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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS-ARTES
O gesto do artista
(a partir do mito de Midas)
José Jesus
Mestrado em Arte Multimédia
2012
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS-ARTES
O gesto do artista
(a partir do mito de Midas)
Dissertação orientada pelo Prof. Tomás Maia
José Jesus
Mestrado em Arte Multimédia
2012
Resumo
Procura-se encontrar a origem do gesto artístico, desenvolvendo uma análise
paralela entre o gesto do artista e o mito de Midas. Organiza-se a análise em três
momentos: esclarecer que dom ambos possuem e quais as semelhanças; compreender o
proceder de ambos os gestos e as suas diferenças; e, por fim, analisar a renúncia ao
dom.
Apresenta-se o dom como algo que é proveniente da natureza, mas que no
entanto se manifesta num gesto negador ou negativo. Esta situação acontece nos dois
casos: (artista e Midas); contudo por razões diferentes, devido aos efeitos que ambos os
dons manifestam. Isto é, o dom de Midas consiste numa consecutiva desvitalização da
natureza, transformando apenas a matéria dos objetos, enquanto o dom do artista, o dom
da mimese (geral, em todo o caso), é o dom da formação, da criação efetivamente.
Palavras-chave
Artista; Midas; Mito; Natureza; Gesto.
Abstract
By drawing a parallel between the myth of Midas and the “artist’s touch” one intends to
explore the origin of the artistic action.
The present work is divided into three parts: clarify what is the gift that both (Midas and
the artist) possess and the similarities between them; understand the workings of each “touch”
and their differences; and, lastly, analyze the renouncement to said gift.
The gift comes trough as something provided by nature, although it reveals itself in a
negational or negative action. This happens in both the artist case and the Midas case, albeit of
different reasons due to the results that both gifts produce.
The Midas gift is a ongoing life-sucking process of nature, simply transforming
matter. While the artist’s gift, the gift of mimesis is the actual gift of creation.
Keywords
Artist; Midas; Myth; Nature; action.
Índice
Resumo…………………………………………………………………………….……iii
Abstract………………………………………………………………………………….iv
Índice…………………………………………………………………………………….v
Introdução……………………………………………………………….…….................1
I. O problema da origem do dom……………………………………………...................7
a) O caso de Midas…………………………………………………………….....9
b) O caso do artista…………………………………………………….….....…12
II. Sobre a negação: positividade, suprimento e função…………………………...…...16
a) Hegel: a dialética Mestre-Servo e o trabalho enquanto ação negativa………16
b) Ação negativa: manutenção e criação……………………………………….19
c) Formar o dom………………………………………………………………..26
Conclusão: A transgressão e a possibilidade da vida………………………………….29
Bibliografia……………………………………………………………………………..36
Introdução
Quão precipitado é no início falar do fim? Mas como falar do início sem, de
antemão, ver o fim? Ou como começar algo sem empreender um término?
Presumo que este círculo não terminaria até que se encontrasse algo que, pela sua
forma de estar e ser, nos conduzisse a um momento de simultaneidade, onde o fim e a
génese se apresentassem paralelamente. A arte, ou melhor, a obra de arte é precisamente o
caso paradigmático dessa relação. Falo de fim na obra, não como algo que termina, acaba
ou esgota, mas como um objeto enformado, finalizado e erigido — falo da qualidade
material da obra e do seu carácter objetual. No entanto, para além desse carácter material
da obra («o monumento está na pedra»1), ela contém algo mais e que a distancia de uma
comum mesa, por exemplo, que quando terminada percebemos o processo de fabrico: «A
obra dá publicamente a conhecer outra coisa [para além da sua fisicidade, da sua
coisidade], revela-nos outra coisa; ela é alegoria»2. Essa «outra coisa» que a obra
convoca através da referida «alegoria» é o elemento que a distancia das demais coisas. A
obra revela-nos a sua própria origem, mas uma origem que transcende o seu lado
material: a obra apresenta-nos uma outra coisa: revela-nos o movimento de criação, o
gesto (original). Mas como poderemos destacar esta alegoria em comparação com as
demais coisas?
1 Heidegger, Martin, A Origem da Obra de Arte, tradução de Maria da Conceição Costa, Lisboa: Edições 70, 2010, p. 13
2 Ibid., p.13
Acerca da conferência “A Origem da Obra de Arte” de Heidegger, Michel Haar,
no seu livro A Obra de Arte, afirma que aquele autor recentra o centro gravitacional da
arte na obra: procuramos então a origem da obra na obra. De forma a aclarar e
aprofundar esta procura pela origem, usamos a definição de origem que nos é dada por
Heidegger nessa mesma conferência (pela qual regeremos o discurso sobre a origem):
«Ao que uma coisa é e como é, chamamos de essência. A origem de algo é a proveniência
da sua essência»3. Heidegger parte também de um pensamento paradoxal relativamente à
origem da obra: «O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é
sem o outro. E, todavia, nenhum dos dois se sustenta isoladamente»4. Encontramos para
já uma dificuldade: o que é uma obra de arte? Teremos de esclarecer (na medida em que
nos é possível) o que é a obra, isto é, em que consiste a obra de arte para além da sua
condição material.
«Uma obra de arte é primeiramente uma coisa»5. No entanto, o facto de sabermos
que a obra é antes de mais uma coisa, pelos seus atributos físicos, não nos traz qualquer
claridade sobre o que ela efetivamente é. Devemos então procurar algo de outro6, na coisa
que é a obra. O que é que a obra tem que excede o seu “ser-coisa”?
Comecei por afirmar que a obra é alegoria, e que isso já a destaca da coisa que ela
é à partida. Isto é, a obra é colocada em vez de uma outra coisa, é uma
apresentação/figuração de algo que não está de facto presente. A obra em todo o caso não
3 Ibid., p.11
4 Ibid., p.11
5 Haar, Michel, L'œuvre d'art. Essai sur l'ontologie des œuvres, tradução própria, Paris: Hatier, 1994, p. 54
6 Uso o mesmo termo de Heidegger a fim de tentar aclarar o que é este outro. O que há de além matéria na obra de arte.
é a coisa em si, ela está em lugar de outra coisa, é alegoria nesse momento em que dá
forma a algo que não ela. Pelo contrário (e volto a dar o mesmo exemplo) uma mesa não
enforma mais nada que não a sua função — é ela mesma. Este ser mesa implica uma série
de características deste tipo de objeto: forma, escala, função etc.
Heidegger dá o exemplo da pintura das botas de camponês de Van Gogh, a fim de
despistar a funcionalidade dos objetos como sendo esse outro. Confrontando um
utensílio7 e uma obra, revela pela primeira vez algo que a obra tem e que o utensílio não
tem. Criando uma escala de adições ao elemento comum: a coisa.
Realçando as respetivas características: ambos são fabricados por humanos,
porém a obra é autossuficiente enquanto o utensílio é subjugado à sua serventia
(funcionalidade).
Através desta comparação podemos igualmente aceder ao que Heidegger chama o
«ser-apetrecho» do apetrecho. Através da obra de Van Gogh, podemos entender aqueles
objetos como eles mesmos e não como utensílios para uma certa função: «[e]ste
apetrecho pertence à terra e está abrigado no mundo da camponesa. É a partir desta
abrigada pertença que o próprio produto surge para o seu repousar-em-si-mesmo»8. É
pelo meio deste repousar-em-si-mesmo que as botas da pintura de Van Gogh nos revelam
esta terra a que pertencem e o mundo da camponesa. Só através da obra, acedemos à
7 Na versão portuguesa que seguimos do texto de Heidegger, este termo (Zeug) é traduzido por “apetrecho”.
8 Heidegger, A Origem… Op. Cit., pp.25-26
condição do estar daquelas botas. «Pelo contrário, a camponesa, traz pura e simplesmente
os sapatos. Como se este simples trazer fosse assim tão simples»9.
A obra, pelo seu carácter alegórico, põe em ação o revelar da origem. Mas o que
isto significa de facto?
«Que é que está em obra na obra? A pintura de Van Gogh constitui a abertura do
que o apetrecho, o par de sapatos da camponesa, na verdade é. Este ente emerge no
desvelamento do seu ser»10.
Interessa-nos, antes de mais, procurar o significado da expressão «desvelamento
do seu ser» a fim de percebermos o movimento que Heidegger está a justapor à obra. Esta
dá lugar o desvelamento do ser, descobre o que em si mesmo está encoberto, a obra
revela a origem que se apresenta encoberta em todos os outros entes. Aproxima-se da
verdade de um determinado ente. Mostrando o ente de uma forma verdadeira (repousado-
em-si-mesmo), a obra retira qualquer aditivo (funcional ou significante) e mostra-nos a
verdade mais essencial de cada coisa e, como Heidegger dirá, de todas as coisas.
