em especial ao projeto de ampliar as

conquistas sociais das classes populares – reconhecido pela hierarquia como um intento de

realização do “bem comum”. Entendeu por “tradição democrática” a “liberdade de expressar

opiniões divergentes” e até opostas. Nesse sentido, confirmou seu apoio “crítico” ao governo,

exigindo, de certa forma, que a UP preservasse as liberdades democráticas mesmo que seu

objetivo fosse a construção de uma sociedade socialista.

Ao longo de 1971 os pronunciamentos do PDC se aproximavam muito do que

afirmavam os bispos. Da mesma forma que estes últimos, os democrata-cristãos se diziam

favoráveis às mudanças sociais desde que estas fossem realizadas pela via constitucional e

sem violência. O editorial da revista Política y Espíritu de maio de 1971, ao expor as palavras

do presidente nacional deste partido – senador Narciso Irureta – afirmava:

Estoy cierto de que para nosotros, los cambios deben impulsarse garantizando la plena vigencia del régimen democrático, el respeto a los derechos fundamentales de todos los ciudadanos, y asegurando, no sólo en la letra de la ley, sino en los actos de la autoridad, el respeto a las garantías individuales; el respeto a la autonomía universitaria y a una educación libre de orientaciones políticas oficiales; el respeto a la libertad de expresión y el derecho al uso de los medios de comunicación; el respeto a los partidos políticos, a los sindicatos y a las organizaciones populares. Estos principios forman parte del Estatuto de Garantías que en su hora exigimos consagrar en la Constitución Política del Estado. --- He hablado de la necesidad de que los cambios se hagan dentro de la ley, para que no se produzca el caos. (...) Desde luego, nos parece de gran urgencia que el gobierno defina los límites de las áreas de la economía social (o del Estado en los términos en que ellos entienden propiedad social), de la economía mixta y de la economía reservada al sector privado. Conociendo las reglas del juego, todos sabrán a que atenerse. Así se evitará también el

303 Declaración de la asamblea plenaria de la Conferencia Episcopal de Chile. El evangelio exige comprometerse en profundas y urgentes renovaciones sociales (Temuco, 22 abr. 1971). In: GONZALEZ PINO, Miguel & FONTAINE TALAVERA, Arturo (Org.). Los mil dias de Allende. Santiago: Centro de Estudios Publicos, 1997, tomo 2, p.979-980. Grifos nossos.

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caer en un estatismo sin plan ni programa, que puede terminar ahogando las energías productivas del país y produciendo un estancamiento general.304

Além da defesa da vigência das liberdades democráticas, o PDC também apresentou

uma preocupação com a conformação da Área de Propriedade Social, temendo (desde o início

do governo Allende) o volume de expropriações e estatizações que a UP se propunha a

realizar. Nesse sentido, a defesa da legalidade democrática representaria para estes setores a

garantia da propriedade. Da mesma forma que a Igreja, os democrata-cristãos defendiam o

atrelamento do processo de reformas sociais aos limites da lei e da Constituição com a

intenção de evitar “excessos” no que dizia respeito à forte intervenção estatal na economia, à

restrição da propriedade privada e à irrupção de manifestações “violentas” por parte dos

trabalhadores beneficiados com o processo.

O PDC, como partido tradicionalmente “legalista”, mencionaria a tendência do

socialismo ao “totalitarismo”, colocando-se como oposição “crítica” e “construtiva”, que

exigiria até o fim do governo a manutenção do regime nos marcos da democracia:

Afirmamos al mismo tiempo, nuestro rechazo a las desviaciones estatistas y burocráticas que, a pretexto de terminar con la explotación económica de los trabajadores al provocar un cambio en las formas del poder y la propiedad, terminan implantando un nuevo modelo de explotación: el hombre productor sometido, como simple factor de producción, a la maquinaria anónima y autoritaria del Estado. (...) El PDC a éste respecto, saluda las originales convicciones del nuevo Gobierno y declara su irrestricto apoyo a una vía de transición hacia una nueva sociedad que respete y valorice debidamente lo mejor y más sano de la tradición chilena: sus principios pluralistas, democráticos y libertarios. (...) Afirmar para Chile la vía pluralista es afirmar, simultáneamente, la valorización de las coincidencias y, también de las discrepancias. Estos principios básicos son patrimonio de todos los chilenos, y por tanto, debe garantizarse a todos su ejercicio real.305

Contra a emergência de um novo “patrão” simbolizado por um Estado forte e

interventor que eliminaria as “conquistas democráticas” da sociedade chilena, os democrata-

cristãos enfatizaram durante todo primeiro ano de governo a importância de garantir o

funcionamento das leis, identificando-as como representantes dos interesses do “bem de toda

comunidade chilena”:

El Partido y nosotros estamos abiertos a todos los cambios económicos y sociales que acaben con las estructuras tradicionales e ineficientes de la realidad chilena, tal como se empezó a hacer en el gobierno recién pasado y como se había prometido en el

304 Una oposición progresista. Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVI, n. 321, p.3-5, mai. 1971. Grifos nossos. 305 Declaración del PDC sobre la actual situación política. Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVI, n. 321, p.74-79, mai. 1971. Grifos nossos.

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actual Gobierno presidencial. Pero todo debe transformarse por medio de la Ley salvo que se busque la anarquía o la dictadura, caminos que Chile no quiere recorrer, lo que también nosotros estamos resueltos a impedir.306

A utilização pelos senadores democrata-cristãos da expressão “caminhos que o Chile

não quer recorrer” evidencia uma tentativa de forjar interesses nacionais comuns ao “povo

chileno”, ou seja, uma “vontade nacional” e consensual que coincidisse com a plataforma

defendida pelos interlocutores. Invoca-se uma “tradição” política para o país, a qual é atrelada

às idéias de “legalidade”, “consenso”, “democracia” e oposta à caminhos “violentos”, à

“anarquia” e à “ditadura”.

Ao final de 1971 os dirigentes do PDC defendiam a incompatibilidade entre

democracia e socialismo marxista, entendendo que o estrito cumprimento das leis

possibilitava a existência de uma sociedade reconciliada consigo mesma, sem conflitos de

ordem econômica – uma sociedade de fato em equilíbrio na qual cada um faria a sua parte

para o desenvolvimento do bem-estar da “comunidade nacional”. Nesta formulação, a

concepção marxista-leninista seria descartada por postular a idéia de um “Estado classista” e

apresentar as leis como “interesses parciais”, que atendiam aos “interesses da burguesia”.

Segundo a DC, um governo marxista não se preocuparia em preservar a legalidade e, por este

motivo, representaria uma ameaça à “ordem democrática”:

El respeto a la legalidad chilena presupone que no existen chilenos que sean tan radicalmente irreconciliables que no puedan coexistir dentro de un común marco de convivencia que les señale sus derechos y obligaciones. Presupone abandonar la tentación teórica de que unos ‘eliminan’ a los otros. Es absolutamente, lógico y legítimo concluir, entonces, que entre la concepción teórica del Estado por parte del marxismo-leninismo y la voluntad política y estratégica de respetar, plenamente las reglas del juego democrático hay una contradicción evidente.307

A concepção de legalidade defendida pela DC nos parece idêntica à do catolicismo

reformado pós revolução industrial. Ao abordar o tema da democracia, os democrata-cristãos

afirmaram:

Una democracia tiende a su perfección en la medida en que todos los individuos y todos los grupos alcanzan una cuota de poder correspondiente a su aporte y a su importancia en el desarrollo del proceso colectivo. Por eso, la tendencia general del mundo democrático y de las fuerzas sociales autónomas es ir conquistando cada vez más acceso a los mecanismos de decisión y a los centros de poder principales. (...)

306

Declaración de los Senadores Democratacristianos sobre la libertad de prensa. Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVII, n. 324, p.74-80, set. 1971. Grifos nossos. 307

ORREGO, Claudio. La contradicción entre la ideología y la estrategia política de Salvador Allende. Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVII, n. 327, p.28-37, nov. 1971. Grifos nossos.

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cuando ciertos sectores de la Unidad Popular levantan las banderas de ‘todo el poder para los trabajadores’ y entienden, además, que los trabajadores sólo están representados por los comités centrales del PC y el PS, están afirmando una tesis incompatible con la voluntad del señor Allende, de construir ‘una vía chilena’ hacia el socialismo. Están simplemente levantando una tesis ideológica, basada en la ortodoxia marxista, que contradice en su esencia al pluralismo democrático en que está inspirado el actual sistema constitucional chileno.308

A diferença deste tipo de discurso para o dos anos seguintes é que neste momento a

oposição democrata-cristã fazia uma distinção entre as posições políticas mais moderadas do

presidente Allende e as posições mais radicalizadas da esquerda socialista, tendendo a

legitimar o primeiro (como de fato o fez nas eleições presidenciais) desde que respeitasse o

Estatuto de Garantias. Se as idéias socialistas de Allende poderiam, em parte, coincidir com o

que os democrata-cristãos entendiam por “sistema constitucional chileno” e “pluralismo

democrático” – elementos formadores da “tradição democrática chilena” – a “ortodoxia

marxista” de uma parte da esquerda seria absolutamente incompatível com a “tradição

nacional” por eles invocada.

Os editoriais do Mercurio de 1970 e 1971 demonstram que desde o processo eleitoral

este periódico também procurou diferenciar a concepção de democracia defendida pelos

partidos de esquerda da “democracia vigente” no Chile. Da mesma forma que a DC e a Igreja,

este periódico invocou a idéia de uma “tradição democrática chilena” associada à “conquistas

universais”. Nesta construção teórica, o comunismo foi colocado em contraposição à

“tradição política chilena” por defender a “ditadura do proletariado” e, com isso, a destruição

das “liberdades e garantias individuais” conquistadas. Como apresentou o editorial de

Domingo La Semana Política:

Aunque los comunistas sostengan que nadie debe arrogarse el monopolio de la democracia, hay obligación de distinguir entre el concepto de democracia, fundado en derechos naturales del hombre y que, con imperfecciones, se ha aplicado hasta ahora en Chile, y el concepto de democracia que tienen los comunistas. Dice Lenin: ‘La forma política de la sociedad en que triunfe el proletariado, derrocando la burguesía, será la república democrática, que centralizará cada vez más las fuerzas del proletariado, de dicha nación o de dichas naciones en la lucha contra los Estados que aún no hayan pasado al socialismo’. Y añade: ‘Es imposible suprimir las clases sin una dictadura de la clase oprimida, del proletariado’. (...) Si el Partido Comunista se siente uno de los intérpretes autorizados de la democracia chilena, quiere decir, o que esa colectividad ha dejado de ser comunista, lo que sería una ilusión, o que la democracia chilena está dejando poco a poco de ser democrática.309

308 Ibid. 309 Desconfianza. El Mercurio, Santiago de Chile, 20 set. 1970. La Semana Política, p.21.

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Em maio de 1971, o Mercurio apresentou em sua página editorial elementos para a

compreensão da chamada “legalidade socialista”. No artigo, os autores criticavam o uso

“arbitrário” a lei por parte da UP ao resgatar recursos legais esquecidos desde o governo da

República Socialista na década de 1930. A aplicação desta estratégia contrariava os interesses

da área privada, permitindo que o Estado expropriasse terras e empresas para a construção da

Área de Propriedade Social. Nesse sentido, a concepção de Estado defendida nos editoriais do

jornal acabaram se aproximando da idéia de um Estado “árbitro”, que atuaria pelo interesse

“supremo da nação”:

El país está ya informado de que la Unidad Popular pretende un cambio en la sustancia y orientación de la legalidad misma. Ese cambio no puede identificarse con una modificación o reforma de los estatutos jurídicos de algunas instituciones. Es el sistema legal mismo el que aparece condenado a desaparecer (...). Cuando triunfó electoralmente la Unidad Popular muchos ciudadanos recuperaron pronto la tranquilidad al comprobar que el régimen constitucional y legal subsistía. La confianza aumentó gracias al Estatuto de Garantías que obtuvo la Democracia Cristiana del candidato de la Unidad Popular (...). Para los que así pensaran fue una sorpresa advertir que el uso hábil de ciertos recursos olvidados podía conducir al uso arbitrario de la legalidad. (...) A los pocos meses los expertos de la Unidad Popular han puesto en evidencia el concepto que ellos tienen de la legalidad y de la juricidad. Tal concepto hace de cada disposición legal facultativa un arma en la lucha contra la actividad económica particular. El sistema legal chileno estaba concebido, como todos los que reposan en las libertades públicas y garantías ciudadanas individuales, sobre el respeto a los derechos, sobre la tolerancia frente al adversario, sobre el principio de que el Estado actúa en interés supremo de la nación y no en beneficio de una clase social en contra de otra. (...) La Unidad Popular defiende lo que llama del ‘principio de la legalidad’, pero el sistema jurídico a que aspira es otro que el que ha regido a los chilenos hasta ahora.310

Em consonância com o discurso da Igreja e da DC, o “sistema legal” foi apresentado

como aquele que garantia as liberdades públicas, o respeito aos direitos, a tolerância com as

diferenças e o Estado “árbitro” e representante do “bem comum”. A democracia vigente

estaria sendo ameaçada pelo governo recém eleito, que propunha a construção do socialismo

“a la chilena”. Este projeto mesmo que fosse caracterizado por seus formuladores pelo

respeito às “liberdades constitucionais” e às “instituições democráticas”, levaria o país, da

mesma forma que o comunismo soviético e cubano, a uma “ditadura” governada por

“burocratas” que se diziam representantes do “proletariado”. Verifica-se o uso pelo jornal de

expressões genéricas como “o país” e “o sistema legal chileno” as quais transmitem uma idéia

quase mítica de unidade do corpo social e do interlocutor como porta-voz desta unidade

nacional. Esta é uma forma do periódico em questão tratar como universais, interesses de uma

classe social específica. Além disso, o editorial utiliza expressões que se referem a valores

310 Hacia la legalidad socialista. El Mercurio, Santiago de Chile, 25 mai. 1971. Editorial, p.3.

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universais, encaradas como conquistas da sociedade moderna tais como “liberdades públicas”,

“garantias cidadãs individuais” e “tolerância frente ao adversário”. Desta forma, o Mercurio

apresentava como contrapostos os objetivos almejados pelo conjunto da sociedade chilena e o

caminho adotado pela Unidade Popular.

Diferentemente da concepção da Igreja e da DC, o conteúdo dos textos mercuriais era

contrário a todas as medidas do programa da via chilena, por expressar os interesses de

setores que, em sua maioria, conformavam uma oposição aberta ao regime nacional-

reformista. Como vimos no primeiro e no segundo capítulos, eram grupos que defendiam a

não intervenção do Estado na economia, uma cooperação maior entre a economia nacional e o

empresariado norte-americano, assim como a limitação do papel dos sindicatos operários na

cena política nacional. Os militantes do Partido Nacional em conjunto com outras

organizações da direita tentaram impedir a posse de Allende em 1970, demonstrando seu

rechaço a este projeto desde o início. Sob este aspecto se diferenciavam dos democrata-

cristãos, os quais em 1970 defenderam um programa de reformas sociais e o respeito à

“legalidade” democrática.

Ao contrapor democracia e socialismo, o Mercurio expôs:

La transferencia del poder político y económico a los trabajadores y al pueblo en su conjunto es evidentemente una ficción. El poder económico y el poder político serán ejercidos por hombres concretos que, como agentes de la totalidad del pueblo, se constituirán en otros centros de poder que reemplacen a los que existen. Esta transferencia tan abstractamente anunciada implica la destrucción o el grave deterioro del sistema productivo en marcha, la remoción de los trabajadores y técnicos que están asociados más decisivamente a ese sistema, los quebrantos inevitables en el abastecimiento de ciertos productos y las demás secuelas de un cambio revolucionario que se realizaría, paradójicamente, por decisión de legisladores que contribuirían con ese mismo acto a la pérdida de su razón de ser. En efecto, en una economía socialista, regida por partidos de Gobierno organizados para el poder y dueña de gran parte de la riqueza productiva nacional, poco tendrán que hacer en el Parlamento los opositores.311

Tendo definido anteriormente o conceito de democracia como um regime garantidor

de conquistas políticas universais, neste trecho o jornal procurou contrapô-la ao socialismo,

alimentando uma oposição quase religiosa entre “Bem e Mal”. O “Bem” seria um regime

democrático dirigido por agentes que representam a “totalidade do povo” e não uma classe

social específica (como o proletariado). Seria um regime que se encarregaria de manter a

“ordem” contra a “deterioração do sistema produtivo vigente”, a “remoção forçada de

trabalhadores” e a “quebra no abastecimento de certos produtos”. O conceito de democracia é

311 Ibidem. Grifos nossos.

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então traçado a partir do que “não poderia ser”, isto é, deve diferenciar-se por completo da via

chilena – apresentada nesta oposição como o “Mal”. Assim, o argumento referente ao “uso

arbitrário da lei” por parte da UP contra o empresariado e a forma de compreensão de

“Estado” como expressão do “consenso nacional” foram elementos utilizados pela

Democracia Cristã e pelo jornal Mercurio para deslegitimar desde o início o governo da UP.

Em abril de 1972 a Igreja do Chile lançou em seu boletim arquidiocesano uma análise

bastante negativa do governo Allende, afirmando que a implantação do programa da UP

representava uma “ameaça ao sistema democrático”:

Valores tradicionales chilenos, como la democracia y la libertad, se encuentran en tela de juicio y afectados por una nueva moral revolucionaria surgida con el advenimiento de la Unidad Popular. Se plantean situaciones de hecho, como son las tomas de propiedades grandes, medianas y pequeñas; existen brigadas de choque y se emplea la fuerza pública en contra de sectores de oposición, agudizando las medidas regresivas que se ejercen contra las mismas personas que antes participaron en el gobierno y que también usaron medidas policiales de represión que afectaron a personas de la clase obrera. Todo esto ha acarreado una escalada de hechos violentos, que crea en muchos la sensación de caos y anarquía y que hace aún más difícil la convivencia de los principios cristianos. En esta forma, muchos cambios que se plantean, coincidentes con los planteamientos de principios cristianos, resultan sospechosos para cristianos de los partidos de oposición que así restan su concurso al proceso de cambios.312

Neste contexto em que o governo Allende iniciara o processo de estatizações

acompanhadas de ocupações de fábricas e terras por parte dos trabalhadores e em que a

burguesia tentava frear o processo de mudanças, a Igreja expôs em seus documentos a

oposição entre “democracia” e “via chilena ao socialismo”. As sucessivas ocupações de terra,

os crescentes conflitos entre partidários do governo e oposição e o início do boicote interno da

burguesia ao projeto da UP, o qual estimulava a crise econômica nacional, provocaram não

apenas na hierarquia católica, mas também nas classes médias chilenas a sensação de que o

país se encontrava numa situação de “desordem”, “caos” e “anarquia”. Apesar das mudanças

sociais defendidas pelo governo coincidirem em alguma medida com os princípios cristãos, o

método aplicado e os efeitos gerados se tornaram inaceitáveis para o episcopado. Como

afirmaram os bispos, a democracia chilena, ao deixar de lado a vivência autêntica dos valores

cristãos de “fraternidade” e “conciliação”, estaria seriamente ameaçada. Identificamos no

documento a mesma tentativa do jornal Mercurio de forjar valores coletivos identificadores

de uma nacionalidade chilena. Dentre elas destacamos os termos “democracia” e “liberdade”,

apresentados como “valores tradicionais” desta sociedade. Além de reforçar a idéia de

312 El cristianismo frente al Chile de hoy. Iglesia de Santiago, Santiago de Chile, ano X, n. 65, p.21-26, abr. 1972.

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unidade da “comunidade nacional”, o discurso da Igreja também fez uso da oposição

“Bem/Mal” na medida em que os valores apresentados como inquestionáveis estariam

ameaçados por uma “nova moral revolucionária”. Ao atrelar o socialismo à idéia de “caos”,

“anarquia” e “violência”, os autores do texto definiram a democracia como “regime das

liberdades”, atrelado à “tradição chilena” e coerente com os princípios cristãos.

Seguindo o documento, a Igreja apontou para o perigo de uma saída golpista como

conseqüência do “sectarismo” e da violência cometida de ambos os lados:

Si bien en Chile siempre hemos observado la mentira institucionalizada, ella se ha hecho más evidente en los últimos tiempos, como medio de acción política y partidista, lo que provoca fuertes reacciones. Existe el peligro que la actual escalada de violencia extremista tanto de Gobierno, como de oposición, lleve a acorralar a los partidos de gobierno en forma de hacer imposible una salida democrática, al mismo tiempo que se convierte la oposición en intransigente.313

Neste trecho a “violência extremista” é colocada em contraposição à “vivência dos

valores cristãos”. Para a Igreja, viver de acordo com os princípios cristãos seria viabilizar a

“verdadeira participação democrática”, o “respeito à autoridade constitucional” e preservar a

“liberdade de imprensa”. A intensificação dos conflitos afastaria cada vez mais a

possibilidade de diálogo entre os grupos em disputa, colocando em xeque a própria “tradição

democrática” do Chile. Ao final do documento, os representantes católicos chegaram a

afirmar a inviabilidade do modelo marxista no Chile e sua dissociação completa de uma

democracia “justa” e “verdadeira”:

El modelo socialista-marxista no contempla el funcionamiento democrático de la sociedad. Creemos que algunos de sus planteamientos podrían considerarse teóricamente correctos para ser aplicados en un punto del tiempo que es difícil precisar en el futuro de la humanidad. Momento aquel en que la evolución de los hombres haya llegado a un punto tal en que no habría rivalidad para detentar el poder político, ya que no habría diferencias de clases, y existiría una conciencia tan ecuánime, unida a una voluntad firme para ejercer el gobierno de tal manera que ningún sector se sintiera postergado. Pero como esas condiciones no son las actuales ni las de un futuro próximo, consideramos que se cometería un error político garrafal al echar las bases de una sociedad que requiere para su funcionamiento adecuado, características que no se poseen ni remotamente. Por lo tanto, estimamos que la democracia constituye hoy por hoy – con todos sus defectos – un sistema indispensable a través del cual se hace posible que los más necesitados ejerzan influencia en la conducción del país, a través de las elecciones libres, secretas y universales; esto sin perjuicio de la utilización de cualquier otro medio que permita una participación real de la comunidad en las decisiones nacionales o regionales.314

313 Ibidem. Grifos nossos. 314

Ibid. Grifos nossos.

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Em outubro de 1972 o país ficou paralisado por quase três semanas devido à greve

patronal. Gradativamente foram se formando focos de Poder Popular com a participação dos

trabalhadores nas empresas. Nesta conjuntura específica, os bispos lançaram um documento

episcopal que pedia cautela diante de um possível enfrentamento e o respeito à Constituição

do país. Pronunciando-se em nome do “povo chileno”, os representantes católicos defenderam

o que para a Igreja seria a solução mais apropriada para a crise:

Más allá de los conflictos gremiales hay una confrontación sorda de grandes sectores de la población que podría desembocar en una lucha de imprevisibles consecuencias o en el aplastamiento y la exclusión de uno de esos sectores. Hay que hacer todo para evitarlo. Nuestros contactos con personas de todas las tendencias y con nuestros propios fieles nos han llevado al convencimiento de que una gran mayoría del pueblo chileno está de acuerdo:

i. que se mantenga la continuidad constitucional, el respeto y la obediencia a la autoridad legítima y la plena vigencia de la ley, aplicada a todos por igual;

ii. en que se continúe el proceso de cambios tendiente a liberar a los pobres de cualquier situación de injusticia o de miseria, y a establecer la igualdad entre todos los chilenos y la participación de todos ellos en todos los niveles de la vida de la comunidad;

iii. en expresar inquietud por la situación económica del país que ha generado escasez y carestía para todos – si bien compensadas en mayor o menor grado para algunos sectores – y para muchos otros una gran angustia sobre su porvenir;

iv. en que se den condiciones favorables a la paz, que hagan posible la cooperación de todas las personas de buena voluntad en el proceso que vive el país;

v. en manifestar respeto a las Fuerzas Armadas y Carabineros y reconocimiento por la forma abnegada con que actúan en la delicada situación presente; y

vi. en desear que la próxima consulta electoral de marzo de 1973 se desarrolle en el clima democrático y con la absoluta libertad de expresión a que estamos habituados, y que sirva de pauta al Gobierno para orientar su política.318

Num contexto de intensa ativação popular e ofensiva burguesa, os bispos abordaram a

crise econômica do país e a sensação de insegurança da população diante da conjuntura,

pediram a “reconciliação”, o respeito à “continuidade constitucional”, o “apoio às FFAA” e

um “clima de paz” para a realização das eleições parlamentares de março de 1973. Ao encarar

as eleições como uma espécie de plebiscito para o governo, a hierarquia da Igreja se somou

mais uma vez aos setores da oposição que pretendiam, dependendo do resultado eleitoral,

destituir o presidente Allende de forma “legal”.

Vimos que não apenas os membros da Igreja Católica insistiram na defesa da

legalidade democrática em 1972, mas a DC também interpretou a lei como um instrumento

que possibilitasse um processo gradual e pacífico de mudanças, garantindo a redistribuição de

renda com a devida indenização aos proprietários. Em outras palavras e de acordo com a

318

Comité Permanente del Episcopado. Pedimos un espíritu constructivo y fraternal (21 out. 1972). Iglesia de Santiago, Santiago de Chile, ano XI, n. 70, out. 1972.

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doutrina social da Igreja, a lei deveria representar a conciliação de interesses distintos,

garantindo uma vida melhor aos desafortunados e preservando o poder das elites. Tornou-se

evidente que a defesa da legalidade neste caso correspondia à defesa da sociedade de classes

baseada no princípio inviolável da propriedade privada.

Abordando o mesmo argumento de utilização das leis em beneficio de uma classe

social determinada e não em função dos interesses “gerais”, o Mercurio afirmaria em uma

página editorial:

Está en la condición humana que no siempre la autoridad se emplee equitativamente. Sin embargo, lo singular del régimen de tránsito al socialismo, en que el país se debate, es la discriminación deliberada para aplicar las leyes, es la clara conciencia que tiene el gobierno de servir a una clase de chilenos y de postergar por consiguiente a las demás. Esto es lo nuevo del momento: la violación de la igualdad ante la ley como un camino para destruir a la clase media e instaurar la dictadura del proletariado. Mejor dicho, esa desigualdad jurídica aceptada y practicada como un estado deseable es precisamente el comienzo de la propia dictadura del proletariado.319

Este discurso fez parte, portanto, da estratégia de deslegitimação do governo Allende,

uma vez que dialogava com elementos presentes no imaginário político das classes médias e

altas chilenas. A “democracia” era claramente um dos elementos mais presentes e arraigados

desta “cultura política”.

Ao longo destes anos, a DC também fez coro com a denúncia de “ilegalidade” do

governo. É importante destacar que o termo “ilegalidade” e “inconstitucionalidade” estiveram

diretamente articulados ao processo de ativação popular que o Chile conheceu a partir de

meados de 1972. Para os dirigentes deste partido, a “benevolência” do governo Allende com

as manifestações dos trabalhadores e suas novas formas organizativas – que ultrapassavam a

chamada “legalidade formal” – se constituiu em enorme ameaça para a estabilidade do

sistema capitalista no Chile. Em um discurso realizado em abril de 1972 o presidente do

senado e dirigente democrata-cristão, Patricio Aylwin, afirmou:

Nos reunimos en suma para proclamar nuestra decisión de la inmensa mayoría de los chilenos, de cumplir nuestra vocación de pueblo libre. Amparadas por la benevolencia gubernativa, cuando no promovidas por funcionarios del régimen, en campos y ciudades proliferan las acciones delictuosas de quienes pretenden imponer su voluntad como ley por la violencia y las armas. Sitios, casas, industrias y precios agrícolas son ‘tomados’ por la fuerza sin que intervenga la justicia. Desde hace más de un año, el país presencia perplejo la impunidad con que actúan, se organizan y proliferan grupos armados que no ocultan su propósito de desencadenar una revolución violenta para imponer lo que califican de verdadero socialismo. (...) el país es testigo de que con mucha frecuencia grupos que se autocalifican de

319 Una autoridad discontinua. El Mercurio, Santiago de Chile, 1 out. 1972. La Semana Política, p.3. Grifos nossos.

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revolucionarios, ligados al oficialismo, ocupan por la fuerza distintas oficinas públicas, sin que al Gobierno se le ocurra denunciar el hecho a la Justicia.320

Em meio à Marcha pela Democracia organizada pela oposição, Aylwin denunciou as

ocupações de terras e fábricas por trabalhadores, a presença de grupos armados de esquerda e

a cumplicidade do governo diante de tal situação. Da mesma forma que o Mercurio, a DC

apresentava a oposição como “ampla e popular”, construindo a idéia de uma insatisfação

generalizada. O uso de expressões tais como “nossa decisão da imensa maioria dos chilenos”

e “nossa vocação de povo livre” são ilustrativas desta postura, pois projetam como

“universal” a aspiração de alguns setores sociais do país, atribuindo legitimidade à oposição e,

com isso, deslegitimando o governo da UP e seus partidários. Além disso, apresenta como

“natural” e “indiscutível” a “vocação” da sociedade chilena para a “democracia”, reforçando a

dicotomia “tradição política chilena” versus “via chilena ao socialismo”.

Se em 1970 a bandeira da “legalidade” defendida pela DC representou a legitimação

da vitória eleitoral de Salvador Allende nas eleições presidenciais contra a ação dos

“golpistas” da direita tradicional associada ao empresariado norte-americano, em 1972 a

mesma bandeira expressou a angústia de determinados setores sociais diante do movimento

de autonomização dos trabalhadores. O surgimento do Poder Popular em setembro, visto aos

olhos da oposição como “poder paralelo”, evidenciava um avanço no que diz respeito à

estrutura organizativa dos trabalhadores e às suas reivindicações enquanto classe, que

passaram a extrapolar os limites do constitucionalismo formal. Nesta conjuntura, as

organizações “alternativas” ganharam grande destaque na cena política nacional,

demonstrando sua capacidade de reação à ofensiva burguesa.

Em agosto de 1972 a “crise da legalidade” foi apresentada como “crise moral” e

seguiu sendo associada às ocupações de terras e fábricas protagonizadas pelos trabalhadores.

Como aponta o texto da DC:

La crisis moral se manifiesta también en el uso y desuso que hace el Gobierno de la herramienta legal dentro de la nueva tesis de la aplicación revolucionaria de la ley. Habitualmente no la usa, particularmente cuando quienes sobrepasan la ley le son, directa o indirectamente, afines o útiles. Tal es el caso de todas las tomas y retomas de fondos y predios agrícolas medianos y pequeños, industrias de todo tamaño, terrenos etcétera, cuando estas son dirigidas por elementos de la Unidad Popular o de la ultraizquierda. (...) Así se estatifican los bancos y se empieza a dar forma a la mal llamada área social, que no es sino un área estatal sin participación de los trabajadores ni del resto de la comunidad. (...) No se trata de evitar la constitución del área social; la Democracia Cristiana ha sido clara y categórica al respecto. Se trata de que ésta se

320 Discurso del Presidente del Senado Patricio Aylwin, en la marcha por la democracia (12 abr. 1972). Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVII, n. 331, p.92-96, abr. 1972. Grifos nossos.

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constituya de acuerdo con la Constitución y a la ley, con criterios sustentados por la mayoría de los chilenos, y no de acuerdo con los de una minoría de burócratas totalitarios. (...) El problema está en que el Gobierno se sabe minoría y, en consecuencia, siendo totalitario, opta por imponer su criterio por cualquier vía y a cualquier costo. Es aquí donde radica la mayor inmoralidad de esta Administración.321

Mostrando-se amedrontados com a contra-ofensiva dos trabalhadores e as ocupações

de terras e fábricas, os democrata-cristãos passaram a se situar no campo da oposição liderada

por setores críticos ao nacional-reformismo. Esta movimentação não significou o abandono da

bandeira da constitucionalidade, ao contrário, a defesa da vigência das leis serviu como

“carro-chefe” do discurso oposicionista e legitimador do golpe de Estado de 1973.

