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Adriano Duarte Rodrigues A PARTITURA INVISÍVEL PARA UMA ABORDAGEM INTERACTIVA DA LINGUAGEM Edições Colibri

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Adriano Duarte Rodrigues

A PARTITURA INVISÍVEL PARA UMA ABORDAGEM INTERACTIVA DA LINGUAGEM

Edições Colibri

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Biblioteca Nacional – Catalogação na Publicação

Rodrigues, Adriano Duarte, 1942- A partitura invisível : para uma abordagem interactiva da linguagem. – (Cadernos universitários ; 13) ISBN 972-772-263-6 CDU 81’42

Título: A Partitura Invisível Para uma Abordagem Interactiva da Linguagem

Autor: Adriano Duarte Rodrigues Editor: Fernando Mão de Ferro

Capa: Ricardo Moita Depósito legal n.º 167 031/01

1.ª edição, Outubro de 2001 2.ª edição, Março de 2005

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ÍNDICE GERAL

1 PREFÁCIO ....................................................................................................... 11

1.1 A concepção referencial ......................................................................... 11

1.2 A concepção simbólica da linguagem .................................................. 13

1.3 A dimensão interlocutiva da linguagem .............................................. 17

1.4 Actualidade da dimensão interlocutiva da linguagem ....................... 18

1.5 Objectivos deste trabalho ....................................................................... 23

1.6 Bibliografia .............................................................................................. 24

2. INTRODUÇÃO ................................................................................................ 25

2.1 O termo “pragmática” ............................................................................ 25

2.2 A definição intuitiva da pragmática ..................................................... 27

2.3 O objecto e a delimitação do campo da pragmática .......................... 31

2.4 A concepção extrinsecalista da pragmática ........................................ 32

2.5 A concepção intrinsecalista da pragmática ......................................... 32

2.6 A concepção integrada da pragmática ................................................. 33

2.6.1 A argumentação discursiva .......................................................... 34

2.6.2 Os marcadores argumentativos ................................................... 35

2.6.3 A natureza polifónica da enunciação .......................................... 37

2.7 A concepção cognitiva da pragmática ................................................. 38

2.8 As relações da pragmática com as outras disciplinas ........................ 38

2.9 As divisões da pragmática ..................................................................... 39

2.10 Exercícios ................................................................................................ 40

2.11 Bibliografia ............................................................................................. 41

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3 GÉNESE E PRESSUPOSTOS DA PRAGMÁTICA ....................................... 45

3.1 Introdução ................................................................................................ 45

3.2 O projecto pragmatista de Peirce .......................................................... 46

3.3 A faneroscopia de Peirce ....................................................................... 47

3.4 A semiótica de Peirce ............................................................................. 53

3.5 A tríplice tricotomia do signo ............................................................... 57

3.6 O pragmatismo de Peirce e a pragmática ............................................ 60

3.7 Exercícios ................................................................................................. 60

3.8 Bibliografia .............................................................................................. 61

4 PRAGMÁTICA REFERENCIAL, INDEXICAL E ENUNCIATIVA ............ 63

4.1 Objecto e âmbito da pragmática indexical: a questão da referência .. 63

4.2 Aspectos teóricos .................................................................................... 64

4.3 As diferentes modalidades de referência ............................................. 65

4.3.1 A referência absoluta .................................................................... 66

4.3.2 Modalidades de referência relativa: dícticos e representantes 67

4.3.3 Referência metalinguística ........................................................... 71

4.3.4 Referência social ........................................................................... 72

4.3.5 Conclusão ....................................................................................... 72

4.4 A enunciação ........................................................................................... 73

4.4.1 A dupla tese da referencialidade: o representacionismo e a auto-reflexividade ................................................................... 73

4.4.2 A relação enunciado / enunciação: o dictum e o modus .......... 75

4.4.3 Referência, significação, sentido e cor do enunciado .............. 79

4.4.4 A referencialidade dos signos categoremáticos e dos signos sincategoremáticos ........................................................................ 80

4.4.5 As modalidades de relação do enunciado com a enunciação . 81

4.5 Os indicadores da ostensão de coisas e de estados de coisas ........... 97

4.6 A proposta de Roman Jakobson ............................................................ 98

4.7 Conclusão: subjectivação e construção do mundo do discurso ....... 101

4.8 Exercícios ................................................................................................. 105

4.9 Bibliografia .............................................................................................. 106

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5 PRAGMÁTICA ACCIONAL ........................................................................... 109

5.1 Objecto e âmbito da pragmática accional ............................................ 109

5.2 A proposta de John L. Austin ................................................................ 110

5.2.1 Enunciações constatativas e performativas ............................... 111

5.2.2 Critérios de sucesso dos enunciados performativos ................. 112

5.2.3 A extensão dos critérios do sucesso dos enunciados performativos ................................................................................. 114

5.3 Comentários críticos ............................................................................... 121

5.3.1 Acerca da distinção entre os valores locutório, ilocutório e perlocutório dos enunciados ................................... 121

5.3.2 Acerca da classificação dos actos de linguagem ...................... 122

5.3.3 Acerca das regras da linguagem .................................................. 123

5.3.4 A propósito dos actos ilocutórios primários e dos actos ilocutórios expressos ..................................................................... 127

5.3.5 Acerca da natureza dos actos ilocutórios ................................... 129

5.3.6 Acerca dos actos de linguagem indirectos ................................. 134

5.4 Conclusão ................................................................................................. 137

5.5 Exercícios ................................................................................................. 138

5.6 Bibliografia .............................................................................................. 139

6 A PRAGMÁTICA INFERENCIAL ................................................................. 141

6.1 As inferências por implicitação ............................................................ 143

6.1.1 As regras da implicitação conversacional .................................. 147

6.1.2 Tipos de implicitação .................................................................... 151

6.1.3 As características fundamentais da implicitação ...................... 152

6.1.4 A crítica de Sperber e Wilson ...................................................... 154

6.2 A pressuposição ....................................................................................... 155

6.2.1 Introdução ....................................................................................... 155

6.2.2 Características das pressuposições ............................................. 161

6.2.3 Os testes da pressuposição: as operações de negação e de interrogação ............................................................................ 165