«Portanto, na obra, não é de uma reprodução do ente singular que de cada vez está
aí presente, que se trata, mas sim da reprodução da essência geral das coisas»11.
Podemos então dizer que a obra, desvelando o ser, reproduz a essência geral das
coisas – para Heidegger a verdade.
9 Ibid., p.26
10 Ibid., p.27
11 Ibid., p.28
Encontramos na língua grega uma palavra que, para Heidegger é equivalente à
expressão «desvelamento do ser»: aletheia, que significa literalmente o não-
esquecimento. Aletheia é no fundo o seu conceito de verdade.
Aletheia deriva da palavra lethe, que podemos encontrar como nome do rio do
esquecimento (Lethes) na mitologia clássica. Lethe significa pois esquecimento e o
prefixo a-, sendo privativo, determina o sentido do não-esquecimento, que se deve de
resto à importante função da poesia oral na tradição grega arcaica: algo era verdadeiro na
medida em que não cessava de ser retirado do esquecimento (a-letheia). Heidegger
retoma o termo para designar a retirada de algo do seu fundo oculto.
Aletheia é pois o movimento (a vinda à presença de qualquer coisa) que constitui
a verdade no seu sentido originário. A arte desvela o ser para que este aconteça na sua
plenitude, na sua verdade, na sua origem (anterior à verdade determinada como
“adequação” — entre um enunciado e a coisa à qual ele se reporta) — na origem das
coisas que são.
A verdade é a essência geral das coisas. Nunca abandonou o ente e permanece
oculta em si mesma — nas possibilidades da sua criação.
Há uma grande proximidade entre o conceito de essência geral das coisas e de
ocultação. A palavra que poderá unir definitivamente estes dois conceitos é Physis, a
força da natureza, presente e simultaneamente ausente, ou melhor, velada no estar de cada
coisa.
A obra parece então revelar um momento muito anterior a si mesma. O momento
da origem das coisas, ou melhor, a força que origina todas as coisas. Ela apresenta então
o momento em que essa força se manifesta “abertamente”.
Heidegger, de forma a despistar todas as tentações de comparação entre essa
apresentação da força da natureza com a representação da própria natureza, utiliza dois
exemplos antagónicos à pintura das botas de Van Gogh: o poema «A Fonte Romana» e
um templo grego (o edifício). Usemos pois um outro exemplo mais pertinente para a
presente indagação, retirado da mitologia greco-romana.
Tomemos Ovídio pois este é um bom exemplo do que falamos. A sua poesia é
uma descrição de um momento muito anterior à sua própria existência com o objetivo de
narrar um momento primordial, de revelar a força original que tornou o presente naquilo
que é.
Esclarecemos a questão do mito como origem: os mitos (recolhidos por Homero)
que chegaram até nós correspondem a uma coleção de histórias da tradição oral grega, no
caso de Ovídio chegando até Roma, e que serviam, essencialmente, desde a primeira
infância, para a formação do carácter de um povo veiculando valores éticos, tal como a
bondade, a coragem, a virtude, a humildade, etc. Isto significa então que se trata de um
conjunto de enredos que transportam uma verdade (aletheia).
No entanto, estes mesmos mitos, se olharmos para a sua forma, não são
apresentados como uma qualquer história, são enredos onde homens e deuses se cruzam,
são histórias fantásticas (há que sublinhar esta separação radical com a realidade, e com a
sua representação) sobre um momento primordial, onde o que foi feito tem uma
consequência direta naquilo que hoje somos. Ou seja, são narrativas de origens. O orador
conta então um momento muito anterior a si mesmo, um momento primordial. Mostra o
tempo onde se revela aquilo que Heidegger chamaria a essência geral das coisas,
revelado pelas palavras do poeta.
Será através da mitologia, e mais particularmente das Metamorfoses de Ovídio,
que pensarei a origem. No entanto, a proposta não será mais encontrar respostas para a
pergunta qual a origem da arte? Mas sim inverter a questão, tendo como base todos estes
dados, e tentar encontrar no gesto do artista uma origem. Qual a natureza do gesto do
artista?
Embora não seja uma narração usada frequentemente para abrir um debate sobre
arte, escolho o mito de Midas — e não só pela sua simbologia, mas também pelo toque e
pela transformação (retirando o sentido moral). Particularmente o toque desempenha, a
meu [nosso] ver um papel central no desenrolar da ação. Por isso, irei centrar toda a
atenção no ato simbólico do toque, na transformação e criação humanas. Como pelos
intervenientes na ação, Dioniso e Apolo, que têm um historial de relações com a procura
da essência das artes, e que, nessa perspetiva, têm uma função simbólica dentro do
contexto do referido mito.
Acompanha ainda esta comparação alguns exemplos descritivos destes conceitos
em peças audiovisuais. No entanto o maior destaque é dado a Melancholia de Lars Von
Trier (2011).
I
O problema da origem do dom
A fim de desenvolver em paralelo a análise dos dois gestos (do artista e de
Midas), traçarei um fio condutor assente em três etapas que considero presentes em
ambos os casos: a origem do dom, a prática e a renúncia deste. Estas etapas
correspondem respetivamente a uma aproximação entre os dois (artista e Midas),
afastamento e, por fim, uma reaproximação.
Antes de expor o que é entendido como dom ou qual é o dom de que falo, diria
que este encadear das várias dimensões de aproximação entre o indivíduo e o que
denomino de dom, definirá um trajeto, dando-nos os parâmetros de análise e
aproximando os dois gestos de forma a que possamos compreendê-los paralelamente.
Compreende-se portanto que tentarei fazer uma aproximação sobre a procura de
um esclarecimento, sem pretender no entanto que seja uma explicação definitiva, acerca
da origem da criação artística. Assim sendo, anulo propositadamente a vertente social e
moral do mito de Midas, focando-me estritamente na clara força de motivação e de
urgência de um artista quando cria, procurando entender o que gera esse movimento.
É seguindo a terminologia de Diderot que chamo «dom»12 à força da criação.
Esta expressão, apesar de no seu texto ser dirigida ao ator, refere-se ao ato criativo em
geral, ao momento da criação, o mesmo que está embebido naquilo a que chamarei
adiante o gesto do artista, e com isso compreende-se então a sua condição transversal a
toda a criação artística. Diderot afirma: «Cabe à natureza dar as qualidades da pessoa, a
figura, a voz, o critério, a finura. Cabe ao estudo dos grandes modelos, ao conhecimento
do coração humano, à vivência, ao trabalho assíduo, à experiência e à prática do teatro
aperfeiçoarem o dom de natureza»13. É com base nesta premissa que falaremos do dom do
artista, pois esta expressão, além de fazer a súmula dos diversos conceitos associados à
criação, trará com ela algumas implicações para o presente argumento (o que mais tarde
virei a explorar).
Tendo como premissa inicial esta dádiva concedida a ambos, chamo o problema
da origem do dom a esta secção porque — nos dois casos que apresento — o dom tem
uma origem problemática, no sentido em que é paradoxal relativamente à sua
consequência, a saber: o dom é concedido pela Natureza mas no entanto carrega uma
negatividade para com ela, uma negação cujo sentido tentaremos esclarecer aqui.
De forma a aclarar a origem deste conflito, cito antes de mais o texto de Ovídio
(do qual extraio todas as informações apresentadas sobre Midas):
12 Diderot usa este termo no seu Paradoxo Sobre o Actor que, apesar de ser um texto de teoria teatral, encontra-se diretamente
relacionado com o assunto aqui desenvolvido: de facto, numa leitura mais abrangente o texto ilustra a essência da criação artística
13 Diderot, Paradoxo Sobre o Actor, Tradução de Luís Matos Costa, Lisboa: Hiena Editora, 1993, p. 20. Altero a expressão
«dádiva da natureza» da tradução portuguesa para «dom de natureza» seguindo a mudança desta mesma expressão na tradução do
ensaio de Philippe Lacoue-Labarthe, O paradoxo e a mimese, por Tomás Maia (Lisboa: Projecto Teatral, 2011), a fim de lhe conferir o
sentido da expressão original: «don de nature».
«Logo que reconheceu o amigo e companheiro de culto [Sileno, tutor de Dioniso],
contente com a chegada do hóspede, o rei dera uma festa que durou dez dias consecutivos
e outras tantas noites. E já pela décima primeira vez Lúcifer reunira e retirara lá do céu o
cortejo das estrelas, quando o rei chega radiante aos campos da Lídia e entrega Sileno ao
jovem, seu pupilo [Dioniso]. Feliz com o regresso de quem o criara, o deus concedeu-lhe
o poder, grato mas nocivo, de escolher uma recompensa. Destinado a fazer mau uso da
oferta, diz: 'faz com que tudo em que eu toque com o meu corpo se transforme em fulvo
ouro.' Líber anuiu à escolha e deu o dom que se revelaria funesto; […]»14.