Apesar da atuação conjunta, os democrata-cristãos buscaram a todo tempo se

diferenciar das atitudes dos setores direitistas e responsabilizá-los, em parte, pelo aumento dos

conflitos e pelo “endurecimento” do governo. Nesse caso, tanto o “extremismo” de direita

quanto o de “esquerda” foram encarados como ameaças para a continuidade do sistema

democrático chileno. Por outro lado, a denúncia das irregularidades da administração da UP e

o acordo em conformar, em conjunto com o PN, a Democracia Radical (PDR), o Partido

Democrático Nacional (PDN) e o Partido Izquierda Radical (PIR) uma coalizão política para

derrotar a UP nas eleições parlamentares de março de 1973, demonstraram a íntima

colaboração entre estes setores.322

No conjunto de textos sobre os dois anos de governo da UP reunidos no exemplar do

mês de novembro de 1972, a revista Política y Espíritu procurou discutir em seus artigos a

concepção de “legalidade” do projeto da via chilena ao socialismo. Um dos textos, ao

discorrer sobre a perspectiva marxista procurou denunciar o intento do governo de querer

“destruir” a burguesia e, consequentemente descartar o uso das leis – que seriam parte do

“aparato de repressão burguês”:

Entonces, la legalidad es pensada y utilizada como instrumento de la lucha fundamental entre los explotadores y los explotados. Y se le tuerce el espíritu y la letra de la ley para hacer posible esa tarea. A consecuencia de ese raciocinio político el país queda automáticamente dividido en dos bandos: aquel que representa los intereses de los explotados (el oficialismo) y aquel que representa los intereses de los explotadores (la oposición). La ley sirve, entonces, para defender el oficialismo y para debilitar la oposición. (...) Uno de los elementos básicos para la ruptura del consenso social es,

321 MUSALEM, Jose. Crisis global de Chile creada para la toma del poder (1 ago. 1972). Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVII, n. 335, p.33-43, ago. 1972. Grifos nossos. 322 Fato curioso a ser destacado é que na Biblioteca Nacional do Chile, localizada em Santiago, não consta o exemplar da revista Política y Espíritu referente ao mês do golpe. As cartas de apoio à ação dos militares por parte dos dirigentes do PDC estão presentes nas edições do jornal Mercurio de setembro de 1973.

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pues, la mentira. Y su consecuencia lógica más directa es la perdida de la legalidad moral de los gobernantes para ejercer su poder.323

No trecho acima, A DC acusou o governo de pôr fim ao princípio “inviolável” da

democracia chilena ao desconsiderar a igualdade dos indivíduos perante a lei. Temos,

portanto, um exemplo de desqualificação moral do governo por parte da DC. A passagem

seguinte evidencia a agonia dos setores representados pela DC diante do processo de

polarização do país e a tentativa de criar um clima de “incertezas” e “catástrofe”, o qual só

poderia ser evitado com a destituição de Allende.

La polarización, con trasfondo de violencia, provoca un elemento dominante de la situación: EL MIEDO. (...) Toda esta situación lleva a una pérdida básica de la racionalidad democrática, que siempre supone buena fe entre las partes. Y al perderse la racionalidad se pierde el diálogo y la negociación. El conflicto tiende a hacerse permanente. (...) Una sociedad en que se pretende cambiar ciertos valores que son inherentes al ser humano, necesariamente sufre tensiones, se despiertan odiosidades, y los grupos sociales tienden a desintegrarse en medio de una lucha estéril y fratricida.324

Além do atrelamento do “conflito permanente” à “perda dos valores democráticos”, o

texto apresenta um dado importante para a nossa análise: a perspectiva do direito natural,

usada da mesma forma pelo catolicismo, para defender a preservação da propriedade privada.

O governo da UP estaria destruindo valores “inerentes ao ser humano”, isto é, seu direito à

propriedade - o que determina a sua condição de “indivíduo pleno” - o chamado “bem da

pessoa humana”. Ao se empenhar na destruição daquilo que para a Igreja era considerado

parte da natureza humana, o “marxismo” contribuía para a desintegração “moral” da nação,

para o fim do consenso nacional por meio de uma “luta estéril”.

De maneira diferente, mas igualmente preocupados com a situação da propriedade

privada em meio ao processo de estatizações, as associações patronais – gremios – também

utilizaram a defesa dos valores democráticos para preservar os interesses privados contra o

caráter “estatista” do governo Allende:

Los gremios han asumido la defensa de los valores democráticos amenazados, por tanto cada organización de trabajadores independiente ha sufrido de modo particular las consecuencias del estatismo avasallador, el atropello a la ley y de la completa incapacidad de los administradores actuales del país. Este presente conflicto se plantea, pues, entre el Gobierno y los gremios. Estos últimos representan con toda evidencia a la gran mayoría de la opinión pública y traducen con sus actitudes el

323 Bases de la plataforma política para las próximas elecciones. Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVII, n. 338, p.26-34, nov. 1972. Grifos nossos. 324 Ibidem. Grifos nossos.

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descontento ciudadano general, pero esta universalización del conflicto […] quita a éste su carácter originario, su naturaleza estrictamente gremial.325

De forma semelhante aos demais setores da oposição, os gremios foram apresentados

pelo Mercurio como portadores de uma insatisfação relativa a “grande maioria da opinião

pública”, isto é, como se representassem o “descontentamento cidadão geral”.

No período anterior às eleições parlamentares de março de 1973, o grupo Patria y

Libertad fez uso da mesma formulação “Democracia versus Socialismo”, invocando o sistema

democrático como garantia da “unidade nacional” e o comunismo como “ideologia

estrangeira” que tinha por objetivo “acirrar o ódio entre as classes” e “estimular a violência”.

Como apontava o panfleto desta organização:

El 4 de Marzo de 1973 DEMOCRACIA Y MARXISMO resolverán el dilema de quien es mayoría en Chile. Por encima de las diferencias que puedan dividir a la oposición hay un propósito común, que comparten todos los hombres y mujeres independientes que no reconocen filas en los partidos políticos ni se identifican con ellos: CONSERVAR LA LIBERTAD, PERFECCIONAR LA DEMOCRACIA Y MANTENER LA INTEGRIDAD DE LA PATRIA. Los odios y las pasiones que empequeñecen a Chile, artificialmente estimulados por el comunismo internacional para ahondar la ‘lucha de clases’ que culminará fatalmente en un enfrentamiento fratricida, nos imponen el deber de trabajar con más fervor que nunca para evitar esta contienda anti-chilena. Enfrentar a nuestro pueblo significa debilitarlo y destruirlo, reunificarlos significa fortalecerlo y engrandecer su destino. La unidad nos hará fuertes, tan fuertes como fuimos ayer y seremos mañana si nos ahoga el odio. (...) El nacionalismo aspira a reunificar al pueblo chileno, hoy criminalmente dividido por contiendas internas. (...) El nacionalismo aspira a restablecer la autoridad y el pleno imperio del Estado de Derecho. Votar por la democracia significa votar contra la demagogia y por la sujeción a la legalidad sin excepciones ni privilegios. (...) Lucharemos por dar a la DEMOCRACIA la primera mayoría y demostraremos de este modo que Chile sigue siendo UNO. No estamos con nadie en esta etapa, estamos con todos los que combaten al comunismo porque han vivido y se han formado en libertad. 326

Ao acusar o comunismo de criar “artificialmente” a luta de classes e valorar o conflito

como uma “contenda anti-chilena”, a organização Patria y Libertad se aproximou, em parte,

do discurso católico. Mais uma vez, a oposição desqualificava a esquerda em seus discursos,

distanciando-a dos “valores tipicamente chilenos”, dos “interesses da Nação”, do “povo” e do

“Chile”.

Observa-se um eixo comum no argumento de diversos setores e agrupamentos

contrários ao governo Allende. A defesa da democracia, embora usada de forma tautológica

325 Conflicto entre gobierno y gremios. El Mercurio, Santiago de Chile, 18 out. 1972. Editorial, p.3. 326 En marzo de 1973 el nacionalismo votará por la democracia. El Mercurio, Santiago de Chile, 15 nov. 1972. Inserción, p.21. Grifos nossos.

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por algumas organizações políticas, possibilitou a unidade tática de setores distintos e até

opostos em conjunturas políticas anteriores.

Ao longo de 1973, os apelos da Igreja pela manutenção da constitucionalidade e do

regime democrático estiveram atrelados à idéia de “reconciliação nacional”. A intervenção

dos bispos na cena política se deu por meio de insistentes chamados ao diálogo – que

garantissem uma saída “pacífica” para os conflitos que permeavam o país. Em meio a uma

conjuntura de acirrada polarização e intensa ativação popular, o apelo à paz e ao diálogo foi

praticamente esquecido, tanto pelos partidários do governo, quanto pela oposição.

No dia 29 de junho de 1973 – após a primeira tentativa de golpe de Estado liderada

pelo Coronel Roberto Souper – os bispos fizeram um chamado à “concórdia”, tentando

estabelecer um diálogo entre a UP e a DC para evitar a saída golpista. Tal como apontaram:

La Iglesia afirma y pide que por todos debe ser respetada y mantenida la constitucionalidad del país, honra de Chile. Llamamos a rezar por la patria pidiendo a Dios [que] nos ayude a convivir como chilenos y hermanos.327

No mês seguinte o cardeal Silva Henríquez tentou mediar um diálogo entre Allende e

a DC. Como afirmamos anteriormente, esta medida não obteve sucesso já que foi exigido do

governo que ele praticamente abandonasse seu projeto político.

Em 1973 a DC divulgou, por meio de sua revista, uma série de artigos nos quais

defendia a sua concepção católica de democracia como um “conjunto de autonomias sociais”

e o Estado como um órgão reificado, localizado acima das classes sociais - uma espécie de

árbitro em busca da realização de interesses comuns. Foi a partir desta base teórica que a DC

realizou a sua análise conjuntural do governo Allende, qualificando-o como responsável pela

“crise da democracia no Chile”:

Chile ofrece un record bastante extraordinario entre las experiencias democráticas. Es un caso anómalo en el tercer mundo, que puede ofrecer una larga historia democrática, a través de la cual y en aproximaciones sucesivas el régimen democrático se ha ido perfeccionando. Sin embargo, el ensayo democrático chileno atraviesa una crisis muy honda. (...) La etapa actual ha dejado de manifiesto que existen en Chile sectores poderosos que persiguen y pretenden muy distintas metas o proyectos sociales que paulatinamente han llegado a una fase del conflicto donde el ajuste, el compromiso político, el respeto por las reglas del juego, ya no operan. (...) Empieza a sentirse el juego político como una instancia donde si tu ganas, yo pierdo para siempre y no como un proceso donde respetando reglas de juego comunes, las mayorías y minorías se expresan sin que estén amenazadas en derechos o pretensiones vitales. Este deterioro del consenso social es probablemente una de las características más importantes de la crisis de la democracia en el país. A ello habría que agregar la

327 Llamado a la concordia de la autoridad eclesiástica. La Revista Católica, Santiago de Chile, ano LXXIII, n. 1026, p.164, mai.- ago. 1973.

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Figura 3: “Fuera de la vida legal”. Autor não identificado. Fonte: El Mercurio, 26 ago. 1973, p.33.

A imagem mostra o presidente da República, Salvador Allende, e o presidente do

Partido Comunista do Chile, Luis Corvalán, num automóvel que, ao sair da “estrada da

Constituição”, escorrega bruscamente por uma ribanceira. O diálogo entre o Parlamento e

Allende refere-se à exigência do primeiro para que o segundo não abandonasse, em seu

governo, o caminho constitucional. A resposta de Allende, “Yo creía que iba por la ‘via

chilena’”, demonstra, entretanto, a sua crença de que conduzia o país ao socialismo por dentro

das normas legais, isto é, da Constituição. O conteúdo da charge em seu conjunto expressa a

bandeira defendida pela oposição contra o governo da UP, pois o acusa de atuar na ilegalidade

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e com isso levar o país ao abismo, à destruição. Há também nela a identificação de que

qualquer intento de construção do socialismo significaria uma ruptura com a

constitucionalidade. Considerando os valores agregados à idéia de “constitucionalidade” pelo

conjunto da oposição, poderíamos afirmar que a charge atribui um sentido absolutamente

negativo às tentativas de construção do socialismo – isto é, mesmo que pela chamada via

chilena, o socialismo estaria inevitavelmente condenado ao fracasso, à destruição nacional, à

desordem e ao totalitarismo.

Veremos, no próximo item, de que forma a defesa da democracia também foi utilizada

pelo conjunto da oposição para combater o processo de organização da classe trabalhadora

contra a ofensiva burguesa. Esta estratégia foi utilizada principalmente a partir de meados de

1972 com o surgimento dos chamados “poderes paralelos” – denominação atribuída pela

oposição às formas alternativas de organização dos trabalhadores chilenos, como os Cordões

Industriais, Conselhos Comunais, Comitês de Vigilância de fábricas, entre outros.

Legalismo democrático versus classe trabalhadora organizada

Em julho de 1973, diante do fortalecimento dos chamados “poderes paralelos”, a DC

voltou a fazer uso da denúncia sobre a “ilegalidade do governo”:

La instauración “de hecho” de un llamado “poder popular” que, organizado por sectores oficialistas y con amparo de funcionarios del Estado, usurpa industrias, recibe armas y constituye una verdadera “milicia armada” que se arroga funciones políticas, económicas y de defensa, significa el más grave atentado de cuantos hasta ahora hemos vivido contra las bases mismas del régimen constitucional y de la convivencia democrática.330

Em 1973 o já consolidado Poder Popular representava claramente para os setores

agrupados no PDC uma ameaça às bases do regime constitucional e à “convivência

democrática”. Sendo atrelado ao Poder Executivo e aos partidos da UP, as organizações

“paralelas” foram retratadas pela grande imprensa como verdadeiras “milícias populares”,

responsáveis pela ocupação de fábricas e terras, exercendo funções políticas, econômicas e de

defesa, quase como os soviets no processo revolucionário russo do início do século passado.

No mesmo dia da declaração do PDC, o conjunto da oposição formada por este partido

junto ao PN, a Izquierda Radical e a Democracia Radical, ocupantes da maioria das cadeiras

do Congresso Nacional, declararam diante da opinião pública que: 330 Declaración del PDC emplazando al Gobierno a cumplir con la ley (6 jul. 1973). Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXIX, n. 344, p.74, jun. – jul. 1973.

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Una vez más la institucionalidad del país se ha quebrantado como consecuencia de las “tomas” de establecimientos fabriles y el reparto de armas a elementos extremistas, la mayoría extranjeros, hecho que es público y notorio y del cual no han hecho reserva los dirigentes de los partidos de Gobierno. Es de gravedad extrema que Su Excelencia el Presidente de la República haya dado su respaldo a los organizadores de estos atentados al nombrar Ministro del Trabajo al principal incitador de los hechos denunciados. Esta situación, incompatible con nuestro régimen republicano y democrático, hace necesario que las Fuerzas Armadas hagan cumplir la Ley de Control de Armas, para evitar la formación de un ejército extremista, en gran parte formado por extranjeros y paralelo a las Fuerzas Armadas Constitucionales.331

Novamente, o apelo ao cumprimento das leis foi utilizado contra o avanço do

movimento operário, e a Lei de Controle de Armas, como vimos no capítulo anterior, foi

aplicada apenas nos “focos da subversão”, isto é, nos bairros operários, fábricas ocupadas e

locais de organização dos trabalhadores. A “ruptura com a institucionalidade” foi relacionada

às crescentes ocupações de fábricas e à suposta distribuição de armas entre os membros das

organizações operárias. A situação do Chile, segundo a oposição, não era mais “compatível”

com a concepção de democracia apregoada por estes mesmos setores. E foi em torno desta

retórica que os setores golpistas apelaram para uma intervenção das Forças Armadas.

Antes mesmo desta declaração, os editoriais do Mercurio denunciavam a “crise do

Estado de Direito” manifestada na existência de “poderes paralelos”, milícias populares e na

decomposição das normas jurídicas. Segundo o jornal:

El Gobierno tiene en la propia administración pública y en empresas estatales a personas vinculadas en actividades terroristas, a capitanes de milicias populares y a sujetos sorprendidos en la tenencia de arsenales clandestinos. La crisis del estado de derecho se manifiesta en la organización del Poder Paralelo o mal llamado Poder Popular, de que forman parte las JAP, los Cordones Industriales, los Comandos Comunales, los Consejos Campesinos y ahora los recientes Consejos de Educación. Este nuevo poder pugna por reemplazar al Estado y ejerce de facto atribuciones que pertenecen a la autoridad pública. La crisis del estado de derecho resulta de una descomposición de todas las normas jurídicas vigentes y de su empleo para imponer una dictadura de inconfundible sello comunista.332

Em verdade, o conteúdo do editorial do Mercurio adiantou a publicação do documento

citado por nós anteriormente e assinado pelo conjunto da oposição. O jornal atrelou a “crise

do Estado de Direito” ao avanço do movimento operário, considerando a deterioração das

normas jurídicas e de seu uso em prol da “ditadura comunista”.

331 La mayoría parlamentaria frente a la quiebra de la institucionalidad (6 jul. 1973). Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXIX, n. 344, p.75-76, jun. – jul. 1973. 332 La crisis del Estado de Derecho. El Mercurio, Santiago de Chile, 13 mai. 1973. Editorial, p.31. Grifos nossos.

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Em 24 de agosto, pouco antes do golpe, os democrata-cristãos conseguiram aprovar

um projeto na Câmara dos Deputados que anunciava a “quebra da institucionalidade”. Nele

afirmaram:

Que es un hecho que el actual Gobierno de la República, desde sus inicios, se ha ido empeñando en conquistar el poder total, con el evidente propósito de someter a todas las personas al más estricto control económico y político por parte del Estado y lograr de ese modo la instauración de un sistema totalitario absolutamente opuesto al sistema democrático representativo que la Constitución establece. Que, para lograr ese fin, el Gobierno no ha incurrido en violaciones aisladas de la Constitución y de la ley, sino que ha hecho de ellas un sistema permanente de conducta, llegando a los extremos de desconocer y atropellar sistemáticamente las atribuciones de los demás Poderes del Estado, de violar habitualmente las garantías que la Constitución asegura a todos los habitantes de la República, y de permitir y amparar la creación de poderes paralelos, ilegítimos, que constituyen gravísimo peligro para la nación: con todo lo cual ha destruido elementos esenciales de la institucionalidad y del Estado de Derecho. (...) Que contribuye poderosamente a la quiebra del Estado de Derecho, la formación y mantenimiento, bajo el estímulo y la protección del Gobierno, de una serie de organismos que son sediciosos, porque ejercen una autoridad que ni la Constitución ni la Ley les otorgan, con manifiesta violación de lo dispuesto en el Art.10, nº 16 de la Carta Fundamental, como por ejemplo, los Comandos Comunales, los Consejos Campesinos, los Comités de Vigilancia, las JAP, etc; destinados todos a crear el mal llamado “Poder Popular”, cuyo fin es sustituir a los poderes legítimamente constituidos y servir de base a la dictadura totalitaria, hechos que han sido públicamente reconocidos por el Presidente de la República en su último Mensaje Presidencial y por todos los teóricos y medios de comunicación oficialistas.333

Ao acusar o governo pelo “atropelo sistemático aos Poderes de Estado”, “violação da

Constituição”, “amparo à criação de Poderes Paralelos”, “destruição da institucionalidade” e

“ditadura autoritária”, o PDC qualificava-o como um governo “anti-chileno”, buscando dar

legitimidade a uma possível saída militar para o conflito. A adesão do PDC à estratégia

golpista possibilitou a formação de uma frente de oposição em torno de um objetivo comum:

frear o avanço do movimento operário que havia “extrapolado” os limites de uma organização

sindical garantida por lei.

Cerca de dois dias antes do golpe, o Mercurio divulgou, por meio de seu editorial de

Domingo, um texto em que afirmava a existência de um “consenso nacional” em torno da

ilegalidade do governo. Por meio destas palavras, procurou legitimar o golpe perante a

sociedade chilena:

Existe un amplio consenso respecto de la inconstitucionalidad e ilegalidad del Gobierno. Y hay virtual unanimidad acerca de que el país está inevitablemente condenado a la destrucción si continúa aplicándose la política de tránsito hacia el socialismo que representa el Presidente Allende. (...) Es cierto que no prosperó en el

333 El quiebre de la institucionalidad (21 ago. 1973). Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXIX, n. 345, p.77-79, ago. 1973.

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1. Consta al país que los Obispos hicimos cuanto estuvo de nuestra parte por que se mantuviera Chile dentro de la Constitución y de la Ley y se evitara cualquier

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interesses do grande capital. Nos discursos do conjunto da oposição, a democracia acabou

sendo “anexada” à concepção liberal e rebaixada, portanto, à liberdade econômica, às

garantias jurídicas das liberdades individuais e públicas, ao respeito ao jogo de “maiorias” e

“minorias”. Por sua vez, o princípio da soberania popular, tradicionalmente atrelado à

concepção de democracia, foi identificado à perspectiva corporativista, que defendia o

atrelamento das organizações operárias ao aparelho estatal de forma a garantir a unidade entre

capital e trabalho.

Após o 11 de setembro a Igreja Católica e o “núcleo duro” dos democrata-cristãos

pareciam crer que o regime militar teria breve duração e serviria para afastar os elementos

“subversivos” e “cancerígenos” do sistema político. Tal como apontaram a Conferência

Episcopal e os democrata-cristãos, uma vez cumprida a função “saneadora” de controle da

classe trabalhadora e da esquerda revolucionária, o regime militar seria substituído por uma

“democracia restaurada” e “livre” dos obstáculos que impediam a sua estabilidade. A bandeira

da democracia foi, portanto, a melhor forma de defesa da ordem para uma instituição como a

Igreja Católica.

3.2 A abordagem do socialismo e seus efeitos político-sociais no Chile

O debate em torno do socialismo adquiriu diversos eixos ao longo dos anos de

governo da UP. O tema foi discutido em termos teóricos e práticos, discussão que abordou o

significado do projeto da via chilena para o socialismo e suas semelhanças e diferenças com

relação às demais experiências de construção do socialismo no restante do mundo.

A Igreja, antes de consumada a vitória eleitoral de Allende em 1970, buscou se situar

em uma posição de “neutralidade”, mantendo seus pronunciamentos oficiais em favor dos

pobres, mas enfatizando que o clero se abstivesse de opções políticas. Com isso, a hierarquia

pretendia proteger a instituição de possíveis sentimentos anticlericais e assegurar a sua

liberdade de ação. A UP, por sua vez, mesmo sendo sustentada pelos partidos tradicionais da

esquerda chilena – o comunista e o socialista – não assumiu uma postura anti-religiosa, ao

contrário, aceitou a participação dos cristãos de esquerda em sua coalizão e se comprometeu a

respeitar a liberdade religiosa e a ordem institucional. Uma vez terminado o processo eleitoral

e durante os dois primeiros anos do novo governo, a hierarquia católica procurou preservar

relações diplomáticas com o Executivo, sem, no entanto, se colocar como aliada. Apoiou a

confirmação de Allende como presidente num contexto de sucessivas tentativas por parte da

direita chilena e da CIA norte-americana de impedir que este assumisse o cargo.

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Ao longo do período em que a UP esteve no poder, a Conferência Episcopal do Chile

fez uma série de pronunciamentos que apoiavam as reformas sociais do governo e que pediam

à elite do país que contribuísse com o processo de redistribuição das riquezas. Apesar disso, a

conjuntura não esteve isenta de conflitos entre Igreja e Estado. A ideologia socialista,

divulgada pelos partidos que compunham a UP e o restante da esquerda chilena, representava

para a Igreja uma grande ameaça. É possível apresentar, pelo menos, três motivos para isto.

Em primeiro lugar, o socialismo se configurou originalmente como uma radicalização

do laicismo – tendência que o catolicismo teve que enfrentar desde o século XIX com a

ascensão dos Estados liberais. E apesar da UP seguir o movimento do restante da América

Latina no sentido de estimular a colaboração entre militantes cristãos e marxistas e aceitar em

seu interior agrupamentos cristãos como o Movimento Esquerda Cristã (MIC) e o Movimento

de Ação Popular Unificado (MAPU), ela continuou sendo encarada pela cúpula da Igreja

Católica como uma ameaça à sua sobrevivência institucional. Nestes anos, a hierarquia sentiu

violada a unidade da instituição, com a divisão dos cristãos, inclusive de sacerdotes, freiras e

laicos, em distintas opções políticas.

Em segundo lugar, o socialismo, enquanto concepção teórica e prática (se

considerarmos as tentativas de construção de regimes socialistas em alguns países do mundo)

ameaçava o próprio lugar de reprodução da Igreja em sua função educadora e pedagógica. Ao

atribuir ao Estado diversas funções que antes eram exercidas na esfera privada, o socialismo

restringia ainda mais a disputa da Igreja na esfera da cultura – espaço em que ela sempre ditou

valores, comportamentos, moral, pensamentos. Num regime socialista, a Igreja ficaria restrita,

portanto, ao espaço físico do templo, não mais podendo realizar seu trabalho de evangelização

nas diversas ramificações da vida social: trabalho, educação, meios de comunicação etc.

Em terceiro lugar, a Igreja enquanto instituição da ordem se veria absolutamente

ameaçada diante de um processo de crescente transformação social acompanhado de ativação

popular e “inquietação social”. Nesse sentido, o socialismo seria o espaço da “desordem”,

apesar de seu “bom intento” de promover a luta pela justiça social.

Nosso objetivo aqui será buscar em que medida os pronunciamentos oficiais da Igreja

Católica do Chile coincidiram ou reforçaram a concepção de socialismo e a análise da via

chilena feita pelo conjunto da oposição – constituída, como vimos anteriormente, por

tradicionais “legalistas” como a Democracia Cristã (DC) e “golpistas” como a direita

tradicional dirigida pelo Partido Nacional (PN).

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A concepção católica de socialismo: socialização da propriedade, harmonia social e

liberdade religiosa

O mês de lançamento do documento episcopal “Evangelho, política e socialismos”

(maio de 1971) – considerado um dos mais importantes do período – iria coincidir com a

publicação, no boletim arquidiocesano, da Carta Apostólica de Paulo VI ao Cardeal M. Roy

na ocasião do 80º aniversário da encíclica Rerum Novarum. O conteúdo da carta do Papa

servira de base para o documento dos bispos chilenos, principalmente o item que discutia o

“atrativo das correntes socialistas”, o qual se referia à crescente aproximação dos cristãos com

a filosofia e prática marxistas na América Latina. Com o objetivo de chamar a atenção dos

cristãos para a relação indissolúvel entre o socialismo científico e socialismo real, o Papa

Paulo VI afirmou:

Con demasiada frecuencia los cristianos, atraídos por el socialismo, tienen la tendencia a idealizarlo, en términos por otra parte muy generosos: voluntad de justicia, de solidaridad y de igualdad. Ellos rehúsan admitir las presiones de los movimientos históricos socialistas, que siguen condicionados por su ideología de origen. Entre los diversos niveles de expresión del socialismo – una aspiración generosa y una búsqueda de una sociedad más justa, los movimientos históricos que tienen una organización y un fin político, una ideología que pretende dar una visión total y autónoma del hombre - hay que establecer distinciones que guiarán las opciones concretas. (…) La vinculación concreta que, según las circunstancias, existe entre ellos, debe ser claramente señalada, y esta perspicacia permitirá a los cristianos considerar el grado de compromiso posible en estos caminos, quedando a salvo los valores, en particular de libertad, de responsabilidad y de apertura a lo espiritual, que garantizan el desarrollo integral del hombre.338

O socialismo, de acordo com a perspectiva da principal autoridade da Igreja, seria um

sistema caracterizado não apenas pela busca de uma sociedade mais justa, mas também por

veicular uma ideologia que atribuía uma “visão total e autônoma do homem”. Atrelando o

socialismo diretamente ao marxismo, o Papa apontou para a existência de várias concepções

de marxismo, a saber: a “prática ativa da luta de classes”; o “exercício coletivo de um poder

político ou econômico sob a direção de um partido único”; uma “ideologia socialista baseada

no materialismo histórico e na negação de toda transcendência” e uma “atividade científica ou

método de exame da realidade social e política”.339 Em seguida, concluiu a carta sendo mais

338 El atractivo de las corrientes socialistas. De la Carta Apostólica de Paulo VI al Cardenal M. Roy, en ocasión del 80 aniversario de la Enciclica Rerum Novarum. Iglesia de Santiago, Santiago de Chile, ano VIII, n. 56, p.22-23, mai. 1971. Grifos nossos. 339 Ibidem.

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claro na recusa ao socialismo de inspiração marxista por sua “tendência inevitável” ao

“totalitarismo”. Como afirmou:

Si, a través del marxismo, tal como es concretamente vivido, pueden distinguirse estos diversos aspectos y los interrogantes que ellos plantean a los cristianos para la reflexión y para la acción, sería ilusorio y peligroso el llegar a olvidar el lazo íntimo que los une radicalmente, el aceptar los elementos del análisis marxista sin reconocer sus relaciones con la ideología, el entrar en la práctica de la lucha de clases y de su interpretación marxista dejando de percibir el tipo de sociedad totalitaria y violenta a la que condice este proceso.340

Coerente com a linha do Vaticano, os bispos chilenos lançaram no dia 27 de maio de

1971 um documento no qual analisavam o mesmo tema, considerando a conjuntura específica

vivida pelo Chile a partir da implantação do projeto da via chilena ao socialismo. O

Documento de Trabalho foi dedicado principalmente aos sacerdotes, religiosos e laicos com

cargos de direção pastoral. Tratava-se, em outras palavras, de uma orientação doutrinária

destinada a “iluminar e estimular as reflexões e o comportamento pessoal e de grupo dos

cristãos” no qual a Igreja se posicionava diante do socialismo de inspiração marxista.

Inicialmente, os bispos afirmaram a incoerência da opção por uma classe social, uma

vez que o Evangelho estaria destinado a todos, em busca da “salvação universal”. Nesse

sentido, a Igreja não poderia eleger um partido político ou um sistema, mas impulsionar os

cristãos a “levarem a mensagem do Evangelho” a todas as esferas da vida social.

Ao comentar a oposição “capitalismo vs socialismo”, os bispos buscaram uma

relativização, apontando que as possibilidades de organização de uma sociedade não se

encerravam nestas duas opções: seria possível buscar outra via ou até mesmo outras formas de

capitalismo – onde houvesse uma maior ou menor socialização – e de socialismo – mais ou

menos rígido. Nesse sentido concluíram:

De estas posibilidades, algunas serán inaceptables para un cristiano; otras, juzgadas a la luz de los valores del Evangelio, podrían aparecer como más justas o menos justas, como más o menos humanas (...). Al igual que los hombres que los forjan y manejan, los sistemas políticos o socio-económicos son ambiguos: en todos se mezclan en alguna proporción lo bueno y lo malo, las ventajas y desventajas. Tratándose, por ello, de realidades humanas y contingentes, no podemos absolutizar ninguna.341

Após recordar a “independência” política da Igreja e consequentemente a

“neutralidade” que seus membros deveriam expressar para cumprir de forma adequada seu

340 Ibidem. 341 Conferencia Episcopal de Chile. Evangelio, política y socialismos (27 mai. 1971). In: ALIAGA ROJAS et al (Org.). Documentos de la Conferencia Episcopal de Chile (1952-1977). Santiago: ESEJ, [1974], p.70-124. p.83.

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papel de “pastores”, o documento passaria a analisar o “socialismo”. Evidenciando os

“perigos” deste sistema, os bispos afirmaram:

Efectivamente, los peligros del socialismo se originan en forma contraria a los del capitalismo. El sistema socialista tiende a acumular un inmenso poder económico en manos del Estado, poder que, si no se contrapesa y limita de alguna manera, puede abrir la puerta a todo tipo de opresión, manipulación y discriminación de las personas y de los grupos por motivo de orden político, haciendo así ilusoria la democracia, la igualdad y la participación que en principio se proclama. Ello equivaldría a pasar de la opresión egoísta por parte de muchos capitalistas privados – que de alguna manera pueden ser limitados por el Estado – a la opresión incontrolada por parte de un capitalismo estatal omnipotente, ante el cual los trabajadores se encontrarían aún más indefensos. Este “simple cambio de amos” o paso de muchos patrones a un único y más despótico patrón, que toma él solo todas las decisiones, no beneficiaría a nadie. Por eso, el socialismo también exige correctivos que garanticen en él el necesario equilibrio entre bien común y bien privado, entre “socialización” y “personalización”; ya que un bien común que no revierta en beneficio de las personas y de un respeto más pleno y auténtico a sus derechos y desarrollo, permanece – como lo hemos dicho – ilusorio e inhumano.342

Neste trecho, a hierarquia invocou a tendência do socialismo a uma excessiva

“coletivização” que concentraria todo o poder nas mãos de um “Estado opressor”. Para a

Igreja, o sistema ideal seria aquele que contrabalançasse adequadamente medidas para

satisfazer o bem comum e o bem individual. A degeneração do socialismo para um regime

caracterizado pela ausência de liberdades públicas seria ainda pior do que viver sob o

capitalismo – uma vez que neste último os bens materiais poderiam de uma forma ou de outra

serem “controlados” pelo Estado.