6.2.4 Os dispositivos desencadeadores de pressuposições ............... 166

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6.2.5 O pressuposto e o implícito ......................................................... 167

6.2.6 O processo de pressuposição e as regras de encadeamento dos enunciados ............................................................................... 170

6.3 Exercícios ................................................................................................. 171

6.4 Bibliografia .............................................................................................. 172

7 A PARTITURA INVISÍVEL: INTRODUÇÃO À PRAGMÁTICA CONVERSACIONAL ...................................................................................... 175

7.1 Introdução ................................................................................................ 175

7.2 A conversa: uma lógica da sociabilidade ............................................ 176

7.3 Definição de conversa ............................................................................ 179

7.4 Análise conversacional, análise do discurso e análise textual ......... 181

7.4.1 A natureza interdisciplinar da análise conversacional ............. 182

7.4.2 A análise conversacional, uma abordagem interactiva da prática verbal ..................................................................... 184

7.4.3 Implicações da perspectiva interaccional .................................. 188

7.4.4 Os elementos da interacção conversacional .............................. 190

7.4.5 As modalidades materiais da interacção conversacional ........ 194

7.5 Os problemas da constituição do corpus ............................................. 195

7.6 Algumas convenções de transcrição .................................................... 196

7.7 Os dispositivos de estruturação da conversa ....................................... 198

7.7.1 Os dispositivos da coerência das interacções conversacionais 198

7.7.2 A gestão da alternância das tomadas de palavra ....................... 199

7.7.3 A gestão do encadeamento das réplicas: os pares adjacentes . 200

7.7.4 Conclusão ....................................................................................... 203

7.8 As etapas da conversa ............................................................................. 204

7.8.1 A abertura e o fecho ...................................................................... 204

7.8.2 O corpo de conversa ...................................................................... 207

7.9 A organização da conversa .................................................................... 208

7.9.1 A interacção ................................................................................... 208

7.9.2 As sequências ................................................................................. 209

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7.9.3 A troca ............................................................................................. 209

7.9.4 A intervenção ................................................................................. 210

7.9.5 O acto de linguagem ..................................................................... 210

7.10 Exercícios ................................................................................................ 211

7.11 Bibliografia ............................................................................................. 212

8 CONCLUSÃO: ACERCA DO CONTEXTO .................................................. 219

8.1 As funções do contexto .......................................................................... 220

8.2 Os diferentes tipos de contexto ............................................................. 221

9 BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 225

10 LÉXICO .......................................................................................................... 227

11 ÍNDICE ANALÍTICO E ONOMÁSTICO ...................................................... 233

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1.

PREFÁCIO _________________________

Para Aristóteles o homem é o ser dotado de linguagem; desde o primei-

ro instante da vida até ao seu último suspiro, a linguagem forma o fundo sobre o qual se projecta e se recorta a experiência possível do mundo. Sem-pre que procura pensar a sua existência e a sua presença ao mundo, não é a realidade em si que o homem encontra, mas a linguagem, o dizível, que, de maneira incontornável, se lhe apresenta como objecto de questionamento e de reflexão.

Cada época tem equacionado de diversas maneiras a questão da lingua-gem, em função das suas preocupações dominantes, com a consequente des-coberta da sua natureza e das suas funções. Nos últimos dois séculos, duas concepções têm dominado o horizonte das interrogações sobre a linguagem: a concepção referencial e a concepção simbólica. Tem por isso sido esque-cida, ou pelo menos relegada para segundo plano, a dimensão interactiva, de que a pragmática actualmente procura dar conta.

1.1 A concepção referencial

A concepção referencial corresponde à visão que espontaneamente e de maneira não reflectida temos da linguagem. Consideramos habitualmente a linguagem como um conjunto de denominações que utilizamos para desig-nar, referir ou representar o mundo. Deste ponto de vista, a linguagem teria sentido pelo facto de, quando falamos, designarmos coisas, objectos, pes-soas, acontecimentos, estados das coisas, das pessoas e dos acontecimentos, numa palavra, pelo facto de nos referirmos ao mundo. Há, nesta concepção, o pressuposto de que as palavras são como etiquetas que colocamos àquilo a que nos referimos.

Foi esta concepção espontânea que predominou nas atitudes positivistas e neopositivistas modernas, correntes que foram mais sistematicamente for-muladas, a partir de 1923, pelos autores do Círculo de Viena (Wiener Kreis). Dos autores que mais insistentemente sublinharam esta concepção da lingua-gem destacaram-se sobretudo os nomes de Moritz Schlick, nomeado em

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1922 professor de filosofia e de história das ciências da Universidade de Viena, Gödel, Waismann, Kaufmann, O. von Neurath, Ayer, Carnap, Frank, Russell.

Em Berlim, a Sociedade para uma Filosofia Empírica (Gesellschaft für Empirische Philosophie) e a revista Erkenntnis, fundada em 1929, em con-junto com o Círculo de Viena, defenderam uma concepção semelhante da linguagem, com a finalidade de promover uma filosofia crítica da ciência, que levasse a sério as descobertas das ciências empíricas, liberta das concep-ções filosóficas apriorísticas da tradição metafísica do passado. Reichenbach, F. Kraus assim como os lógicos polacos A. Tarski e Adjukievicz figuraram também entre os autores mais importantes deste movimento.1 É nos 8 volumes das Actas do Congresso Internacional de Filosofia Científica, realizado em 1935, que encontramos expostas as principais propostas do positivismo lógico.

O positivismo lógico não constitui propriamente uma doutrina homogé-nea, vindo antes a dar origem a uma grande diversidade de reinterpretações e de diferenciações, cada uma propondo diferentes maneiras de equacionar as dificuldades lógicas e práticas com que esta concepção referencial da lingua-gem inevitavelmente se depara. Uma das mais célebres repercussões das ideias do positivismo lógico é a que encontramos em duas obras marcantes do pensamento do nosso tempo: no Tractatus Logico-Philosophicus de Lwdvig Wittgenstein (1889-1951), redigido em 1918 e publicado pela pri-meira vez em 1921, e no pragmatismo de Charles Sanders Peirce (1839--1914).