(Alerto, mais uma vez, para o facto de negligenciar aqui o aspeto moralista do
mito, o ensinamento que ele encerra acerca da avareza e da forma desta prejudicar o bem
estar humano. Podemos ainda assim denotar alguma crítica à ideia de riqueza. Deste
modo, este contexto moralizante, obviamente, nada esclarece sobre o que se procura
desenvolver na presente dissertação.)
No caso de Midas, e dentro da narrativa do seu mito, a manifestação “criadora” do
gesto deste é facilmente reconhecível como dom, na aceção comum e clara do termo,
uma dádiva, literalmente: isto é, algo de inato e não de adquirido.
O problema que tento trazer à luz é o facto de ser a natureza a conceder a ambos
— artista e Midas — o dom, do qual é feito uso num gesto negador. Analisemos o
paradoxo em cada um dos casos, de forma a perceber como eles são negadores.
a) O caso de Midas
14 Ovídio, Metamorfoses, tradução de Paulo F. Alberto, Lisboa: Livros Cotovia, 2007, pp. 269-270.
Dioniso é a origem do dom de Midas, concede-lhe o dom a pedido do segundo:
«faz com que tudo em que eu toque com o meu corpo se transforme em fulvo ouro»15.
Este dom consistirá maioritariamente numa sistemática desvitalização dos dados vivos
em que Midas toca. O paradoxo (o problema) reside no facto de ser Dioniso (ou Baco, no
texto de Ovídio) a atribuir a Midas este dom.
Ora, Dioniso é mais do que o deus do culto do vinho, como mais comummente é
conhecido. Relembro, de forma breve, a sua história: quando jovem, foi apadrinhado por
Sileno e mais tarde purificado por Cíbele (Mãe dos deuses da Anatólia e Deusa da
fertilidade e da natureza) que o iniciou nos seus rituais, tornando-se deus da natureza,
ligado aos seus frutos: Seiva, Sumo (Vinho), etc. Mas, além disso, há uma outra
característica, inerente à sua natureza mitológica, que se revela decisiva para retirarmos
algumas conclusões acerca do “nosso” paradoxo: Dioniso é também símbolo da
fertilidade, da gestação e da criação por ser «duas vezes nascido»16.
A profunda relação que a figura de Dioniso tem com a natureza (enquanto vida,
enquanto produção, e, portanto, enquanto physis) incute ao mito um carácter paradoxal.
Isto é, se por um lado falamos de um dom transformador, não no sentido de transformar
matéria-prima em utensílios (ou obras) mas de mudar as propriedades materiais dos
objetos (neste caso, algo que não é natural: transformá-los em ouro), por outro, é um dom
concedido pela própria força (criadora) da natureza (personificada em Dioniso). Há
portanto um investimento vindo da natureza de um dom que a negará; uma alteração da
15 Ibid., pp. 269-270
16 Ibid., p. 93
condição natural do corpo de Midas, que por sua vez alterará a condição natural de outros
corpos.
Santiago Alba Rico apresenta a relação entre a arte, a natureza e Midas, alertando
para o facto de que ele se refere à “versão mais atinga que conhece” (sem dar qualquer
outra referência) e em que Midas morre por não poder tocar em nada sem que isso se
transforme em ouro: «A fruta, o peixe, a corsa, deixam de ser coisas boas para comer,
como diz o lema funcionalista, para converterem-se em coisas que apenas servem para
serem olhadas, em ídolos, ou simulacros ou, se se prefere, em obras de arte»17.
Não obstante, e como virei a apresentar mais tarde, creio que Alba Rico não
considerou as consequências reais do gesto de Midas. Não o analisou atendendo a todas
as dimensões do que é fazer arte, por exemplo a criação, atendendo apenas à semelhança
de circunstância, ou ao tipo de objeto “formado”. Esse analisar das consequências
efetivas do gesto de Midas tem uma importância vital para o presente argumento, e será
ele a distinguir os dois gestos de raiz comum.
Mesmo assim não poderei deixar de apresentar o comentário de Santiago Alba
Rico acerca do dom de Midas:
«Sileno, o velho deus agitado, padrinho de Dioniso, metade homem metade
animal, símbolo da natureza em liberdade, sempre desmedida e ameaçadora,
“recompensa” Midas com um excesso de cultura, uma maldição cultural que mineraliza e
17 Lhano, Pedro. Gutiérrez, Xosé Lois. Ed., En Tiempo Real: El Arte mientras tiene lugar, tradução própria, Corunha:
Fundación Luis Seoane, 2001, p. 25
suprime o mundo natural de um modo não menos perigoso. Midas, por assim dizer, morre
de não comer, sim, mas também de olhar demasiado»18.
Concentremo-nos então no facto de Midas transformar em ouro especificamente
objetos naturais, a saber: galhos de árvores, pedras, terra etc.. Objetos estes que, apesar de
mineralizados, e de não deixarem de ser naturais (pois o ouro é um minério), são privados
da sua “condição de vivos”, aplicando esta expressão de forma mais abrangente,
incluindo, por exemplo, pedras nesta esfera de objetos, por todos estes terem uma
determinada essência original, de natureza (naturada). Todos pertencem a uma realidade
natural imanente e, como tal, este processo de transformação torna-se num desafio à
própria natureza, não no sentido em que o artista o faz (como mais tarde veremos) mas
antes, como um confronto mortal. Midas, por desafiar, ou melhor, negar a sua natureza
terá de renunciar ao seu dom.
Os objetos transformados em ouro, por sua vez, convertem-se de forma total, a
saber: matéria, função e, arriscar-me-ia a dizer, apresentação. E sendo esta última
alteração a mais importante, estes objetos já não têm em si presente a força criadora:
agora apenas apresentam o dom de Midas e representam o que antes eram. Midas
suspende a positividade destes objetos, enquanto dados ou provas de uma criação natural.
Tocando-lhes, transporta para eles uma subtração a essa positividade, o seu gesto nega
em todo o caso o que estes objetos afirmam enquanto frutos de uma origem natural.
Subverte as suas características, as suas funções. Faz-lhes perder a sua condição, o seu
estar original, embora, paradoxalmente, eles não deixem de ser algo natural. Agora a sua
18 Ibid., p. 25
positividade é apenas a da forma, a da presença, mas já não manifestam a força da
criação, são pequenos sepulcros reluzentes de uma natureza suspensa da sua fonte.
b) O caso do artista
Falamos de outro tipo de negação, aquela que é operada pelo artista.
E retomemos a referência de Diderot e do seu Paradoxo sobre o actor, através do
comentário de Philippe Lacoue-Labarthe intitulado O paradoxo e a mimese. Este texto
fará luz sobre aquilo que Diderot chama «don de nature».
Para Lacoue-Labarthe, esta formulação («dom de natureza») evoca o conceito
aristotélico de mimesis, que transporta em si — imediatamente — a relação que
pretendemos aclarar: entre a Arte e a Natureza. Parece no entanto haver uma espécie de
enunciado crítico da situação anteriormente apresentada19: «E como seria possível a
natureza formar sem a arte um grande ator, se nada se passa em cena exatamente como na
natureza, e se todos os poemas dramáticos são escritos segundo um determinado sistema
de princípios?»20.
(Concentrar-me-ei esta análise na primeira parte da questão apresentada por se verificar
que a segunda não se prende diretamente com a presente discussão mas, antes, com a
produção dramática.)
19 Ver, mais acima, pp.7-8
20 Lacoue-Labarthe, O paradoxo… Op. Cit., p.17
Apesar de me referir ao livro de Lacoue-Labarthe, a citação em questão é de Diderot, uso esta tradução pois diverge da
tradução original (publicada pela Hiena Editora) e traz-nos um sentido mais claro do Paradoxo de Diderot.
Esta questão dividida em dois pontos surge como uma espécie de enunciado
crítico, isto é: se por um lado ela levanta uma pergunta que poderíamos responder
segundo a lógica já anunciada do dom ser um produto da natureza e do trabalho do ator
complementar e manter esse dom, sendo muito claramente aquilo que aqui procuramos
apresentar (a saber: a arte como algo vindo da natureza e produzido — revelado —
através do gesto artístico), por outro parece que essa resposta já é prevista e que esta
questão transporta uma procura de justificação dessa mesma resposta visto que, em cena,
nada se passa «como na natureza»21. Portanto o desenrolar do gesto artístico tem origem
na natureza (physis), tenta comportar-se como ela, mas continua desviado, desnaturado,
pois a sua forma de operar é através da já referida techne. Isto significa que não se trata
de um simples negar, mas sim de uma relação ou negação dialética. Aprofundarei mais
tarde a dimensão desta negação dialética, apresentada por Hegel. Por agora, será
importante compreender que esta negação não se trata de uma simples negação, ela
advém de uma relação de opostos, de um suprir operado pela técnica (techne) em relação
à natureza (physis), onde o primeiro termo não só nega o segundo, neste mesmo sentido
de diálogo, como o mantém em si, conservando-o no seu interior. A negação ou suprir
dialético da natureza tem um carácter de movimento contínuo, de produção constante e
com ele um carácter de transformação: de transformação da natureza pela técnica. E,
como tal, esta negação apresenta-se como um desafio à própria natureza, visto que a
criação é feita no seu interior, e simultaneamente à margem desta, pondo em causa, deste
ponto de vista, o seu próprio criar. Criar algo através da natureza, ou com o dom
21 Ibid,.p.17
concedido por ela, pondo o proceder natural em perspetiva ou, dito de outra forma,
assemelhando-se a ela.