A descrição geral foi seguida por uma análise do caso chileno, na qual os

representantes católicos buscaram fazer uma caracterização do projeto da via chilena.

Segundo eles, em 1971 o Chile ainda não poderia ser considerado um país socialista. O

projeto deveria ser analisado a partir de seus “agentes reais”, responsáveis por levá-lo à frente

e os quais deixariam suas marcas no rosto final do socialismo “a la chilena”. Por “agentes” os

bispos se referiam aos partidos que compunham a base de sustentação da UP – o Partido

Comunista e o Socialista, organizações de orientação marxista. Levando em consideração esta

constatação, afirmaram:

En Chile no se está construyendo un socialismo cualquiera, sino un socialismo de inspiración marcadamente marxista. Socialismo y marxismo no tendrían necesariamente por qué coincidir: muchos pueblos de la antiguedad ensayaron ya algunas formas socialistas mucho antes que existiera el marxismo (...). Pero hoy día, y en el caso concreto de Chile, es la ideología marxista la que anima a los grupos más representativos que se encuentran dirigiendo el actual proceso de construcción del

342 Ibidem, p.88.

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socialismo. Además puede constatarse que estos grupos no se limitan a identificarse ellos mismos con dicha ideología, sino que están promoviendo una intensa campaña de difusión de la doctrina marxista, sea a través de los medios de comunicación, de labores de concientización o de programas de estudio en diversos establecimientos educacionales y a distintos niveles.343

Torna-se explícito o sentimento de ameaça da hierarquia com relação à propagação da

ideologia marxista feita pelo governo da UP. A divulgação de um pensamento que contrariava

a idéia de transcendência constituía gesto intimidador à capacidade de reprodução cultural da

Igreja Católica. Ao identificar o tipo de socialismo que embasava o projeto da via chilena e

tendo em vista o engajamento ou mesmo a inclinação positiva de muitos cristãos com relação

à sua construção, os bispos passariam às críticas, evidenciando o perigo de uma aceitação

“ingênua” ou de uma idealização destas idéias por parte dos fiéis e pastores. Começando por

apontar as vantagens do sistema, a alta hierarquia se voltaria em seguida para os pontos de

incompatibilidade com o cristianismo:

El marxismo coloca al hombre como centro del universo y de la historia, y por ello, se considera a sí mismo como una forma de humanismo. En este humanismo marxista – es decir, en la imagen del tipo de hombre y de sociedad que quiere crear – la Iglesia detecta, como en todo lo que no es Jesuscristo y su Evangelio, una realidad ambivalente. Por un lado, encontramos muchos elementos positivos: grandes y sinceros anhelos de liberación y solidaridad, que encienden una gran generosidad para el compromiso con los oprimidos y una eficacia real en la lucha contra ciertas injusticias; por otro lado, el marxismo desconoce y niega – por ser materialista – aquellas dimensiones del hombre que para el cristiano son las más importantes: su trascendencia espiritual, su ordenación a Dios. En base a los puntos de coincidencia, se abren sin duda muchas posibilidades de diálogo y de colaboración en objetivos prácticos de bien común y es deber aprovecharlas. Sin embargo, las divergencias señaladas son muy graves y establecen, a nivel de la doctrina, importantes incompatibilidades entre marxismo y cristianismo.344

Além dos fatores já apontados por nós, a alta hierarquia abordou o problema do

“economicismo”. Segundo os bispos, ao “reduzir a história, o homem e a sociedade” à esfera

econômica, o marxismo permaneceria, na prática, “exatamente no mesmo nível economicista

que o capitalismo”.345 Concluíram, portanto, que as experiências do socialismo real

mostraram que os efeitos devastadores deste sistema eram comparáveis aos do capitalismo:

Así lo confirma la triste experiencia de diversos países socialistas, donde los derechos del hombre han sido muchas veces tan condenablemente conculcados como por los excesos abusivos de los países capitalistas. En aras de eficacia económica y política se sacrifica la libertad de pensamiento y de prensa, se falsea la verdad, se encarcela a los intelectuales que se atreven a criticar al régimen, se oprime a los cristianos, se

343 Ibid., p.89. 344 Ibid., p.92. 345 Ibid., p.97.

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reprimen militarmente los intentos de democratización o las huelgas con que los obreros reclaman un justo mejoramiento económico.346

Apesar de identificarem a existência de diversos tipos de socialismo, os bispos

caracterizaram a via chilena como um “caminho marxista” e este último era, por vários

fatores, uma ideologia inaceitável para uma instituição como a Igreja. Por esse motivo,

conclui-se que a linha de atuação ditada pela alta hierarquia aos membros da Igreja do Chile

foi a de não permitir o seu engajamento no processo que o país viveria a partir daquele ano,

temendo a influência do marxismo no interior da instituição católica e o conseqüente

enfraquecimento do poder hierárquico, disciplinador e educador da Conferência Episcopal. O

trecho abaixo expressa bem aquilo A que nos referimos anteriormente:

El método marxista, tal como se utiliza en el marxismo, con ese exclusivismo, no le es lícito emplearlo a los cristianos que se sientan llamados a colaborar en la construcción común del socialismo chileno: la mentalidad absolutizadora de lo económico que tal método supone e imprime, aparece incompatible con el cristianismo y como destructiva del hombre. En esto vemos el riesgo más real de la mencionada colaboración con los marxistas, tanto para el país como para las personas: que el actuar juntos lleve a usar los mismos métodos y a contagiarse de una misma mentalidad práctica.347

Assim, a degeneração das experiências socialistas em outros países foi relacionado ao

desenvolvimento de um “estatismo” exagerado, de um partido único com a imposição de uma

única ideologia e o estabelecimento da “ditadura dos espíritos” contra qualquer pensamento

de ordem transcendental. Todas estas críticas foram feitas também ao projeto da via chilena

durante os anos de governo da UP principalmente pelos representantes da burguesia chilena.

Estes mesmos termos apareceram nos editoriais do Mercurio e na revista do PDC, nas

análises sobre os efeitos do processo de implementação do socialismo “a la chilena”. Os

bispos concluíram, da mesma forma que o Papa Paulo VI e utilizando as suas palavras, que o

método marxista não poderia ser descolado de suas realizações que levaram a constituição de

regimes “totalitários” e “violentos”.

Reafirmando a tendência “inevitável” do socialismo para o “totalitarismo” os bispos se

referiram ao caso chileno:

Estos elementos desalentadores, comunes a todas las experiencias históricas del socialismo marxista, no nos permiten todavía predecir con certeza la influencia concreta que podrá tener el marxismo en el desarrollo definitivo del socialismo chileno. El temor de que termine conduciéndonos a una dictadura es plenamente

346 Ibid., p.98. 347 Ibid., p.100.

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justificado tanto a la luz de su doctrina como de la experiencia de otros pueblos. Sin embargo, el caso chileno ofrece particularidades propias que podrían favorecer una evolución diferente. Ella dependerá, en gran parte, tanto del buen sentido y de la madurez democrática de nuestro pueblo, como del esfuerzo de los cristianos y de la apertura y espíritu crítico de los mismos marxistas ante su propio sistema.348

Dessa forma, a tendência “totalitária” do marxismo poderia ser equilibrada com a

“vocação democrática” do povo chileno e com uma autocrítica constante dos próprios

marxistas. Ao final do documento, os bispos insistiram na importância da “neutralidade”

política da Igreja, sendo esta a condição da liberdade de qualquer cristão. Assim, o papel dos

bispos, sacerdotes, diáconos, religiosos e laicos seria trabalhar pela “unidade” e pelo

“diálogo”, não podendo em hipótese alguma apresentar de forma pública uma opção político-

partidária.

Em suma, diante do governo da UP a hierarquia se mostrou “respeitosa” e “disposta a

colaborar” sempre que as medidas coincidissem com os postulados do Evangelho:

Como pueblo de Dios, la Iglesia siempre ha sido respetuosa y ha estado dispuesta a colaborar con el gobierno legítimamente constituido a quien la providencia de Dios, actuante en la Historia, ha entregado por un período determinado la responsabilidad de dirigir la marcha del país. (...) La Iglesia, al no comprometerse oficialmente con ningún partido político, considera como su aporte propio a la construcción del país el servicio de estimular y apoyar con su Evangelio todo cuanto en la vida nacional vaya en la línea de una verdadera liberación humana, y oponerse, por otro lado, a lo que, a la luz de ese mismo Evangelio, se revele como fuerza de esclavitud. (...) La Iglesia prestará, mediante su fidelidad al Evangelio, el servicio de la unidad, el del diálogo, el de la apertura sincera a todos, y por ella lo ofrece, en primer lugar, al gobierno, quien por razón de su cargo, está también llamado a ser eje de la unidad del país y servidor del progreso de todos.349

No mesmo mês em que os bispos lançaram o documento acima, o PDC divulgou em

sua revista alguns artigos que discutiam o conceito de socialismo e suas experiências

históricas. Como partido cristão, a DC defenderia uma concepção muito próxima àquela da

hierarquia chilena, abordando o perigo de desvio para um regime “totalitário”, caracterizado

por um “Estado absoluto” e uma economia “coletivizada”, em que as liberdades individuais

fossem suprimidas. Como afirmaram:

Su miseria[do socialismo] es que, hasta ahora, cada vez que pasó a ser un hecho histórico, a pesar de la inmensa toma de conciencia que lo ha acompañado (sin comparación con ninguno otro modelo de vida ético, religioso, filosófico o político), no suministró sino un solo fruto auténtico: el Estado absoluto, el monarca absoluto, el dominio absoluto de una clase social sobre el resto de los ciudadanos. (...) la marcha de un hombre colectivizado que cumple de manera automática un labor parcial, que

348 Ibid., p.103-104. Grifos nossos. 349 Ibid., p.122-123. Grifos nossos.

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ignora por deber de Estado el sentido de lo que le sucede, que está consciencientizado para obedecer incluso hasta llegar a su propia negación personal, que maneja la destrucción del prójimo con matemática eficiencia, que conoce su deshumanización, pero se reigna a ella, y que no ha sido absorvido por el determinismo de la materia biológica y social, solamente porque, contra su misma voluntad, sigue siendo un espíritu. (...) Es una tesis falsa y entreguista aquella por la cual se afirma que el socialismo es inevitable en el mundo de hoy. Lo inevitable es el proceso hacia una sociedad fundada en la solidaridad, la participación, la amistad cívica entre los ciudadanos organizados. Y esto no se confunde así no más con el socialismo de vigencia histórica. Quién no lo entienda así y prefiera aceptar el mito del socialismo idealizado, como guía para la vida del futuro, tendrá la oportunidad de ponerse más tarde obligadamente a remolque de aquel que hoy plantee una respuesta total.350

Contra o socialismo a DC propunha o “comunitarismo”, que, como vimos no primeiro

capítulo, se referia a um sistema baseado na unidade entre capital e trabalho e no

cumprimento estrito das leis. Por meio dele, os democrata-cristãos acreditavam na

possibilidade de integrar grandes setores da população na “estrutura orgânica” do país a partir

da realização de reformas sociais. Diferente do socialismo marxista, no comunitarismo

predominariam relações “harmônicas” obtidas por melhorias das condições de vida da

população, políticas de redistribuição social que também garantissem a manutenção da ordem

e a preservação de relações de trabalho corporativistas. Tanto para a Igreja quanto para o

PDC, a questão da propriedade privada era um problema no sistema de tipo socialista. A

implantação do socialismo vinha diretamente acompanhada da idéia de “coletivização” e

“estatização” total – medidas que garantiriam uma forte intervenção do Estado na economia e

atuariam no enfraquecimento total da iniciativa privada. Mesmo não sendo este o projeto da

UP, que prometia a constituição de uma Área de Propriedade Social que funcionasse

paralelamente à área privada e mista, a oposição insistiu nesta tecla.

De forma bastante diversa da Igreja e do PDC, o jornal Mercurio, por meio de seus

editoriais, abordaria esta discussão teórica de maneira mais intransigente desde o início do

governo Allende. Em maio de 1971, um editorial apontou a existência de contradições entre a

via chilena para o socialismo e o “marxismo-leninismo” afirmando que a primeira seria algo

inaceitável para um “verdadeiro” marxista. A defesa das instituições democráticas e de uma

transição “pacífica” para o socialismo no Chile constituiriam uma fórmula “oportunista” para

confundir democratas e evitar oposições frontais ao projeto da UP. Assim afirmava o

editorial:

350 CASTILLO, Jaime; NAVARRO, Iván; TOKOS, Francisco; ALFARO, Ramón. El comunitarismo, una respuesta total. Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVI, n. 321, p.18-23, mai. 1971. Grifos nossos.

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Se diría entonces que es frágil el segundo modelo de transición hacia el socialismo, que es débil el Estado de derecho, si cualquiera forma de violencia lo fuerza a traducirse en el primer modelo. (...) El régimen de la Unidad Popular propicia un régimen democrático, pluralista, con libertades públicas, siempre que la clase burguesa se someta voluntariamente y contribuya a apoyar las medidas para el completo aniquilamiento de su poderío.351

Em outras palavras, afirmava-se que o projeto poderia ser original se os representantes

da área privada concordassem com o seu próprio aniquilamento, caso contrário, os

governantes seriam obrigados a fazer uso de métodos violentos e arbitrários.

Em resumo, podemos dizer que apesar de apresentar percepções um pouco distintas

acerca do tema, alta hierarquia católica e democrata-cristãos acabaram reforçando a oposição

feita ao governo por setores tradicionalmente golpistas, representantes dos interesses da

burguesia chilena. Vimos que não apenas o Mercurio, mas o próprio Vaticano e os bispos

chilenos procuraram chamar a atenção de seus leitores para a vinculação da via chilena ao

marxismo e às demais experiências de construção do socialismo. O objetivo disso era

desqualificar o projeto da UP desde seu primeiro ano, ressaltando os “perigos” de sua

implantação para o conjunto da sociedade chilena. O atrelamento do socialismo ao

“totalitarismo”, ao “Estado-patrão”, ao subdesenvolvimento, a um “estatismo retrógrado”, ao

“aprisionamento”, à “proletarização”, à “burocratização” e a uma “ideologia estranha” à

“tradição democrática” do país, estimularia ainda mais a desconfiança dos setores médios com

relação aos rumos do governo e reforçaria, no plano teórico, a apropriação liberal do termo

“democracia” – associada à “livre iniciativa”.

Igreja Católica e Unidade Popular: qual o limite da cordialidade?

Depois de ratificada a vitória de Salvador Allende nas eleições presidenciais de 1970,

o cardeal Raúl Silva Henríquez assegurou ao novo presidente que apoiaria todas as iniciativas

que levassem à melhoria das condições de vida da população.

Com relação à política de nacionalização do cobre chileno concluída em junho de

1971 o episcopado também demonstrou todo o seu apoio, da mesma forma que a DC e a

direita tradicional. Como afirmaram os bispos em dezembro deste ano:

El proceso de nacionalización del cobre ha sido constitucionalmente impecable. Con ese respecto al Derecho que es tradición del Gobierno de Chile, ha llevado a la práctica el principio consagrado por las mismas Naciones Unidas, que reivindica para cada Nación la propiedad y explotación de sus riquezas básicas. (...) Claridad, para

351 Pluralismo y Violencia. El Mercurio, Santiago de Chile, 23 mai. 1971, La Semana Política, p.3.

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fijar y dar a conocer los intachables fundamentos de la nacionalización; equidad, para ponderar las razones y derechos que las partes puedan legítimamente hacer valer; y serenidad, para dejar que el proceso siga y concluya por los cauces legales, al margen de toda inútil exacerbación de ánimos, me parecen el mejor servicio a los intereses de nuestro país en este asunto que nos concierne a todos.352

A nacionalização do principal recurso natural do país era uma medida que coincidia

com a perspectiva da Igreja em toda a América Latina de defesa de um “desenvolvimento

nacional” como resposta aos problemas sociais. Até 1972 o episcopado chileno sustentou que

a libertação econômica do “povo” passava necessariamente pelos fatores de desenvolvimento

nacional que remetessem a uma ação planejada do Estado na economia, principalmente no

que se referia à administração das áreas mais pobres. Não devemos esquecer que para a Igreja,

a ação do Estado não deveria ser “total”, mas sim predominar nos ramos mais importantes da

economia nacional. Os demais ramos deveriam ser geridos por particulares. O

“desenvolvimento nacional” acompanhado de um largo “consenso político” garantiria um

desenvolvimento autônomo e a contenção da “desordem” social.353 De fato, a medida tomada

pelo governo Allende foi aceita de forma unânime por todos os partidos no Congresso e seria

a única política econômica preservada pelo posterior governo militar de Augusto Pinochet. Os

motivos que levaram os bispos a apoiarem a medida estavam expressos em seu próprio

pronunciamento. Dentre eles ressaltamos a exigência de realização de mudanças sociais pelo

“adequado cumprimento das leis” e a eficácia da medida na contenção de um “exacerbar dos

ânimos”. Isso significava realizar a justiça social no sentido teológico, isto é, por meio da

efetivação do bem comum, da conciliação política e da unidade entre patrões e empregados.

Em novembro de 1971 o Chile receberia a visita do Primeiro Ministro cubano, Fidel

Castro, que se estabeleceu durante um mês no país para conhecer de perto o projeto da

Unidade Popular. Durante a visita, Castro pedira uma audiência com o arcebispo de Santiago

– Raúl Silva Henríquez. Apesar de no plano institucional o arcebispo de Santiago ter

demonstrado a existência de uma relação respeitosa entre o governo cubano e o Vaticano, a

visita de Fidel à esquerda católica chilena posteriormente gerou muitas preocupações para a

hierarquia. O encontro do arcebispo chileno com Fidel Castro – mesmo representando uma

simples cordialidade – estimulou reações de desprezo por parte dos cristãos organizados na

TFP e reações positivas na esquerda católica.

352 Cardenal y Episcopado se refieren a la nacionalización del cobre. Iglesia de Santiago, Santiago de Chile, ano VIII, n. 60, p.34-35, set. – out. 1971. 353 Para vias de comparação, sobre o apoio da Igreja brasileira às políticas de desenvolvimento nacional anteriores à 1964 ver ROMANO, Roberto. Op. cit., p.31.

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Após o encontro, o Mercurio publicaria editoriais em que incentivava a desconfiança

entre a Igreja e o governante cubano. O trecho abaixo é um exemplo claro disso:

El Partido [Comunista], en Chile, pero sobre todo en el plano internacional, necesita debilitar las resistencias de la Iglesia Católica frente al avance del poderío soviético y de la ideología materialista del llamado socialismo científico. Fidel Castro se presentó en los años verdes de la revolución cubana como un cristiano progresista y tardó un tiempo en proclamar su fe marxista-leninista. Aunque diplomaticamente el Vaticano mantuvo relaciones con Cuba, la situación pastoral de la isla fue difícil para los católicos. Muchos de ellos debieron emigrar, y, según las informaciones disponibles, las fiestas y costumbres religiosas han ido siendo reemplazadas hasta privar de toda significación al catolicismo cubano, sobre todo en la juventud. El señor Cardenal Arzobispo de Santiago, Raúl Silva Henríquez, ha sido objeto de especiales atenciones a fin de que consienta en aparecer públicamente entre los anfitriones más cordiales de Fidel Castro. (...) Una vez más, Fidel Castro fue contemplado en un gesto apacible y casi filial hacia la Iglesia. El duro pasado revolucionario pareció olvidarse o, mejor dicho, la autoridad eclesiástica pareció olvidada de sus anteriores posiciones. El Cardenal ha dicho que sigue la línea del Estado Vaticano, que mantiene relaciones con Cuba, lo que significa que esta conducta tiene más carácter diplomático que pastoral y que los católicos no debieron sacar conclusión práctica alguna de acontecimientos que suceden en un plano diferente a aquél en que se encuentran los Arzobispos y Obispos católicos con su grey.354

Diante das diversas reações de grupos católicos com relação a tal visita, o Mercurio

procurou salientar que a reunião de Silva Henríquez com Fidel Castro não significava um

alerta verde à unidade de ação política entre cristãos e marxistas. Ao contrário, tratava-se de

uma visita apenas diplomática. Observa-se, portanto, a atuação dos responsáveis do jornal no

sentido de se posicionar com relação aos conflitos internos da Igreja, legitimando a linha da

alta hierarquia contra a “radicalização” política de alguns sacerdotes favoráveis ao governo e

ao estreitamento das relações do Chile com Cuba.

Em abril de 1972 a Conferência Episcopal lançaria mais uma declaração em que

ressaltava seu apoio às reformas sociais impulsionadas pelo governo. Diferentemente da

posição do jornal Mercurio e da DC na mesma época, os bispos ressaltaram que os “avanços

do país em termos de justiça” correspondiam à vontade da imensa maioria de chilenos e não a

uma minoria “burocratizada” que almejava apenas obter poder para si mesma. Como

afirmaram os representantes católicos:

La justicia hoy día es desarrollo, participación e igualdad, y no podemos sino alegrarnos de los grandes pasos que ha dado y va dando el país en ese sentido. Comprendemos que el proceso de cambios, que muchos llaman revolucionario, en que estamos empeñados y que corresponde a la voluntad de la inmensa mayoría, no puede hacerse sin el sacrificio de los privilegiados de ayer o de hoy. Les recordamos la insistente enseñanza evangélica de desapego de los bienes. El dinero y el poder no son

354 El gran visitante. El Mercurio, Santiago de Chile, 28 nov. 1971. La Semana Política, p.31.

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los valores definitivos. La riqueza, el lujo o el derroche de unos pocos son un insulto permanente a los que viven aún en la miseria. En cambio, la austeridad de los poderosos inspira confianza y paciencia a los que aún esperan.355

Nessa passagem, a desigualdade social deveria ser evitada a partir de uma atitude

austera dos ricos combinada com uma postura de paciência dos pobres. O apoio às mudanças

sociais veio acompanhado de uma crítica aos “extremismos” tanto de esquerda quanto de

direita e à associação entre paz social e “tradição democrática chilena”:

El sectarismo que han denunciado tanto el gobierno como la oposición existe en todas las partes, divide, irrita y lleva a odiar. Es necesario a toda costa superarlo: ningún chileno debe sentirse extraño, o de más, en su propia patria.356

Segundo os bispos, o clima de violência não seria compatível com a “tradição de

democracia” do país. Nesse momento a Igreja ainda buscava preservar uma boa relação com o

governo, a fim de garantir a manutenção de seus interesses diretos.

No mesmo mês, o Mercurio publicou um editorial no qual afirmava que embora a

oposição tivesse liberdade para se manifestar contra o governo, este último não levava em

consideração a posição da “maioria da opinião pública”, agindo de forma “autoritária”:

Chile vive con toda evidencia un momento de libertad política y de auge de la discrepancia nacional contra el Gobierno. Pero éste consolida su poder económico fríamente, aniquila los centros de apoyo que pudiera encontrar la oposición, cerca pacientemente a los medios informativos, tolera actividades paramilitares o parapoliciales de grupos extremistas. (...) La insensibilidad del bloque marxista frente al sentir de la opinión pública es un indicio de que el tránsito al socialismo es de hecho el tránsito hacia una dictadura comunista, dictadura legal tal vez, dictadura en que la autoridad del Presidente se debilita y en que se afirma el poder de un comité, dictadura en que insensiblemente se irían perdiendo los rasgos de la democracia chilena.357

Observa-se que as posições sobre o governo eram diferentes nesse período. Ao final

do primeiro ano de experiência da UP, o Mercurio apresentava uma postura de todo agressiva.

Na prática, representava setores que não toleravam o governo desde que este fora eleito. A

posição da Igreja se mostrava diferenciada, pois embora manifestasse inseguranças, se

colocou favorável às medidas que propiciassem a “justiça” e o “bem comum”.

355 Mensaje emitió el episcopado de Chile (11 abr. 1972). Por un camino de esperanza y alegría. El Mercurio, Santiago de Chile, 20 abr. 1972, p.22. 356 Ibidem. 357 Insensibilidad del marxismo. El Mercurio, Santiago de Chile, 30 abr. 1972. La Semana Política, p.3. Grifos nossos.

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Segundo a concepção da doutrina católica, o Estado teria a função de mediar o direito

natural por meio da realização do bem comum. Tratava-se, portanto, de enquadrar o Estado

como parte da ordem natural, devendo este proteger a família e a propriedade. Até abril de

1972 o governo Allende havia estatizado a maior parte dos bancos do país; desapropriado os

maiores latifúndios; incorporado importantes empresas à Área de Propriedade Social;

nacionalizado as fábricas de cimento, as minas de ferro, a indústria salitreira chilena, as minas

de cobre e controlava praticamente o conjunto da produção de minério, o aço e outros ramos

derivados da metalurgia. Todas estas medidas haviam sido realizadas com o pagamento de

indenizações aos antigos proprietários.358 Além disso, em abril de 1972 – mês da declaração

dos bispos – iniciava-se em Santiago a Terceira Conferência das Nações Unidas para o

Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD III), a qual recebeu o apoio total do Vaticano e,

localmente, da alta hierarquia da Igreja do Chile. Dentre os principais temas discutidos pelos

delegados internacionais do evento destacaram-se: o debate em torno do destino das matérias

primas produzidas pelos países subdesenvolvidos; o apoio financeiro a ditos países; o

incentivo a sua industrialização; o estímulo à sua participação em diversas decisões referentes

ao transporte marítimo; a descentralização da produção de ciência e tecnologia e o incentivo

ao seu desenvolvimento nos países do terceiro mundo; fazer da década de 1980 a chamada

“década do desarme”, como condição para que fossem anos de desenvolvimento econômico e

social.359

A realização de reformas sociais pelo governo Allende e o próprio fato de o Chile

sediar a terceira UNCTAD eram medidas que coincidiam com as concepções do cristianismo

social defendido pela Igreja Católica em toda a América Latina. Na perspectiva da instituição

católica, caberia ao poder público – independentemente de sua origem política ou social –

garantir a propriedade ao maior número de pessoas, sendo o desenvolvimento econômico

nacional uma atribuição legítima do governo. No que se referia à política desenvolvimentista,

a doutrina social católica era clara: seu objetivo era diminuir a desigualdade social, tanto entre

classes de uma mesma nação, quanto entre os povos, respeitando os limites de uma

“hierarquização natural”. Em outras palavras, a Igreja moderna, principalmente pós-concílio

vaticano II, defendia uma política que possibilitasse um crescimento econômico acelerado

acompanhado por uma distribuição social da riqueza. Ao Estado caberia, portanto, garantir

este processo contra as ameaças de ruptura ou de “desordem social”.

358 Cf. BITAR, Sergio. Transição, socialismo e democracia. Chile com Allende. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.407-420. 359 Conferencia Episcopal de Chile. Mensaje a los cristianos chilenos, al pueblo de Chile y a los delegados y visitantes de la UNCTAD III. Iglesia de Santiago, Santiago de Chile, ano X, n. 65, p.18-19, abr. 1972.

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Em outubro, mês da crise mais grave enfrentada pelo governo da UP, tanto o Mercurio

quanto a DC enfatizaram o estado de divisão e guerra em que se encontrava a sociedade

chilena. Nesse sentido, a via chilena teria como objetivo “dividir” a população em grupos

irreconciliáveis para instalar a “ditadura do proletariado”. No dia 1º de outubro a coluna La

Semana Política apontava:

Dicho programa está lejos de las llamadas 40 medidas y consiste simplemente en dividir a los chilenos en meritorios e indignos, en justos y criminales, en acreedores a un trato benevolente y en condenados al menosprecio y a la desaparición. Y la división se hace sin sumario y por el solo hecho de que los individuos se allanen a las directivas marxistas o les opongan resistencia. (...) Dicho estado de guerra es el germen de la temida dictadura del proletariado, que no se caracteriza por el paredón, sino por oprimir con las herramientas del poder estatal a las capas sociales medias, a los intelectuales, artistas, profesionales, periodistas, después de haber destruido a los comerciantes y de haber aniquilado a las clases tradicionales.360

Da mesma forma que o Mercurio, a DC desde agosto do mesmo ano ressaltara a ação

do governo no sentido de dividir e de estimular a violência:

Así fue como denunciamos que la política del Gobierno, cuyo objeto era obtener apoyo por la vía del amedrentamiento, de separar a los chilenos entre buenos y malos, entre revolucionarios y reaccionarios, entre ricos y pobres, entre trabajadores y capitalistas, entre fascistas y no fascistas, entre sediciosos y no sediciosos, etcétera, sólo favorecería a quienes buscaban convertir a Chile en un campo de batalla. (...) La crisis moral y la crisis económica han devenido en una profunda crisis social. El Gobierno, al igual que en los casos anteriores, es el gran causante de ellas, porque irresponsablemente ha pretendido dividir a los chilenos en grupos irreconciliables, tratando así de ganar un apoyo político que nunca tuvo. Se trató, en síntesis, de aplicar al nivel del país el viejo y fallido principio de ‘dividir para reinar’. Es difícil que mentes totalitarias entiendan que no hay posibilidad alguna de avanzar sin solidaridad; los países sólo pueden ser grandes cuando sus hombres son capaces de constituir un solo tras un objetivo común.361

De agosto a outubro de 1972, Santiago era palco da greve de comerciantes varejistas e

as ruas haviam se transformado em locais de sérios incidentes e conflitos. Iniciavam-se

também as primeiras paralisações do transporte terrestre, com veículos atravessados nas

estradas que impediam a livre circulação de mercadorias e agravavam o problema da escassez

de produtos. Para o PDC a situação do país era de total responsabilidade do governo, que

tolerava os conflitos e a indisciplina no mundo do trabalho, além de ignorar as vozes

dissidentes. Da mesma forma que o Mercurio, a DC utilizava a estratégia de fomentar a ilusão

de uma insatisfação generalizada representada pelo “conjunto nacional”.

360 Una autoridad discontinua. El Mercurio, Santiago de Chile, 1º out. 1972. La Semana Política, p.3. 361 MUSALEM, Jose. Crisis global de Chile creada para la toma del poder (1 ago. 1972). Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVII, n. 335, p.33-43, ago. 1972. Grifos nossos.

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De abril até setembro de 1972 a hierarquia parece ter preferido se abster de qualquer

pronunciamento, de forma a evitar que este fosse instrumentalizado por algum grupo político.

O cardeal Silva Henríquez se limitou, no plano oficial, a anunciar o “Dia Nacional de Oração

pelo Chile”, invocando a reconciliação nacional. Nesta declaração, intitulada “Congoja y

Esperanza”, o arcebispo expôs o “estado de guerra” em que se encontrava o país, denunciou o

uso da violência e pediu a paz:

El apocalíptico fantasma de la guerra entre hermanos aparece, inquietante, a nuestro atribulado espíritu, llenando de dolor y congoja nuestra alma de Pastor. (...) Cuántas veces hemos propuesto la paz? Más que proponerla, la hemos implorado y hasta suplicado. La paz del Señor, la única, la que es fruto de la justicia, extraña y enemiga, de todas las normas de violencia. Hemos, pues, condenado la violencia, Más que eso: la hemos desenmascarado. Le hemos quitado ese antifaz que la hace atractiva y seductora, presentándola, a veces, como el único o el mejor camino. La violencia no es el único ni el mejor camino. Ni siquiera es un camino. Los Pueblos no cambian ni progresan, no se ponen en marcha sustituyendo una violencia por otra. La violencia liquida las libertades, suscita odios y rencor y venganza, impide las participaciones del pueblo o las desnaturaliza. Quienes aceptan la violencia no conocerán nunca la paz, sino una tranquilidad de parálisis.362

Nos chama a atenção a condenação, pelo arcebispo, da violência utilizada pelos grupos

sociais em pugna no Chile sem, no entanto, especificá-los. Condena o uso da violência tanto

pela esquerda e trabalhadores organizados no Poder Popular, quanto pela direita e gremios.