Para a concepção referencial da linguagem, os eventuais problemas da linguagem e da comunicação, as dificuldades de entendimento entre os inter-locutores, resultariam da plurivocidade das línguas naturais, do facto de utili-zarmos um mesmo nome para designar objectos diferentes e de empregar-mos vários nomes para designar um mesmo objecto. A plurivocidade seria, por isso, uma deficiência das linguagens naturais, tornando-as impróprias para a formulação de proposições unívocas como as que o conhecimento científico procura formular. Para o positivivismo lógico importa encontrar uma linguagem artificial adequada às exigências de rigor da ciência moder-na, considerando que o ideal da linguagem humana seria o de constituir um sistema de correspondências unívocas entre as palavras e o mundo. O discur-so desempenharia, por conseguinte, uma função predominantemente instru-mental; seria o meio pelo qual o homem designa o mundo.

1 A partir de 1930, com a chegada ao poder dos nazis, a maior parte dos membros do Círculo

de Viena emigrou para os países nórdicos e para os Estados Unidos da América, proporcio-nando deste modo a internacionalização da sua influência.

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1.2 A concepção simbólica da linguagem

A outra concepção moderna da linguagem considera a sua dimensão predominantemente simbólica, sublinhando a sua autonomia em relação ao mundo a que se refere. Como, ao contrário do que se passa com as outras espécies, o mundo não está imediatamente presente ao homem, mas depende da constituição de formas simbólicas que presentificam o mundo ausente, a linguagem desempenharia o papel indispensável e incontornável de media-ção do homem ao mundo. (Cfr. Husserl 1969, 27-121)

Mas a função simbólica da linguagem é, por sua vez, complexa, uma vez que, além de uma função referencial, compreende igualmente funções de significação, funções expressivas e está na origem da elaboração do sentido que o mundo tem para o homem. (Deleuze 1969, 22-35)

Os signos da linguagem não designam os objectos singulares que exis-tem no mundo, mas conceitos ou significações que os subsumem e denotam. É por isso que podemos representar vários objectos diferentes por uma mesma palavra, tal como podemos representar um mesmo objecto por pala-vras diferentes.

A descoberta da autonomia da função significante da linguagem em relação à sua função designadora ou referencial é indissociável da ruptura para com a concepção mítica da linguagem e é, por conseguinte, contempo-rânea do surgimento da racionalidade moderna. Enquanto a racionalidade mítica se alimenta da confusão entre as palavras e o mundo, não existindo assim uma clara autonomia das palavras em relação às coisas que elas designam, para a racionalidade moderna a linguagem apresenta uma espes-sura e uma autonomia próprias, na medida em que é autónoma em relação ao mundo que designamos quando falamos. Para o pensamento mítico, nomear as coisas é de algum modo atingi-las na sua própria essência. É, portanto, da crítica desta indistinção entre a palavra e o mundo que a racionalidade moderna emerge e se alimenta.

Já no Crátilo, Platão (1971a) descrevia de maneira exemplar esta crítica. Nesse diálogo são discutidas, de maneira ainda hoje inultrapassada, as duas concepções da linguagem que atravessaram toda a história da filosofia oci-dental: a posição naturalista, segundo a qual as palavras seriam fundadas na natureza das coisas designadas, e a posição convencionalista, segundo a qual as palavras seriam convenções humanas, socialmente fundamentadas e, por conseguinte, arbitrárias.

Além da função referencial ou designadora e da função significante, a linguagem presta-se igualmente à expressão das relações que o homem esta-belece com o mundo. Deste ponto de vista, o homem tanto pode expressar diferentes maneiras de se relacionar com uma mesma realidade como expressar uma mesma maneira de se relacionar com realidades diferentes.

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Mas, ao falar, o homem não se limita a designar, a significar e a mani-festar a sua relação com um mundo preexistente: constrói também sentidos novos para o mundo, a partir da sua experiência. Faz perguntas e responde--lhes, faz convites e aceita-os, faz pedidos e cumpre-os, dá ordens e acata-as, dá conselhos e aceita-os, dá avisos e respeita-os, pronuncia sentenças que alteram o estado de coisas existente e faz declarações que comprometem o locutor em relação ao mundo experienciado. Os sentidos que, ao falar, o homem elabora transformam, de algum modo, o seu mundo intrasubjectivo, o mundo intersubjectivo e o mundo natural que o rodeia.

Deste ponto de vista, ao contrário da concepção referencial da lingua-gem, o facto de o homem não utilizar signos unívocos não é uma deficiência, mas o modo normal do uso da linguagem. As palavras não são, por conse-guinte, simples etiquetas que colamos a objectos singulares existentes nos diferentes mundos, mas construções mentais, culturalmente instituídas, des-tinadas a estabelecer relações de mediação do homem com o mundo, nos seus aspectos significantes e expressivos.

O mundo não é assim, para a concepção simbólica da linguagem, um dado, mas um constructum, o resultado da própria elaboração linguística da experiência do mundo. A plurivocidade não é, portanto, para esta concepção, uma insuficiência, mas a maneira normal de significarmos, de exprimirmos, de elaborarmos ou construirmos sentidos para o mundo que nos rodeia, a que pertencemos e em que vivemos. Colocamos nomes diferentes a uma mesma coisa, porque a compreendemos ou subsumimos em conceitos diferentes e porque nos relacionamos de maneiras diversas com ela. Damos o mesmo nome a coisas diferentes porque elas são subsumidas por um mesmo con-ceito ou porque exprimimos uma mesma experiência do mundo.

A linguística estrutural, que se inspira na intuição que Ferdinand de Saussure formulou e que ficou registada nas notas publicadas pelos seus alu-nos no Curso de Linguística Geral, radicalizou a autonomia da linguagem tanto em relação ao referente, como em relação ao falante, ao considerar que a significação, ao contrário do que pretende a concepção espontânea da lin-guagem, não é constituída, pela fala (parole), mas pelo sistema ou pelo códi-go da língua (langue). (Saussure 1978)

A língua é assim entendida pela linguística estrutural como um sistema constituído pelo jogo das relações paradigmáticas e sintagmáticas que formam a língua. Deste modo, a língua não é um simples elenco de designações, mas é formada por um conjunto de diferenças entre os signos pertencentes a um mesmo paradigma e pelo conjunto das regras que determinam as combinações ou as articulações das unidades verbais, ao longo da cadeia da frase.