Diderot chamaria arte genial ao produto artificial que fosse «ao mesmo tempo,
tão “autónomo”, tão objetivo, tão independente do homem como a coisa natural»22.
É neste momento que precisaremos de um maior esclarecimento acerca deste dom
que, apesar de ser mimético, não apresenta a coisa «como ao natural», a fim de
compreendermos que paradoxo é este, e de que forma esta simulação do artifício ser
natureza constitui um suprir desta. Philippe Lacoue-Labarthe alerta-nos para o facto de
que a mimesis que Diderot evoca não ser uma «mimese restrita»23, mas sim uma «mimese
geral»24. Não se trata então da reprodução ou cópia dos dados naturais a serem
representados (tal seria a mimese restrita) mas de uma mimese que «não reproduz nada de
dado (que não re-produz portanto absolutamente nada)»25: uma força produtora, mimética
da força da criação natural, um dom «que supre uma certa falta da natureza, a sua
incapacidade para fazer tudo, organizar tudo, operar tudo — produzir tudo. É uma
22 Ibid., p.33
23 Ibid., p.19
24
Ibid., p.19
25
Ibid., p.19
mimese produtiva, isto é, uma imitação da physis como força produtora ou, se preferirem,
como poiesis»26.
O dom do artista é portando o dom dele próprio “mimetizar” a physis. Tornar-se
ele a força poiética (em constante movimento, em constante devir) da apresentação, em
oposição à “re-presentação” (mimese restrita), gerando aquilo que a natureza não poderá
perfazer. E é por este motivo que o gesto do artista se revela negador da natureza: por
oposição a Midas, cujo dom é negador por desvitalizar tudo o que o seu corpo toca,
criando - segundo Alba Rico – re-presentações da natureza, o artista nega a natureza ao
tornar-se ele próprio a força criadora (physis). Esta negação, qualificada pelo verbo
«suprir» (mais tarde viremos a aclarar o sentido deste termo) empregue por Lacoue- -
Labarthe, não se trata apenas de um simples movimento negador/de recusa. Na verdade,
aquela expressão está subjacente à ideia de criação, e é aqui usada num sentido derivado
de George Bataille. É o que, já a seguir, se verá.
Tomemos Melancholia de Lars Von Trier como exemplo. Não só porque Justine, a
sua personagem central, tem uma ligação especial com a natureza (um dom), mas
também porque essa ligação tem como derradeiro exercício a destruição da vida na
Terra (e no Universo).
26
Ibid., p.19. Physis é uma expressão grega usada por Aristóteles no livro Física B para designar Natureza, e usada para
definir o conceito de mimesis enquanto «a arte [que] imita a natureza»: he tekhne mimeitai ten physin (194a).
O filme de Trier mostra-nos a destruição da terra, provocada pela colisão do
planeta chamado Melancolia, na perspectiva das duas irmãs Justine e Claire.
Esta justaposição da ideia de melancolia e um astro não é novidade na história
da arte de da ciência. Como por exemplo a gravura (Melancholia I) de Dürer ou o “Sol
Negro” descrito por Nerval em As Quimeras.
Nos primeiros momentos do filme, Lars Von Trier mostra-nos a sua sequência
final. Isso faz com que toda a tensão da narrativa se concentre na viagem interior de
Justine. Ela é o planeta. Ela é — desde o início — o verdadeiro controle da acção, por
vezes com algum carácter místico. Justine foi investida de um dom natural e Melancholia
é uma observação sobre como esta se torna natureza, neste sentido mais amplo: physis.
Antes de mais sigamos a construção do contexto onde Justine surge.
As primeiras imagens do filme mostram-nos o espaço onde a acção decorre, uma
sequência de imagens onde Justine surge como foco de atenção, algumas delas
representações de pinturas do séc XIX, como o caso mais claro de Ophelia de John
Everett Millais, onde esta desliza na corrente de um riacho vestida de noiva. A música
escolhida é o prelúdio de Tristão e Isolda de Wagner. Nesta mesma introduçã,o surge
uma pintura, Caçadores na Neve, de Pieter Brueghel o Velho. Pintura esta que já fora
usada por Tarkovsky em Solaris (um filme também afim da ficção científica). Juntemos
por instantes esses dois momentos, de Solaris e de Melancholia: em Solaris a pintura
aparece na biblioteca da nave quando Kris Kevin “dança” com o “fantasma” da sua
mulher, num momento nostálgico da Terra. A paisagem de neve numa cena sazonal é o
símbolo que resta a Kevin da Terra (e, claro, a sua ligação, memórias etc.). Em
Melancholia a pintura arde. É já a visão de Justine. Se o planeta em Solaris reage à
mente de Kris Kevin e seus desejos, Melancholia é a mente de Justine, a sua ligação à
Terra está acabada (dizendo até que «a Terra é má»); esta, com efeito, vai ser destruída.
Efectivamente temos a mesma pintura com a mesma perspectiva simbólica.
Indo um pouco mais longe, Justine e a sua história de relações familiares tem
ecos da Justine de Sade. De forma breve: o filme, como o livro La Nouvelle Justine (uma
versão mais extensa do romance original Justine e que contem uma parte sobre a sua
irmã), está dividido em duas partes que correspondem à importância de cada irmã na
narrativa; Justine de Sade morre electrocutada por um relâmpago, enquanto que em
Melancholia, antes da sua morte, “energia” sob forma de relâmpago sobe ao céu.
Justine (e consequentemente o planeta) é a concretização do ideal romântico de
que a melancolia é um estado de espírito que enaltece e limpa a alma humana. Justine
tem o dom da purificação ou morte, em todo o caso um dom natural que nega uma
determinada natureza.
No entanto há uma razão anterior que estabelece a relação que desejamos
(Justine-artista), pois a Melancolia fora já referida, em moldes semelhantes durante um
longo período que antecipou o romantismo. Sendo todos os textos referentes a um
primeiro escrito chamado e Problema XXX atribuído a Aristóteles. Onde este,
reforçando ideias que já expuz anteriormente, defende que a melancolia está associada
ao génio. Que todos os que dela usufruem (por primeira e, definitiva, atribuíção desta
pela natureza) se tornarão propensos ao génio. E, obviamente, à criação. O que quer
dizer então que Justine está fortemente ligada a um poder criador, e por isso também, ao
poder da destruição. Mas ela fica entre os dois exemplos que até agora tínhamos.
II
Sobre a negação: positividade, suprimento e função
a) Hegel: A dialética Mestre-Servo e o trabalho enquanto ação negativa
Ainda no âmbito da pergunta colocada por Diderot (relembro: «E como seria
possível a natureza formar sem a arte um grande ator, se nada se passa em cena
exatamente como ao natural, e se todos os poemas dramáticos são escritos segundo um
determinado sistema de princípios?»27), e antes de verificarmos a dimensão do artista
enquanto trabalhador, precisamos de refletir sobre o momento onde precisamente o
trabalho e o dom se tocam. Concentremos por momentos a nossa atenção no facto de que
só na instância do uso do dom é que este se revela negativo ou negador; no entanto, ainda
não estamos concentrados na coisa criada, parámos um momento para intersectar a
possibilidade da criação, o gesto criador e o dom que lhe dá origem.
O conceito de negação utilizado por Bataille reporta-se diretamente a Hegel,
especificamente a uma secção de um capítulo da Fenomenologia do Espírito, intitulada:
«Autonomia e dependência da Consciência-de-si: Dominação e Servidão». Nesta secção,
Hegel emprega a expressão Aufhebung (traduzida para a nossa língua por «negação
dialética»), a qual significa não só “negar” como também num sentido contrário:
“conservar”. Este último termo será fulcral para entender a força transformadora do
trabalho do Servo (aquele que “con-serva”). Pois assim chegaremos à ideia do artista
trabalhador que conserva negando o dado natural pela sua ação (já apelidada de
negativa).