No entanto, não leva em consideração a desigualdade de meios em que se encontrava a luta

social no país. Por este motivo, entendemos que a declaração foi mais funcional ao conjunto

da oposição, portadora dos meios de produção e dos grandes meios de difusão cultural.

Em novembro de 1972 a DC havia exposto a sua análise sobre o projeto da UP,

utilizando termos muito semelhantes aos utilizados pelos bispos em suas declarações oficiais.

Nela enfatizou não apenas a divisão do país, mas também a destruição da liberdade “criativa”

dos chilenos. A UP teria, portanto, destruído a “alma do Chile”:

La coalición socialista-comunista encabezada por Salvador Allende, ha destruído la materia de la patria. Pero no aceptaremos que nos destruyan el alma de Chile. Que nos cambien de patria en nuestro propio suelo. Que nos corten la esperanza de hacer nuevamente de este país una gran nación de libertad, justicia, fraternidad y altivez. Desde las oficinas de los burócratas partidistas y de los comisarios políticos ha comenzado a desruirse la libertad creadora de los chilenos en los organismos públicos, en las empresas, en las minas, en los campos y en los laboratorios científicos. (...) En todos los caminos se levantan barricadas que cortan el porvenir y asfixien la inteligencia en un presente degradado. Y por eso muchos chilenos pierden la esperanza y abandonan su patria para contribuir con su inteligencia y su esfuerzo a construir patrias ajenas. (...) No hay esperanzas, ni ilusiones, ni paz ni seguridad si

362 Congoja y esperanza. Mensaje del Cardenal Raúl Silva Henríquez a todos los chilenos (2 set. 1972). Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVII, n. 336, p.77-79, set. 1972. Grifos nossos.

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antes no sancionamos a los destructores de Chile y abrimos paso a la más grande decisión colectiva que recuerde nuestra historia civil, para borrar con el oficialismo marxista y volver a rencontrar el proceso de rectificación seguido por el Chile honorable, democrático y dinámico que habíamos logrado levantar hasta 1970. (...) Reafirmemos nuestra decisión que nuestros campos serán en el futuro realmente la Copia Feliz del Eden y no más el terreno donde se siembra el odio para cosechar el hambre.363

Por meio de expressões que invocavam elementos de uma nacionalidade

essencialmente democrática, o texto do democrata-cristão Cláudio Orrego localizava o

governo da UP na extremidade oposta, qualificando-o como “anti-chileno”. A DC

responsabilizava o governo por desalojar a sociedade chilena de sua “própria pátria” e

promover a “desintegração nacional”. Sendo a “liberdade”, a “justiça”, a “fraternidade”, a

“altivez”, o “dinamismo”, a “democracia” e a “criatividade” elementos constituintes da “alma

nacional”, a DC elevou a dicotomia “socialismo vs democracia” a um status moral,

identificando uma luta das forças do “Bem” contra as forças do “Mal”. Nesta conjuntura, o

PDC se apresentava explicitamente aliado aos setores golpistas, defendendo, a todo custo, a

destituição do governo de Salvador Allende.

Ao longo de 1973 a oposição seguiu utilizando o mesmo discurso que

responsabilizava o governo pelo clima de ódio e divisão do país. No entanto, neste último ano

de governo apontava-se para a impossibilidade de uma solução nacional nos marcos do

regime que então vigorava. A Igreja Católica, por sua vez, priorizou uma intervenção oficial

que remetia a uma última tentativa de estabelecimento de solução conciliatória, pedindo o fim

do “ódio” e do “sectarismo”, o “recuo” de ambos os lados, com o objetivo de “alterar” a

tendência “antidemocrática” seguida pelo país.

Os primeiros meses de 1973 foram marcados pela disputa política que precedeu as

eleições parlamentares de março, marcada por denúncias de ambos os lados. Neste clima, os

bispos criticaram a perspectiva “egoísta” e sectária” dos partidos envolvidos nas eleições, sem

deixar de demonstrar sua discordância com as práticas “violentas” da esquerda e dos cristãos

nela envolvidos.

Apesar de denunciarem a violência tanto da esquerda quanto da direita, o episcopado

acabou se aproximando da oposição, visto que neste contexto dirigiu críticas mais duras aos

grupos da esquerda católica como o movimento de sacerdotes “Cristãos para o Socialismo”

(CpS). Assim, ao mesmo tempo em que rechaçavam os CpS, lançaram cartas de apoio ao

sacerdote Raúl Hasbún, diretor do segundo maior canal de televisão do Chile pertencente à

363 ORREGO, Claudio. Defendamos el alma de Chile. Política y Espíritu, ano XXVIII, n. 338, p.92-96, nov. 1972.

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Universidade Católica. Como afirmamos anteriormente, Hasbún era um sacerdote de linha

conservadora, próximo à organização Opus Dei, cujas idéias eram constantemente reforçadas

pelo jornal Mercurio. No início de 1973, Hasbún fora acusado por membros da UP de estar

envolvido no assassinato de um operário na cidade de Concepción. Segundo o autor Mario

Amorós,364 em março daquele ano membros do Patria y Libertad assassinaram um operário

durante uma operação ordenada por Hasbún e Pablo Rodríguez – chefe desta organização

política.365 Após as denúncias da esquerda contra o padre, os bispos lançaram dois documentos

em que pediam respeito ao presbítero. No segundo documento rebateram a acusação feita por

Pablo Neruda, então embaixador do Chile na França, publicada no jornal do Partido

Comunista do Chile, El Siglo:

Querido Raúl, (...) Si volvemos a escribirte es porque nos ha causado verdadero asombro el artículo publicado en ‘El Siglo’, el domingo 1º de abril, y luego en varios otros diarios, por el poeta Pablo Neruda. Primero por la acusación que contiene: tu ‘largo brazo negro’ habría ‘torturado’ y ‘ajusticiado’ a un ‘obrero anónimo’ – cuyos nombres y apellidos da por lo demás: Jorge Tomás Henríquez González -, la víctima de los sucesos de Concepción, que habría sido ‘asfixiado con espantosa lentitud’ por orden tuya, ‘su verdugo’, desde Santiago. Rara vez en Chile se ha lanzado semejante infamia contra un sacerdote, o contra persona alguna. El Sr. Neruda, que cita tantas frases evangélicas, - debería recordar otra más: ‘No juzguiés, no seréis juzgados’. Nosotros lamentamos la muerte de un hermano nuestro; esto lo hace toda persona decente. Pero otra cosa es aprovechar un cadáver para acusar de asesino, con incalificable ligereza, a un sacerdote a quien se quiere destruir. (...).366

No mesmo mês, a Conferência Episcopal lançou uma mensagem em que analisava a

conjuntura do país, ressaltando os resultados negativos da via chilena ao socialismo.

Novamente os representantes católicos demonstraram sua insatisfação diante do clima de

ódios que consumira os chilenos e da divisão semeada no mundo do trabalho. Afirmaram que

a crise econômica atingia principalmente os mais desfavorecidos e evidenciaram seu rechaço

à via de transformações promovida pela UP:

Vemos con inmensa aflicción y pena, que en la prensa diaria con grandes titulares se invita a la violencia, a la desconfianza, a la enemistad. Vemos que el mundo del trabajo, en vez del entendimiento y la cooperación entre hermanos, prevalece una

364 AMORÓS, Mario. La Iglesia que nace del pueblo: relevancia histórica del movimiento Cristianos por el Socialismo. In: PINTO VALLEJOS, Julio (Org.). Cuando hicimos historia. La experiencia de la Unidad Popular. Santiago: LOM, 2005, p.107-126. 365 Recentemente, no ano de 2004, o sacerdote foi interrogado pelo juiz Alejandro Solís para esclarecer sua relação com a DINA (Direção de Inteligência Nacional, a polícia secreta do regime pinochetista) e suas sucessivas visitas ao maior centro de detenção, tortura e desaparecimentos do regime militar de Pinochet, a Villa Grimaldi. 366 Adhesión al Pbro. Raúl Hasbún (11 abr. 1973). La Revista Católica, ano LXXIII, n. 1024, p.72, jan. – abr. 1973.

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Política y el Estatuto de Garantías Constitucionales, con el preconcebido propósito de construir en Chile el monopolio estatal de la educación; la continuación de las tomas ilegales y de las requisiciones e intervenciones; y, para no citar más ejemplos, la negativa a establecer normas fundamentales sobre las Areas de la Economía.369

Somado às vozes oposionistas dos membros do PDC, o jornal Mercurio também

retratava o caráter “tirânico” do governo em seu intento de conquistar “todo o poder” às

custas do “empobrecimento nacional”. A página editorial do dia 8 de abril é bem explícita

nesse sentido:

Más poder; sí, pero a costa de que la reforma agraria rasante deje sin alimentos al país. Más poder; sí, pero al precio de que la industria nacional acuse una baja alarmante de su producción y sobre todo de su equipamiento. Más poder; sí, pero a costa de una sensible baja de la producción del cobre exportable. Más poder; sí, pero con el gravamen de invertir todos los excedentes de divisas y de realizar el más espeluznante dispendio de los recursos del país en moneda extranjera. (...) Más poder; sí, pero al precio de que los chilenos estemos trágicamente divididos y enemistados, descuidando peligrosamente nuestras fronteras. (...) En su acción política inmediata [de Allende], en lo que se refiere a las JAP, a los Cordones Industriales, a los Comandos Comunales, a las manifestaciones todas del Poder Popular, el señor Allende se revela un caudillo de la extrema izquierda, posesionando como el que más de las utopías propias de la militancia marxista.370

Aproximando-se a data histórica para os trabalhadores chilenos, o 1º de maio

organizado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), ato que sempre contou com a

participação da Juventude Operária Católica e do arcebispo de Santiago, a Revista Católica

publicaria uma declaração do cardeal Silva Henríquez em que ele justificava a sua ausência

no evento. Diferentemente do ano anterior, o arcebispo confirmaria o seu descontentamento

diante da fragmentação do mundo do trabalho – marcado naquele momento por fortes tensões

entre setores que aderiram à ofensiva burguesa e os setores organizados no Poder Popular.

Temeroso de que sua participação na manifestação fosse interpretada como uma postura

política, Silva Henríquez declarou:

Con profundo dolor, les manifiesto que este año no asistiré a la Concentración de la Central Unica de Trabajadores. En años anteriores lo he hecho, y lo había seguido haciendo, porque con el gesto de mi presencia en la concentración quería significar mi respeto a las personas de los trabajadores, y mi respaldo a los intereses colectivos de la clase obrera, en su lucha por una mayor dignidad, por respeto a sus derechos, y por la justicia que involucra su deseo de participar como gestores en la conducción de sus empresas y en la vida del país. Este año no lo haré. Contemplo con angustia tal vez la misma de ustedes – la división que se ha creado en el corazón del mundo obrero, llena de injurias y de odios, donde son lanzados obreros contra obreros. Esto no lo puedo aceptar. Como obispo y como Pastor, debo ser más que nadie el centro de

369 La situación política. Declaración del Consejo Plenario Nacional del PDC (11 abr. 1973). Política y Espíritu, ano XXVIII, n. 342, p.70, abr. 1973. Grifos nossos. 370 La falsa conciliación. El Mercurio, Santiago de Chile, 8 abr. 1973. La Semana Política, p.31.

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unidad de mi pueblo. Mi presencia en la concentración tendería a radicalizar aún más esta división, y se le daría un interpretación política-partidista, que nunca la aceptaré.371

A situação política da classe trabalhadora chilena em 1973 contrastava como um todo

com o ideal católico de organização sindical corporativista. Antes mesmo da aproximação

feita pelos papas (Leão XIII, Pio X e Pio XI) da questão social com o trabalho, a visão bíblica

já o encarava como algo divino e como parte integrante do ser humano, constituindo dever de

todo homem trabalhar. Sendo o trabalho dependente da sociedade e do Estado, caberia

organizá-lo dignamente.372 A partir das encíclicas papais de Leão XIII e principalmente as de

Pio X e Pio XI, a questão social foi atrelada ao trabalho, uma vez que nele residia toda a

ameaça de desordem social. Daí a necessidade de organizar os trabalhadores, garantindo

também a unidade do capital com o trabalho.

Os anos de governo da UP possibilitaram, como mencionamos antes, um avanço em

termos organizativos e de autonomização da classe trabalhadora – o que justifica o volume de

pronunciamentos e publicações que tiveram o Poder Popular como tema principal, atrelado

sempre à perspectiva de “desordem”, “indisciplina” e “decréscimo da produtividade”. Nesse

sentido, a Igreja, como instituição da ordem, não deixaria de publicizar o seu

descontentamento, somando-se às classes médias aterrorizadas.

Em julho de 1973, após os incidentes ocorridos no mês anterior que envolviam a greve

dos mineiros de El Teniente contra o governo; a greve geral da CUT em apoio ao governo; o

atentado contra o general Prats e o levante de um blindado em Santiago, intitulado Tancazo,

os bispos realizaram uma exortação conhecida como “A paz no Chile tem um preço”. Nela

ressaltaram a preocupação com uma possível guerra civil que provocaria a destruição da

“alma nacional”:

Todos los chilenos estamos preocupados por insistentes noticias de que se están armando las poblaciones civiles y que existe el peligro de una guerra civil. La peor desgracia que puede ocurrir a un país, y esto todos lo sabemos, es una guerra civil. No solo por su secuela de muerte y de miseria. Sino por el envenenamiento del alma nacional por el odio y el rencor que hace muy difícil la reconstrucción ulterior. Tenemos que hacer todo lo posible para evitarlo.373

371 El cardenal no asistirá al acto de la CUT (30 abr. 1973). La Revista Católica, ano LXXIII, n. 1024, p.76, jan. – abr. 1973. Grifos nossos. 372 Sobre a questão do trabalho na doutrina católica ver SOUZA, Jessie Jane Vieira de. Círculos Operários. Op. cit., p.70. 373 La paz en Chile tiene un precio. Exhortación del Comité Permanente del Episcopado de Chile. Festividad de la Virgen del Carmen. La Revista Católica, ano LXXIII, n. 1026, p.159-160, mai. – ago. 1973.

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Pronunciando-se em nome de “todos os chilenos”, o episcopado ressaltou o perigo de

formação de grupos civis armados, fato que acabaria desencadeando uma guerra interna. As

notícias a que os bispos se referiam estavam relacionadas com a acusação feita pela oposição

de que o governo seria cúmplice da formação de milícias populares nos bairros operários e

poblaciones. Estas atuariam contra as FFAA e fariam parte de um exército “paralelo”,

responsável pela implantação da “ditadura do proletariado”. Como publicou o Mercurio em

agosto de 1973:

Otro capítulo que se encuentra en pleno desarrollo es ‘Formar la Guardia Roja’, no otra cosa es la constitución pública de los Cordones Industriales, con el que un grupo de trabajadores marxistas pretende crear un poder popular armado que conduzca a la Dictadura del Proletariado, como lo declaró públicamente por Televisión Nacional (...) el actual Ministro del Trabajo (....). La aplicación de las actividades que preconiza ‘La insurrección Armada’, que ya ha comenzado a dar sus frutos, nos indica que existe la posibilidad de guerra civil, por enfrentamiento de fuerzas militares si se sigue permitiendo la actuación impune de grupos y personas que en forma pública y reiterada tratan de socavar la disciplina.374

Diante deste quadro, o temor da hierarquia católica se aproximou ao “clima de

insegurança” criado pelos editoriais do jornal Mercurio. Em verdade, existiam grupos

armados terroristas ligados à extrema-direita e contra eles não se via muitos pronunciamentos.

A reconciliação invocada pelos bispos neste momento acabou significando um pedido de

recuo por parte da esquerda e dos movimentos a ela ligados – recuo que possibilitaria uma

“saída conciliada” e evitaria um golpe militar.

Pouco antes de publicar o documento anterior, a Igreja havia lançado uma carta

pastoral na qual analisava a conjuntura nacional e citava os efeitos da via chilena, ressaltando

a crise econômica e rechaçando o princípio marxista da luta de classes em nome da “paz

social”. No dia 1º de junho os bispos das províncias centrais do Chile manifestaram:

Estamos preocupados por la marcha del país, por el desarrollo de los acontecimientos. Nos duele ver las largas colas de chilenos – los millones de horas que se pierden cada semana – sufriendo la humillación de vivir en esas condiciones. Parece un país azotado por la guerra. Nos preocupa el mercado negro, desatado por la inmoralidad de quienes negocian en forma injusta con los alimentos y otros productos esenciales. No aprobamos por princípio el éxodo de profesionales. El país debe encontrar caminos realistas y verdaderos para evitar esta sangría. Es deber moral de todo chileno permanecer en la tierra que lo vió nacer y le proporcionó su profesión. Nos preocupa que los medios de comunicación no sean veraces y sobre todo que inciten al odio. Al destruir la verdad y el amor faltan a sus deberes fundamentales, son inmorales. Contemplamos, con angustia, la inflación que nos invade en forma creciente de día en día y la crisis de nuestra economía. En estos días presenciamos el problema de los mineros del cobre de El Teniente, con las implicaciones que tiene en la vida sindical,

374 La insurrección armada y la seguridad nacional. El Mercurio, Santiago de Chile, 15 ago. 1973. Editorial, p.2.

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en la marcha de la economía. Condenamos la violencia que crece en este conflicto laboral y pensamos en los sufrimientos que habrían podido evitarse.375

Neste documento os bispos buscaram enfatizar o “sofrimento” dos chilenos diante dos

efeitos da via proposta pela UP identificado nas enormes filas para obter produtos de primeira

necessidade, na existência do mercado negro, no êxodo de profissionais, na alta taxa de

inflação, nas implicações do conflito no mundo do trabalho etc. Todos estes elementos

também recheavam os órgãos de imprensa da oposição e serviam para deslegitimar o caminho

percorrido pelo governo. É curioso observar a ausência de uma análise mais consistente que

considerasse, por exemplo, o boicote interno provocado pelo empresariado ao comércio, à

produção e à distribuição de produtos básicos, o boicote externo feito pelo governo norte-

americano e, enfim, a própria ação golpista do conjunto da oposição. A Igreja, ao ter que se

pronunciar diante daquela conjuntura procurou ao mesmo tempo não se envolver diretamente,

afirmando que o seu papel não era dar “soluções técnicas”, nem tomar partido no conflito

aberto.

Meses antes, ao dar uma entrevista a um jornal italiano sobre a situação do Chile em

1973, Eduardo Frei, dirigente democrata-cristão, apontou as mesmas preocupações destacadas

pelos bispos chilenos:

Chile en cierta forma vive un ‘carnaval de locura. La gente no trabaja y la política reemplazó a la productividad en las empresas nacionalizadas. Los trabajadores están ebrios de discursos políticos y aunque sus esposas están furiosas por tener que hacer colas durante horas ante los comercios, los jefes no se atreven a despedir a los que llegan tarde’. (...) La propaganda ha difundido el concepto de guerra de clases. Hacer colas no es tan malo, cuando uno ve a una dama burguesa que se da aires, hacer también la fila. (...) ‘No creo que la libertad de prensa dure mucho. No creo que el pluralismo esté garantizado. Estamos en el camino al totalitarismo de tipo marxista’, señaló.376

Em maio de 1973, a análise que os democrata-cristãos faziam do governo era bastante

derrotista e apontava algumas preocupações que os bispos já tinham citado em seus

documentos. A declaração do partido afirmava:

Que en su escalada totalitaria el Gobierno sobrepasa cada día más descaradamente la legalidad institucional, desconoce más groseramente los valores culturales democráticos, atropella más cínicamente a las personas y procura conquistar la mente de los chilenos, mediante una concientización sistemática que exacerba el odio de clases e idealiza una revolución promisoria de justicia. Simultáneamente, va

375 Carta Pastoral de los Obispos de las provincias centrales de Chile (1º jun. 1973). La Revista Católica, ano LXXIII, n. 1026, p.162-164, mai. – ago. 1973. 376 Señala Frei: Chile se precipita hacia una dictadura marxista. El Mercurio, Santiago de Chile, 31 mar. 1973, p.32.

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paralizando la capacidad de reacción de otros sectores chilenos que están cayendo en el acostumbramiento o en el franco derrotismo. Que el desastre económico a que la política gubernativa ha conducido al país, que tan duramente afecta a casi todos los hogares chilenos, está siendo aprovechado para incrementar el poder del gobierno, que trata de someter cada vez más gente a su control y agudizan en su provecho el conflicto social. Que el modelo de socialización aplicado por el gobierno [sic.] es estatista, centralizado y burocrático no significa el término de la dependencia de los trabajadores, a quienes no entrega el poder, sino los constituye en siervos de un nuevo patrón, que están siendo utilizados por los partidos dominantes de la UP para aumentar su control sobre los trabajadores y, mediante una política populista y demagógica, incentivar el odio de clases y el clima de violencia que el país está viviendo. Solidarizar plenamente con la lucha de los trabajadores chilenos en defensa de sus organizaciones sindicales y de sus conquistas sociales, gravemente amenazadas por la política laboral reaccionaria que está implantando el Gobierno, de la que son claro ejemplo la represión y el divisionismo del movimiento sindical (...).377

Neste documento, a DC utiliza os mesmos elementos analíticos para caracterizar a via

chilena que os bispos empregaram para descrever o socialismo de inspiração marxista no

pronunciamento de 1971 intitulado “Evangelho, política e socialismos”. Em maio, mês em

que foi produzido o documento acima, o governo havia decretado “Estado de emergência” na

província de O’Higgins devido à greve dos mineiros de El Teniente financiada pelo governo

norte-americano para diminuir a produção do cobre chileno, uma vez concluída a sua

nacionalização. Este conflito foi produzido por motivos aparentes de reajustes salariais num

contexto de campanha parlamentar que se finalizou em março de 1973. A greve, manipulada

pelos partidos de direita, ilustrou a forte divisão política no seio do movimento sindical e a

crise no interior da Central Única dos Trabalhadores (CUT).378 No mesmo período o governo

Allende anunciou a transferência de 43 novas empresas para a Área de Propriedade Social,

incluindo a Companhia Manufatureira de Papel, chamada Papelera. Paralelamente à greve

dos mineiros, os Cordões Industriais seguiam atuando em conjunto com camponeses na

ocupação de terras e fábricas, pressionando o governo a atuar de forma mais incisiva contra o

boicote econômico feito pela oposição. No mesmo mês em que a DC publicara o documento

acima, o Mercurio evidenciava em seus editoriais a ameaça causada pela “indisciplina” no

trabalho. Consideramos que o editorial a seguir é bastante ilustrativo no que se refere à

posição da burguesia chilena diante da “inquietação” no mundo do trabalho:

La huelga de los trabajadores de El Teniente, la toma del Ministerio de Obras Publicas y los contínuos bloqueos de caminos con los cuales el Cordón Cerrillos apoya a compañeros con reivindicaciones pendientes, son algunos de los sintomas de una

377 Voto político de la Junta Nacional del Partido Demócrata Cristiano (14 mai. 1973). Política y Espíritu, ano XXVIII, n. 343, p.57-59. Grifos nossos. 378 Sobre o movimento sindical durante o período da UP ver GAUDICHAUD, Franck. Contruyendo “Poder Popular”: el movimiento sindical, la CUT y las luchas obreras en el periodo de la Unidad Popular. In: PINTO VALLEJOS, Julio (Org.). Cuando hicimos historia. Op. cit. p.81-105.

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muita importância nas encíclicas papais que serviram de base para os documentos episcopais

do período. Junto ao trabalho, a Igreja Católica abordou o papel dos sindicatos, como núcleos

fundamentais de organização da classe trabalhadora. No entanto, o significado desta

organização para a Igreja esteve relacionado com a idéia de colaboração e não com a de

mobilização do trabalhador para a luta de classes. O estímulo à colaboração deveria se

verificar por meio de acordos estabelecidos entre as associações de trabalhadores e de

empresários. A negociação coletiva se conformou no objetivo central da atividade sindical

segundo a concepção da Igreja, embora esta também tivesse como meta fazer ouvir a voz dos

trabalhadores em todos os problemas da vida econômica e social. Assim, o sindicalismo

recebeu enorme atenção por parte da instituição católica durante todo século, desde que

estivesse à margem de qualquer inspiração ideológica.381

Em 1973 a situação do Chile mostrava uma realidade absolutamente diversa da

almejada pela Igreja Católica: os trabalhadores se encontravam divididos e inclusive em

campos opostos. Muitos se incorporaram às organizações que compunham o Poder Popular,

outros aderiram à ação coordenada pelo empresariado, principalmente os trabalhadores das

associações patronais. A radicalização do processo político chileno – que no último ano

assumiu um caráter revolucionário, fugindo inclusive ao controle do presidente da República

– impossibilitava a articulação de uma política conciliatória. Diante deste impasse, os bispos,

demonstrando a sua insatisfação, continuaram invocando temas referentes à unidade do

mundo do trabalho, à cooperação contra a luta de classes e o retorno ao trabalho.

A insatisfação com relação à “desordem” no trabalho também esteve presente nas

publicações oficiais do PDC e nos editoriais do jornal Mercurio, como ficou expresso nos

exemplos acima. Para os democrata-cristãos, o governo Allende teria sido o responsável pela

radicalização dos sindicatos e sua intensa politização, o que os havia transformado em “servos

de um novo patrão” e em uma espécie de “correia de transmissão” dos partidos que

compunham a UP. Nesse sentido, os sindicatos teriam deixado de atuar a partir de uma

perspectiva colaboracionista para assumir uma ação “ideológica”. Tendo, portanto, a sua ação

determinada por uma “ideologia” ou por diferentes “ideologias”, os sindicatos estariam

mobilizados para a luta de classes, vista como sinônimo de “ódio” e “divisão”. O “excesso”

de mobilização, por sua vez, teria determinado a queda da produção de onde se conclui que a

“política acabou substituindo a produtividade nas empresas nacionalizadas”. Em outras

381 CAMACHO, Ildefonso. Doutrina Social da Igreja: abordagem histórica. São Paulo: Edições Loyola, 1991, p.202.

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palavras, os trabalhadores “deixaram de trabalhar para fazer política” e o país se viu num

desastre econômico.

A charge a seguir expressa a idéia que viemos afirmando com relação à alteração do

ambiente de trabalho desde meados de 1972:

Figura 4: “Usos de la pala”. Lukas. Fonte: El Mercurio, 25 ago. 1973, s/p.

A imagem enumera os diferentes usos atribuídos à pá – um instrumento básico de

trabalho tanto de trabalhadores urbanos quanto rurais. Com certa ironia o autor menciona

diversas utilidades que não correspondem diretamente ao trabalho, como o seu uso para

propaganda política, defesa pessoal, braseiro para ocupações ou acampamentos, muleta de

emergência e base de sustentação de barricadas. Em uma nota afirma-se que nos chamados

países “desenvolvidos” o objeto em questão é empregado para trabalhar. O autor da imagem

procurou representar o processo de “politização” dos espaços de trabalho e a divisão semeada

no seio da classe trabalhadora. Estas tendências verificadas pelo conjunto da oposição na

sociedade chilena em 1973 levariam à substituição do trabalho pela “política”. A referência

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aos países desenvolvidos é clara: neles a “política” não teria permeado espaços indevidos e a

pá continuaria a apresentar a sua função original: instrumento de trabalho.

Observa-se que o jornal Mercurio também retratou a crescente “inquietude laboral” ao

longo de 1973 e, da mesma forma que a DC, abordou a dependência das organizações

operárias com relação ao governo. De maneira semelhante à DC e à hierarquia católica, o

Mercurio reforçou a concepção de que a excessiva politização dos ambientes de trabalho teria

destruído os hábitos e a disciplina laboral. Como conseqüência da perda do “espírito

trabalhador”, o país teria sido prejudicado em suas atividades econômicas com a queda da

produção industrial e o cultivo escasso e desordenado no campo. Em suma, a “desintegração

nacional”, isto é, a divisão do país em função do processo de ativação popular, teria afetado as

instituições do regime democrático chileno, a “ética cidadã” e a atividade produtiva do país.

Junto à perspectiva de derrota do governo que perpassava os editoriais do Mercurio, a

revista da DC e os pronunciamentos episcopais, construía-se à idéia de impossibilidade de se

recuperar a estabilidade política, social e econômica do país nos marcos do nacional-

reformismo. A tarefa de reconstrução da “ordem” deveria ser levada a cabo por uma

instituição que de fato representasse a “unidade nacional” contra a “desordem”, a

“indisciplina” e a “divisão”. Por este motivo, estes mesmos meios de comunicação lançariam

artigos que enfatizavam o profissionalismo das FFAA chilenas, o respeito à instituição

castrense, seu papel “apolítico” e de “árbitro” dos conflitos que permeavam a sociedade.

Sobre isso, a coluna Tribuna do dia 18 de agosto do jornal Mercurio afirmava:

Desde luego, la seguridad nacional, en teoría, necesariamente debe peligrar cuando el desastre económico, el caos institucional y la postración llegan a un país como han llegado al nuestro. El camino de destrucción y desquiciamiento que hemos recorrido, difícilmente lo podremos desandar. Pero, no es – al menos nos parece – este teórico riesgo el que preocupa o dice preocupar al Gobierno. Si así fuera, algo se estaría haciendo para rectificar rumbos. (...) Cuando se dice que peligra la seguridad nacional, aunque no queramos, debemos suponer que existen otras naciones que están en situación o dispuestas a enfrentar a Chile en términos que nuestra soberanía se ve afectada. (...) Dios quiera que no tengamos algún día que derramar lágrimas sobre el cadáver de Chile mutilado. La responsabilidad esencial será, en definitiva, y siempre, de nuestras Fuerzas Armadas, las mismas que históricamente supieron asumir con honor y con gloria el deber que la Patria les ha asignado: Defender a Chile.382

O Mercurio, cumprindo seu papel de “imprensa informativa”, lançou uma série de

artigos que enfatizavam o papel das FFAA na defesa da ordem nacional ao mesmo tempo em

que seus editoriais descreviam um país completamente destruído economicamente e uma

382 DORR ZEGARS, Juan Carlos. Peligra la seguridad nacional? El Mercurio, Santiago de Chile, 18 ago. 1973. Tribuna, p.2.

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sociedade fracionada. Por sua vez, a coluna “Temas Econômicos” retratava as vantagens da

economia de livre mercado, de um Estado “mínimo”, das privatizações, enfim, de um novo

modelo econômico completamente diferente do que caracterizou o Chile até então – um

modelo “moderno”, “eficiente” e com “técnicos especializados”.

A DC também procurou exaltar o papel de árbitro das FFAA, afastando-as de qualquer

participação nas disputas políticas do momento e garantindo a sua “neutralidade” acima dos

conflitos e interesses divergentes. Como apontou o partido:

(...) Que las Fuerzas Armadas y el Cuerpo de Carabineros son y deben ser, por su propia naturaleza, garantía para todos los chilenos y no sólo para un sector de la nación o para una combinación política. Por consiguiente, su presencia en el Gobierno no puede prestarse para que cubran con su aval determinada política partidista y minoritaria, sino que debe encaminarse a restablecer las condiciones de pleno imperio de la Constitución y las leyes, y de convivencia democrática indispensables para garantizar a Chile su estabilidad institucional, paz civil, seguridad y desarrollo.383

A semelhança entre os textos do Mercurio, da DC e da Igreja no que se refere ao papel

das FFAA e à legitimação do golpe militar como a única solução que garantiria o retorno à

ordem, combatendo a divisão em nome da colaboração, pode ser identificada a partir do

exame do pronunciamento do arcebispo de Valparaíso, Emilio Tagle Covarrubias, de

novembro de 1973. Emilio Tagle, apesar de ser conhecido por suas posturas conservadoras,

sintetizou todo o pensamento do episcopado chileno tornado público ao longo dos três anos de

governo UP. Observa-se que os elementos que estruturam o seu pronunciamento estiveram

presentes nos documentos citados por nós anteriormente. Como afirmou:

Nuestras Fuerzas Armadas, fieles a su juramento, teniendo sólo en cuenta el bien de Chile y acogiendo su clamor, dieron el paso providencial para salvarlo de caer para siempre en el dominio del marxismo, del cual enseña la experiencia, no se puede salir. Su gloriosa tradición de patriotismo que se confunde con nuestra historia es la garantía de la seguridad y confianza que tenemos en el Gobierno que hoy nos dirige. ‘Por Dios, por la Patria y la Justicia’, solemnemente ha jurado actuar. Como un enfermo condenado a morir que se ha librado por una acertada operación, el país ha perdido alguna sangre, ha sufrido algún dolor, hay heridas que deben ir cicatrizando. Pero se ha salvado la vida de Chile como nación libre y soberana. (...) Chile se levanta, recupera su esperanza y comienza a caminar. (...) Hemos conocido el marxismo. Ante la injusticia social, muchos lo acogieron con esperanza como un camino de liberación. Sabemos que no puede ser ningún camino, ni ser ninguna solución. Hoy no está en el poder, pero, importa que no permanezca en la mente del chileno. Es erróneo y es inmoral. Su doctrina materialista y atea, niega a Dios y todas las verdades de la fe. Niega al hombre su destino inmortal. Al desconocer lo que es el hombre, es incapaz de procurar su bien. Coloca la lucha de clases como su fundamento necesario de la vida social, lo que lleva al enfrentamiento, al odio y la violencia. Pretende liberar a unos aplastando a otros, pero, en el fondo a todos el Estado los aplasta por igual.