Para a concepção estrutural da linguagem, a significação não é, por con-seguinte, transcendente, mas imanente ao sistema da língua, uma vez que resulta do conjunto das relações, tanto paradigmáticas como sintagmáticas,

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por ele permitidas. Cada uma das unidades do sistema adquire a significação que está associada ao lugar deixado vazio pelas outras unidades com as quais pode permutar e às possibilidades, permitidas pelas regras sintácticas, de combinação ou de articulação com outras unidades. Este lugar e estas pos-siblidades são, por conseguinte, determinados pelas duas modalidades de relações que definem o sistema da língua: pelas relações paradigmáticas, que se estabelecem entre cada uma das unidades e as unidades in absentia com as quais forma um paradigma e pode permutar, e pelas relações sintagmáti-cas entre cada uma das unidades do sistema e as unidades in praesentia com as quais se pode combinar ou articular para formar aquilo que designamos por sintagma.

Tanto as relações paradigmáticas como as relações sintagmáticas situam-se em todos os níveis e em ambos os planos, o do significante e o do significado, do sistema. Assim, ao nível fonológico, de natureza infra-signi-ficante, o sintagma /kaza/ significa em português aquilo que significa, não em função de qualquer semelhança com a realidade a que se refere, mas em função do lugar ocupado por cada uma das unidades fonológicas que inte-gram este sintagma.

Este lugar é determinado, paradigmaticamente, pelo conjunto das uni-dades com as quais cada uma das unidades presentes pode permutar dentro do sistema fonológico da língua portuguesa. Assim, por exemplo, como falantes da língua portuguesa, sabemos que o /z/, ao permutar com alguns fonemas, produz determinadas significações, ao passo que, ao permutar com outros fonemas, não produz qualquer significação viável:

/ka z a/ “casa” ? b “caba” ? d “cada” ? f “cafa” s “caça” t “cata” p “capa”

Cada um dos fonemas assinalados sincretiza determinados traços per-

tencentes ao sistema fonológico da língua portuguesa. Assim, /z/ é um fone-ma dental, fricativo e sonoro que se relaciona in absentia com /s/, fricativo e surdo, por partilhar com ele o traço pertinente da fricatividade e não partilhar o traço da sonoridade. Como podemos observar, embora alguns fonemas pudessem logicamente existir, não são realizados dentro do sistema fonoló-gico do português. É o caso, por exemplo, de /kaba/, que não existe como vocábulo da língua portuguesa, muito embora pudesse existir. Este fenó-meno permite compreender e antecipar a possibilidade criativa da língua,

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tornando possíveis as realizações que, embora não existam, poderiam ser actualizadas dentro do sistema da língua.

Também ao nível monemático, nível que por sua vez é de natureza significante, verificamos que cada unidade verbal recebe significação tam-bém do lugar deixado vazio pelas outras unidades com as quais pode per-mutar. Assim, no sintagma «a mesa é grande», podemos observar que cada uma das unidades estabelece relações paradigmáticas com outras unidades com as quais constitui um paradigma:

A mesa é grande A cadeira pequeno/a O banco alto/a A porta baixo/a A secretária de madeira A rua de ferro A casa de plástico O homem preto/a O gato branco/a etc. de cabeceira de cozinha da sala de jantar etc.

É fácil compreender que as unidades com as quais «grande» pode per-

mutar pertencem a diferentes paradigmas. Assim, «pequena, grande, alta, baixa» podem permutar entre si por pertencerem ao paradigma a que pode-mos dar o nome de “dimensão”, ao passo que «preta, branca, castanha, ver-de, etc.» podem permutar entre si por pertencerem a um outro paradigma a que poderemos dar o nome de “cromático”, «de cabeceira, de cozinha, de sala de jantar, etc.» podem permutar entre si pelo facto de fazerem parte de um paradigma a que podemos dar o nome de “funcional”, e assim por diante. Por seu lado, a unidade «mesa» pode permutar com «cadeira, banco, secretá-ria» pelo facto de partilhar com estas unidades um mesmo paradigma, a que podemos dar o nome de “objecto”, ao passo que poderá permutar com «homem, gato», por pertencerem ao paradigma da “animalidade”.

Também no plano do significado, ou do conteúdo para que remetem as formas significantes, encontramos as duas modalidades, paradigmáticas e sintagmáticas, de relações entre as unidades que integram o sistema. Assim, por exemplo, podemos observar que o conceito de “neve” não recorta os mesmos traços sémicos numa língua esquimó e numa língua latina, que o contínuo cromático do arco-íris não é recortado do mesmo modo em unida-des pertinentes para todos os sistemas linguísticos.

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Como vemos, para a concepção estrutural da linguagem, falante/ouvinte é todo aquele que possui o domínio do sistema e, nessa medida, tem a facul-dade de o utilizar ou actualizar. Para distinguir entre o domínio do sistema e a sua actualização, Ferdinand de Saussure propôs a distinção entre língua (langue) e fala (parole). Embora em sentido diferente2, Chomsky propôs os conceitos de competência (competence) e desempenho (performance) para dar conta respectivamente da capacidade de produzir e reconhecer frases bem formadas do ponto de vista do sistema linguístico e da sua realização. (Chomsky 1957; 1975) É a competência, estrutura constituída pelo conjunto das regras que permitem a realização de um número ilimitado de frases apropriadas, que determina o desempenho dos falantes/ouvintes, embora só possamos ter acesso à competência através da observação do seu desempe-nho.

Vemos assim que a concepção estrutural da linguagem tem uma visão imanentista da significação. Dar conta da significação é, deste ponto de vista, descobrir as regras do sistema da língua que os falantes/ouvintes pos-suem interiorizadas, enquanto competência, através da observação daquilo que eles realizam, do seu desempenho.