Antes de mais, impõe-se uma curta apresentação da secção, a qual será feita aqui
através do conhecido e esclarecedor comentário de Kojève. Hegel condensa a vida do
27
Ibid., p.17
Espírito em duas figuras alicerçadas na história humana: o Servo e o Mestre. É o
confronto (acionado pela tentativa de reconhecimento mútuo) que fará com que estas
duas figuras assumam os seus papéis (por uma relação lógica de poder). Este desejo de
reconhecimento (que está para além do desejo animal de conservação) é pois a prova,
segundo Hegel, da consciência humana. «E o risco da vida pelo qual se “averigua” a
realidade humana é um risco em função de um tal Desejo»28 — e acrescenta: «Falar da
“origem” da Consciência de si, é, pois, necessariamente, falar de uma luta de morte em
vista do “reconhecimento”»29.
No entanto, é mais do que uma luta de poder, pois no momento final desse
confronto «[n]ão serve, pois, para nada ao homem da luta matar o adversário. Ele deve
suprimi-lo “dialeticamente”. Quer isto dizer que lhe deve deixar a vida e a consciência e
destruir apenas a sua autonomia [...]. Por outras palavras, deve escravizá-lo»30. O servo
será então o homem derrotado que «não foi até ao fim no risco com a vida»31 e então
28
Kojève, Alexandre, Breve introdução à leitura de Hegel, tradução de Pedro Jofre. Paris: Farândola, 1998, p. 10.
29
Ibid., p.10
30
Ibid., pp.20-21
31
Ibid., p.22
viverá como servo, para “pagar” a sua vida, e o seu trabalho será por consequência o
produto do temor da morte, das condições impostas pela Natureza. Será, em primeira
instância, o Servo da Natureza.
Na leitura de Kojève, surge uma passagem do texto original sobre a relação do
Servo com a natureza:
«[…] a relação negativa-ou-negadora com o objecto-coisista constitui-se numa
forma deste objecto e numa entidade-permanente, precisamente porque, para o
trabalhador, o objecto-coisista tem uma autonomia. Ao mesmo tempo, este meio-termo
negativo-ou-negador, isto é, a actividade formadora [do trabalho], é a particularidade-
isolada ou o Ser-para-si puro da Consciência»32.
Façamos uma pausa no comentário de Kojève.
Voltemos à obra que, a espaços, nos acompanha afim de tentar perscrutar este
pensamento.
A morte está a chegar. Vemo-la a subir no horizonte. Mas o fascínio pela sua
aparência não é suficiente para nos afastar da imersão que ela provoca. Uma imersão
em nos próprios — o derradeiro habitar-nos. E, neste confronto, onde sentimos tanto a
morte como os nossos ossos, o trabalho (na acepção descrita acima) surge como meio de
libertar a consciência ou faze-la retornar a si. Leo e Justine vão para a floresta trabalhar
32
Ibid., p.33. As palavras dentro de parênteses retos são de Kojeve.
sobre a natureza para construírem a “Gruta Mágica” (nome que Justine dá à pequena
cabana que ambos constroem no jardim — no fundo uma construção que pretende ter o
poder de algo natural, original), que os tornará imunes à destruição do planeta e
consequentemente à sua própria morte. Como Justine faz entender, só o trabalho, a
construção daquele abrigo mágico33
os poderá salvar do seu fim.
É fácil associar esta ideia de serventia tanto ao Artista como a Midas (servo de
Dioniso), e portanto ao dom de ambos, mais especificamente a sua origem. Como já
vimos, surgem sob influência de uma Natureza dominadora. Conseguimos também
destacar o facto de que no mito de Midas não há propriamente trabalho (o que
explanaremos adiante) enquanto que, o gesto do artista, é um gesto de trabalho, pois
literalmente forma, como diz Hegel, uma entidade-permanente (também adiante veremos
as suas consequências).
Mas retomemos Kojève. A libertação daquela escravatura natural é, na visão de
Hegel, o trabalho. Pois «ao trabalhar, o escravo assenhora-se da natureza»34. Isto é, se à
partida a condição de servo é atribuída pela «aceitação do instinto de conservação»35 (da
vida), o Servo, ao trabalhar, apoderar-se-á da sua natureza. O seu trabalho de
transformação sistemática dos dados naturais fará com que se torne Mestre do meio que o
tornou Servo, e assim suplantará dialeticamente o seu Mestre.
33 Hegel na introdução à fenomenologia do espirito descreve o poder mágico como aquele que torna o negativo no ser, quando o
espirito e o negativo se encontram.
34 Ibid., p.30
35 Ibid., p.30
Assim, podemos deduzir que o artista atua negativamente sobre a matéria
conservando o dado natural sob outra forma, enquanto Midas, pelo contrário, não
conserva (neste mesmo sentido de elevação) nem (dá) forma. Isto quer então dizer que o
dom que lhes é atribuído não é, apesar de ter características semelhantes e de levantar
problemas semelhantes, na sua essência o mesmo dom: Midas atua sobre um objeto já
existente, enquanto que o artista cria um novo objeto.
Em Melancholia, é-nos apresentada uma personagem por assim dizer a meio
caminho entre Midas e o artista. Justine é quase uma artista — mas não cria de facto. Ela
é a origem do medo. Justine é o mestre (na acepção hegeliana do termo). Mesmo quando
Claire (a sua irmã) tenta “negociar” de que forma vão “assistir” ao fim das suas vidas,
Justine age de forma irónica e assim manipula (destruindo a ideia original) e destrói as
ideias de Claire.
No entanto Leo faz com que Justine transcenda a sua própria mestria. Leva-a até
ao trabalho.
Deste modo, teremos de desdobrar todas estas questões separadamente, pois
mesmo havendo graves divergências no que toca ao uso do dom (o trabalho), ou até
mesmo a essência desses dons de origem comum, diria até de aparência comum, mais
tarde ou mais cedo iremos voltar a uni-los. Para isso, precisamos de ter uma visão clara
sobre cada um deles, e principalmente sobre as suas divergências.
b) Ação negativa: manutenção e criação
Impõe-se esclarecer a distinção entre o trabalho do escravo (a manutenção da sua
vida) e o do artista (formar o dom) — sem esquecer que ambos são manifestações do
mesmo temor pela morte.
Georges Bataille propõe, no seu ensaio Lascaux ou la naissance de l’art, que a
fractura intelectual do homem primitivo é o momento de transição do Homo Faber (o
homem do trabalho) para o Homo Ludens (o homem do jogo), designações estas
propostas a partir da investigação de Johan Huizinga36. É esta última designação —
Homo Ludens — que seria, segundo Bataille, reveladora do sentido de Homo Sapiens.
Este ensaio figura numa mais ampla obra acerca das figuras rupestres de Lascaux.
O capítulo L'homme de Lascaux, por onde começamos a analisar a prática artística pré-
histórica, é pois focado na evolução do homem como criador, traçando, à luz das teorias
da época, uma teoria evolutiva do homem do paleolítico. No entanto, trata-se mais do que
isso para Bataille, quando afirma que há uma intenção geral de descrever «as condições
fundamentais da passagem do animal ao homem, que são o interdito e a transgressão»37.
Estas duas condições, como lhes chama Bataille, são a força motriz que este apresenta
como origem do gesto artístico.
O interdito surge em primeiro lugar, pois a transgressão é subordinada a este. O
interdito é o que podemos decompor num duplo movimento: atração e, simultaneamente,
36 Huizinga escreveu no ano de 1938 o livro Homo Ludens, onde apresentava o jogo como o elemento fundador da cultura.
37
Bataille, George, Lascaux ou la naissance de l’art. Genebra, Skira, minha tradução, 1994, p. 38
medo pela morte. A morte constitui uma barreira intransponível, e esta proposta evolutiva
parte do momento em que acontece um reconhecimento pela morte.
Bataille descreve da seguinte forma o despertar do homem para o interdito: «Pela
primeira vez, a conduta do homem para com os mortos fez sentir a presença de um novo
valor: os mortos, pelo menos no seu rosto, fascinaram os vivos, que se esforçaram por
interditar a sua aproximação, e que limitaram o comum vai-e-vem que um qualquer
objeto autoriza à sua volta. É nesta limitação fascinada, imposta pelo homem à
movimentação dos seres e coisas, que consiste o interdito»38.
Este comentário de Bataille à relação entre o homem e a morte, e a criação do
interdito, advém do já referido reconhecimento da morte, descrito por este a propósito de
alguns túmulos (situados na Europa e na Palestina) onde apenas foram encontrados
crânios. Bataille descreve-o do seguinte modo:
«O crânio era a parte do corpo que na morte não devia deixar de apresentar o ser
que o habitava»39.