383 El quiebre de la institucionalidad (21 ago. 1973). Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXIX, n. 345, p.77-79, ago. 1973.

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Todos los ciudadanos serán sus asalariados. Su meta es la dictadura, el poderío total, donde el hombre pierde su libertad. Para alcanzarlo, lo sacrifica todo. Al no creer en la existencia de dios, el marxismo no puede establecer el fundamento de la obligación moral. Sostiene como bueno y verdadero todo lo que contribuye al triunfo de su revolución. ‘Nuestra moralidad – ha dicho Lenin – está subordinada a la lucha de clases’, (2 octubre 1920). Con esto quiebra toda convivencia humana, abre la puerta a todos los desvíos y a los más siniestros procederes. (...) Se ha pretendido identificar con el marxismo el bien del pueblo: profundo error. Justamente lo rechazamos porque queremos ese bien. (...) La colaboración y no la lucha de clases debe animar la vida social.384

O discurso do bispo corroborava inteiramente com a idéia construída pelos defensores

do regime militar. Segundo estes últimos, o golpe de 1973 e o posterior regime ditatorial-

militar, apesar de constituírem uma etapa “penosa”, serviria para “sanear” a sociedade

chilena, extirpando seus elementos “cancerígenos” que a impediam de preservar a sua

estabilidade, nível de produtividade, unidade e harmonia entre os chilenos. Após o golpe, os

representantes católicos passariam a expressar mais claramente suas análises críticas sobre o

governo Allende derrotado e estabeleceriam uma relação de cumplicidade com o regime

militar. Como afirmou a autora Maria Angélica Cruz,385 por um lado, a hierarquia aceitou as

regras do novo governo, oferecendo seu apoio no processo de “reconciliação” entre os

chilenos. Por outro lado, desenvolveu um trabalho de assistência às vítimas da repressão que o

mesmo regime perseguia. Nesse sentido, tanto o Estado buscou se respaldar na Igreja e na

doutrina católica, ao mesmo tempo em que perseguia e reprimia os que, em seu interior, eram

vistos como “inimigos” do regime; como a Igreja procurou se preservar enquanto instituição,

apoiando a Junta Militar ao oferecer a sua contribuição com a “pacificação dos espíritos” e

expulsando de seu interior os elementos considerados “extremistas”.

Os pronunciamentos feitos após o golpe pelos membros da hierarquia buscaram

construir uma imagem de que a Igreja, durante o governo UP, cumprira seu papel de

“mediadora universal”, pois teria feito esforços no sentido de garantir uma saída conciliada

para a crise - alternativa não viabilizada pelo “sectarismo” dos atores políticos. Uma vez não

sendo possível o “pacto social” como solução para Chile fracionado de 1973, os bispos

legitimaram o golpe como um “mal menor”, isto é, como uma saída que, longe de ser ideal,

cumpria a função de restaurar a ordem e garantir o retorno a uma democracia “conciliada”.

Esta idéia está clara na entrevista concedida pelo cardeal Silva Henríquez a um jornalista

italiano em outubro de 1973. O arcebispo afirmou que apesar dos fatos “lamentáveis” no novo

governo, estes se explicavam pelas “causas que os provocaram”. Assim, respondeu: 384 TAGLE COVARRUBIAS, Emilio. Por Chile, con Maria. La Revista Católica, ano LXXIII, n. 1027, p. 268-271, set. – dez. 1973. 385 CRUZ, Maria Angélica. Iglesia, represión y memoria. El caso chileno. Op. cit., p.3.

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Veíamos como el país se dividía, como se hería la unidad de la clase obrera, como un sectarismo ideológico se imponía. Fue así entonces como el 16 de julio hicimos un solemne llamado al diálogo entre las fuerzas políticas y sociales que estaban por los cambios, tanto de Gobierno como de Oposición, pues un gran consenso nacional para lograr la paz y las transformaciones sociales era necesario. Creímos que éste sería el único camino para obtener la reconciliación de los chilenos y para que la conciencia de un pueblo organizado se pusiera al servicio de la justicia y no de la violencia. Lamentablemente no fue así. No se quiso renunciar por parte de los que detentaban el poder a la pretensión de creer que su verdad social era la única. La Junta Militar ha sido la primera en lamentar la decisión que asumió y ante este nuevo gobierno, cuya actitud a mi modo de ver no puede calificarse de dura represión anti marxista, la Iglesia de Chile tiene la misión que le corresponde: ser conciencia viva del pueblo, portavoz permanente de los valores evangélicos pues no nos corresponde derrocar gobiernos o poner gobiernos. Nuestra misión es sólo servir a Chile con un amor privilegiado hacia los más pobres y vigilar para que los derechos de toda persona humana sean respetados no sólo de palabra sino también de hecho.386

Em suma, em meio a dura repressão iniciada a partir de 11 de setembro, os

representantes católicos lançaram mensagens e declarações ao “povo chileno” em que

demonstravam toda a sua cumplicidade com o regime militar e pediam a colaboração de todos

na “árdua” tarefa levada a cabo pela Junta Militar. O Cardeal de Santiago fez inclusive uma

“visita” ao Estádio Nacional para pregar a “unidade independentemente das posições

políticas” entre as milhares de pessoas que lá se encontravam presas.387 Paralelamente, não

apenas os militantes dos partidos de esquerda, como também os cristãos estrangeiros e

chilenos que apoiaram o projeto da via chilena e se engajaram posteriormente na “Batalha da

Produção” junto aos trabalhadores dos Conselhos Comunais e Cordões Industriais, foram

perseguidos, torturados e muitos desapareceram. A relação dos cristãos socialistas com a

hierarquia católica será o tema de nosso próximo item.

386 Versión oficial y fidedigna de la entrevista concedida el 17 de octubre de 1973 por el señor cardenal al periodista Giovanni Spinoso del diario Avvenire de Milan (24 out. 1973). La Revista Católica, ano LXXIII, n. 1027, p. 264-266, set. – dez. 1973. 387 A visita de Silva Henríquez ao Estádio Nacional no dia 24 de setembro, local em que os presos políticos foram arrastados pelos militares e onde eram torturados em massa, mostra que a alta hierarquia católica se encontrava desde o início a par de todas as iniciativas tomadas e utilizadas pelo novo governo militar. Interessante ressaltar também que em 1971 a Igreja do Chile recebeu o brasileiro Frei Tito que integrava um grupo de 70 presos políticos trocados pelo diplomata suíço Giovanni Brucher. Tito, com então 25 anos, dera uma entrevista em que contava as torturas que havia sido submetido nos porões da ditadura militar brasileira. Conclui-se disso que os bispos chilenos estavam devidamente informados das práticas utilizadas pelos regimes ditatorial-militares que imperavam nos demais países do continente e que o Chile, a partir de 1973, não viveria uma situação muito diferente. Sobre a visita de Silva Henríquez ao Estádio Nacional em 1973 ver “Cardenal visita el Estadio Nacional”. In: Boletín Informativo Oficial. Arzobispado de Santiago, n. 72, p.3. Sobre a chegada de Frei Tito à Santiago ver Iglesia de Santiago, Santiago de Chile, ano VIII, n. 53, micronotícias, p. 46, fev. - mar. 1971.

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A alta hierarquia católica e o movimento “Cristãos para o Socialismo”

Desde o ano da eleição presidencial em 1970, o crescente envolvimento de membros

da Igreja na política, em especial a relação de sacerdotes com os partidos de esquerda, foi

considerado um grande problema para a hierarquia católica. A questão foi encarada pelos

bispos como ameaça de divisão no mundo católico, na medida em que a opção pelos pobres

fora interpretada por parte dos fiéis e membros da Igreja como uma opção de classe, ímpeto

moral-revolucionário de adesão a uma luta emancipadora da classe trabalhadora Nesse

sentido, muitos cristãos entenderam as deliberações do Concílio Vaticano II de 1962 e da

Conferência dos bispos latino-americanos de Medellín em 1968 como, não apenas uma linha

de ação concreta da Igreja no mundo temporal a favor dos mais desfavorecidos, mas também

uma possibilidade de atuação conjunta com a esquerda, constituindo na prática uma unidade

de ação política entre cristãos e marxistas na erradicação da exploração do homem pelo

homem.388 Esta prática levaria, na concepção deste grupo de cristãos, a uma luta no interior da

própria instituição católica, visando afastá-la de seu papel tradicional de conservação da

ordem por meio de iniciativas caridosas e colaboracionistas, para um papel de apoio à

organização do proletariado em sua luta pela emancipação. Isto significava vencer uma

disputa que dizia respeito à própria interpretação e aplicação da doutrina católica,

aproximando-a da idéia de socialismo por meio da experiência do chamado cristianismo

primitivo. A repressão interna e externa ao movimento em nível continental evidenciaria a

impossibilidade de uma disputa real no interior da instituição católica.

O movimento da “esquerda cristã” esteve presente em todo continente latino-

americano, conformando uma “nova” teologia - a chamada Teologia da Libertação – a partir

de práticas reais de cristãos em movimentos sociais diversos e em trabalhos de formação

política nas periferias, zonas rurais e bairros pobres das grandes cidades. No caso do Chile, a

repressão interna ao movimento dos cristãos socialistas (CpS) pode ser analisada como mais

um elemento para a compreensão do processo de adesão da Igreja à estratégia de

deslegitimação e destituição do governo de Salvador Allende. Isto se explica porque, em

primeiro lugar, tratou-se de um movimento que além de avançado em termos de conteúdo, foi

ganhando uma série de adeptos e se expandiu enquanto grupo confessional. Seus membros se

declaravam marxistas e adeptos à idéia de construção do socialismo no Chile, elaborando uma

388 Sobre a unidade de ação política entre cristãos e a esquerda no processo revolucionário nicaragüense ver KALLÁS, Ana Lima. Cristãos e marxistas na revolução sandinista de 1979. 2005. 120 p. Monografia (Bacharelado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ.

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sólida vertente interpretativa que combinava cristianismo e marxismo. Os cristãos socialistas

de fato se inseriram no processo revolucionário vivido pelo Chile a partir de outubro de 1972,

atuando ao lado de operários, camponeses e pobladores, no interior das organizações que

deram origem ao Poder Popular. Desde o início do governo, apoiaram a candidatura de

Allende e o projeto da UP, por vezes se identificando mais com a esquerda revolucionária de

fora da coalizão governista. Exemplo disso foi o sacerdote espanhol Antonio Llidó, militante

do MIR e fundador do CpS que desapareceu após o golpe militar, tendo sido suspenso em

1972 de sua função sacerdotal pelo bispo Emilio Tagle.389

Diante da amplitude do tema, optamos por centrar a nossa análise no movimento

“Cristãos para o Socialismo” (CpS), que, a nosso ver, gerou um dos maiores embates internos

da Igreja do Chile neste período, visto que se tratava inicialmente de um movimento de

sacerdotes. Não menosprezamos com isso a ação de vários outros cristãos que ao longo deste

período se uniram aos partidos de esquerda, participando inclusive do governo Allende, como

o Movimento Esquerda Cristã - cisão do PDC -; o Movimento de Ação Popular Unificado

(MAPU) – também originado de uma cisão do PDC e depois transformado em partido de

esquerda -, e os movimentos confessionais Iglesia Joven e Iglesia del Pueblo, constituídos ao

final do governo Frei. A presença de cristãos em organizações políticas de diferentes vertentes

ideológicas mostrava claramente que o processo de polarização desses anos atingira a

totalidade das instituições e esferas da sociedade chilena. Na Igreja, a hierarquia tentou

combater e frear este processo, uma vez que os princípios básicos garantidores da reprodução

e preservação da instituição - a hierarquização, a disciplina e a unidade - estavam sendo

afetados.

Logo após as eleições presidenciais de 1970 os bispos lançaram um documento em

que propunham aos membros da instituição católica com cargos de direção pastoral a reflexão

sobre temas fundamentais. Dentre outros constavam “Igreja e mundo”, “sacerdote no plano

temporal”, “marxismo e cristianismo”, “eclesiologia da ordem e exercício da autoridade”,

“pastoral e processo de secularização” e “caridade e revolução”. O objetivo central do

documento era insistir na dissociação do sacerdócio com a política, em especial a política

partidária, de forma a “evitar” o processo de politização da Igreja Católica:

Dejando abierta una más profunda y actual discusión doctrinal, mantenemos la determinación prudencial de pastores de la Iglesia en el sentido que en Chile el

389 Sobre a vida de Llidó ver AMORÓS, Mario. Antonio Llidó, un sacerdote revolucionario. Rebelión. Chile, el laboratorio del neoliberalismo, out. 2005. Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=21025. Acesso em: 17 nov. 2007.

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sacerdote no debe actuar en la política de partidos. (...) Tal orientación pastoral está basada en dos razones que nos preocupan: 1 – En la

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eficaz. Pero al mismo tiempo afirmamos que la crítica debe realizarse desde dentro del proceso revolucionario y no desde fuera de él.392

Por defenderem a participação direta dos cristãos no processo de construção do

socialismo no Chile, afirmando que as eventuais críticas ao projeto da UP só poderiam dar-se

a partir de uma análise desde seu interior, o documento dos 80 sacerdotes suscitou enorme

polêmica. Não apenas a alta hierarquia católica, como também os membros do PDC e o jornal

Mercurio condenaram a opção “classista” dos religiosos, acusaram o movimento de

“clericalismo” afirmando que ao fazer a opção pelo socialismo e defendê-la como a mais

coerente com os princípios cristãos, os sacerdotes estariam cerceando a liberdade dos demais

fiéis. Além disso, os assinantes do documento foram criticados por insistirem na aproximação

de dois pensamentos “incompatíveis”, o cristianismo e o marxismo.

No dia 22 de abril, os bispos lançaram uma nova declaração em que condenavam a

atitude dos “80” afirmando:

El sacerdote puede, como todo ciudadano, tener una opción política; pero no debe, en ningún caso, dar a esta opción el respaldo moral de su carácter sacerdotal. Por esto, siguiendo la línea tradicional de la Iglesia chilena, encarnada en el Cardenal Caro y en Mons. Manuel Larraín, hemos insistido, y volveremos a insistir ante nuestros sacerdotes, para que se abstengan de tomar públicamente posiciones políticas partidistas. Lo contrario sería volver a un clericalismo ya superado y que nadie desea ver aparecer de nuevo. La opción política de un sacerdote, si se presenta, como en este caso, a modelo de lógica e ineludible consecuencia de su fe cristiana, condena implícitamente cualquiera otra opción y atenta contra la libertad de los otros cristianos. La opción política de un sacerdote, cuando se hace pública, amenaza perturbar la unidad del pueblo cristiano en torno a sus pastores.393

Da mesma forma que os bispos, a revista da DC reservou um espaço em seus números

de abril e maio só para o debate em torno da participação dos cristãos na construção do

socialismo. Predominaram os artigos que criticavam a atitude dos “80”, cujos autores

utilizaram os mesmos argumentos do episcopado. Em um destes artigos o autor Beltrán

Villegas escreveu:

Una vez más, creo que es posible para un cristiano abordar la realidad social con ese ‘instrumento de análisis y transformación de la sociedad’ elaborado por el marxismo, y que es la dialéctica de la lucha de clases. Pero al hacerlo es imprescindible tener conciencia de dos cosas: primero, que no son universalmente evidentes ni su validez científica como método sociológico ni su separabilidad de la teoría marxista global; y

392 Declaración de 80 sacerdotes católicos. Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVI, n. 320, p.44 - 45, abr. 1971. Grifos nossos. 393 Declaración de la asamblea plenaria de la Conferencia Episcopal de Chile. El evangelio exige comprometerse en profundas y urgentes renovaciones sociales (Temuco, 22 abr. 1971). Disponível em: www.iglesia.cl . Acesso em 10 de setembro de 2005.

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segundo, que la valoración marxista de la clase proletaria como portadora exclusiva del futuro de la humanidad, no coincide en modo alguno con la bienaventuranza evangélica de los pobres. Si hay algo claro para cualquier estudioso del Evangelio, es que el pensamiento de Jesús no opera con los conceptos de ‘clases sociales’, y que sus pronunciamientos recaen sobre una zona de la existencia humana infinitamente más honda, compleja y universal que la que es determinada por los roles antagónicos que se engendran en el proceso de la producción económi

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Neste trecho os bispos foram claros ao explicitar a tarefa dos cristãos e da própria

Igreja na esfera temporal. Sublinharam o papel da instituição na “humanização” das

estruturas, sistemas e opções políticas. A Igreja, como instituição da ordem, persistiria em seu

papel de amenizar as desigualdades sociais ou torná-las menos ásperas, mais palatáveis. Nesse

sentido, colocava-se a tarefa de construir um capitalismo mais humano, consolar os

oprimidos, agir na colaboração entre patrões e empregados, mediar o conflito entre ricos e

pobres. Em uma conjuntura em que esta base doutrinária estava sendo questionada por parte

significativa do clero e laicato, tornou-se necessário retomar uma postura disciplinadora,

combatendo por fora e por dentro os elementos perturbadores da ordem. Isso explica a atitude

mais intransigente da cúpula católica a partir dos anos que seguiram.

Buscando evitar que o movimento dos 80 sacerdotes assumisse um caráter ambíguo,

em setembro de 1971 seus próprios coordenadores decidiram criar um comitê executivo com

um secretário geral - que seria Gonzalo Arroyo, jesuíta e professor da Universidade Católica,

e um secretariado financiado por grupos de base. Posteriormente, assumiram o nome de

movimento “Cristãos para o Socialismo” (CpS).

Ao final de 1971, o CpS realizou um encontro com Fidel Castro durante sua estadia no

Chile, o que resultou numa viagem de 12 sacerdotes socialistas à Cuba. O intercâmbio

permitiu a produção de um documento intitulado “Mensagem aos cristãos da América Latina”

que abriu uma nova polêmica entre CpS e episcopado. Diante da mensagem, os bispos

lançaram um documento dirigido diretamente aos membros do CpS pedindo que estes

reconsiderassem sua vocação sacerdotal. Como afirmaram:

Los Obispos de Chile hemos leído cuidadosamente el manifiesto del 3 de marzo de este año, publicado en Cuba, por un grupo de sacerdotes y aspirantes al sacerdocio. Es un mensaje a todos los pueblos latinoamericanos en el que se llama, entre otras cosas, a la violencia revolucionaria para promover al cambio radical del sistema político y social del continente. Reprobamos la actitud político-partidista que ellos públicamente han asumido en su manifiesto. Contraría abiertamente las orientaciones de la Iglesia, reiterada por el Sínodo de los Obispos de Roma del año pasado y por nosotros en recientes ocasiones de la misión del sacerdote ejerciendo indebida influencia en el campo temporal y político. Creemos que esta situación de ambigüedad hace daño a la vida de la Iglesia. No juzgamos la rectitud y las intenciones de los firmantes, ni queremos opinar sobre la posición política del documento. (…) Pero, en caso de que alguno creyera que su vocación es política, le pedimos reconsidere su vocación sacerdotal. Si es estudiante al sacerdocio que piense bien si debe seguir adelante. (...) En cuanto a los sacerdotes extranjeros les pedimos que consideren que el hecho de estar en un país que no es el propio debe hacerlos muy prudentes en la emisión de juicios de carácter político. Mucho apreciamos la ayuda sacerdotal que nos prestan, pero con mayor razón que a los chilenos deseamos verlos al margen de los asuntos políticos.397

397 Conferencia Episcopal de Chile (Punta de Tralca, 11 abr. 1972). La Revista Católica, Santiago de Chile, ano LXXI, n. 1022, p.61-62, jan. - abr. 1972.

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Podemos dizer que as hostilidades entre CpS e bispos se acentuaram nos primeiros

meses de 1972 tendo em vista a preparação do Encontro Latino-americano de Cristãos para o

Socialismo o qual teria como sede a cidade de Santiago. Os bispos se recusaram a participar

do Encontro, que aconteceria pouco depois da UNCTAD III e o classificaram como uma

“reunião política” que objetivava reunir os cristãos e a Igreja na luta pela “revolução

marxista”.

O Encontro realizou-se entre os dias 23 e 30 de abril de 1972, reunindo 400 delegados

de todos os países latino-americanos e alguns convidados europeus. O documento final do

evento foi lançado em meio a uma forte ofensiva da oposição contra o governo da UP. O texto

defendia a “revolução socialista na América Latina” como o meio para derrotar a exploração

do homem pelo homem, além de denunciar a forma de dominação burguesa expressa na

defesa de uma legalidade “discriminatória”:

… los pueblos dominados por el capitalismo imperialista deben unirse para romper la situación de opresión y de despojo a la que están sometidos. Pero esta unión que parece tan lógica, no es algo fácil ya que la dependencia externa favorece la desunión; desunión que, por otra parte, es fomentada, clara o sutilmente por el imperialismo. Por eso nos reunimos aquí, cristianos de todos los países de América Latina queremos, frente la reunión mundial de la UNCTAD, hacer un llamado a las clases sociales explotadas y a los países dominados a unirse para defender sus derechos y no para mendigar una ayuda. (...) Las estructuras de nuestra sociedad deben ser transformadas desde la raíz. Hoy más que nunca urge hacerlo porque los usufructuarios del orden injusto en que vivimos, defienden agresivamente sus intereses de clase y se valen de todos los medios – propaganda, sutiles formas de dominación de la conciencia popular, defensa de una legalidad discriminatoria, dictadura si es necesario, represión muchas veces – para impedir que se opere una transformación revolucionaria. Sólo mediante el acceso al poder económico y político, podrá la clase hoy explotada, construir una sociedad cualitativamente distinta, una sociedad socialista, sin opresores ni oprimidos, en que se dé a todos las mismas posibilidades de realización humana. El proceso revolucionario en América Latina está en pleno curso: son muchos los cristianos que se han comprometido en él, pero son más los que, presos a inercias mentales y de categorías impregnadas por la ideología burguesa, lo ven con temor e insisten en transitar por imposibles caminos reformistas y modernizantes. El proceso latinoamericano es un proceso único y global. Los cristianos no tenemos y no queremos tener un camino político propio que ofrecer. La comprensión de este carácter único y global hace compañeros y une en una tarea común a todos aquellos que se comprometan en la lucha revolucionaria. (...) Al comprometernos en la construcción del socialismo, lo hacemos porque, objetivamente, fundados en la experiencia histórica y tratando de analizar en forma rigurosa y científica los hechos, concluimos que es la única manera eficaz de combatir el imperialismo y de romper nuestra situación de dependencia.398

Diante do impacto nacional e internacional das conclusões do Primeiro Encontro de

Cristãos para o Socialismo, 600 sacerdotes chilenos assinaram uma declaração - escrita e

398 Primer Encuentro Latinoamericano de Cristianos por el Socialismo. Política y Espíritu, Santiago de Chile, ano XXVII, n. 332, p.73-76, mai. 1972. Grifos nossos.

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organizada pelo secretário privado do cardeal Raúl Silva Henríquez - que rechaçava o

documento final e lamentava as tentativas de “politização” do clero.399

Apesar do rechaço completo que o movimento obteve da hierarquia chilena, as

jornadas de Cristãos para o Socialismo continuaram acontecendo. Em novembro se reuniram

350 delegados de diferentes partes do país e do continente para discutir quatro temas básicos:

etapas e perspectivas da luta ideológica no Chile; os cristãos na encruzilhada nacional; críticas

do cristianismo social aos cristãos para o socialismo; cristãos e os interesses históricos da

classe trabalhadora.

Com o fim das eleições parlamentares de março de 1973, a batalha política se voltou

para o tema da educação, mesmo com os avanços logrados pelo governo nesta área.400 Com a

polêmica travada pelo episcopado diante do projeto educacional proposto pelo governo da

UP, o CpS emitiu uma declaração em que defendia uma “educação libertária a serviço das

grandes maiorias do povo chileno”.401

Em meados de 1973 o CpS se mobilizou na defesa do governo contra a

desestabilização política, econômica e social promovida pela oposição. Os integrantes do

movimento se juntaram às organizações de trabalhadores, como as Juntas de Abastecimento, a

CUT, os Comandos Comunais, as organizações de pobladores etc.

Após o golpe, os bispos lançaram um documento chamado “Fé cristã e atuação

política” em que condenavam e expulsavam os integrantes do CpS da Igreja. Concluído em

agosto de 1973 e tornado público no dia 13 de setembro, o documento de caráter

“doutrinário”, apresentou como objetivo principal pôr fim às ambigüidades a respeito da

missão da Igreja e proibir a participação de qualquer sacerdote ou religioso no movimento do

CpS.402

Ao caracterizar o movimento, os bispos o igualaram a um “partido político” e o

acusaram de querer formular uma “nova idéia de Igreja e sua relação com o mundo”, diferente

do tratamento dado aos movimentos católicos de direita. Nesse caso, os bispos justificaram o

seu pronunciamento dirigido unicamente ao CpS e não aos demais movimentos de “signo

contrário”. O episcopado também criticou a atitude dos membros do CpS de pretender

399 Cf. Sacerdotes no están al servicio de partidos. El Mercurio, Santiago de Chile, 27 abr. 1972, p.16. 400 Em dois anos e meio de governo duplicou o número de crianças matriculadas na pré-escola e o número de alunos do ensino primário e secundário havia crescido. Além disso, houve um aumento significativo de matrículas nas principais universidades públicas do Chile. 401 AMORÓS, Mario. Op. cit., p.122. 402

“No puede un sacerdote y/o religioso (a) pertenecer a esse Movimiento (‘Cristianos por el Socialismo’)”. Conferencia Episcopal de Chile. Fe cristiana y actución política. Santiago, agosto de 1973. Disponível em: www.iglesia.cl. Acesso em: 2 out. 2005.

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estender a sua posição política a toda a Igreja, não assumindo-a como uma postura de ordem

“pessoal” ou “individual”. Nesse sentido, teriam confundido a “missão sobrenatural” da

instituição católica com uma atitude puramente temporal. Os bispos reafirmaram o que seria a

verdadeira tarefa da Igreja no mundo:

Confunden entonces según el espíritu evangélico las cosas temporales, con la misión universal y sobrenatural de la Iglesia misma y de su Jerarquía, que no consiste en resolver cuestiones económicas, sociales, jurídicas, etc, sino en santificar, enseñar y regir, suministrando a los fieles aquellas energías renovadoras (...).403

Enquanto instituição educadora, a Igreja teria como missão a caridade, reconhecendo

pontos positivos no atual “dinamismo social” como a “socialização civil e econômica”. No

entanto, sua intervenção no temporal deveria ser construída por meio da “unidade” e não da

“divisão”, prezando o “mandato de Cristo” e não o “desejo dos homens”. Resumindo os

postulados defendidos durante os três anos de governo UP, os bispos insistiram no rechaço ao

marxismo:

Pero ciertamente podemos afirmar que muchos de sus elementos [do marxismo] y desde luego sus presupuestos esenciales – materialismo, dialéctica, ateísmo – no son de modo alguno científicos, ni pueden pretender la calidad de ciencia para descalificar el sentido espiritual y sobrenatural de la vida de la Iglesia. También podemos afirmar que esos presupuestos y conclusiones, de carácter formalmente filosófico e ideológico ya que no científico, son incompatibles y contrarios a los más elementales fundamentos de la fe católica, y no ajustan con la existencia de Dios, la libertad humana, la autonomía de los valores morales y espirituales, etc, como ha afirmado en reiteradas ocasiones el Magisterio de la Iglesia.404

Ao defender uma visão reificada da política, restringindo-a aos espaços de poder

tradicionais, os bispos evidenciaram a sua inquietação com o processo de “superpolitização do

país” que teria levado a disputa política para o interior de instituições de cunho social e de

natureza “não-política” como as escolas, os grêmios, a universidade, o exército e a própria

Igreja. Dessa forma, afirmaram:

Miramos con suma inquietud la superpolitización del país, no solo porque amenaza a la Iglesia, sino también a la entera vida nacional. Cuando todo en un país se vuelve política, la política misma se vuelve insana, porque ocupa zonas de la vida que no le corresponden. Se destruyen así otras raíces autónomas y otras reservas humanas que, de existir, humanizarían la vida y harían incluso más sana y creadora la propia actividad política. No se puede matar, a fuerza de tensiones partidistas, esas raíces

403 Ibidem. 404 Ibid.

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profundas de las que procede la mejor savia – espiritualidad, ciencia, trabajo, arte, técnica, cultura – para fecundar la vida de una comunidad.405

Nesta concepção, a “política” só seria enobrecedora se deixasse subsistir de forma

“pura” a arte, a religião, a ciência, o estudo, o trabalho – elementos essenciais à comunidade

humana. Se nos deslocarmos para a análise do caso chileno, é possível perceber que a alta

hierarquia católica se apresentou extremamente incomodada com o processo social vivido

pelo país a partir de meados de 1972. Para os bispos, assim como para o conjunto da

oposição, a politização da sociedade chilena teria sido produto do governo “marxista” e teria

levado o país à crise. Considerando a Igreja e outras instituições como “não-políticas” por

excelência, a hierarquia fez coro com o discurso de determinadas frações da burguesia – que

nessa conjuntura se encontravam unidas em torno de um objetivo maior: a derrubada do

governo.

Ao pretender atribuir a sua própria interpretação sobre a doutrina católica,

aproximando-a do marxismo e das lutas sociais, o CpS foi classificado pela Igreja como um

“magistério paralelo”, sendo ao final do documento, formalmente expulso:

La actividad del grupo “Cristianos por el Socialismo” es de una profunda ambigüedad, y requiere una definición clara por su parte. Si ese grupo pretende ser un frente de penetración en la Iglesia, para convertirla desde su interior en una fuerza política y anexarla a un determinado programa de revolución social, es necesario que lo diga leal y claramente, y deje entonces de considerarse un grupo eclesial; sería más recto, en ese caso, tomar el nombre de grupo político, sumarse al partido o corriente que estime más oportuno y renunciar a las ventajas de orden práctico o propagandístico que obtienen sus dirigentes por su condición de sacerdotes católicos. La ambigüedad ya no puede continuar, porque es perjudicial a la Iglesia y produce desorientación en muchos fieles, además de ser en sí mismo un abuso del sacerdocio y de la fe. La Iglesia de Cristo no soporta ese daño. Por lo tanto, y en vista de los antecedentes que hemos señalado, prohibimos a sacerdotes y religiosos(as) que forman parte de esa organización, y también que realicen - en la forma que sea, institucional o personal, organizada o espontánea - el tipo de acción que hemos denunciado en este documento.406

Após o golpe, o CpS decidiu desaparecer como movimento para facilitar a integração

de seus membros nas comunidades eclesiais de base e, a partir delas, denunciar a repressão e

realizar um trabalho de ajuda aos perseguidos políticos, apesar de muitos de seus membros

terem sido posteriormente assassinados ou obrigados a deixar o país.

De maneira resumida, entendemos a relação bispos/CpS como um ponto importante na

análise da Igreja do Chile durante o processo de formação e consolidação de uma frente

405 Ibidem. 406 Id. Grifos nossos.

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“ideológico” entre os pronunciamentos episcopais e os da oposição, apesar da forma

específica de atuação de cada um destes atores políticos.