A concepção estrutural da linguagem viria a ser radicalizada por Louis Hjelmslev, que definiu a ciência da linguagem como uma matemática da lín-gua ou uma glossemática. (Hjelmslev 1971)

1.3 A dimensão interlocutiva da linguagem «La pragmatique n’est pas le complément d’une logique, d’une syntaxe et d’une sémantique, mais au contraire l’élément de base dont tout le reste dépend.» (Deleuze & Guattari 1980: 184)

Embora indiscutivelmente verdadeiras, as concepções referencial e sim-bólica da linguagem, que acabámos de apresentar brevemente, não explicam cabalmente um grande número de fenómenos, como vamos ver em seguida. As dificuldades destas concepções provêm, nomeadamente, do facto de situarem a linguagem a um nível abstracto e de não fornecerem modelos que dêem conta da sua relação com a sua efectiva realização por parte dos falan-tes. Não permitem compreender o facto incontornável de que a linguagem é, antes de mais, prática discursiva, produção de enunciados com sentido, inti-

2 Pelo menos no sentido em que, para Saussure, a langue é uma instituição social e, por con-

seguinte, um sistema imposto pela sociedade aos falantes e interiorizado por estes no decur-so do processo de socialização, e a parole é a sua execução ou realização, ao passo que, para Chomsky, a competence é a capacidade congénita ou o habitus inato que os seres humanos possuem para produzirem e interpretarem frases correctas, e a performance é a actualização dessa capacidade inata.

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mamente associada a um processo interlocutivo, inscrita numa prática con-creta de troca de palavra entre interlocutores. Se a língua é um sistema, importa compreender como é que os falantes fazem uso dele e a sua relação com a prática discursiva.

O mundo, o homem e a linguagem não são entidades singulares e indi-ferenciáveis. Quando falamos, não nos limitamos a actualizar ou a utilizar o sistema da língua. Trocamos com outros falantes linguagens diversas, adap-tamos discursos ao mundo e à heterogeneidade dos falantes que encontra-mos, acerca de uma multiplicidade de mundos diferenciados. Uma teoria explicativa não redutora da linguagem deve, portanto, permitir dar também conta desta dimensão interlocutiva, tomando em consideração a multiplici-dade de linguagens, de interlocutores e de mundos a que os falantes se refe-rem. Damos o nome de espaço interlocutivo à relação de troca de discursos entre homens situados num espaço específico, o espaço simbólico, distinto tanto do espaço físico como do espaço social.

Deste ponto de vista, a pluralidade das significações e a diversidade dos sentidos apresenta a característica notável de ser um confronto de lingua-gens, constituindo por isso a interlocução um espaço agonístico ou uma logomaquia, uma luta de discursos.3

A relação interlocutiva é irredutível a qualquer das outras modalidades da linguagem, uma vez que nenhum dos outros aspectos permite dar conta da relação que se estabelece entre interlocutores dotados cada um de uma expe-riência do mundo própria. É no seio desta relação interlocutiva que o homem instaura o espaço simbólico que precede e constitui a experiência do mundo natural e do mundo social.

É ao estudo da dimensão interlocutiva da linguagem e da sua relação com as outras dimensões da linguagem que a pragmática se dedica.

1.4 Actualidade da dimensão interlocutiva da linguagem

A dimensão interlocutiva da linguagem não é evidentemente uma des-coberta recente; esteve desde sempre presente tanto na prática discursiva como na reflexão que, desde sempre e em todas as sociedades, a acompa-nhou. No entanto, existem actualmente razões teóricas e culturais que acaba-ram, a partir de meados dos anos 70 do século passado, por colocá-la de novo em relevo.

As mais recentes redes planetárias da informação põem hoje quase ins-tantaneamente ao alcance da humanidade dispositivos que, em certa medida,

3 Do grego agonia, que quer dizer luta, confronto. Logomaquia, do grego logos, discurso,

fala, e maquia, combate, campo de batalha, debate, é o termo aqui utilizado para designar a natureza conflitual da troca de palavras. Cfr. Rodrigues 1997, 18 e 40.

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consumam a transformação técnica da experiência do mundo em experiência da linguagem. Deste modo, tanto a relação dos homens com o mundo da natureza, como as relações dos homens consigo próprios e com os outros, pelo facto de serem mediadas pela experiência da linguagem, prestam-se a ser cada vez mais encenadas por estratégias comunicacionais tecnicamente elaboradas pelos dispositivos da informação mediática. As diferentes visões do mundo, que formam o mosaico cultural da humanidade, confrontam-se, por isso, hoje num espaço intercultural, de natureza agonística, que ultrapas-sa e atravessa em todos os sentidos as fronteiras territoriais das comunidades tradicionais.

Por ter como objecto o estudo dos processos e das formas de interlocu-ção, a pragmática fornece instrumentos importantes para a compreensão da viragem logotécnica do mundo contemporâneo4.

Apesar da actualidade das questões que a pragmática estuda, os proces-sos e os procedimentos de interlocução não são obviamente exclusivos do nosso tempo. Acompanharam, desde a sua origem, a prática discursiva e foram objecto de reflexão desde a aurora do pensamento racional, do pensa-mento que procura definir as condições de possibilidade, não só de um conhecimento adequado, mas também do estabelecimento de entendimentos entre os interlocutores acerca daquilo que é justo, bom e belo. Daí a íntima relação entre o objecto de estudo da pragmática e as questões da epistemolo-gia, da ética e da estética.

Já nas disputas com os Sofistas, Platão procurava mostrar a diferença entre, por um lado, as aparências ilusórias e manipuladoras de um uso retó-rico da linguagem e, por outro lado, o acesso à contemplação da verdade do ser. Mas o próprio Platão, ao propor o diálogo maiêutico como o método do conhecimento da verdade, do desvendamento do ser, e da denúncia dos mecanismos discursivos de manipulação e de coacção, não podia deixar de pôr também em cena dispositivos logomáquicos visando o convencimento dos seus interlocutores.5

A exigência destas questões tornou-se hoje premente, não só porque, como já vimos, assistimos à proliferação de sofisticadas máquinas logotécni-cas de propaganda, de sedução e de confronto permanente de discursos no espaço mediático da informação, mas também porque, desde Nietzsche (1844-1900), é a própria possibilidade de conhecimento do ser uno, indivisí-vel e universal que é posta sistematicamente em causa, aparecendo a verdade também como resultado da elaboração de efeitos heterogéneos de sentido.

4 Utilizo este termo para designar os procedimentos técnicos de tratamento e encenação dos

discursos, visando a elaboração de efeitos de sentido e a sua imposição (cfr. Rodrigues 1997, 74-95, 116 ss., 122, 183).