Encontramos então, desde as primeiras teorias sobre os crânios encontrados no
médio Oriente, uma relação entre os vestígios artísticos e a religião, nomeadamente
através da ritualidade funerária e mais especificamente a prática do sacrifício como forma
38
Ibid. p.31
39
Ibid. p.29
de transgressão do interdito. No entanto, esta questão não se prende apenas com uma
tomada de consciência, como também com o sistema social, pois é através da ordem (do
trabalho) estabelecida neste sistema que os primeiros sintomas da transgressão se
manifestarão. Para Baitalle, antes de mais através do que chama jogo (termo influenciado
pelo livro, já referido, de Huizinga). Esta é a primeira quebra com a ordem do trabalho. É
a renúncia ao homem animal, ao homem do trabalho (faber) que suspende a manutenção
da vida para dar lugar a um gesto improdutivo, e essa improdutividade do jogo é para
Huizinga essencial, afirmando que o jogo não traz qualquer benefício material, e que não
há qualquer tipo de lucro a ganhar com este. E essa ideia de improdutividade será, para
Bataille também, uma das peças centrais do seu discurso sobre arte.
No dizer de Huizinga, o jogo é «uma atividade que se processa dentro de certos
limites temporais e espaciais, segundo uma determinada ordem e um dado número de
regras livremente aceitas, e fora da esfera da necessidade ou da utilidade material. O
ambiente em que ele se desenrola é de arrebatamento e entusiasmo, e toma-se sagrado ou
festivo de acordo com a circunstância. A ação é acompanhada por um sentimento de
exaltação e tensão, e seguida por um estado de alegria e de distensão»40.
Se desdobrarmos as ligações que Huizinga faz daquilo que é o jogo, na sua
relação com a arte: conhecimento, poiesis e arte (que se apresentam separadas no seu
livro), assim poderemos fazer a distinção entre o trabalho do escravo e o do artista.
40
Huizinga, Johan. Homo Ludens, tradução de João Paulo Monteiro, São Paulo, Editora Perspectiva, 2000, p. 97.
O jogo antes de mais põe em risco a manutenção da vida, pelo facto de instaurar
uma rutura com ela.
«Quem poderia negar que todos estes conceitos — desafio, perigo, competição
etc. — estão muito próximos do domínio lúdico? Jogo e perigo, risco, sorte, temeridade
— em todos estes casos trata-se do mesmo campo de ação, em que alguma coisa está “em
jogo”»41.
Em Melancholia é através de um jogo que o Jogo é revelado. Não por acaso o
jogo pertence à criança. Leo é o ponto de referência, enquanto mais novo, que faz ver a
chegada da morte através do seu jogo. Ele revela a morte e é a dialéctica entre esta e os
servos. É ele também que, como já antes foi referido, liberta Justine — que a faz
encontrar o caminho da forma, isto é, Leo confronta Justine com o seu medo e leva-a a
forma-lo. Vão até à floresta recolher e trabalhar sobre os galhos das arvores para
construírem o (anteriormente referido) abrigo.
O conhecimento que o “jogar” traz, para Huizinga, trata-se de um conhecimento
mágico e religioso simultaneamente: para o homem primitivo, todo o saber «é um saber
sagrado, uma sabedoria esotérica capaz de obrar milagres, pois todo conhecimento está
directamente ligado à própria ordem cósmica. A ordem das coisas, decretada pelos deuses
e conservada pelo ritual para a preservação da vida e a salvação do homem, esta ordem
41
Ibid., p.32
universal ou rtam, como era chamada em sânscrito, tem sua mais poderosa salvaguarda
no conhecimento das coisas sagradas, de seus nomes secretos e da origem do mundo»42.
A relação directa entre o jogo e a morte é parte da linguagem como do cinema:
perseguições, desafios, o último tiro etc. Dando um outro exemplo: no início do filme
Non ma fille, tu n'iras pas danser, de Christophe Honoré, Léna, a personagem principal,
recolhe um pássaro que está magoado numa estação de comboios a pedido dos seus
filhos, que decidem cuidar dele. Depois de o guardar na mala, e da procedente conversa
sobre como na natureza os animais tratam as suas crias e a forma como a influência
humana pode ser decisiva para a morte destes enquanto jovens, Léna, quando chegada à
casa dos seus pais, procura o pássaro e descobre-o morto. E é aqui que Honoré faz uma
sequência narrativa altamente simbólica, ou que pelo menos podemos usar a nosso
favor: Léna esconde o pássaro numa caixa de um jogo. Convoca uma reunião familiar
(mais especificamente entre os seus irmãos) para encontrar a melhor forma de não só
esconder o morto como de, no fundo, ritualizar a sua morte. A conversa toma um tom
místico onde os elementos (água, fogo) e espíritos são referidos, num eco de uma cultura
supersticiosa — acabam por enterrar o pássaro no seu caixão (caixa de jogo). E por fim
Frédérique, a irmã de Léna que se encontra grávida diz: «Não se perdeu apenas um
pássaro, perdeu-se acima de tudo um não percas a bola [nome do jogo]». A nós, resta-nos
a ideia de Huizinga: a de jogo (ritual) envolvendo a morte.
42
Ibid., p.79
Como este último sintetiza: «Assim, nossas idéias de culto, magia, liturgia,
sacramento e mistério seriam todas abrangidas pelo conceito de jogo»43.
Esta busca de conhecimento ocorre em enigmas ancestrais, explanados por
Huizinga, que consistiam, muito à semelhança do que ocorre hoje, em situações de
pergunta e resposta. O carácter lúdico destas situações era duplo: por um lado, os rituais
sacrificiais eram o terreno apropriado, e estas questões filosóficas, místicas, etc., faziam
parte do ritual; por outro lado, a questão além de embutida num ritual lúdico (como
queremos provar ser), elas próprias tinham esse carácter. Até aos tempos que correm
temos registos, por exemplo da cultura grega, de concursos de enigmas, jogos de questões
que nos levam a explorar conhecimentos até então pouco aprofundados.
Aproximemo-nos do artista: este, ao arriscar a manutenção da vida, ao jogar,
trabalha também para obter conhecimento de várias ordens: física, filosófica, mística,
etc.. Mas qual a relação direta entre a obra e o jogo?
Avancemos pois para a relação, à luz de Huizinga, entre o jogo e a poesia.
«[E]nquanto nas formas mais complexas da vida social a religião, o direito, a
guerra e a política vão gradualmente perdendo o contato com o jogo, que nas fases mais
43
Ibid., p.17
antigas se revestia da maior importância, a função do poeta continua situada na esfera
lúdica em que nasceu»44.
Creio que, mais uma vez, podemos distanciar-nos da palavra poeta e tomar esta
expressão como exemplo de toda a criação artística. Assim sendo, não nos será difícil
reconhecer nela verdade: a poesia não deixou de apresentar-se «simultaneamente [como]
ritual, divertimento, arte, invenção de enigmas, doutrina, persuasão, feitiçaria,
adivinhação, profecia e competição»45 — como jogo.
«Toda poesia tem origem no jogo: o jogo sagrado do culto, o jogo festivo da corte
amorosa, o jogo marcial da competição, o jogo combativo da emulação da troca e da
invetiva, o jogo ligeiro do humor e da prontidão. Até que ponto se mantém esta qualidade
lúdica da poesia, à medida que a civilização se vai tornando mais complexa?46».
No caso presente, interessa-nos considerar de que forma o mito, como poesia, é
ele também um jogo e quais as regras que delimitam as ações de Midas.
44
Ibid., p.88
45
Ibid., p.88
46
Ibid., p.95
Para Huizinga, os limites mitológicos são pouco claros quando afirma que «não
está ainda rigidamente traçada a linha que separa aquilo que é apenas concebível e o que
é nitidamente impossível»47. O que faz com que se instalem algumas dúvidas sobre a
forma como a poesia mitológica era entendida em seu tempo. No entanto, segundo
Huizinga, a partir do momento em que cresce a mitologia, há uma tendência para o lado
lúdico das narrações se dissipar, embora nunca por completo.
O mito de Midas cumpre então um papel de jogo que procura o conhecimento, já
tornado sério pelo tempo.
A estrutura dos poemas, a saber: métrica, rima, aliteração, etc., é então o elemento
unificador de todas estas narrativas poéticas.
«Esse denominador comum a que se deve a surpreendente uniformidade e
limitação dos modos de expressão poética em todas as épocas da sociedade humana,
talvez possa ser encontrado no fato de a função criadora a que chamamos poesia ter suas
raízes numa função ainda mais primordial do que a própria cultura, a saber, o jogo»48.
Chamo a atenção para, por exemplo, os textos de Ovídio ainda abrigarem
vestígios desses enigmas e o espirito lúdico que Huizinga descreve.