Educação e catolicismo na modernidade

Para entender o papel desempenhado pela hierarquia no Chile de Allende não

podemos desconsiderar o fato de que a educação constituiu um dos temas mais importantes

para a Igreja durante toda a época moderna. Além do tratamento reservado às ideologias

laicas, como o socialismo; a problemática do trabalho – espaço em que o catolicismo

apresenta uma intervenção significativa desde fins do século XIX -, a questão da educação é

central para a instituição católica. Da mesma forma que o trabalho, ela é o espaço, por

excelência, da reprodução da doutrina católica ao longo do tempo. É por meio da educação

que a Igreja garante a sua sobrevivência institucional, renovando a doutrina a cada novo

contexto, formando gerações de jovens e reproduzindo os valores, pensamentos e a moral

católica.

Vale ressaltar que esta é uma realidade que resulta do processo de secularização,

iniciado na maior parte dos países no final do século XVIII. Neste período, a Igreja se

constituiu em aparelho privado de hegemonia, deixando de ser parte integrante da sociedade

política, onde compunha com o Estado os regimes monárquicos. Por sua vez, no processo de

formação dos governos liberais ao longo do século XIX, esta instituição perderia parte

significativa de seu papel de educadora. Esta passaria a ser função do Estado e não mais da

Igreja. Ainda assim, a instituição católica preservou sua influência na educação particular,

tanto básica como superior, atingindo neste campo especialmente as classes dominantes. Em

outras palavras, o catolicismo perdera o monopólio que exercia no campo educacional,

passando a coexistir com a educação laica e pública.

Apenas podemos entender a reação da Igreja ao projeto de educação do governo da UP

se levarmos em conta este processo histórico anterior. A forte oposição católica ao ENU

evidenciou o quanto a educação permaneceu sendo um campo estratégico na luta por

influência da Igreja na sociedade moderna. Entendemos que esta influência é também política,

uma vez que estas esferas não podem ser compreendidas separadamente. Ao se colocar

contrária a um projeto que objetivava democratizar a educação do país – o qual visava

também a reformulação do papel da educação como reprodutora da ideologia dominante - a

Igreja se somou e fortaleceu a própria burguesia, que procurou defender a todo custo a

permanência do sistema de educação tradicional. A tática de deslegitimação do ENU pela

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oposição utilizou recursos argumentativos muito semelhantes aos que foram utilizados contra

outras medidas do governo e ganharam espaço privilegiado nas manchetes e editoriais da

grande imprensa chilena durante vários meses. A oposição conseguiu arregimentar diversos

setores dentre eles professores, pais e alunos de colégios particulares, movimento de mulheres

de classe média, Sindicato Único de Trabalhadores da Educação, colégios profissionais,

bispos de diversas regiões do país e parte das FFAA. As ruas de Santiago foram tomadas por

manifestações de oposição e os partidos do governo, de forma geral, não conseguiram se

organizar para defender o projeto nos Conselhos Locais de Educação, formados para

estimular o debate em torno da reforma do sistema educacional. Apesar dos Conselhos

representarem a condição essencial para que o ENU fosse levado adiante em consonância com

os interesses populares, estes acabaram não cumprindo tal papel por causa de um veto emitido

pela Contraloría Geral da República407 – hegemonizada pela oposição – que limitou as

atribuições dos mesmos.408 Quando o informe sobre o ENU foi divulgado pelo ministro da

educação Jorge Tapias Valdés em fevereiro de 1973, não encontrou espaço adequado de

discussão e o governo foi acusado de querer impor um projeto de “doutrinação” dos chilenos.

As bases do projeto educacional da UP

A nova política educacional proposta pelo conjunto da esquerda chilena se inseria na

perspectiva estratégica de construção de uma sociedade socialista humanista, baseada no

desenvolvimento das forças produtivas, na superação da dependência econômica, tecnológica

e cultural, no estabelecimento de novas relações de propriedade e em uma “autêntica

democracia” e justiça social garantidas por meio do exercício efetivo de poder pelo povo.409

Esta concepção de desenvolvimento nacional deveria ser acompanhada por um novo sistema

educacional que abarcasse o conjunto da população chilena e não apenas as gerações mais

jovens. Em outras palavras, colocou-se a necessidade de construção de um “Sistema

Nacional” que acompanhasse os indivíduos desde seu nascimento até a velhice, “já que em

todas as fases do desenvolvimento individual existem necessidades que podem e devem ser

407 Tribunal de Contas. 408 Cf. MARINI, Rui Mauro. La clase obrera y la reforma educativa. Chile Hoy, n. 45, 19 al 26 de abril de 1973. In: _____ El reformismo y la contrarrevolución. Op. cit., p.204-210. 409 Informe sobre Escuela Nacional Unificada (9 mar. 1973). In: GONZALEZ PINO, Miguel & FONTAINE TALAVERA, Arturo (Org.). Los mil dias de Allende. Santiago: Centro de Estudios Publicos, 1997, tomo 2, p.1218.

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satisfeitas através da educação”.410 A isso, os formuladores do projeto denominaram de

“educação permanente”.

A “educação permanente” também deveria ser compreendida como “educação de

massas, pelas massas e para as massas” que, numa sociedade socialista equivaleria à

organização progressiva da comunidade para assumir coletivamente a responsabilidade de

educar seus membros. Esta idéia foi colocada em completa oposição à realidade educacional

do país, caracterizada pelo monopólio de algumas instituições de ensino regulares mantidas e

voltadas para a reprodução da ideologia das minorias dominantes. Por último, a educação

permanente seria uma “habilitação contínua do homem para criar e participar das

transformações sociais, econômicas e culturais”.411

A edificação do Sistema Nacional de Educação contaria não apenas com os avanços

do país nas esferas cultural, científica e tecnológica, planificados em uma integração

harmônica com o planejamento global da sociedade, mas também contaria com o legado da

educação tradicional – resignificado de acordo com os novos critérios de unidade,

continuidade, diversificação e democratização. Para isso, a pré-escola, o ensino básico e

médio deveriam ser transformados em “Área de Educação Regular” e, paralelamente, deveria

ser criada a “Área de Educação Extra-Escolar” para atender as necessidades dos setores

excluídos do ensino formal.

A primeira funcionaria de modo planificado, contínuo e diversificado, buscando

superar as contradições entre os níveis escolares, entendendo seus desajustes como reflexo das

contradições de classe presentes na sociedade chilena. Esta área teria como objetivo a

formação geral, politécnica e profissional das novas gerações. A segunda seria constituída a

partir dos projetos desenvolvidos pelo serviço de educação de adultos do Ministério da

Educação, pelas universidades, governos municipais, serviços públicos, Central Única de

Trabalhadores, sindicatos, organizações comunitárias, culturais, políticas e religiosas com a

colaboração dos meios de comunicação de massas e das empresas produtivas.412 Ou seja, o

governo daria continuidade a iniciativas já desenvolvidas naqueles anos por diversas

organizações da sociedade civil. A área extra-escolar atenderia inicialmente às necessidades

educacionais dos analfabetos, desertores do ensino regular, comunidades mais pobres,

trabalhadores que precisassem atualizar seus conhecimentos culturais e tecnológicos relativos

ao seu novo posto de trabalho, entre outros setores.

410 Ibidem. 411 Ibid., p.1219. 412 Ibid.

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No informe, os autores frisam a correspondência desta reforma às transformações mais

gerais da sociedade e a dependência de sua aplicação à capacidade de resposta do povo

chileno ao longo da construção do projeto de “socialismo democrático”.

Buscando oferecer caminhos para a superação da crise estrutural da educação chilena,

a reforma objetivava solucionar contradições vigentes há décadas no Chile como a que existia

entre o crescente processo de socialização das relações econômicas, sociais e políticas e a

incapacidade de um sistema educacional de cunho classista e individualista de responder às

demandas educacionais do mesmo; a ampliação da participação popular e um sistema

educacional competitivo e tradicionalista destinado a formar indivíduos descomprometidos,

egoístas e centrados em seu próprio êxito; a luta dos trabalhadores por maiores conquistas

sociais e um sistema educacional elitista que negava o acesso à educação à maioria da

população e reproduzia a dominação de minorias sobre maiorias; as exigências de

qualificação profissional dos trabalhadores para ampliar a produtividade do sistema

econômico e uma educação que desvalorizava o trabalho produtivo e não oferecia à maioria

da população nenhuma possibilidade de capacitação especial etc.

A Escola Nacional Unificada seria implementada em um período de quatro anos e se

caracterizaria, de acordo com o Informe, por seu perfil nacional; unificado (baseada numa

cultura que fundia teoria e prática, educação e vida, ensino humanista e técnico – realizada a

partir das próprias comunidades e bairros); diversificado (pressupunha superar as

desigualdades regionais e atender às necessidades de desenvolvimento coletivo e individual);

democrático (objetivava combater os entraves de acesso e permanência na escola e

universidade); plural (educação como tarefa libertária, em que o educando pudesse

desenvolver seu próprio modo de pensar e de ver criticamente o mundo); produtivo

(valorização do trabalho socialmente útil, incorporando-o teórica e praticamente na formação

do educando, contra a mentalidade consumista e individualista); humanista (adequação da

ciência e tecnologia às conquistas da humanidade) e planificado (construída a partir dos

marcos globais de planificação do desenvolvimento nacional).

Dentre os eixos principais do projeto destacava-se o princípio da educação politécnica

que permitiria, segundo os promotores do projeto, romper as barreiras impostas pela

especialização estreita, combinando teoria e prática, estudo e trabalho produtivo que,

progressivamente, permitiriam a superação da divisão entre trabalho manual e intelectual.

Além disso, estava presente uma intenção de combinar a vida estudantil com a realidade das

poblaciones e bairros, buscando uma educação compatível com as necessidades e anseios

populares. A educação geral e politécnica criaria as condições para que os educandos,

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profissionais da educação e comunidades participassem do desenvolvimento coletivo de bens

culturais de que necessitava o conjunto da sociedade. Outro eixo importante era a formação de

um sistema único de ensino que articulasse todos os níveis e oferecesse oportunidades iguais

para todos, com a superação do elitismo da educação privada e das universidades e a

democratização do acesso a estas últimas.

Vale ressaltar que o projeto propunha a ampliação das creches e pré-escolas com o

objetivo de permitir uma maior participação da mulher na vida política do país, já que o fim

da dupla jornada de trabalho lhes possibilitaria dedicarem-se a uma atividade profissional fora

da esfera privada. Além disso, a maior responsabilização do Estado pela educação pré-escolar

permitiria que esta estivesse melhor articulada à educação geral e politécnica. Isso não

significava o afastamento completo da família e do conjunto da comunidade do processo

educativo de seus filhos, pelo contrário, estariam todos integrados por meio de programas

permanentes de educação familiar.

Quanto à educação privada, o projeto propunha o acesso das escolas e universidades

particulares aos recursos e facilidades recebidos pela educação pública, tais como programas

de aperfeiçoamento do corpo docente, ajuda técnica, distribuição gratuita de textos, utilização

de instalações, equipamentos técnicos e serviços públicos. Como apresentava o Informe:

Podrán establecerse convenios entre el Estado y establecimientos particulares para el uso recíproco de recursos educacionales, en el interés de facilitar la continuación de estudios y, particularmente, el cumplimiento de los planes electivos y de especialización laboral por parte de los alumnos de la enseñanza fiscal y de la privada, para cuyo efecto los planteles de enseñanza particular podrán optar libremente por incorporarse al funcionamiento de los Complejos Educacionales sin perder su calidad de establecimientos privados.413

Em outras palavras, o projeto não representava uma ameaça aos estabelecimentos

privados de ensino, pois dava-lhes a possibilidade de aderir às novas formas curriculares sem

perder a sua qualidade de instituições privadas. No entanto, a idéia de universalizar a

educação e torná-la um instrumento ativo e fundamental no processo de transformações da

sociedade chilena em sua transição para o socialismo provocaria no conjunto da burguesia e

em outros setores a ela atrelados uma reação de absoluta intolerância e rechaço aos propósitos

do governo.

413 Ibid., p.1227.

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A oposição unificada no rechaço ao ENU

A polêmica relativa à reforma educacional surgiu na imprensa no ano de 1971, poucos

meses antes do Congresso Nacional de Educação marcado para dezembro daquele ano. Desde

agosto, as revistas eclesiásticas publicaram uma série de textos que expressavam a posição do

episcopado sobre qualquer intento de reforma que visasse “estatizar” os colégios católicos. A

argumentação da Igreja atrelava a manutenção das escolas particulares à “liberdade de

ensino” e à “pluralidade ideológica” – pressupostos básicos de uma “real democracia”. Além

disso, entendia que a educação deveria ser de responsabilidade dos pais e não do Estado.

Logo, a família deveria poder optar pelo tipo de educação que desejava para seus filhos e não

estar submetida a um ensino padrão “imposto” pelo Estado.

Desde já, é importante ressaltar que no Chile a presença da Igreja no campo

educacional era significativa. Os dados de 1966 e 1967, anteriores ao governo Allende,

apontam que o ensino católico representava 65% do ensino privado do país, o que

correspondia a 17% da educação nacional, sem contar com o ensino superior e de adultos.

Isso significava que a Igreja exercia grande influência na educação básica.414

Por este motivo, não apenas temia o desaparecimento da educação católica – sua maior

área de influência – como também passou a exigir que o Estado, em nome de uma postura

“democrática” e em respeito à fé católica de 95% do povo chileno, garantisse a gratuidade de

suas instituições.415 Desta forma, os estabelecimentos de ensino católicos deixariam de ser

“elitistas” e “classistas”, pois receberiam alunos de todas as classes sociais e seria assim

mantida a possibilidade de optar pelo ensino religioso. Em agosto de 1971 o episcopado

chileno lançaria a seguinte declaração:

El derecho que siempre ha defendido la Iglesia de mantener centros educacionales propios se funda en el pluralismo que debe sustentar toda sociedad democrática y en virtud del cual los padres de familia deben tener la posibilidad de confiar la educación de sus hijos a aquellos planteles que por su capacidad científica y su disciplina moral sean garantías de que sus hijos recibirán en ellos una educación conforme a la doctrina y moral cristianas. Los Obispos creemos necesario, para garantizar estas justas aspiraciones de los padres de familia, mantenerlos bajo la dependencia directa de la Iglesia. Dejamos constancia, tanto de la actitud positiva del Presidente de la República como del Supremo Gobierno, cuyo Ministro de Educación, don Mario Astorga, ha contribuido a desvanecer muchas inquietudes al negar cualquier intento de estatización y reafirmar públicamente el respeto por la libertad de enseñanza consagrado en el artículo (...) de la Constitución Política, que reconoce la existencia

414 BERCHENKO, Pablo. La Iglesia chilena como grupo de presión frente a las reformas de la enseñanza (1965, 1973 y 1981). In: Publications de L’Université de Tours, 1988, p.436. 415 Carta al presidente del Sr. Obispo de Osorno. Protesta por una portada de la revista ‘Educación’ (10 ago. 1971). La Revista Católica, Santiago de Chile, ano LXXI, n.1020, p.6047, mai. - ago. 1971.

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labor de todos en este campo se podría dirigir más bien hacia un esfuerzo renovador que tienda a hacerla cada vez más apta para crear un ‘ambiente de comunidad escolar’, integrando en su seno a todos los elementos necesarios para poder influir después en la sociedad.418

A idéia de democratização da educação, tão frisada no Informe sobre o ENU, foi

utilizada pelos representantes da Igreja como a garantia de permanência do ensino católico, ou

seja, num regime “democrático” deveria haver liberdade religiosa e conseqüentemente

liberdade de ensino religioso nas escolas.

Em março de 1973, o episcopado chileno lançou uma declaração que teve como tema

único o projeto do ENU. Por meio deste documento, os bispos reconheceram alguns pontos

positivos no Informe como:

la incorporación de todos los chilenos a un proceso educacional que no discrimina a nadie por su capacidad económica, su condición social o su posición ideológica, y ofrece a todos las mismas opciones de acuerdo a sus diversas capacidades. El segundo, la integración de estudio y trabajo; y la valorización del trabajo físico, como un de los elementos que contribuyen al pleno desarrollo del hombre y al desarrollo económico y progreso social de la comunidad.419

Em seguida, apresentaram as críticas ao projeto:

Por muy pluralista que se proclama el informe no vemos destacados en parte alguna los valores humanos y cristianos que forman parte del patrimonio espiritual de Chile, y a los que adhiere un altísimo porcentaje de los estudiantes y de los padres de familia chilenos. Los Obispos no podemos dejar de insistir en estos valores “humanistas” como son: el respeto al hombre y, en particular, al niño; la libertad de la cultura, la búsqueda de la verdad, y el espíritu crítico y las condiciones reales de su ejercicio; el equilibrio entre los valores materiales que apuntan a la producción y a los valores espirituales que contribuyen a la plena realización del hombre, incluyendo entre ellos la posibilidad real de la Fe y de la vida conforme a la Fe. En cambio, se da por establecido que el país acepta, en forma mayoritaria, un planteamiento que se declara “socialista, humanista y pluralista”, y revolucionario, en circunstancias de que una parte considerable del país se manifiesta en desacuerdo, o con este planteamiento en sí mismo, o con la forma como se le quiere llevar a la práctica.420

Na declaração, os bispos sugeriram que o ENU não respeitava o patrimônio espiritual

do país e, de certa forma, representava um atentado aos valores “humanistas” ameaçando a

liberdade de expressão e o espírito crítico. Os bispos insistiram nestes itens, dando a entender

que nem o Informe nem o governo Allende respeitavam os mesmos valores. A declaração

418 Iglesia Católica y ‘Democratización’ de la enseñanza (11 fev. 1973). La Revista Católica, Santiago, ano LXXIII, n. 1024, p.55-56, jan. - abr. 1973. 419 Comité Permanente del Episcopado. Declaración del Comité Permanente del Episcopado de Chile sobre la Escuela Nacional Unificada. La Revista Católica, Santiago, ano LXXIII, n. 1024, p.69-71, jan. - abr. 1973. 420 Ibidem. Grifos nossos.

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episcopal apresentava um caráter ambíguo, pois não fazia uma acusação direta ao governo.

No entanto, o tipo de informação privilegiada pelo episcopado no documento se assemelhava

às críticas feitas pelo conjunto da oposição.

Também devemos ressaltar que o momento escolhido pelos bispos para publicizar a

sua declaração era particularmente delicado para o governo. Alguns dias antes, a UP obteve

43,4% da votação nas eleições parlamentares, o que representou um avanço eleitoral

significativo e impediu que a oposição conseguisse a maioria absoluta para destituir

legalmente o presidente Allende. Isso significava que para os que estavam à frente da

campanha de desestabilização só restava a alternativa do golpe militar.

Como afirmou o autor Berchenko, a declaração episcopal serviu para confirmar os

temores quase irracionais cultivados pelos setores sensibilizados pela “campanha do terror”,

levada a cabo desde as eleições presidenciais de 1970. Além dos grupos da Igreja

tradicionalmente conservadores como o conjunto de bispos e sacerdotes ligados ao padre Raúl

Hasbún e José Ibáñez, da Opus Dei - setores que desde o início se colocaram contrários ao

projeto e ao governo como um todo - havia grupos que foram diretamente interpelados pela

Declaração, como por exemplo parte do laicato e a clientela dos colégios católicos. Alguns

destes, que até então não tinham se manifestado politicamente ao longo dos dois anos,

passaram a se incorporar às manifestações públicas contra a implantação do ENU junto a

jovens e religiosos ligados aos colégios mais caros do país. Segundo o autor, a manifestação

da Igreja contra o projeto por meio de argumentos que em muito se assemelhavam aos

utilizados nas estratégias de deslegitimação do governo, evidenciou o papel da instituição

católica como forte grupo de pressão, arregimentando setores amplos na oposição ao

governo.421 Assim, a Igreja, como grupo institucionalizado, defendera aquilo que considerava

ser de seu interesse específico, buscando traçar uma relação “diplomática” com o Estado:

Debemos creer en la sana intención que anima al Sr. Presidente de la República y al Ministro de Educación, con quienes hemos conversado cordialmente y a quienes hemos pedido que se postergue la aplicación de este plan de la ENU, para permitir un amplio debate nacional, serio y constructivo, verdaderamente democrático y pluralista, en que participen - plenamente sin limitaciones y sin apremios – los padres de familia y también los directores y profesores de colegios fiscales y particulares, los alumnos según edad, y todos los organismos nacionales preocupados del destino de Chile.422

421 BERCHENKO, Pablo. Op. cit., p.439. 422 Comité Permanente del Episcopado. Declaración del Comité Permanente del Episcopado de Chile sobre la Escuela Nacional Unificada. Op. cit.

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Dessa maneira, tratou de impor a defesa de seus interesses por meio de uma ação sobre

o aparato governamental, mas sem assumir as responsabilidades políticas de sua ação.

Vejamos a seguir de que forma outros setores se manifestaram contra o projeto, com o

objetivo de comparar os distintos pronunciamentos sobre o tema educacional. No mesmo mês

em que os bispos tornaram pública a declaração anterior, o jornal Mercurio lançou uma série

de editoriais que rechaçavam o ENU e alimentavam os temores “irracionais” das classes

médias com relação à educação de seus filhos. No dia 23 de março o editorial apontava:

Numerosísimos son los aspectos de la Escuela Nacional Unificada que han sido objeto de categóricos rechazos por los grupos democráticos de la comunidad escolar del país. [...] no escapa que el contenido y estructura que propone tienden a crear un sistema totalitario y conscientizador; con grave peligro para las futuras generaciones [...]. (...) En efecto, se aspira a que las madres de familia, progresivamente, vayan abandonando el hogar con el fin de que el Estado tome a su cargo la educación de los niños desde 0 hasta los 6 años de edad tanto en salas cunas como en jardines infantiles, los que estarán sujetos a la tuición ‘técnica’ del Ministerio de Educación. (...) El interés del marxismo en controlar las salas cunas y los jardines infantiles no es, pues, gratuito. Por el contrario, anhela apoderarse de instrumentos calificados para la concientización ideológica, sin sufrir interferencias que perjudiquen sus planes de conquista espiritual. (...) De ahí que puede estimarse que la reforma educacional que auspicia la Unidad Popular no sólo anhela el control completo de la enseñanza en nuestro país, sino que además tiene una derivación económica y política adicional, cual es agregar otra amenaza a las industrias que siguen funcionando ajenas a la órbita estatal.423

Neste editorial é evidente a intenção de criar um clima de pânico e temor entre as

famílias de classe média e alta de Santiago com relação aos intentos do governo de aprovar

uma reforma educacional que “doutrinaria” as crianças desde seu nascimento nas creches até

a fase adulta.

No dia 19 de março de 1973 o bispo de Valparaíso lançou a seguinte declaração sobre

o ENU:

Voy a referirme al problema de fondo, que cae de lleno dentro de la competencia de la Iglesia; el espíritu partidista que domina todo el proyecto y malogra los aspectos positivos que pudiera tener. No puede transformar la educación en un instrumento en manos del Estado, para que se imponga la corriente ideológica que detente el poder, cualquiera que ella sea hoy o pueda ser mañana. No es ese el papel del Estado, ni es ese el papel de la educación. Pretender que la educación debe entregar el contenido ideológico oficial del Estado es atender abiertamente contra el respeto que merece el niño, vulnerar los más sagrados derechos de los padres a escoger libremente la educación de sus hijos, cosas que la Iglesia no acepta. La educación debe respetar la conciencia de los padres y de los educandos.424

423 Rechazo a la ENU. El Mercurio, Santiago, 23 mar. 1973. Editorial, p.3. 424 Declaración del Obispado de Valparaíso ante el proyecto de la Escuela Nacional Unificada (19 mar. 1973). La Revista Católica, Santiago, ano LXXIII, n. 1024, p.75-76, jan.- abr. 1973. Grifos nossos.

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Da mesma forma que o Mercurio, os membros da Igreja também definiram a proposta

de reforma como uma espécie de “imposição ideológica” por parte do Estado. Segundo os

bispos, este não seria o papel do Estado nem o da educação. Interessante observar que tanto

Igreja quanto setores representados pelo Mercurio se posicionaram contra o ENU retratando o

sistema educacional como uma esfera neutra, “apolítica” e naturalmente distanciada das

disputas políticas da sociedade. Ao defender como neutro um espaço totalmente inserido nos

conflitos e contradições maiores da sociedade chilena, buscaram, na prática, legitimar o

conjunto de valores e o tipo de conhecimento produzido e reproduzido nas escolas e

universidades do país – que em sua maioria estavam relacionados à elite do Chile.

No dia 25 de março outro editorial do Mercurio abordava o tema da “ameaça” à

liberdade de ensino no Chile, desta vez articulando-a a outras medidas do governo

consideradas “totalitárias” e típicas de um “marxismo crioulo”:

El derecho de los padres a educar a sus hijos en planteles de su confianza aparece en un momento vulnerado por un proyecto que crea un sistema único docente. Partido Unico, Cámara Unica, área estatal predominante en la economia, son algunas de las aspiraciones del marxismo criollo. A ellas debe añadirse un régimen educacional único, fórmula como las anteriores, producto genuino de las mentes totalitarias. Dicho régimen tiene por finalidad esencial formar al niño y al adolescente para el servicio de una sociedad socialista. (...) Un sistema educativo rígido, la subordinación del trabajo intelectual al manual – lo que se ha discurrido para proletarizar prematuramente a la juventud -, una evaluación política del saber y las destrezas, configuran, entre otros elementos, la red con que se intenta sofocar la libertad de enseñanza en Chile.425

Nesse caso, a política econômica do governo foi aproximada ao projeto de “Sistema

Único” de ensino constituindo parte do intento “totalitário” do governo de querer “controlar”

todas as esferas da sociedade chilena. Em outras palavras, o Mercurio seguia associando a

iniciativa privada à liberdade política, passando agora a incluir a educação no discurso de

defesa do “particular” em detrimento do “público”.

De forma um pouco mais sutil, os membros da Igreja também procuraram atrelar a

preservação da esfera particular à liberdade e, no caso da educação, à liberdade de expressão e

política. Apesar de considerarem positivos alguns pontos do projeto, demarcaram claramente

o seu rechaço ao conteúdo principal, defendendo novamente o campo educacional como

“neutro” e, de forma indireta, acusando os partidários do governo de constituir uma “minoria

autoritária”:

425 Alarma en los hogares chilenos. El Mercurio, Santiago, 25 mar. 1973. Editorial, p.33.

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Valoramos los conceptos de la educación permanente y la incorporación de la tecnología que valoriza el trabajo como parte de una formación integral, como el proyecto ENU propone. Pero desgraciadamente el partidismo político trata también meter aquí su nariz; las dudas, los intereses creados y las interpretaciones de diversa índole han venido a perturbar y ensombrecer peligrosamente el ambiente estudiantil. Entonces uno piensa, es posible que todo tenga que instrumentarse, que también la juventud tenga que sufrir las tensiones partidistas y abusando de su generosa entrega, de su idealismo, se pretenda darle una enseñanza ‘marcada’, falseando así el verdadero concepto de ciencia y amordazando la libre expresión de las ideas y exigiendo que se camine por un solo sendero. Investigación, mejoramiento de programas, confección de nuevos textos escolares, pedagogía renovada, en una palabra libre iniciativa de expresarse como hombres y mujeres independientes y soberanos, todo se tendría que acabar porque hay unos pocos que se creen poseedores de la verdad, de toda la verdad? Si fuera así encuentro toda la razón de que voces indignadas de instituciones diversas se levanten para reclamar con sobrada razón, también profesores y alumnos no aceptan estas posiciones y justificadamente liceos fiscales y colegios particulares dicen no a la ENU.426

Esta passagem evidencia claramente a aliança da Igreja com o conjunto da oposição ao

governo Allende. A UP, por meio do ENU, estaria não apenas politizando espaços que não

deveriam ser politizados, como também destruindo a liberdade de expressão ao impor um

“sistema único” de educação. O bispo de La Serena acusou o governo de se portar como

“representante de toda verdade” e com isso querer submeter toda a sociedade aos seus

próprios interesses.

Torna-se interessante analisar também os pronunciamentos públicos de diversas

instituições e organizações da sociedade civil contra a realização do ENU. De maneira geral,

apresentaram as mesmas críticas que a Igreja. Ressaltamos, no entanto, que estas organizações

ou aparelhos privados aglutinavam os interesses da burguesia e pequena-burguesia chilena,

concentrando-se na educação particular privada. Exemplo disso foi a declaração do Sindicato

Único de Trabalhadores da Educação (SUTE) que expressava os motivos de sua oposição à

reforma educacional:

Está concebido para instaurar una sociedad socialista-marxista en un proceso irreversible a corto plazo por cualquier futuro Gobierno de oposición. Es clasista en el sentido que trata de proletarizar a todos sin ofrecer incentivos de promoción social a nadie. Por ser un proyecto marxista es sencillamente un proyecto antinacional y monolíticamente no pluralista. El cientificismo del proyecto es utópico si se considera que la objetividad científica no puede existir para el marxismo dogmático. (...) Es anticonstitucional pues pretende imponer un sistema de hecho no pluralista con clara orientación partidaria; además, se impone en forma autocrática sin discusión real de los organismos competentes.427

426 Declaración del arzobispo de La Serena sobre el proyecto de la ENU (25 mar. 1973). La Revista Católica, Santiago, ano LXXIII, n. 1024, p.77-78, jan.-abr. 1973. Grifos nossos. 427 ENU: fundamentos de oposición a la reforma educacional. El Mercurio, Santiago, 26 mar. 1973. Inserción, p.22. Grifos nossos.

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Além de diversas críticas citadas por nós anteriormente que perpassam os

pronunciamentos de diferentes instituições e organizações, nesta passagem também

encontramos uma acusação do marxismo de querer politizar a “ciência”, desprezando,

portanto, a sua “objetividade natural”.

Numa entrevista concedida por Isabel Dominguez, presidente da Federação de Centros

de Pais de Colégios Particulares, FEDAP, ao jornal Mercurio, ela afirmou:

Formación antes de los seis años? Para nosotros este es el problema más grave a nivel familiar. La formación antes de los seis años corresponde a los padres de familia y estos derechos y estos deberes son irrenunciables y no pueden ser quitados so pretexto de utilizar tanto al padre como a la madre en beneficio de la economía nacional. No pueden. Nosotros vemos con tristeza cuando el documento en cuestión dice que desde cero años hasta la senectud el Ministerio de Educación se hará cargo de la responsabilidad de formar a los niños. Este derecho le compete a la familia y la posición de nuestra institución va a ser intransigente porque es un derecho de la familia. (...) Nosotros no vamos a aceptar que a los padres de familia se nos considere procreadores, y luego entes productivos. De hecho, el varón, y en muchas oportunidades la mujer, trabajan y participan en la economía del país, pero no delegan ni dejan de educar y formar a sus hijos. Nosotros vamos a ser muy claros en exigirle al Gobierno sobre esta materia porque el documento oficial de la ENU, no dice nada absolutamente nada al respecto.428

No mesmo dia em que a FEDAP manifestou a sua intenção de defender o direito dos

pais de educarem seus filhos, o bispo de O’Higgins lançou uma declaração sobre o ENU em

que também defendia o papel da família como a principal educadora e não o Estado. Como

afirmou o bispo:

Son los padres, los primeros y principales educadores de sus hijos. Este deber de la educación familiar es de una trascendencia tan enorme que, cuando falta, difícilmente puede suplirse. La familia está por sobre toda organización, sistema o método educacional. Por eso, rechazamos, con la más viva energía, todo sistema que pueda llevar en un futuro próximo o lejano, a quebrantar alguna ingerencia, libertad de elección, ideología política o religiosa, contraria al deseo de los padres, o alimentar el ánimo de obtener una educación colectiva que persiga estatizar al hombre. 429

A mesma acusação ao governo de querer “estatizar” a mente dos educandos foi feita

pelos colégios profissionais do Chile no mesmo período:

428 Propiciará FEDAP – Defensa del derecho de los padres a educar a sus hijos. El Mercurio, Santiago, 23 mar. 1973, p.20. 429 Declaración del Obispo de O’Higgins y Colchagua sobre el proyecto de Escuela nacional Unificada (Rancagua, 23 mar. 1973). La Revista Católica, Santiago, ano LXXIII, n. 1024, p.78 -79, jan.- abr. 1973. Grifos nossos.