5 Cfr. Platão, Gorgias.

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Com a crise moderna da investigação metafísica, parece esvair-se hoje a dis-tinção entre o discurso verdadeiro e o discurso sedutor da manipulação. As consequências desta consumação moderna da metafísica não se limitam ao domínio epistemológico; os seus efeitos estendem-se igualmente às esferas científica, política, ética e estética, repercutindo-se sobre todos os domínios da experiência individual e colectiva. O entendimento entre os indivíduos e entre os povos é, por conseguinte, um processo muitas vezes difícil e a inter-compreensão tornou-se uma questão problemática.

Assistimos portanto hoje ao surgimento de uma nova época marcada pelo retorno da pragmatização das questões fundamentais que o homem se colocou desde a aurora do pensamento racional. É muito provável que da resposta a estas questões dependa o sentido do nosso presente e do nosso futuro.

A reflexão metafísica, que se desenvolveu, desde a antiga Grécia, ao longo dos últimos vinte e cinco séculos, procurava fundamentar a verdade una, indivisa e imutável do ser, destrinçando-a de entre a multiplicidade heteróclita das aparências enganadoras. Desta reflexão esperou-se a abertura do caminho para o domínio racional do ser e para a libertação do mundo dos homens, tanto em relação às visões enganadoras dos mitos e às aparências dos sentidos, como em relação às concepções ditadas pelas paixões e pelos interesses dos diferentes poderes que coagem o livre exercício da razão.

A viragem da modernidade, que se desenvolveu na Europa a partir do século XVII, coincidiu com a pretensão de constituição de um duplo proces-so de emancipação. Propuseram-se, por um lado, sistemas totalizantes que visavam libertar o homem do peso da tradição e constituir critérios univer-sais de racionalidade, regras de descoberta da verdade, do bem e do belo, fundadas na indagação racional tanto do mundo natural, como do mundo da experiência subjectiva e do mundo da experiência intersubjectiva. Procedeu--se, por outro lado, à consumação técnica das aspirações de adequação do mundo aos projectos humanos, através de uma progressiva redefinição ins-trumental dos saberes, através de conhecimentos tecnicamente operacionais, fundamentados na perscrutação dos fenómenos e das regras de funciona-mento tanto do mundo natural como do mundo humano.

Esta viragem deu origem à invenção de um mundo técnico-científico cada vez mais autónomo da experiência humana do mundo, à definição ins-trumental dos saberes, à proliferação das teorias explicativas, com a conse-quente segmentação das ciências, à pretensão de elaboração científica de sistemas políticos.

A partir do final do século XIX, avolumou-se, no entanto, a suspeita de que os conhecimentos científicos e os saberes instrumentais não são simples espelhos em que a realidade é reflectida, não são meras correspondências especulares do mundo. A realidade deixou de ser considerada apenas como

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um dado disponível para ser descoberto pelo cientista e traduzido pela lin-guagem, enquanto a própria linguagem deixou de ser encarada como um simples repositório de signos transparentes destinados a espelhar a realidade.

Múltiplas experiências do nosso século encarregar-se-iam de desmentir a visão moderna de uma ciência prometeica e a concepção especular da lin-guagem. As próprias descobertas científicas e a extraordinária aceleração das invenções técnicas dos últimos séculos, em vez de instaurarem o consenso universal com que sonhavam os Enciclopedistas do século XVIII, deram ori-gem a uma multiplicidade de interpretações e de sentidos divergentes e acar-retaram a falência dos sistemas totalizantes, tanto no domínio científico, como nos domínios ético e estético que foram sendo elaborados ao longo da modernidade. Acabaram assim por se avolumar as incertezas perante as urgentes decisões que temos de tomar nos mais variados domínios, sem que encontremos aparentemente um rumo consensual, unanimemente aceite por todos.

Apesar de, nos mais variados domínios da experiência, a nossa época ser herdeira das construções da modernidade e do progresso, as actuais con-cepções antagónicas da vida individual e da vida colectiva põem em con-fronto, por vezes de maneira violenta e aparentemente insolúvel, as convic-ções e os interesses dos indivíduos, dos povos, das raças, das religiões, das visões do mundo e da vida.

São inúmeros os domínios em que este confronto se manifesta. Basta recordar a dificuldade de encontrar hoje uma resposta consensual para as interrogações que se prendem com o sentido do universo e da vida, com os modelos da vida colectiva, com as razões para falar e para agir.

Por um lado, tornou-se hoje difícil fundamentar respostas consensuais para as grandes interrogações acerca do sentido da vida e da morte, do amor e do ódio, do belo e do feio. Mas, por outro lado, tornou-se impossível res-taurar os procedimentos de legitimação que, ainda há pouco tempo, eram aceites como indiscutíveis, uma vez que deixaram de oferecer uma resposta adaptada às múltiplas interrogações do presente.

As normas jurídicas que, pelo menos nas sociedades ocidentais, pare-ciam fornecer um amplo espectro consensual de discursos acerca da vida e da morte, tornaram-se nos últimos anos um campo aberto de aporias e de dissensões perante as consequências das intervenções técnicas da biologia em domínios como o da reprodução ou o da morte medicamente assistida. No campo político, as normas que, até há poucos anos, serviam de regras consensuais para a regulação dos conflitos são hoje discutidas e postas sis-tematicamente em causa pelo confronto com outras concepções da vida colectiva que pretendem afirmar a sua legitimidade, tanto em relação às comunidades nacionais como em relação à comunidade internacional. O ideal de progresso, que serviu de orientação ao desenvolvimento tecnológico

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dos últimos séculos, acabou por legitimar inúmeros atentados contra o meio ambiente, dando origem a concepções de difícil conciliação e entendimento entre a preservação dos modos de vida tradicionais, os imperativos da modernização e a responsabilidade perante as gerações futuras. A própria democracia está hoje na origem de leituras antagónicas, depois de, em nome do povo, também se terem perpetrado inúmeros crimes contra a humanidade.