47
Ibid., p.95
48
Ibid., p.97
Huizinga alerta-nos para um fator importante para esta indagação: «O fato de a
poesia, no sentido mais amplo da poiesis grega, sempre se encontrar dentro da esfera do
jogo, não significa que seu caráter essencialmente lúdico seja sempre conscientemente
mantido. A epopeia perde sua relação com o jogo a partir do momento em que não se
destina mais a ser recitada em ocasiões festivas, mas apenas a ser lida»49.
O que significa então que o mito que nos abriu caminho para entender o gesto
transformador do artista está inscrito, enquanto criação, no campo alargado de todas as
coisas criadas pelo homem como poiesis, e como tal descende dessa ideia de jogo, apesar
de já não ser compreendido com essa finalidade. Resta-nos encontrar na arte os
“vestígios” desse jogo primordial que originou a cultura.
Encontramos dois problemas à partida: ao contrário da música ou da poesia, as
artes plásticas têm desde logo uma limitação espacial que não lhes permite tamanha
liberdade. E «[a] ausência de qualquer espécie de ação pública para a realização da obra
de arte plástica parece não deixar lugar para o fator lúdico»50.
Para Huizinga, o fator lúdico reside na forma como as artes (plásticas) entraram
na vida social, através da religião e das festividades próprias de cada cultura.
Essencialmente porque despista o trabalho de construção da obra (seja pintura, escultura
49
Ibid., p.105
50
Ibid., p.120
ou arquitetura) como um trabalho e por isso afastado das instâncias lúdicas. Aponta no
entanto o processo de conceção de cada obra como uma derivação do jogo. Como um
pensamento primordial, quase infantil. Compreende no entanto esse lado lúdico no
desenrolar da história da arte, e principalmente na ideia de obra-prima, que para ele
transporta um carácter de competição, e por isso lúdico, que fez desenrolar a história.
Este argumento não nos trará qualquer clareza sobre a origem da arte e como tal, não o
seguiremos.
Concluído o nosso desdobramento do que significa jogo para Huizinga, passamos
diretamente para Bataille. Pois, para este, o trabalho do artista é mais do que um mero
trabalho como para Hegel (libertador da serventia para com o mestre). Para Bataille, o
“trabalho artístico” é libertador do trabalho (no sentido hegeliano do termo), o mesmo é
dizer: libertador da serventia, da manutenção da vida, e primeiramente por ter um
carácter lúdico que Huizinga não reconheceu. A arte é assim, segundo Bataille, fruto de
um trabalho improdutivo, um fim em si mesmo.
Como ele descreve: «Homo Ludens não é apenas adequado àquele cujas obras
deram à verdade humana a virtude e a claridade da arte, a humanidade inteira é
exatamente designada como tal. Não será, além disso, o único nome que se opõe a faber,
designando uma atividade subordinada, um elemento, o jogo, cujo sentido não releva de
outro fim a não ser dele mesmo?51».
Creio que esta citação nos aponta muito diretamente para o texto de Heidegger, A
Origem da Obra de Arte, onde este descreve a obra de arte como desligada da serventia,
51 Bataille, Lascaux… Op. Cit. pp.35-36
da funcionalidade, ou seja, um fim em si própria (ao contrário do que é um utensílio), e
reveladora de uma verdade (original), pelo facto de desvelar o ser de cada coisa (que
portanto a coisa não revela).
Encontrando outro caso audiovisual, onde o revelar da origem da obra se
encontra presente nela própria, mais especificamente através da sua forma. Violin Tuned
DEAD de Bruce Nauman traz para a luz essa relação entre a acção (criação) e a
origem, o que precede a forma. De cada vez que Nauman toca no violino codifica a
palavra Morto.
Mas há um outro um elemento que poderemos juntar a esta incursão: é que, em
língua inglesa (e já Huizinga diz que é a expressão contemporânea que, pela sua relação
com a origem, melhor descreve o jogo), Play tem diferentes significados: tocar, jogar,
representar etc. e isso traz-nos outra luz à peça. Ele toca na morte, joga com ela e, por
fim, representa-a ou dá-lhe forma.
c) Formar o dom
Antes de mais, voltemos a Diderot e à leitura de Lacoue-Labarthe.
Tomando o dom de Midas como elemento estável onde o seu próprio pedido
enuncia as faculdades de que necessita, resta-nos perceber então o que faz com que o dom
do artista possibilite a criação, uma vez que não há pedido nem renúncia: não há nada.
Midas não trabalha o seu medo da morte porque já é senhor: a sua condição social
não é de subordinação mas, antes, de domínio. Mas, para além disso, e regressando à
questão do dom, Midas não cria porque o seu dom é efetivamente algo de particular
(transformando tudo o que toca em ouro), por oposição ao dom do artista que é um dom
sem quaisquer características: a este, com efeito e em contrapartida, é-lhe concedido um
dom geral, isto é, num certo sentido, é-lhe atribuído nada.
Este sentido é compreensível, uma vez mais, à luz do texto de Lacoue-Labarthe
— que chega a afirmar que o dom do artista é o «dom de nada», de nada quase possa
tornar presente: é o dom da criação.
Vejamos como se apresenta o argumento.
Este dom é «o dom que a natureza faz de si mesma, não enquanto ela própria já
está dada ou presente, “naturada” como se dizia na época, mas enquanto ela é mais
essencialmente (retirada, e sempre retirada relativamente à sua presença) pura e
inapreensível poiesis: força produtora ou formadora, energia no sentido estrito, perpétuo
movimento da apresentação»52.
Importa para já reter duas ideias deste excerto: primeiramente o facto da natureza,
ela própria, enquanto dom, ser a poiesis, em segundo lugar o realce de Phillippe Lacoue-
Labarthe para o facto da natureza (physis) ser retirada relativamente à sua presença (aos
dados naturais).
Estas duas ideias estão intrinsecamente ligadas, se não vejamos: o facto da
natureza estar retirada relativamente à sua presença faz com que seja o artista a dar-lhe
forma, e de alguma forma completar, formar tudo o que esta não formou.
«[D]om de nada, a não ser da “aptidão” de apresentar, isto é, de se substituir à
própria natureza, de fazer (de) natureza, para, com a ajuda da sua força e do seu poder
52 Lacoue-Labarthe, Philippe. Diderot, o paradoxo e a mimes, tradução de Tomás Maia,. Lisboa: projecto teatral. p.26
próprios, suprir a incapacidade desta e terminar, efetuar o que ela não pode pôr em obra
— aquilo para que a sua energia, sem substituto, não é suficiente»53
.
Isto implica que a criação suprime e supre uma falta da natureza, — da natureza
(já) dada em todo o caso. O dom é a vertigem da ausência que compele o artista a formar
algo para preencher essa ausência, esse nada.
Com esta afirmação, podemos desde já tirar uma conclusão: o dom de Midas, pelo
facto de ser objetivo, no sentido de que o seu proceder depende substantivamente dos
dados, da natureza “naturada” que o rodeia, não é um dom da criação; já o artista, por não
lhe ser concedido nada, no sentido de Lacoue-Labarthe, tem de dar forma ao dom: a
Forma-Obra é a manifestação do dom, a manifestação de uma natureza “naturante”
(aquela que cria (physis) por oposição à “naturada”).
Mais uma vez chegamos a Heidegger: a obra de arte revela a verdade velada em
cada coisa, mostra-nos o dom em si.
53 Ibid., p.26
Conclusão: a transgressão, e a possibilidade da vida
A transgressão, como sabemos, toma um lugar inegável na relação com o
interdito. Pois é através dela que poderemos aceder a este. O jogo, a par da festa, são para
Bataille as duas primeiras manifestações de transgressão.
«As formas de arte não têm outra origem que a festa de todos os tempos, e a festa,
que é religiosa, liga-se ao desenvolvimento de todos os recursos da arte. Não podemos
imaginar uma arte independente do movimento que gera a festa»54.
As festas religiosas primitivas, na maior parte dos casos, eram centradas num
sacrifício, e em muitas delas, como descreve Huizinga, havia um ritual de início que
consistia num jogo, enigmas relacionados com a criação da vida, com a morte o os
mistérios interditos ao conhecimento humano.
54 Bataille, Lascaux... Op. Cit. p.38
A obra de arte revela-se pois neste contexto lúdico, de jogo trágico e angustiante
(como adjetiva Bataille), do sacrifício da vida para o reconhecimento da morte e da sua
dimensão. No entanto, como já sabemos, por não contribuir para a manutenção da vida,
por não ser um trabalho que traz vantagem nesse sentido, acaba também ela, a obra, por
ser um sacrifício (embora, como veremos adiante, não executado na sua plenitude), pois
não só os objetivos são os mesmos (ambos têm uma ligação simbólica primitiva) como o
ganho efetivo de quem os executa é nulo em ambos os casos.