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implantación de la ENU y superamos que la autoridades intermedias actuarán en consonancia con ella para evitar confusiones perjudiciales.432

No dia seguinte à declaração dos bispos, o Mercurio publicou uma propaganda do

Partido Nacional que chamava as FFAA a se oporem ao projeto. A mensagem fazia uso de

uma linguagem que estimulava ainda mais a “campanha de terror”:

LA ESCUELA UNIFICADA:

Atentado contra las FUERZAS ARMADAS Atropellando la ley y sin consultar a la opinión pública, los comunistas han dictaminado que: ‘la escuela unificada va de todas las maneras’... A MUY CORTO PLAZO, LAS FUERZAS ARMADAS VERAN TAMBIÉN INFILTRADAS Y SOMETIDAS AL CONTROL DEL PARTIDO COMUNISTA A SUS PROPIAS ESCUELAS INSTITUCIONALES. Deje Ud. de lamentarse y defiéndase! Rechace esta acción ilegal del Gobierno, e impida por todos los medios que el marxismo desintegre a nuestras Fuerzas Armadas y destruya su esencia y su misión de defender la soberanía nacional. Así fue como empezó la dictadura en otros países y están irremediablemente bajo la garra comunista. SEPALO Y DIVULGUELO: LA ESCUELA NACIONAL UNIFICADA ES OTRA FORMA DE LA HIPOCRESIA COMUNISTA PARA CONQUISTAR EL PODER TOTAL.

PARTIDO NACIONAL433

Não apenas o PN se engajou na propaganda contra a implantação do ENU, como

também o PDC o fez, lançando em março um documento assinado pela direção nacional do

partido sobre o projeto de educação do governo Allende. Neste documento, os dirigentes

democrata-cristãos apontaram a necessidade de uma reforma educacional nos moldes da que

haviam implantado em 1965, a qual recebera total apoio da Igreja Católica. Este apoio se deu

apesar da supressão da subvenção que o Estado transferia aos colégios privados pagos. No

documento do PDC de 1973 sobre o ENU, o partido reconheceu “la necesidad de adecuar y

perfeccionar el sistema educacional vigente, según las necesidades del desarrollo económico,

social y cultural del actual momento”, no entanto acusaram o conteúdo e os procedimentos

para a implementação do projeto como “inconsultos, precipitados e inconstitucionales”.434 O

documento buscou aclarar cada uma destas críticas:

432 Declaración (Punta de Tralca, 11 abr. 1973). La Revista Católica, Santiago de Chile, ano LXXIII, n. 1024, p.71 - 72, jan.- abr. 1973. 433 El Mercurio, Santiago de Chile, 12 abr. 1973. Inserción, p.27. 434 El PDC ante el proyecto de Escuela Nacional Unificada (23 mar. 1973). Política y Espíritu, Santiago, ano XXVIII, n. 341, p.110-111, fev. – mar. 1973.

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- Iconsultos: pues ha existido una falta de participación real d

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A imagem mostra a repressão da polícia a uma manifestação contra o ENU e o

comentário de Dom Memorario a seu companheiro, “La ENU com sangre entra”, evidencia a

idéia de que o projeto seria implementado apesar do descontentamento da sociedade chilena.

Primeiramente, podemos identificar aí a acusação levada a cabo pelo jornal do caráter

“autoritário” do governo, o qual não levava em consideração a opinião da oposição na

implementação de suas políticas. Em segundo lugar, esta oposição foi retratada pelo periódico

como “maioria”, agregando-se a ela “valores coletivos” formadores da “nacionalidade”

chilena. Por isso, ao reprimir a oposição, o governo estaria destruindo a “alma nacional” e

fazendo com que muitos chilenos se sentissem “estranhos” no interior de sua própria “pátria”.

Em resumo, procuramos mostrar de que forma a Igreja, por meio de seu rechaço ao

ENU, terminou por dar uma nova legitimidade à frente de oposição ao governo. Seus

argumentos de ordem moral contribuíram para a deslegitimação do governo, reforçando a

imagem que deste construía a imprensa mercurial e o PDC - imagem que lhe atribuía um

caráter “autoritário” por insistir na implantação do projeto sem antes discuti-lo com o

conjunto da sociedade chilena e por estar “impondo” a filosofia dos partidos da UP ao sistema

educacional do país.

3.4 Em nome da Reconciliação Nacional

O tema da reconciliação nacional esteve presente nos pronunciamentos episcopais e

documentos eclesiásticos desde, pelo menos, o lançamento da encíclica Rerum Novarum

(1891). No Chile, esta temática foi tratada pela hierarquia católica como um objetivo

nacional, fundamentada na “reconciliação divina” dos homens com Deus. A partir de fins do

século XIX, mas principalmente nas primeiras décadas do XX, a “reconciliação” também foi

encarada como um “desafio social”, atrelada à questão social da Igreja. Como apontou a

autora Maria Angélica Cruz, trata-se de uma exortação que sofreu variações importantes ao

longo dos anos.436

Desde a década de 1930, durante o governo de Arturo Alessandri, a Igreja se propunha

a enfrentar a “ideologização” da sociedade e a luta de classes que dividia o país por meio de

uma solução de “restauração nacional”, ou seja, impulsionando a evangelização e reafirmando

uma “utopia histórico-mítica” baseada na idéia da “harmonia”.437 Segundo Lira e Loverman,

436 CRUZ, Maria Angélica. Iglesia, represión y memoria. El caso chileno. Madrid: Siglo XXI, 2004, p.122. 437 LOVERMAN, Brian e LIRA, Elizabeth. Las ardientes cenizas del olvido: vía chilena de reconciliación política 1932-1994. Santiago: LOM, 2000, p.23.

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A Reconciliação Nacional como resultado da justiça social

Os documentos episcopais de 1970 e 1971 apresentam a idéia de reconciliação como

equidade, a qual só poderia ser obtida com reformas que garantissem condições iguais para

todos. Nesse sentido, os bispos afirmaram que a condição para o estabelecimento da paz

social era não apenas a realização de reformas estruturais, como também o “desapego” dos

ricos pelos seus privilégios e bens materiais, bem como a “paciência” dos pobres por

melhores condições de vida. Isso possibilitaria o estabelecimento de um consenso –

necessário para o crescimento e estabilidade do país. Na conjuntura do governo Allende, o

episcopado apoiou as medidas de reforma agrária e nacionalização dos principais recursos

naturais do país, identificando-se com iniciativas de cunho desenvolvimentista. No entanto, o

apoio a estas políticas vinha atrelado à idéia de que era necessário dar condições de vida

mínimas ao povo, para que este não se identificasse tão facilmente com as soluções

“disruptivas”, ou seja, com ideologias “subversivas” como as correntes socialistas – encaradas

como “estranhas à originalidade histórica chilena”.

Em setembro de 1970, logo após as eleições presidenciais e a ratificação da vitória de

Allende, o Cardeal Silva Henríquez afirmaria numa mensagem aos chilenos:

Todos somos y nos sentimos chilenos, celosos de nuestra soberanía, acostumbrados a la libertad. Todos entendemos que en nuestra mesa común no puede haber privilegiados ni marginados, todos queremos que esta tierra de todos la disfruten todos, con los mismos derechos y las mismas oportunidades. TODOS ANHELAMOS LA PAZ. (...) NO HABRÁ PAZ ALLI DONDE NO HAYA JUSTICIA. Y NO HABRÁ JUSTICIA SIN UNA EDUCACION SISTEMÁTICA A AMAR LOS DERECHOS DE LOS OTROS.439

Após lembrar que os chilenos estavam “acostumados à liberdade” – indiretamente

reivindicando um regime onde fossem mantidas as liberdades públicas contra a idéia de uma

“ditadura marxista” -, o cardeal defendeu a igualdade de oportunidades para todos como

condição para o estabelecimento da paz.

Em abril de 1971 o episcopado chileno afirmaria numa declaração:

La Iglesia busca el diálogo e invita a él. El diálogo es siempre fecundo cuando se dan sus condiciones indispensables: sinceridad, lealtad, respeto recíproco. Pero su motivo más urgente lo constituyen las expectativas de un pueblo que no puede esperar

necessários e que às vezes têm conseqüências políticas indiretas. Ver CRUZ, Maria Angélica, op. cit., p.29 e 123. 439 Cardenal, en mensaje a los chilenos: Lo que nos une es mucho más fuerte que lo que nos separa. Iglesia de Santiago, Santiago, ano IX, n. 49, p.22-24, set. 1970. Grifos do autor.

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indefinidamente, ni ser sacrificado a esquemas ideológicos extraños a su originalidad histórica.440

Nesse caso, a reconciliação é apresentada como diálogo, mas diálogo que só se torna

possível quando estabelecidas condições iguais e respeito recíproco. Se por um lado os bispos

afirmaram que o “povo” não poderia esperar eternamente por melhores condições de vida, por

outro apontaram que este mesmo “povo” não poderia ser submetido a uma “ideologia

estranha” como o socialismo. Em outras palavras, defenderam a realização de reformas

sociais que garantissem uma vida mais digna à maioria da população e afastassem as classes

populares da “ameaça” de identificação com a perspectiva socialista.

Na noite de natal de 1971, o comitê permanente do episcopado chileno lançou uma

mensagem cujo título era “Si quieres paz, trabaja por la justicia”. Nela afirmaram:

No puede haber paz sino en la medida en que, por esfuerzo concertado y fraterno, erradiquemos las injusticias y desigualdades sociales, factores primordiales de este clima de violencia. No puede haber paz si los detentores del poder económico se aferran a situaciones de privilegio, en lugar de alegrarse, y colaborar con la creación de posibilidades nuevas para sus hermanos menos favorecidos. No puede haber paz si las necesarias reformas de estructuras se encarnan con criterios de ventajas partidistas. No puede haber paz si las energías y el tiempo necesarios para construirla se derrochan en sucesivas manifestaciones de fuerza, en lugar de aplicarse a trabajar y producir. No puede haber paz impuesta por cualquier forma de prepotencia o atropello a la libertad. (...) Sí: la paz nunca se encuentra hecha. Hay que construirla. El Dios convertido en niño, el Dios que no vaciló en despojarse de su gloria para hacerse nuestro igual y compartir nuestra condición humana en todo, menos en el pecado, aparece en Belén como exigencia de una sociedad más justa, donde también nosotros podamos, y queramos compartir como hermanos una misma condición común y donde a todos se nos reconozcan, efectivamente, los mismos derechos: el derecho a participar, mediante una adecuada distribución de ingresos, de todos los bienes del país; el derecho a participar en la gestión económica y política; el derecho a una real igualdad de opciones; el derecho a la educación, sin limitaciones económicas ni imposiciones doctrinarias de ninguna especie; el derecho a la verdad; a conocerla – mediante una información libre y pluralista – a proclamarla y a defenderla en público; el derecho de asociarse libremente; el derecho de impedir la perpetuación de antiguos grupos, monopolizadores del poder y su reemplazo por otros nuevos; el derecho de exigir un eficaz control de la violencia, particularmente la ejercida por grupo armados ilegales.441

Nessa declaração, o episcopado atrelou a situação de desigualdade social ao

recrudescimento da violência. Mais uma vez, a condição para o estabelecimento da paz foi a

realização de reformas sociais que deveriam ser aceitas pelos detentores de privilégios. Se os

bispos defenderam algumas das medidas do governo, também fizeram críticas ao processo de

440 Declaración de la asamblea plenaria de la Conferencia Episcopal de Chile. El evangelio exige comprometerse en profundas y urgentes renovaciones sociales (Temuco, 22 abr. 1971). In: GONZALEZ PINO, Miguel & FONTAINE TALAVERA, Arturo (Org.). Op. cit., p.979-980. 441 Mensaje de Navidad del Comite Permanente del Episcopado de Chile. Si quieres paz, trabaja por la justicia. La Revista Católica, Santiago, ano LXXI, n. 1021, p.6159-6160, set. – dez. 1971.

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implementação das mesmas. As reformas, segundo os representantes católicos, não deveriam

ser usadas para dar vantagens à determinados grupos políticos em detrimento de outros, mas

para amenizar as desigualdades sociais. Neste pronunciamento os bispos se juntaram à

oposição ao acusar, de forma indireta, o governo de querer obter “todo poder” por meio da

política de nacionalizações e expropriações. O episcopado também manifestou a sua

insatisfação com relação a situação de “desordem” que se instalava no Chile, ao afirmar que a

paz não poderia ser construída se o processo de implementação das reformas sociais gerasse

“sucessivas manifestações de força”, a paralisação do trabalho, a queda da produção, a

inquietação social. Por último, os bispos afirmaram que a condição para a paz seria o

estabelecimento de direitos iguais para todos, tais como: a igualdade de opções, a educação, o

acesso à verdade pelos meios de comunicação, o direito de associação, o combate aos antigos

grupos de poder e a exigência de controle da violência, principalmente a exercida por “grupos

armados ilegais”. Vale ressaltar que, no mesmo período, o conjunto da oposição também

exigia que o governo reprimisse e impedisse a proliferação de grupos armados de esquerda.

O editorial da revista Mensaje de novembro de 1971 apontava uma perspectiva de

reconciliação nacional próxima à linha oficial da Igreja do Chile. Desde de agosto de 1971

cerca de cinco mil operários na mina de cobre El Salvador haviam se declarado em greve,

exigindo um aumento salarial de 45%. Da mesma forma, os mineiros de Chuquicamata se

encontravam paralisados como forma de pressionar o governo. A greve dos trabalhadores da

produção cuprífera era apoiada pelo conjunto da oposição, principalmente pelo empresariado.

Diante deste contexto, a revista Mensaje pedia o retorno destes trabalhadores à produção,

deixando claro, por outro lado, que rechaçava a opção da luta armada ou guerrilheira na

exigência por um processo de reformas sociais:

También es necesario producir más. Los obreros del cobre deben darse cuenta de que no constituyen una aristocracia proletaria afanada en conseguir mejores condiciones de trabajo sino que son una parte de ese todo orgánico que se llama Chile. Deben sacrificar prebendas excesivas, mirando el conjunto del país, y tomar conciencia de que todo aumento de producción redunda en beneficio de otros hermanos de trabajo, de la patria entera. (...) Ahora bien, luchar no significa ante todo evadirse en un sueño de violencias guerrilleras. El Che Guevara fue grande porque fue él mismo. Pero sus imitadores de salón no pasan de ser niños que juegan a los bandidos. (...) La unanimidad del Parlamento al aprobar la nacionalización del cobre nos demuestra que nos podemos unir frente a incentivos grandes y concretos. Por qué no mantener esta unión? Por qué no han de luchar juntos todos los verdaderos chilenos contra el subdesarrollo? No ha llegado el momento de posponer rencores y divisionismos partidistas y elaborar todos los que buscan primariamente el bien de Chile una gran tarea nacional? Olvidémonos de orgullos y de intereses enfermizos y construyamos

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una gran plataforma política que nos robustezca hacia adentro y hacia afuera y que busque por encima de todo el bien de nuestra Patria.442

Na perspectiva da revista, a reconciliação deveria ser fruto da luta contra o

subdesenvolvimento, isto é, o resultado de um processo de reformas sociais que permitisse o

crescimento econômico do Chile sem os obstáculos que o caracterizavam como uma

economia periférica dependente. Para isso, era necessária a realização de medidas que

diminuíssem o contraste entre ricos e pobres, além dos conflitos de classe que permeavam o

seio da própria classe trabalhadora. O consenso em torno à nacionalização do cobre chileno

teria sido um exemplo de que a reconciliação nacional poderia ser efetivada, ou seja, que a

sociedade chilena poderia retornar a um estado de harmonia social.

A identificação da reconciliação como um resultado da justiça social voltou a estar

presente de forma clara no pronunciamento dos bispos de 1973. Em julho deste ano o comitê

permanente do episcopado afirmou:

La paz en Chile tiene un precio, necesita que todos cambiemos de actitud. Faltan hechos de justicia. La injusticia lleva a la violencia. La justicia puesta en práctica produce las condiciones de paz y todos debemos crear esas condiciones. Entre nosotros perduran muchas formas de privilegios y aparecen otros nuevos, eso lo hemos denunciado los Obispos en diferentes ocasiones. Debemos buscar una forma chilena, original, creadora de establecer la fraternidad nacional que nos transforma en una sociedad moderna y progresiva. Debemos inventar, según el genio nacional, según el alma de Chile, una forma de justicia para que los más pobres, los más débiles tengan todo lo que la tierra puede proporcionarles para ser más plenamente hombres, y así descubran mejor su vocación y su dignidad de hijos de Dios. Justicia para emprender los cambios justos que nos otorguen la paz. La gran mayoría de los chilenos, tenemos hambre y sed de justicia: la voluntad de realizar urgentes y profundos cambios sociales, con diversas concepciones ideológicas, la encontramos en millares de hermanos nuestros, que intuitivamente, u organizados en frentes sociales o políticos, de Gobierno o de Oposición, anhelan un Chile nuevo, construido en el respeto a cada ser humano. A estes grupos políticos o sociales, les imploramos, que den los pasos necesarios para crear las condiciones de un diálogo que haga posible un entendimiento. Diálogo que para ser fructífero, requiere que se verifique en la verdad, que se diga toda la verdad que haya sinceridad para proclamar las intenciones reales, que se desarmen los espíritus y las manos.443

Após as eleições parlamentares de março de 1973 e dada a impossibilidade de destituir

o presidente Allende por meios legais, a oposição golpista se mobilizaria para retirá-lo por

estratégia “extra-legal”. Em junho houve a primeira tentativa de golpe que, como já

mencionamos anteriormente, fracassou. Nesse contexto, o episcopado procurou estimular o

442 El cobre: un desafío para Chile. Mensaje, Santiago, v.XX, n. 204, p.519-522, editorial, nov. 1971. 443

La Paz en Chile tiene un precio. Santiago, fiesta de la Sma. Virgem del Carmen. (julho de 1973). La Revista Católica, Santiago, ano LXXIII, n. 1026, p. 159-160, mai. – ago. 1973.

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estabelecimento de um diálogo entre governo e oposição em que o primeiro recuasse para

exercer um maior controle sobre as classes populares e trabalhadoras mobilizadas e, no qual a

segunda recuasse em sua intenção de articulação de um golpe. Os bispos frisaram novamente

a necessidade de mudanças sociais e o engajamento de grande parte da sociedade chilena na

construção destas reformas. De acordo com os bispos, não apenas os partidários do governo e

a esquerda revolucionária estariam empenhados na transformação social do país, mas também

parte das forças de oposição como, por exemplo, os setores representados pelo Partido

Democrata Cristão. Com o objetivo de evitar o crescimento do “totalitarismo” de ambos os

lados, o cardeal Silva Henríquez tentou aproximar setores do governo e da DC para o

estabelecimento de um acordo – que como vimos não foi frutífero dada a impossibilidade de,

naquele contexto, ser construída uma saída consensual. A Igreja se colocou como mediadora

dos conflitos políticos, buscando intervir diretamente na política contingente.

A Reconciliação Nacional como respeito à legalidade democrática

A idéia de reconciliação também é retratada nos documentos episcopais como

resultado do cumprimento estrito das leis e da Constituição. Nesse caso, a hierarquia partiu do

entendimento de que as leis representavam os interesses do conjunto do país e que o seu

cumprimento possibilitaria o estabelecimento de condições iguais para indivíduos vistos

diante do Estado como iguais. Esta idéia perpassava não apenas os documentos do episcopado

como também os da DC, a qual compartilhava da concepção de que a harmonia social poderia

ser obtida por meio do cumprimento da Constituição e que o Estado deveria representar a

unidade nacional. Assim, as ações da esquerda consideradas ilegais seriam aquelas não

previstas nos marcos constitucionais, ou seja, as que estendiam os conflitos para além dos

limites legais. Como comentamos anteriormente, a defesa da legalidade pela Igreja assumiu

um significado muito claro nestes anos: esteve diretamente atrelada à defesa da ordem contra

as ameaças de “caos”, “desordem”, “inquietação social” e ativação popular. Numa conjuntura

de intensa polarização política, a Igreja preferiu apoiar o restabelecimento da ordem “por

cima” para obter a tão evocada “reconciliação nacional” – que também foi reivindicada pela

Junta Militar de governo em setembro de 1973. A partir desta data e durante os primeiros anos

de regime militar, o aparente apoio da hierarquia aos intentos de reforma social e luta contra a

injustiça seriam momentaneamente esquecidos.

Em junho de 1971, após o assassinato do ex-ministro de estado Edmundo Pérez

Zujovic da DC por um grupo identificado pela imprensa da época como de ultra-esquerda,

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VOP – Vanguarda Organizada do Povo, o cardeal Silva Henríquez celebrou uma missa em

que pedia o fim do ódio entre os chilenos e o estabelecimento da reconciliação nacional:

Y en este momento, la voz de la Iglesia se levanta, amonestadora y suplicante, pidiendo a todos los hombres y mujeres amantes de la patria, que serenen sus ánimos; que no se dejen conducir por el odio; que depuestas las antiguas querellas y unidos en un grande amor a Chile, construyamos su grandeza. Que haya paz entre hermanos, que encontremos, en el tesoro de nuestras más nobles tradiciones, caminos de convergencia nacional. (...) Sí: Estamos expuestos a la tentación de la violencia. De buscar al margen de la ley, civil y natural, lo que sólo se encuentra respetándolas. Y es posible que esa tentación haya ganado en nosotros más terreno de lo que quisiéramos reconocer. Hoy sentimos que no podemos ceder a ella. Hoy se nos revela lo único que por ese camino se alcanza lograr: la muerte personal y colectiva.444

Após o incidente, o cardeal buscou contrapor a situação de violência instalada no país

à busca da reconciliação, a ser obtida por meio do respeito às leis – encaradas como

“naturais”. O processo de transformações vivenciado pela sociedade chilena a partir de 1970

estaria estimulando a violência e o ódio entre os chilenos – situação estranha à tradição do

país, a um passado político marcado por acordos, alianças e reconciliações, como bem

mostraram os autores Elizabeth Lira e Brian Loverman.445

Muito próxima à concepção do episcopado, os formuladores da DC também

defendiam a lei como expressão da negociação de interesses diversos e seu cumprimento

como garantia da reconciliação nacional:

los marxistas que creen disponer de una ciencia capaz de interpretar correctamente los problemas de la sociedad, es lógico pensar que su visión a largo plazo presuponga la tarea de destruir al Estado burgués, como única forma de poner fin a la dominación de las clases opresoras del proletariado. En cambio, toda concepción democrática del Estado presupone la convicción de que este no sólo no es la expresión de un poder de dominación de clase, sino que es la capacidad de representar el interés general de una sociedad, dentro de la cual se producen los conflictos de clase. El Estado nacional parte de la base de la posibilidad de arbitrar un conflicto de intereses que se resuelve dentro de mecanismos generales que están más allá del simple particularismo de los grupos. Radica en la convicción de que existen valores comunes a los ciudadanos de una misma comunidad y que la ley, como expresión de la negociación entre intereses, dé cabida a todos los sectores dentro del esfuerzo de una tarea común. Es dentro de un consenso común a todos los ciudadanos que los conflictos de intereses – sean estos económicos, políticos, sociales, culturales o ideológicos – se van resolviendo dentro de un marco constitucional en que ningún grupo tiene el monopolio absoluto del poder y es, por lo tanto, incapaz de imponer su voluntad, sin contrapeso alguno a los demás.446

444 Señaló el Cardenal: tenemos que matar el odio antes que éste mate y envenene el alma de Chile. Iglesia de Santiago, Santiago, ano VIII, n. 57, p.3-4, jun. 1971. Grifos nossos. 445 LOVERMAN, Brian e LIRA, Elizabeth. Las ardientes cenizas del olvido: vía chilena de reconciliación política 1932-1994. Op. cit. 446 ORREGO V., Claudio. La contradicción entre la ideología y la estrategia política de Salvador Allende. Política y Espíritu, Santiago, ano XXVII, n. 327, p.28-37, nov. 1971.

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Neste texto, o autor democrata-cristão defendeu a possibilidade de construção de um

consenso social nos marcos da constitucionalidade vigente. Segundo esta linha de

pensamento, se a esquerda e o conjunto dos partidários do governo cumprissem

adequadamente as leis e limitassem a realização das reformas aos marcos da Constituição, o

Chile poderia retornar ao seu “estado conciliado” anterior, sem exacerbação dos ânimos e

violência generalizada. A identificação da reconciliação nacional com a legalidade burguesa

tendia a considerar a existência de um caminho natural da sociedade ao equilíbrio, em que

interesses distintos poderiam ser harmonizados se as instituições políticas cumprissem

adequadamente os papéis a elas atribuídos. A politização de setores por natureza “não

políticos” contribuiria para romper este equilíbrio. No caso do Chile, estes setores

identificavam no marxismo uma ameaça de “superpolitização” da sociedade chilena e,

consequentemente, de instalação do “caos social”.

A exigência de limitar o processo de realização de reformas aos marcos

constitucionais foi claramente defendida pela Confederação da Democracia (CODE) com o

objetivo de disputar as eleições parlamentares de março de 1973. Em outubro de 1972 o

Mercurio publicou uma declaração da coalizão de oposição intitulada: “Bases para

restablecer la paz social en Chile”. Neste documento a CODE fazia uma série de exigências

para limitar as iniciativas do governo:

Devolución inmediata a los legítimos dueños de los camiones que se hubieren requisitado o intervenido con ocasión del paro que afecta al país, y pago de las indemnizaciones que correspondan. (...) El proceso de cambios debe estar sometido a la Constitución y a la ley. Por eso exigimos:

a) Constitución de las diversas áreas de la economía por vía legal. b) Término del proceso de constitución del área estatal por actos administrativos ilegales

y arbitrarios. Lo realizado a partir del 1° de octubre del presente año deberá quedar de inmediato sin efecto.

c) Aplicación sin discriminaciones a la pequeña y mediana industria de las normas legales vigentes en especial las contenidas en la ley de reajuste.

d) Reestructuración del sistema bancario, rechazando el concepto de la banca única. Entretanto exigimos que se ponga término de inmediato a las medidas administrativas adoptadas por el Banco Central para estatizar y centralizar tanto el crédito como el comercio exterior.

e) Cumplimiento estricto de la ley de reforma agraria, en especial: - Suspensión inmediata de las expropiaciones de predios menores de 60 hectáreas

básicas (...).447

447 Anunció Confederación de la democracia – Bases para restablecer la paz social en Chile. El Mercurio, Santiago, 23 out. 1972, p.19.

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Para o PDC e o PN – partidos que sustentavam a CODE – exigir que o processo de

mudanças sociais se limitasse aos marcos da legalidade era o mesmo que reprimir as

ocupações de terra e fábricas por trabalhadores; pagar altas indenizações referentes às

expropriações de terras, indústrias, bancos etc; limitar a reforma agrária somente às áreas

maiores que 60 hectares; reduzir a Área de Propriedade Social; enfim, desacelerar e criar

obstáculos à continuação do processo de implementação da via chilena ao socialismo. Em

outras palavras, a CODE se formou para defender os interesses da burguesia e pequena-

burguesia afetados pelas medidas tomadas pelo governo Allende. Ainda colocando as

exigências para o estabelecimento da paz, a CODE afirmou:

(...) Si el Gobierno desea realmente pacificar al país, deberá recoger nuestros planteamientos y garantizar su cumplimiento, lo que requiere la designación en cargos claves de personas cuya solvencia ciudadana sea aval suficiente de respeto a las medidas que se acuerden. (...) Si el Gobierno se negara a acoger los planteamientos contenidos en el presente documento, como asimismo los señalados en el que suscribieron las organizaciones gremiales, querría decir que se niega a buscar solución a los problemas que ha creado, y que intenta continuar por el camino que, con reiterados atropellos a la ley, ha venido siguiendo. Se negaría, por tanto, a aceptar una solución adecuada dentro de nuestro sistema democrático. Esta es la responsabilidad histórica que debe asumir ahora el Presidente de la República.

Confederación de la Democracia: Partido Democracia Radical, Partido Democrático Nacional, Partido Demócrata Cristiano, Partido Izquierda Radical, Partido Nacional.448

Em suma, para garantir a paz social por meio da justiça era necessário que o governo

limitasse o processo de reformas aos limites da Constituição, ou seja, atuasse como um

elemento de freio ao avanço do movimento operário e popular. A Igreja Católica, ao defender

a reconciliação nacional como respeito à legalidade democrática se aproximou dos setores da

oposição que buscavam a deslegitimação do governo. De forma resumida, o posicionamento

da hierarquia católica e da oposição se referia à defesa de reformas dentro da lei que

garantissem a aliança de classes e a estabilidade do sistema contra um processo de ativação

popular e autonomização da classe trabalhadora.

A Reconciliação Nacional como consenso

Outra dimensão importante da reconciliação nacional invocada pela Igreja nestes anos

foi a idéia de que o Chile deveria trabalhar para construir um “consenso nacional”, eliminando

as diferenças de qualquer ordem entre os chilenos, os sectarismos, a violência e as disputas 448 Ibidem.

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políticas. Esta seria a única maneira de evitar a derrota completa de um “grupo” pelo outro.

Para isso era necessário que, segundo os bispos, principalmente os partidários do governo

deixassem de se ver como “portadores da verdade” e, nesse sentido, abrissem mão de seu

projeto de “socialismo marxista” para outro que obtivesse o apoio dos demais setores

políticos do país. Indiretamente, os representantes católicos trataram a questão como se a UP

estivesse impondo um projeto de transformações sociais que, apesar de ser importante para o

país, não era “consensual”, contribuindo para intensificar as divergências e o “ódio” entre os

chilenos.

Em junho de 1971, a hierarquia declarou ante à morte de Zujovic:

Nos parece como que las oscuras fuerzas del odio quieren conducir a nuestra patria a enfrentamientos irreconciliables, en que algunos ponen, como condición de triunfo, la destrucción de los otros. (...) Tememos – y ojalá nos equivoquemos! – que por el camino del odio y de los asesinatos, en lugar de construir una patria más justa y más acogedora para todos, nos encaminamos a la destrucción de los valores más nobles en Chile, y al fracaso de la más anhelada y esperanzada expectativa de nuestro pueblo: la justicia social.449

A reconciliação como fruto da justiça só poderia ser obtida por meio do consenso

nacional e não de uma luta que gerasse mais violência. Em dezembro de 1971, os bispos

continuaram a criticar a exacerbação dos ódios entre os chilenos, identificando a reconciliação

como contrária ao “rancor” e à “sede de vingança”:

No se insinúa la imagen de una patria dividida en bandos cada día más inconciliables? No creen, también diariamente, - en medio de una espiral de odio y de violencia – la ‘enemistad’ y ‘el muro que nos separa’? Y no tendemos a mirarnos cada vez más ‘forasteros y extraños’, y aún ‘enemigos’? Los cristianos constituimos – según el censo – alrededor del 90% de la población de Chile. Como explicar, entonces, esta dolorosa realidad de división y enemistad? Y como superarla, si no es viviendo con mucha mayor pureza, con heroica fidelidad el Evangelio de Jesuscristo? (...) No puede haber paz – la paz de Cristo – cuando se olvida el amor. Y no puede haber amor cuando, mintiéndonos a nosotros mismos, dividimos a los hombres en bandos antagónicos, que monopolizan, unos toda la verdad y al hombre. No puede haber paz si practicamos, o toleramos, la ley antihumana de la venganza, y nos arrogamos el derecho de conquistar por las armas lo que creemos nuestro. No puede haber paz si la noche se transforma en vigilia armada para impedir el despojo de lo que legalmente nos pertenece. No puede haber paz si no nos educamos, a nosotros y a nuestros hijos, a respetar toda autoridad legítima, la ley que emana de la voluntad común, la persona del otro tanto como la propia.450

449 Señaló el Cardenal: tenemos que matar el odio antes que éste mate y envenene el alma de Chile. Iglesia de Santiago, Santiago, ano VIII, n. 57, p.3-4, jun. 1971. 450 Mensaje de Navidad del Comite Permanente del Episcopado de Chile. Si quieres paz, trabaja por la justicia. La Revista Católica, Santiago, ano LXXI, n. 1021, p.6159-6160, set. – dez. 1971.

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Neste documento, os bispos criticaram a divisão dos chilenos em “bandos

antagônicos” devido à monopolização da “verdade” por parte de alguns e o caminho da

violência para obter justiça social. De maneira indireta, fizeram uma crítica à esquerda por

estimular a luta pela justiça por meio da violência. Interessante lembrar que em dezembro de

1971, Santiago estava sob estado de emergência, as mulheres de classe média realizaram a

marcha das “panelas vazias” contra a situação de desabastecimento, Fidel Castro finalizava a

sua visita ao Chile e o Congresso tentava a todo custo dificultar as medidas de nacionalização

almejadas pelo governo da UP.