A pragmática não tem evidentemente uma resposta substancial para todas estas questões, mas pode pelo menos mostrar-nos os mecanismos que permitem redescobrir o método a seguir nos domínios do confronto das razões e da intercompreensão acerca das interrogações urgentes com que estamos todos confrontados. Este sentido é, para a pragmática, o de uma comunidade de homens fazendo livre uso da sua competência inalienável de seres dotados de linguagem e da consequente capacidade para se entenderem acerca das questões que os inquietam e do futuro que pretendem construir em conjunto. É de facto dos procedimentos de intercompreensão que pode-remos esperar obter alguma luz para as questões que nos atormentam no pre-sente e para o caminho que estamos destinados a percorrer em conjunto. (Parret 1991)

A actualidade histórica desta disciplina é, por conseguinte, devida a uma progressiva pragmatização da experiência, à recente redescoberta de que as nossas relações com o mundo estão inscritas de maneira inalienável na experiência da linguagem e de que a natureza destas relações depende dos procedimentos inerentes à interlocução visando o entendimento recíproco e mútuo da comunidade dos homens.

Além desta descoberta da natureza positiva e inalienável dos procedi-mentos da interlocução, a pragmática não pode também esquecer a existência de mecanismos insidiosos, e muitas vezes subtis, de coacção, procedimentos que contrariam as exigências incontornáveis da liberdade nas trocas recíprocas da palavra. (Habermas 1987)

Mas há também razões teóricas para a recente redescoberta da dimensão interlocutiva da linguagem. Embora essas razões sejam estudadas de maneira mais sistemática nos próximos capítulos, convém tê-las presentes desde já, de modo a compreendermos o sentido e a actualidade do seu estudo. Como vimos, tanto as abordagens europeias como as abordagens americanas da linguística estrutural acentuaram a importância do sistema em detrimento do uso que dele fazemos. Com esta supremacia dada ao sistema, esquecemos, durante muito tempo, que o sentido também resulta da maneira como os falantes, em cada acto de linguagem, colocam o discurso em situação. Den-tro das abordagens estruturalistas da linguagem, não é possível dar conta das variações de sentido que uma mesma expressão pode adquirir consoante o contexto em que é usada, explicar o facto de uma mesma expressão poder ser usada com sentidos diferentes e até antagónicos, consoante as situações

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interlocutivas. Como compreender que o enunciado: «que lindo dia!» umas vezes queira dizer que o locutor acha o dia bonito e outras vezes queira dizer ironicamente exactamente o contrário, que está um dia péssimo? Como com-preender, por conseguinte, a diversidade de efeitos de sentido que um mesmo enunciado pode produzir?

1.5 Objectivos deste trabalho

Esta introdução à pragmática visa fornecer o estado da questão da disci-plina. Este objectivo impôs algumas opções.

A preocupação em apresentar, de maneira sucinta e tão clara quanto possível, as perspectivas fundamentais da disciplina, obrigou a deixar de lado desenvolvimentos mais elaborados, embora sejam referidas obras onde poderão ser encontrados os desejáveis aprofundamentos e as elaborações críticas.

O domínio da pragmática, pela sua relação com a lógica, presta-se a um trabalho sistemático de formalização. Tratando-se, no entanto, de uma ini-ciação, seria desaconselhável uma formalização lógica demasiado complexa que exigiria da parte do estudante uma formação avançada assim como um domínio rigoroso das diferentes perspectivas e dos conceitos. Este esforço, ainda que necessário a um nível mais aprofundado, só tem sentido, por con-seguinte, depois de correctamente compreendidas e assimiladas as perspecti-vas que as fórmulas se destinam a exprimir com clareza. Pretendemos evitar que o estudante caia num trabalho de características meramente escolásticas que poderiam ter como resultado a esterilização do seu entendimento da matéria e o embotamento da criatividade.

Mais uma advertência ainda. Apesar do reconhecimento do contributo positivo que a pragmática pode oferecer aos debates contemporâneos, não pretendemos de modo algum considerá-la como a resposta última e defini-tiva às interrogações que se colocam tanto no domínio do conhecimento e da percepção, como nas esferas da vontade, da acção. Não se trata, por conse-guinte, de propor aqui um novo sistema unificador da experiência. Trata-se, antes, de fornecer os pontos de referência de uma reflexão em curso que tenta tomar a sério a nossa condição de seres inscritos na linguagem, enten-dida numa das suas vertentes práticas, a da experiência interlocutiva.

A abordagem da pragmática da comunicação pressupõe o conhecimento das outras vertentes da linguagem, elaboradas por outras disciplinas, nomea-damente em semiótica, fonologia, morfologia, semântica e sintaxe, discipli-nas que terão levado os estudantes ao domínio das teorias do signo, em geral, e do signo linguístico, em particular.

Para a primeira edição deste livro, tive o privilégio de contar com os contributos da leitura atenta dos meus colegas do Departamento de Ciências

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da Comunicação, João Sáàgua, Maria Lucília Marcos e Ester Marques. Esta edição, além de inevitáveis correcções, apresenta uma actualização substan-cial, para a qual muito contribuíram não só a experiência docente dos últi-mos anos, mas também as sugestões preciosas dos meus colegas do Departa-mento de Linguística da Universidade Nova de Lisboa, Maria Henriqueta Campos e Clara Nunes Correia. Gostaria de agradecer a todos as críticas e o trabalho paciente que muito contribuíram para corrigir deficiências e para encontrar a solução mais adequada para muitas dificuldades encontradas na elaboração deste trabalho. As deficiências, que certamente ainda persistem, são da exclusiva responsabilidade do autor. A presente edição resultou de uma prática didáctica de vários anos e do diálogo estabelecido com os estu-dantes. É a eles que este livro é dedicado.

1.6 Bibliografia

CHOMSKY, N. (1957) – Syntactic Structures, The Hague, Mouton and Co. CHOMSKY, N. (1975) – Aspectos da Teoria da Sintaxe, Coimbra, ed. Arménio

Amado (original: Aspects of the Theory of Syntax, Cambridge, Mass., The MIT Press).