«Uma obra de arte, um sacrifício, participam, se me faço entender, de um espírito
festivo que ultrapassa o mundo do trabalho e, se não a letra, o espírito dos interditos
necessários para proteger esse mundo»55.
Sigamos com atenção o excerto de Bataille. O interdito é pois o elemento que
sustenta (protege) o mundo do trabalho, pois este surge da impossibilidade de
compreensão do interdito, do medo pela morte. A arte (substituindo o sacrifício) torna-se
duplamente transgressora, se assim o posso dizer: por um lado, ela transcende o mundo
do trabalho, por outro transcende o próprio interdito.
«[T]odo o sacrifício tem um significado específico, como a abundância das
colheitas, a expiação ou qualquer outra finalidade lógica: ele responde de alguma forma à
procura de um momento sagrado, para lá do tempo profano, ou do interdito, assegura a
possibilidade da vida»56.
55 Ibid., p.39
56 Ibid., p.39
No entanto, seguindo o paralelismo que estamos a fazer entre Midas e o artista,
não parece que o gesto de Midas, ainda que transgressor (como veremos), assegure a
vida.
Falemos então da última consequência do mito de Midas: a renúncia.
A renúncia de Midas ao seu dom deve-se ao facto deste entender que se
continuasse sob o seu efeito morreria:
«No meio da sua alegria, os serviçais põem a mesa com pilhas de iguarias, sem
faltar o cereal torrado. Ora, então, na verdade, se ele tocara com a mão direita nos
presentes de Ceres, as ofertas de Ceres endureciam; e se se aprontava a rasgar a comida
com os dentes ávidos, ao tocar com o dente, uma lâmina fulva recobria a comida; e se
misturava o autor daquela sua prenda com água pura, poderias ver o ouro liquefeito a
escorrer-lhe da boca»57.
Midas, arrependido, pede a Leneu que lhe tire o dom (maldição) a que está
submetido. Baco (Dioniso) manda-o, a fim de se “lavar do seu crime”, banhar-se na zona
mais turbulenta da Sardes.
«O rei obedeceu e pôs-se sob a torrente: o poder de transformarem ouro tingiu o
rio e passou do corpo humano para as águas»58.
57 Ovídio, Metamorfoses, Op. Cit. p.270
58 Ibid., p.271
Parece-me fundamental esta etapa do mito, pois não só demonstra um afastamento
radical em relação ao artista, sendo que o segundo não poderá renunciar por completo ao
seu dom, como também nos revela uma interferência na dialética mestre-servo e abre-nos
outro caminho para o analisarmos.
Para já deveremos recuar um pouco, visto que as consequências do dom de Midas
têm sido menos exploradas, para entender que tipo de relação tem o dom de Midas com
todos os pontos anteriormente visitados. Já sabemos à partida que Midas não cria, apenas
transforma dados. Já sabemos também que o seu dom não é um dom revelador da
natureza, como o do artista, mas sim um dom que encerra uma certa natureza.
Sabemo-lo negador, no entanto falta-nos desdobrar essa negação deixada para trás
em prol da procura da origem do gesto artístico. Sem perder em vista o paralelismo entre
ambos, o dom de Midas não só é negador da natureza (e assim se enunciou o paradoxo
inicial) como também o seu gesto nega a sua própria natureza pelo facto de suspender o
trabalho de manutenção da vida indeterminadamente. Midas tornou-se escravo do seu
dom.
Podemos fazer uma comparação breve com o artista, o qual, mesmo dando forma
ao dom, não deixa de trabalhar para alimentar o animal (natural) que existe nele. Nunca
se sacrifica na plenitude (mesmo sem renunciar ao seu dom).
Lars Von Trier no entanto cai numa perspectiva moralista: o dom de Justine não é
fim em si mesmo. Justine sacrifica-se com um fim específico. Assistimos a uma espécie de
alívio dos seus sintomas à medida que Melancholia se aproxima da Terra. Justine
acredita que o seu sacrifício e o fim da vida no Universo é uma protecção para a
natureza. Que a vida é má. Que a humanidade não merece viver (Justine sabe ainda que,
em todo o universo, apenas existe vida na terra). Ela salvaguarda a natureza da vida.
Este exemplo podernos-à demarcar dos dois exemplos centrais, mesmo contendo
características semelhantes.
Justine nunca renuncia ao seu dom, e essa é a ultima diferença. Mas atentos ao
desenrolar do seu dom conseguimos perceber que esta, ao contrário de Midas não actua
sobre um ou outro objecto mas sim na totalidade. Por outro lado, em comparação com o
artista, Justine usa o seu dom sem produzir, o seu gesto é puramente negativo. Ele é a
negação do artista que forma o dom.
Terier sim, constrói o sacrifício simbólico, e forma Melancholia.
A serventia mortal ao dom que Midas carrega será o despoletar do encerramento
do mito e da renúncia de Midas a este, pois morrerá se não o fizer. Isto significa que
Dioniso (recordo: o símbolo da natureza, no sentido produtivo, “naturante”) concede a
Midas um dom que o matará, que suspende definitivamente todo o trabalho de
manutenção da vida, Midas será simultaneamente mestre e escravo, sendo que isso
acontece nefastamente, ou seja, Midas torna-se mestre da morte, carrega com ele o poder
de desvitalizar não só os dados naturais como ele próprio, é servo do seu dom, que será
em ultima instância o dom da morte (não será então escravo da vida), que o inibe de
trabalhar. Midas não pode dar forma ao seu dom, pois este apresenta-se em si. Midas, em
última instância, é uma morte que carrega outra morte sem que ambas alguma vez se
toquem. Midas, enquanto viver, é o próprio sacrifício.
Para concluir, não podemos deixar de notar duas coisas: primeiramente, o dom de
Midas é transgressor, no sentido de Bataille. Tem em vista a transgressão, a compreensão
do que é a morte, apesar da sua formulação não ser explícita quanto a isso. Parece haver
(até mesmo para a moral do mito funcionar) da parte de Dioniso uma intenção de fazer
Midas entender a vertigem que é a suspensão do trabalho. E transgressor também
precisamente por suspender, tal como a arte, esse mesmo trabalho.
Em segundo lugar, parece haver também um carácter lúdico, de diversão, no gesto
de Midas. Sendo que este é consequência de uma celebração pela sua bondade para com
Sileno.
Terminaremos então com a transposição da renúncia de Midas para o gesto do
artista, pois este também nunca se sacrificará totalmente. O ator de Diderot não poderá
representar eternamente. Então, se para Bataille a obra é sacrifício, o artista deverá
morrer? Creio que não. Esse sacrifício é parte daquilo que nos revela a origem, e que
excede a coisa de Heidegger. É sacrifício simbólico. Ou melhor, é uma simulação de um
sacrifício, pois nunca chega a terminar e está em perpétuo devir. A obra é símbolo de um
sacrifício pessoal para a compreensão do interdito, sem nunca lhe tocar. A obra estabelece
o balanço entre a manutenção da vida e a mestria da morte. E o corpo do artista — como
o corpo de Midas — é o preenchimento desse espaço entre as duas coisas, e o gesto é
simultaneamente morte e nascimento. É vida.
«Avançamos com uma espécie de certeza que, no sentido forte [do termo], a
transgressão só existe a partir do momento em que a própria arte se manifesta e que,
pouco mais ou menos, o nascimento da arte coincide, na Idade da rena, com um tumulto
de jogo e festa, anunciado no fundo das cavernas por figuras onde eclode a vida que
sempre se ultrapassa e efetua no jogo da morte e do nascimento»59
.
Bibliografia
Bataille, Georges, Lascaux ou la naissance de l’art. Genebra: Skira, 1994
Diderot, Paradoxo Sobre o Actor, Tradução de , Lisboa: Hiena Editora, 1993
Haar, Michel, L'œuvre d'art. Essai sur l'ontologie des œuvres, Paris: Hatier, 1994
Heidegger, Martin, A Origem da Obra de Arte, tradução de Maria da Conceição Costa,
Lisboa: Edições 70, 2010
Huizinga, Johan. Homo Ludens, tradução de João Paulo Monteiro, São Paulo: Editora
Perspectiva, 2000
Kojève, Alexandre, Breve introdução à leitura de Hegel, tradução de Pedro Jofre. Paris:
Farândola, 1998
Lacoue-Labarthe, Philippe. O paradoxo e a mimese, tradução de Tomás Maia. Lisboa:
Projecto Teatral, 2011
59 Bataille, Lascaux… Op. Cit. p.38
Lhano, Pedro. Gutiérrez, Xosé Lois. Ed., En Tiempo Real: El Arte mientras tiene lugar,
Corunha: Fundación Luis Seoane, 2001
Ovídio, Metamorfoses, tradução de Paulo F. Alberto, Lisboa: Livros Cotovia, 2007