No dia 1º de janeiro de 1972 a revista Iglesia de Santiago publicou uma mensagem do

Papa Paulo VI de celebração da “Jornada pela Paz”. Nessa mensagem, o mais alto

representante da Igreja Católica expôs a concepção católica de paz, idéia que perpassa uma

das dimensões da reconciliação nacional pregada pelos bispos chilenos:

la Paz es, por lo tanto, la idea central y motora de la fogosidad más activa. (...) La paz no es un engaño sistemático. Mucho menos es una tiranía totalitaria y despiadada, y de ninguna manera violencia; pero al menos la violencia no osa apropiarse el nombre agusto de Paz. (...) Y tenemos tanta confianza, en que los ideales conjuntos de la Justicia y de la Paz llegarán por su propia virtud a engendrar en el hombre moderno las energías morales para que los actúen, que esperamos en su gradual victoria. Más aún, confiamos también cada vez más en que el hombre moderno tenga ya por sí mismo la comprensión de los caminos de la paz, hasta el punto de hacerse a si mismo promotor de aquella Justicia que abre esos caminos y los hace recorrer con valiente y profética esperanza.451

O papa, ao definir a paz invocada pelo catolicismo, contrapôs consenso e totalitarismo,

reconciliação e violência, não deixando de lado a associação do tema com a questão da justiça

social. Baseando-se nestas palavras, os bispos chilenos continuaram pedindo a reconciliação

nos meses seguintes.

Em agosto e setembro de 1972 o Chile viveria sérios incidentes devido à intensa

mobilização social. Em Santiago teve início a greve dos comerciantes varejistas e a

paralisação do transporte terrestre. As principais estradas do país apresentavam veículos

atravessados e muitas vias férreas foram destruídas. Nesse contexto, o cardeal Silva

Henríquez lançou uma mensagem em que pedia a fraternidade entre os chilenos e a busca de

um consenso:

Pero si queremos recoger lo que todos debemos pedir para Chile en este momento, no podemos sino evitar a que pidamos insistentemente el renacer de la fraternidad. Con

451 Mensaje de su Santidad Pablo VI para la celebración de la ‘Jornada de la Paz’ (1 jan. 1972). Iglesia de Santiago, Santiago, ano X, n. 63, p. 20-21, jan. – fev. 1972.

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frecuencia hemos oído en estos días la mención de gravísimos cargos de unos contra otros. No creemos que las legítimas y ardientes inquietudes por construir un Chile nuevo, un Chile de todos, deba llegar a causar divisiones tan hondas, que ya no seamos capaces de oirmos o de mirarnos en otra forma que como enemigos.452

Ao mesmo tempo em que os bispos pediam o consenso, a oposição apresentou as suas

exigências para que fosse possível um acordo com o governo. Na prática, estas exigências

representavam a derrota do governo da UP e o completo recuo de seu programa de governo. A

declaração da CODE de outubro de 1972 exigia em nome do estabelecimento da paz social:

Término de la violencia Para que todo habitante de Chile pueda desarrollar una actividad útil para el país y para que sea posible producir los bienes que la comunidad necesita es imprescindible que en los lugares de trabajo haya paz y libertad. Por eso exigimos:

a) Aplicación inmediata de la ley sobre el control de armas por parte de las FFAA b) Disolución inmediata de todo grupo armado, en especial los existentes en los lugares

de trabajo, y aplicación de drásticas sanciones a los responsables de su existencia. (...). Necesidad de normalizar la situación política del país.

El país vive una aguda crisis que pone en peligro la institucionalidad democrática cuya manutención interesa a todos los chilenos.453

Para a CODE a paz social deveria ser construída por meio da “normalização do país”,

o que implicava no fim da violência pela repressão ao movimento operário. Esta medida

repressiva seria aplicada através de iniciativas legais, como a lei de controle de armas. A

dissolução de possíveis grupos armados estava voltada apenas para os locais de trabalho e

buscava “criminalizar” as organizações operárias, em especial as que compunham o chamado

Poder Popular. Nesse sentido, a violência era identificada às ações das organizações e partidos

políticos de esquerda.

Segundo os membros da oposição, a reconciliação nacional como forma de consenso

seria, portanto, impossível de ser obtida com a permanência da UP no poder. Sem um objetivo

comum que unisse os chilenos, o país estaria destinado ao “fracasso”. Tornava-se necessário

então extirpar da cena política os elementos “anti-nacionais”, causadores da divisão, para

recuperar a “alma nacional” devidamente conciliada.

Apesar destas acusações feitas contra o governo, o presidente Allende, após a conversa

com os bispos, afirmou:

452 Pidamos insistentemente para Chile un renacer de la fraternidad (25 set. 1972). Iglesia de Santiago, Santiago, ano XI, n. 70, p.6-7, out. 1972. 453 Anunció Confederación de la democracia – Bases para restablecer la paz social en Chile. El Mercurio, Santiago, 23 out. 1972, p.19.

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golpe militar. E mesmo com o caráter “constitucionalista” do governo Allende em sua

intenção de preservar as leis, após o golpe a hierarquia não questionou a legitimidade do

governo militar e o aceitou como um fato consumado, confiando inclusive na promessa da

Junta quanto ao rápido retorno ao regime democrático.456

Ainda em 1973 o episcopado lançou uma exortação em que invocava mais uma vez o

fim da luta fratricida no Chile, apelando para a reconciliação com Deus. Naquele contexto,

visto a impossibilidade de construção de um consenso, a Igreja pediu que o povo chileno,

sendo em sua maioria católico, se conciliasse ao menos com a fé e pusesse fim à “guerra

civil”:

Tal vez nunca en su historia ha sentido nuestra Iglesia chilena tan en carne viva la necesidad de reconciliación. Siempre hemos sabido que el pecado, bajo cualquiera de sus formas constituye un rechazo al amor y origina una ruptura profunda en las relaciones del hombre con Dios y con sus semejantes. Pero nunca habíamos sentido tan terriblemente real y cercana su presencia como en los momentos que actualmente vive Chile. El odio entre hermanos – es decir, el pecado en su más directa y brutal desnudez – se proclama hoy, de diversas maneras, por método y principio, como el único camino capaz de conducirnos a una sociedad más justa. Nos urge liberar a Chile cuanto antes de este torbellino fraticida. No será el aplastamiento ni la eliminación de un bando por otro lo que nos traerá la paz y la reconciliación. Estas sólo pueden nacer del amor. Y no hay en el universo fuerza capaz de engendrar un amor más poderoso y de obrar una reconciliación más profunda que la fe en Jesuscristo.457

O ódio entre “irmãos”, encarado como pecado, não poderia ser o único caminho para a

construção de uma sociedade mais justa, como apontaram os bispos. Neste trecho, o

episcopado demonstrou a sua descrença na “via chilena ao socialismo” como caminho para a

obtenção de mudanças e justiça social. A intensificação da luta de classes provocara a

“divisão entre os chilenos”, colocando-os em uma situação “de pecado” inaceitável para a

Igreja Católica. A hierarquia reivindicou reformas sociais que garantissem uma melhor

distribuição das riquezas, amenizando as desigualdades sociais, desde que este processo não

se convertesse em uma ameaça à ordem e à estabilidade do sistema vigente. Nesse sentido, a

reconciliação como consenso se tornou palavra vazia numa sociedade em convulsão social.

A Reconciliação Nacional como perdão Uma última dimensão da reconciliação, invocada pela hierarquia católica chilena

nestes anos, remetia ao “perdão”. Esta pode ser observada principalmente nos

456 VIDAL, Hernán. Las capellanías castrenses durante la dictadura. Hurgando en la ética militar chilena. Santiago: Mosquito comunicaciones, 2005, p.47. 457

Exhortación del Comité Permanente del Episcopado para la reconciliación en la fe (Santiago, Pentecostés 1973). La Revista Católica, Santiago, ano LXXIII, n. 1026, p.160-162, mai. – ago. 1973.

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hierárquica tornou menos ambíguas as suas palavras, apontando que os “vencidos”

escolheram uma ideologia e um método equivocados, incompletos e ilusórios para lutar por

uma sociedade mais justa, além de almejarem conquistar todo o “poder” para si. Por isso,

deveriam “aceitar” a perda e se “inserir”, como “bons cidadãos”, ao processo de reconstrução

nacional, perdoando seus repressores e carrascos.

Observa-se, portanto, que a alta hierarquia da Igreja Católica acabou cumprindo um

papel de “legitimadora moral” do golpe militar e da consolidação do novo regime ditatorial-

militar imposto. O discurso que invocava a “reconciliação nacional” serviu não apenas para

deslegitimar o governo de Salvador Allende, colocando a Igreja junto aos demais setores que

compuseram a frente heterogênea de oposição, como também foi utilizado para legitimar o

poder da Junta Militar e o significado político, econômico e social deste novo governo para o

Chile.

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250

Considerações finais

Vimos no último capítulo de que forma a defesa da democracia foi um elemento

central do discurso da oposição ao governo Allende, constituindo parte da estratégia de

deslegitimação deste último. A análise dos editoriais do jornal El Mercurio e da revista

Política y Espíritu

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251

Os sentidos atribuídos a uma suposta “tradição democrática” pela esquerda e pela

direita se diferenciavam. A idéia construída e reforçada pela frente civil-militar de oposição se

baseava na contraposição permanente entre democracia e socialismo – oposição que, como

vimos, ganhou um status de “crise moral”, de destruição do “Bem” (forças democráticas) pelo

“Mal” (a via chilena para o socialismo). Inicialmente, a imprensa procurou invocar a

“tradição democrática chilena” diferenciando-a por completo das experiências do socialismo

real. Nessa estratégia, o socialismo foi qualificado como o “Outro”, o “diferente”, o oposto ao

regime vigente no Chile “há anos”. Mesmo sendo apresentada por seus partidários como um

caminho que se diferenciava dos demais socialismos construídos no mundo, a via chilena foi

desde o início desqualificada pelos autores dos editoriais do jornal El Mercurio. A grande

imprensa a qualificou como uma estratégia “oportunista” da esquerda para dar legitimidade às

suas medidas e construir uma base social para o seu governo. Criou-se a idéia de que o projeto

da UP, mesmo apresentando-se como um caminho adaptado ao histórico político do Chile, era

sustentado por partidos de orientação marxista “ortodoxa” e, por isso, estaria “fatalmente”

condenado ao fracasso e sua aplicação estimularia um quadro de “violência”, “anarquia” e

“ditadura”.

Outro elemento destacado por nós ao longo da análise do periódico se referiu ao

diálogo estabelecido com os leitores a partir da afirmação de “valores coletivos” que

remetiam à construção de uma “unidade nacional”. O público leitor do jornal – em sua

maioria oriundos das classes médias e altas – era reconhecido como “cidadão chileno”,

portador de uma “vontade nacional” e levado a rechaçar os elementos considerados

“estranhos” à nacionalidade invocada. A caracterização e valoração feitas pelos editoriais do

El Mercurio aos elementos formadores desta “nacionalidade” criavam a ilusão de um discurso

único e homogêneo, no qual o “diferente” e o “desviante” eram os “comunistas”, “socialistas”

e partidários do regime nacional-reformista de forma geral.

A estratégia de dialogar com elementos do imaginário político dos setores médios

chilenos, produzindo sentidos que invocavam um discurso único, constituiu uma tática de

deslegitimação do governo da UP na medida em que criava um suposto consenso em torno de

seu caráter ilegítimo e reforçava a saída golpista para a crise. Esta última foi sendo

apresentada como uma alternativa “necessária” e a “única possível”, tendo em vista a situação

passou por “altos e baixos”, como por exemplo, durante o governo de González Videla, eleito em 1946 com o apoio dos comunistas, que desatou forte repressão às greves operárias e aprovou a “Lei de defesa da Democracia”, a qual colocava o Partido Comunista na ilegalidade. Sobre a história política do Chile ver, entre outras obras, SADER, Emir. Chile (1818-1990). Da independência à redemocratização. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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de “destruição” em que se encontrava o país. A opção por uma saída “extra-política” também

foi invocada em nome dos valores democráticos, como meio de extirpar os “entraves” que

obstaculizavam o pleno desenvolvimento e “evolução” do regime democrático chileno. O

“novo” regime ou a “verdadeira” democracia seria aquela que garantisse o retorno à ordem e à

estabilidade – assumindo a forma de uma “democracia saneada”. Em outras palavras, tratava-

se de frear o crescente movimento operário e popular, cujo avanço ameaçava a então

consolidada “democracia chilena”, e dar legitimidade ao novo regime militar consolidado

após o golpe. A análise do Mercurio nos permitiu compreendê-lo, portanto, como um

articulador da frente civil-militar que derrubou Allende.

A pesquisa nos leva a concluir que a Igreja Católica e o Partido Democrata Cristão

também se constituíram em agentes desse processo golpista. Em seus pronunciamentos

episcopais, a instituição católica também reforçou a idéia de uma “tradição democrática

chilena” vinculada aos valores de “legalidade”, “ordem” e “estabilidade”. Como vimos, a

concepção de democracia defendida pela Igreja articulava-se à idéia de um Estado árbitro,

administrador e viabilizador do “bem comum”. Nesse sentido, o bem de toda comunidade

nacional só poderia ser alcançado se o Estado fizesse funcionar as leis e a Constituição do

país. O “bem comum” – cujo fundamento é a propriedade privada – deveria ser realizado por

meio do ato legislar. Nesse quadro, a lei, como expressão do direito natural e da justiça,

deveria ser preservada e respeitada. Foi com base nestes princípios que o episcopado chileno

exigiu do governo a realização de reformas sociais enquadradas nos limites da “legalidade”,

bem como o respeito ao jogo de “maiorias” e “minorias” como forma de preservação da

“governabilidade”. Dever-se-ia evitar a todo custo uma intervenção “excessiva” do Estado na

vida econômica e a irrupção “desordenada” das massas no cenário político.

Encarando o socialismo como um sistema “totalitário” por excelência, a Igreja

corroboraria a difusão da dicotomia “democracia vs socialismo”. Ao invocar a participação da

“opinião pública” no sentido de exigir do governo a preservação das “conquistas democráticas

do povo chileno”, os bispos agiram como se tais conquistas estivessem efetivamente

ameaçadas.

O contexto político e social do Chile a partir de 1972 foi identificado pelo episcopado

como uma situação de “conflito permanente” e, portanto, como ameaça de ruptura da

“tradição política” do país, baseada historicamente no estabelecimento de alianças e

consensos entre os partidos. Para preservá-la, tornou-se necessário invocar, aos olhos da

Igreja, o consenso e a reconciliação nacional. Constatamos mais uma vez aqui o reforço por

parte da hierarquia católica da retórica defendida pela oposição, que identificava o regime

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democrático com a idéia de “consenso cidadão”. Nesta perspectiva, não era legítimo um

governo que, em nome da construção do socialismo pela via democrática, estimulasse a

violência desenfreada, o ódio entre classes, sectarismos e divisões. Por este motivo, mesmo

reconhecendo a importância de um processo de distribuição de riquezas e de nacionalização

dos principais recursos do país, a Igreja contribuiu para a construção de uma imagem negativa

do governo, desqualificando-o como “anti-democrático”, “anti-chileno”, “representante de

uma minoria” e, portanto, ilegítimo. Consideramos que o elemento mais destacado nos

documentos da Igreja, ou seja, o fator que mais suscitou críticas por parte dos bispos, foi o

processo de ativação popular. Ao se referir ao contexto de recrudescimento da luta de classes

no Chile, o episcopado abordou a sua inquietação diante do aumento da violência, das

divergências no seio da classe trabalhadora, bem como da “indisciplina” no mundo do

trabalho e do “excesso de politização” e “ideologização” da sociedade.

Avaliamos que a conjuntura vivida pelo país a partir de meados de 1972 representou

uma mudança nas relações entre a Conferência Episcopal e o governo de Allende. Se antes

essas relações demonstravam uma aparente cordialidade entre bispos e UP, a partir desta data

a convivência se tornou mais áspera. O surgimento do Poder Popular e seu enfrentamento

direto com a burguesia também constituem fatores importantes para serem analisados, pois

permitiram que parte dos trabalhadores organizados iniciasse um movimento de

autonomização. Este processo, aos olhos da Igreja, representava mais um elemento de ruptura

com a “tradição política” chilena. Defendendo desde fins do século XIX a sindicalização

operária e camponesa como forma de garantir a unidade do capital com o trabalho e relações

de trabalho mais “dignas”, a Igreja viu com extrema desconfiança e medo as organizações

alternativas dos trabalhadores chilenos em 1972 e 1973. Neste contexto, o mundo do trabalho

deixava de ser local da “solidariedade”, da “realização pessoal”, da “unidade familiar”, da

“graça” e da “harmonia” como pregava o catolicismo, passando a constituir-se como espaço

da “desordem social”.

A divisão e a politização tão condenadas pelos bispos também afetariam a própria

instituição católica. O surgimento de inúmeros grupos de cristãos com orientações teológicas

e políticas variadas representou outro problema para a hierarquia católica nesses anos. Vimos,

no entanto, que os grupos de cristãos “progressistas” sofreram maior repressão do que

organizações como a TFP e a Opus Dei – organizações que apoiaram abertamente o golpe em

1973. Os documentos episcopais evidenciam uma significativa intolerância dos bispos com

relação ao Movimento Cristãos para o Socialismo, surgido no Chile em 1971. A condenação

desta organização pela hierarquia desde seu aparecimento na cena política e a expulsão de

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seus membros da Igreja em 1973 também determinaram o estremecimento das relações entre

Igreja e UP. Procuramos mostrar que o rechaço ao CpS pela hierarquia coincidiu com a

articulação do golpe militar no Chile. Se por um lado o golpe de Estado representou uma

iniciativa “saneadora” liderada por elementos civis e militares que a partir de setembro de

1973 iniciaram intensa repressão aos elementos “comunizantes” da sociedade, por outro lado

o lançamento do documento disciplinador, “Fe cristiana y actuación política”, no qual o

episcopado impedia a participação dos fiéis no CpS também representou uma atitude

“saneadora” por parte da Igreja.

A polêmica em torno ao projeto de educação do governo da UP deve ser considerada

como mais um fator que expressa o papel funcional da Igreja junto à frente civil-militar de

oposição. Ao longo de 1973, quando a discussão sobre o ENU ocupou grande espaço na cena

política chilena, os pronunciamentos episcopais coincidiram com os conteúdos dos editoriais

do El Mercurio e com o posicionamento de outros aparelhos privados de hegemonia, tais

como os sindicatos dos colégios particulares, os centros de pais e a federação de estudantes do

ensino privado. Invocando novamente a “tradição democrática” do Chile, os bispos exigiram

que o governo respeitasse a liberdade dos pais de escolherem o tipo de ensino que desejavam

oferecer aos seus filhos, entendendo que a construção de um “sistema único” atentava contra

o “patrimônio espiritual” dos chilenos. Em outras palavras, a aplicação do ENU representava

uma grande ameaça ao poderio da Igreja, uma vez que o ambiente educacional se constituía

em seu local estratégico de difusão ideológica, privilegiado para a reprodução de seus valores

e de sua influência na sociedade.

Procuramos mostrar, apesar de não termos nos aprofundado no debate em torno do

projeto educacional, de que forma as coincidências “discursivas” se expressaram nas

publicações da Igreja, do PDC e no Mercurio. Ressaltamos que este último também procurou

fazer uso das críticas da hierarquia ao ENU para invocar a heterogeneidade e a legitimidade

da oposição ao governo. A partir do exame das diversas opiniões sobre o tema na imprensa,

foi possível identificar a conseqüência propriamente política dos pronunciamentos morais dos

bispos com relação à proposta de reforma educacional apresentada pela UP – naquela

conjuntura a Igreja reforçou e legitimou a oposição formada pelos setores médios e altos do

país, em especial a clientela dos colégios particulares mais caros do Chile, que organizavam

nas ruas atos e manifestações exigindo a não aplicação do projeto. Consideramos que estas

manifestações, como mostraram os editoriais do Mercurio, evidenciaram o completo rechaço

ao governo, num momento em que só restava a alternativa do golpe militar para destituir

Allende.

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O último eixo temático desenvolvido no capítulo 3 referiu-se à defesa da reconciliação

nacional pelos bispos chilenos. Apontamos as diversas faces que este tema assumiu ao longo

dos pronunciamentos da Conferência Episcopal. Tornou-se evidente que desde a vitória

eleitoral de Allende em 1970, os bispos invocaram a reconciliação como fruto da justiça

social, defendendo a realização de reformas sociais que amenizassem as desigualdades entre

ricos e pobres. Dirigiram-se às classes altas do país, pedindo o desapego aos bens materiais.

Com isso, a Igreja procurou defender a construção de um quadro de harmonia, evitando a

proliferação dos conflitos e a popularização de ideologias “subversivas”.

Concluído o primeiro ano de governo, tornou-se impossível ignorar o recrudescimento

dos conflitos políticos e sociais. A defesa da reconciliação foi atrelada à exigência de

cumprimento das leis e da Constituição. Isso significava exigir que o governo limitasse o

processo de reformas aos marcos da legalidade, impedindo e reprimindo qualquer

manifestação dos setores operários e populares ou da esquerda revolucionária que não

estivesse previsto nas leis. O seu cumprimento estrito significava, como vimos nos

documentos, reprimir o crescente movimento de trabalhadores que ocupavam terras, fábricas

e prédios abandonados; pagar altas indenizações aos antigos proprietários; limitar a reforma

agrária e a recém criada Área de Propriedade Social. Bispos e oposição novamente se

encontraram invocando a preservação da institucionalidade democrática como condição para

o estabelecimento da justiça social. A reconciliação também apareceu sob a forma de

consenso, quando o episcopado procurou mediar um acordo entre setores do governo (Partido

Comunista e Allende) e da oposição (Partido Democrata Cristão) para evitar a eliminação de

um grupo por outro na “guerra interna” vivida pelo país. Mais uma vez a condição

estabelecida pela oposição para aceitar o acordo foi a repressão por parte do Estado aos locais

de trabalho, às organizações operárias do Poder Popular e aos grupos armados de esquerda.

Por fim, a reconciliação nacional foi invocada como “perdão”. Com isso os bispos

confirmaram a inviabilidade e o caráter ilegítimo da via chilena ao socialismo, uma vez que

esta teria levado os chilenos a uma situação de “pecado”, tornando-os inimigos no interior da

mesma “pátria”. A saída apontada pela hierarquia foi rogar para que todos,

independentemente da posição de “vencedores” ou “vencidos”, colaborassem no processo de

“reconstrução” do país após o golpe militar. Apresentando-se de forma cordial ao novo

governo da Junta Militar, a alta hierarquia católica “lavou as mãos” e buscou reconstruir a sua

imagem perante a sociedade chilena, desvinculando-se da face repressiva do regime, mas

mostrando-se agradecida por seu intuito de recuperar a “ordem” e a ameaçada “tradição

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256

política” do Chile. Afinal, o golpe fora dado em nome de “Deus”, da “Pátria” e da

“Democracia”.

...

Acreditamos que este trabalho nos possibilita compreender o papel desempenhado

pela Igreja Católica no Chile no processo político vivenciado pela sociedade chilena ao longo

da década de 1960 e, principalmente, durante o governo de Salvador Allende. A pesquisa nos

mostra que a Igreja do Chile, como importante aparelho privado de hegemonia, se aliou a

determinados interesses de classe, às vezes de forma mais explícita – apoiando os grupos

representados no Partido Democrata-Cristão na década de 1960 e o projeto “modernizante” de

Frei – noutras vezes de maneira menos evidente – descolando a sua imagem de qualquer

partido e invocando um projeto próprio, voltado unicamente para a “salvação das almas”. Foi

nosso objetivo demonstrar a forma específica de atuação política da Igreja e de que maneira

determinados temas invocados pelo episcopado coincidiram, em certas conjunturas, com os

interesses de outros atores políticos, em especial, com as frações da burguesia agrupadas na

DC e no PN. Esta aproximação, que não pode ser encarada de forma mecânica, nos permite

compreender o papel ativo da alta hierarquia católica no processo de construção e legitimação

da saída golpista – vitoriosa em 1973.

Na primeira parte do capítulo 1, de caráter introdutório, nos debruçamos sobre a

bibliografia relativa à história da Igreja na América latina e a sua linha predominante, além do

papel da instituição católica ao longo do processo de modernização capitalista no Cone Sul.

A segunda parte, na qual procuramos apresentar a relação da Igreja do Chile com o

PDC, ainda pode ser muito explorada por outros pesquisadores já que as semelhanças entre a

linha oficial do Vaticano colocada em prática pela alta hierarquia católica chilena e o projeto

do governo Kennedy da Aliança para o Progresso são evidentes e não existem muitos estudos

que aprofundem esta relação. Tentamos demonstrar a proximidade de princípios entre estes

projetos no contexto internacional bipolarizado, acrescentando ainda que as Igrejas do

continente e suas instituições de beneficência e pesquisa receberam financiamento direto do

governo norte-americano, da mesma forma que alguns partidos como é o caso da Democracia

Cristã no Chile.

No capítulo 2 analisamos parte da bibliografia sobre o período da Unidade Popular no

Chile e o golpe de 1973 e o corpo documental referente à imprensa mercurial. Buscamos não

apenas introduzir o leitor no processo de formação da frente golpista no Chile, como também

realizar um debate historiográfico sobre o golpe. É interessante pensar na proximidade teórica

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257

existente entre os trabalhos de Arturo Valenzuela, Manuel Garretón, Tomás Moulián, Luis

Corvalán Márquez e Alberto Aggio e os chamados historiadores “revisionistas” do golpe de

1964 no Brasil com destaque para os trabalhos de Argelina Figueiredo,461 Jorge Ferreira462 e

Daniel Aarão Reis,463 respeitadas as devidas singularidades históricas de Chile e Brasil, como

também as de todos esses autores. Esta relação, naturalmente, ainda pode ser desenvolvida e

merece um trabalho mais apurado de leitura e comparação. De igual importância é a

identificação da influência do conceito de “pretorianismo” assim como da matriz teórica

elaborada por Samuel Huntington nos estudos sobre a crise da sociedade chilena que precedeu

o golpe de 1973. Esta influência pode ser observada na insistência dos autores em analisar o

Chile como uma exceção, se comparado aos demais países do Cone Sul,464 no que se referia

ao seu regime político, visto como “altamente institucionalizado”. O retrato de um Chile

“evoluído” em termos políticos e econômicos – imagem até hoje invocada por parte dos

chilenos de classe média e alta – se chocava com a conjuntura vivida pelo país em 1972.

Nesse sentido, a vitória das forças golpistas em 1973 é compreendida pela maioria dos autores

como o resultado do excesso de “politização” e “ideologização” de instituições que não foram

criadas para fazer política, bem como de uma “radicalização” da esquerda revolucionária e

dos trabalhadores organizados no Poder Popular. Estes setores teriam então “preparado” o

ambiente golpista ao permitir que os conflitos sociais fossem extrapolados para além dos

limites constitucionais e, nesse sentido, “facilitado” a vitória das forças conservadoras em

1973. A nosso ver esta perspectiva de análise termina por legitimar a ação golpista vitoriosa,

ao invés de questioná-la.

A impossibilidade de usarmos outro tipo de documentação relativa às relações entre

Igreja e Estado no Chile nas décadas de 1960 e 1970 nos foi apresentada pelos funcionários

do próprio arquivo histórico da Conferência Episcopal em Santiago. Segundo eles, os

documentos da Igreja, com exceção de suas publicações oficiais, permanecem sob

“quarentena” durante 60 anos a partir da data de origem. Em outras palavras, são arquivos

fechados ao público e que só serão abertos a partir do ano 2030. A conclusão a que chegamos

é que de fato não interessa aos representantes da instituição católica que esta seja pensada e

estudada para além dos círculos católicos tradicionais. Como afirmamos no início de nosso 461 Cf. FIGUEIREDO, Argelina. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961 – 1964. São Paulo: Paz e Terra, 1993. 462 Cf. FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano: o tempo da experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, Livro 3, p.343-425. 463 Cf. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. 464 Salvo o Uruguai, considerado a “Suíça da América Latina”.

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primeiro capítulo, a Igreja busca construir a sua própria imagem perante a sociedade e espera

que seja reconhecida por aquilo que é apresentado por seus porta-vozes. Trata-se de uma

instituição que não quer ser confundida nem aproximada a concepções mundanas ou correntes

políticas modernas, sendo seu objetivo confirmar, mesmo que se diga o contrário, que seu

compromisso único é com a “salvação das almas”.

Diante deste impasse, optamos por focar a nossa análise no rico debate de idéias

realizado pelos próprios atores políticos, buscando desta forma encontrar os pontos de

convergência entre discursos de caráter distinto. Com isso procuramos demonstrar de que

forma a Conferência Episcopal do Chile, por meio de seus pronunciamentos, desempenhou o

papel de legitimadora moral do golpe civil-militar de 1973. Mesmo que os bispos tenham

estabelecido relações aparentemente harmoniosas com o governo da Unidade Popular até

meados de 1972, a análise atenta dos documentos episcopais mostra um grau de desconfiança

que reforçou, em nossa opinião, o temor das classes médias chilenas diante do novo governo.

A inflexão da Igreja mostrou-se evidente a partir do processo de ativação popular e dos

pronunciamentos episcopais sobre a questão do trabalho. Assim, acreditamos que os discursos

dos bispos sobre a indisciplina dos trabalhadores em 1972, bem como o seu rechaço à

implantação do ENU em 1973 foram fundamentais na arregimentação de grande parte das

classes médias para as fileiras da oposição e, com isso, para a legitimação da saída golpista

para a crise.

A opção por trabalhar com eixos temáticos contribuiu para visualizarmos as

convergências sutis presentes nos discursos episcopais e nos editoriais do El Mercurio desde

meados de 1971. No entanto, o uso deste método requeria um debate teórico mais

aprofundado que não nos foi possível realizar. A amplitude dos núcleos de sentido

identificados – tais como a defesa da democracia, a concepção de socialismo e da via chilena,

a polêmica em torno do projeto educacional do governo da UP e a reconciliação nacional –

não nos permitiu desenvolve-los tal como mereciam, dada o extenso debate existente sobre

cada um deles. Considerando esta dificuldade, nos limitamos a recuperar o debate feito pelos

atores da época, então mergulhados no clima político da Guerra Fria.

Esta dissertação servirá de base, portanto, para trabalhos futuros nos quais poderemos

não somente desenvolver uma análise mais aprofundada sobre cada um dos eixos temáticos,

como também fazer uso da metodologia da história comparada para buscar aproximações

entre o papel político desempenhado pela Igreja do Chile e a do Brasil; o papel da grande

imprensa na articulação dos golpes militares em ambos os países; além do estudo crítico da

bibliografia sobre os golpes militares chileno e brasileiro.

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Ressaltamos, por último, que o estudo da instituição católica no continente latino-

americano continua sendo de grande importância, apesar de pouco valorizado. Basta darmos

uma mirada nos jornais de grande circulação para identificarmos rapidamente a presença

disciplinadora da Igreja Católica e sua influência política nas sociedades contemporâneas.

Esperamos que esta pesquisa também estimule novas reflexões sobre o processo político

recente vivido pela sociedade chilena – cujos reflexos dolorosos são sentidos até os dias atuais

- e sobre a participação da Igreja na política – participação que muitas vezes serviu para

legitimar moralmente situações de desigualdade e injustiça e que merece ser analisada.

Por fim, acreditamos que este trabalho traz novamente à tona um período da história

do Chile que, apesar de vastamente estudado, ainda suscita questões importantes para

pensarmos a sociedade chilena atual. A imagem do Chile que chega ao Brasil apresenta uma

“nação para empresários”, “moderna”, econômica e tecnicamente “eficiente”. Apesar disso,

tal nação não deixa de apresentar todas as características de periferia com milhões de pessoas

vivendo em condições precárias nas chamadas poblaciones, níveis crescentes de desemprego

e perda de direitos básicos em função das reformas neoliberais do regime militar que

flexibilizaram as relações de trabalho. Nesse sentido, pensamos ser procedente o

questionamento do discurso que invoca uma “tradição democrática chilena”, uma vez que a

pesquisa histórica nos mostra que tal discurso cumpriu papel legitimador de uma determinada

ordem política e econômica, a ordem capitalista.

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