DELEUZE, G. (1969) – Logique du Sens, Paris, ed. de Minuit. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1980) – Postulats de la Linguistique, in Mille

Plateaux, Paris, ed. de Minuit, páginas 95 e ss. HABERMAS, J. (1987) – Théorie de l’Agir Communicationnel, vol. 1, Paris,

ed. Fayard. HJELMSLEV, L. (1971) – Prolégomènes à une Théorie du Language, Paris, ed. de

Minuit (original dinamarquês: Omkring Sprongteoriens Grundlaeggelse, Copenhaga, Ejnar Munksgaard, 1943)

HUSSERL, E. (1969) – Recherches Logiques, 3 volumes, Paris, P.U.F. PARRET, H. (1991) (org.) – La Communauté en Paroles. Communication, Consen-

sus, Ruptures, Bruxelas, ed. Mardaga. PLATÃO (1971a) – Cratyle, in Oeuvres Complètes, Bibliothèque de la Pléiade,

Paris, ed. Gallimard, vol. 1, páginas 613 e ss.. PLATÃO (1971b) – Gorgias, in Oeuvres Complètes, Bibliothèque de la Pléiade,

Paris, ed. Gallimard, vol. 1, páginas375 e ss. RODRIGUES, A.D. (1997) – Estratégias da Comunicação, Lisboa, ed. Presença

(2ª ed.). SAUSSURE, F. (1978) – Curso de Linguística Geral, Lisboa, Publ. Dom Quixote,

4ª ed. (original: Cours de Linguistique Générale, 1916). WITTGENSTEIN, L. (1995) – Tractatus Logico-Philosophicus, Lisboa, ed. da

Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed. (original: Logisch-Philosophische Abhandlung, in Annalen der Naturphilosophie, 1921).

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2.

INTRODUÇÃO _________________________

2.1 O termo “pragmática”

Na linguagem corrente, confundimos muitas vezes uma pessoa ou um comportamento pragmático com uma pessoa e um comportamento práticos; é habitual ouvirmos dizer que uma pessoa é muito pragmática, para expri-mirmos a ideia de que se trata de uma pessoa que não se deixa tolher por princípios, ideais ou valores, quando se trata de adequar os meios aos fins visados pelos seus comportamentos. Neste sentido vulgar, uma pessoa prag-mática opõe-se a uma pessoa ideologicamente motivada e um comporta-mento pragmático opõe-se a um comportamento utópico.

Não é neste sentido que utilizamos aqui o termo pragmática. O termo é aqui entendido como um substantivo criado a partir do termo grego he prãgma (h  praÖgma) que, na origem, significava assunto, negócio (Planche 1824). Os Gregos utilizavam a expressão ta;  twÖn Hellénon prágmata (ta; twÖn ‘EllhnikwÖn  pravgmata), para designarem os negócios ou os assuntos que dizem respeito aos Gregos. Daí o termo he pragmatía (hJ  pragmativa), que significava o cuidado, o trabalho ou a aplicação que se põe na confecção ou no fabrico de uma coisa. O verbo pragmateúomai (pragmateuvomai) significava esforçar-se, trabalhar, ocupar-se de alguma coisa, maquinar, tramar, propor-se um ganho numa operação, especular, fazer de uma coisa um meio para obter fortuna ou sucesso. Um negociante ou um traficante era, por isso, chamado hos pragmáteus (o"  pragmavteu") e a alguém que era entendido nos negócios ou hábil na maneira de os conduzir era aplicado o adjectivo de pragmátikos (pragmavtiko"). Não admira que também fosse utilizado o substantivo hos pragmátikos (o{"  pragmavtiko") para designar aquilo que é real ou verdadeiro. Para Dinis, o Areopagita, he pragmatike aletheia (hJ  pragmavtike  alhvtqeia) significava uma verdade real, e para Plutarco, na Vida de Galba, tá pragmátike história (ta;  pragmatikh;  iJstoriva) era uma história verdadeira, contada com toda a riqueza de pormenores concretos, tirados da vida real. Foi deste último sentido que o termo passou para o direito e para a

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filosofia. Em latim, pragmatica era a designação da constituição imperial que

acompanhava as constituições regionais, como no Código Teodosiano do século IV. Mas, já no século I a.C., Attius tinha dado à sua obra didáctica o título de Pragmatica (Machado 1989, 413; Robert 1988, 1505). No século XV, a expressão latina pragmatica sanctio aparecia em textos jurídicos ema-nados de soberanos territoriais, destinados a regulamentar um determinado assunto importante. É o caso, por exemplo, de um édito promulgado em 1438. Em 1461, o termo é pela primeira vez utilizado como substantivo, no título A Pragmática de Burges.

Em 1842, o termo passou a ser utilizado em matemática para referir algo que diz respeito a conhecimentos que permitem uma acção sobre o real ou que é susceptível de determinadas aplicações, o que viria a permitir, a Sartre dizer que «a verdade pragmática substituiu a verdade revelada».

A primeira forma atestada do termo, no século XVI, em português, era premática, vindo, no século XVII, esta forma a coexistir com a forma actual. No capítulo 44 da Arte de Furtar, é já pragmática que aparece com o sentido de norma jurídica: «Haverá quarenta annos, que Castella lançou huma Prag-matica com graves penas, que ninguém vestisse seda, se não fosse fidalgo de bastante renda».

A partir de 1851, o termo pragmatismo, para além do seu uso jurídico, passou também a designar a corrente filosófica predominante nos Estados Unidos da América, segundo a qual o valor prático de uma proposição é considerado como o critério da sua verdade ou, pelo menos, da sua aceitabi-lidade. Deste modo, William James (1842-1910) e Charles Sanders Peirce (1839-1914) consideravam que a ideia que temos de um fenómeno ou de um objecto não é senão a soma das ideias que podemos obter acerca das conse-quências práticas desse fenómeno ou das acções possíveis que podem ser realizadas sobre esse objecto. (Deledalle 1983; Meyer 1994)

No contexto da filosofia pragmatista americana, Charles Sanders Peirce distinguia três dimensões do signo6, a que Charles William Morris daria o nome de dimensões semântica, sintáctica e pragmática. (Morris 1938; 1978; 1994) Para este autor, enquanto a semântica diz respeito à relação dos signos com os objectos para que remetem e a sintáctica à relação dos signos entre si, a pragmática diz respeito à relação de um signo com os seus interpretan-tes.

6 Acerca do pragmatismo de Charles Sanders Peirce, ver capítulo seguinte.