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A P R E N D E R Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação

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A P R E N D E RCaderno de Filosofia

e Psicologia da Educação

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Campus Universitário – Caixa Postal 95Estrada do Bem Querer, Km 4 – 45083-900 – Vitória da Conquista – BA

Fone: 77 3424-8716 - E-mail: [email protected]

REITORProf. Abel Rebouças São José

VICE-REITORAProfª Jussara Maria Camilo dos Santos

PRÓ-REITOR – PROEX

Prof. Paulo Sérgio Cavalcante CostaDiretora do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia (DFCH)

Profª Cláudia Albuquerque de LimaDIRETOR – EDIÇÕES UESB

Jacinto Braz David Filho

COMITÊ EDITORIAL

Profª Ana Maria dos Santos RochaProf. Antonio Jorge Del Rei Mouratos

Prof. Jovino Moreira da SilvaProf. Marcello Moreira

Prof. Marco Antônio Araúijo LonguinhosProf. Nelson dos Santos Cardoso Júnior

Prof. Paulo Sérgio Cavalcante Costa

100A661a

Aprender – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. Ano II, n. 2, jan./jun. 2004. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2004

Semestral.ISSN 1678-78461. Filosofia – Periódicos. 2. Psicologia. I. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. II. Título.

Catalogação na publicação: Biblioteca Central da Uesb

Indicações de permutaAceitamos permutas por periódicos de áreas afins, em especial de Educação, Filosofia e Psicologia. Os contatospara essa finalidade podem ser feitos através dos endereços eletrônicos: [email protected] [email protected]

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

A P R E N D E RCaderno de Filosofia

e Psicologia da Educação

ISSN 1678-7846

APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 2 p. 3-118 2004

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APRENDERCaderno de Filosofia e Psicologia da Educação

Caderno do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas daUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Ano II – n. 2, jan./jun. 2004

Editores ResponsáveisProf. Ms. Leonardo Maia Bastos Machado – UesbProf. Ms. Ruben de Oliveira Nascimento – Uesb

Editoria CientíficaProf.ª Ms. Ana Lucia Castilhano de Araújo – UesbProf.ª Ms. Caroline Vasconcellos Ribeiro – Uesb

Prof. Ms. José Luís Caetano – UesbProf. Dr. Marcelo Martins Barreira – Uesb

Prof.ª Ms. Zamara Araújo dos Santos – Uesb/Uesc

Conselho EditorialProf.ª Dr.ª Ana Elisabeth Santos Alves – Uesb

Prof. Dr. Carlos Henrique de Souza Gerken – UFSJProf. Dr. Dante Galeffi – Ufba

Prof. Dr. Delba Teixeira Rodrigues Barros – UFMGProf. Dr. Diógenes Cândido de Lima – Uesb

Prof. Dr. Filipe Ceppas – UGF/PUC-RioProf. Dr. Francisco Moura – UfopProf. Dr. João Carlos Salles – Ufba

Prof. Dr. José Carlos Araújo – UnitriProf. Dr. Maria Iza Pinto Amorim Leite – Uesb

Prof.ª Dr.ª Maria Luiza Camargos Torres – UnivaleProf. Dr. Milenna Brun – Uefs

Prof.ª Dr.ª Marilena Ristum – UfbaProf.ª Ms. Rosane Lopes Araújo Magalhães – Uesc

Prof. Dr. Silvio Gallo – Unicamp

APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da EducaçãoUNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA (UESB)

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45083-900 – Vitória da Conquista – BAFone: 77 3424-8652

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SUMÁRIO

Apresentação.....................................................................................................................................7

A educação pelo fora – Pedagogia e Filosofia da diferençaLeonardo Maia .............................................................................................................................. 9-21

Facetas da alienação: uma abordagem teóricaGustavo Gadelha .......................................................................................................................... 23-34

Uma escuta heideggeriana ao problema da educaçãoFlávio de Oliveira Silva ............................................................................................................... 35-46

O problema da educação na filosofia da razão vital de Ortega Y GassetDanilo Santos Dornas .................................................................................................................. 47-57

Violência: uma forma de expressão da escola?Marilena Ristum ......................................................................................................................... 59-68

A investigação com crianças: especificidades teórico-metodológicasHerculano Ricardo Campos e Rosangela Franchiscini ....................................................................... 69-77

Reflexões sobre a educação inclusiva e sua implicação no desenvolvimento da aprendizagemde alunos com necessidades especiaisRita de Cássia Souza Nascimento .................................................................................................. 79-91

Vygotsky, interacionismo sócio-discursivo e alfabetização de adultos: interfaces teóricas ereflexões sobre a ação pedagógicaLicia Rosalee Nascimento Moraes de Santana ................................................................................. 93-103

A teoria das representações sociais de Serge Moscovici e sua importância para a pesquisa emeducaçãoNilma Margarida de Castro Crusoé .......................................................................................... 105-114

Normas para apresentação de trabalhos ............................................................................... 115-116

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APRESENTAÇÃO

Ao longo da história, a educação sempre fez parte da trajetória humana. Com suas inúmerasformas de realização, o processo educacional sempre envolveu um importante aspecto: o conhecimento.

O conhecimento fundamentado no assombro do desconhecido temido e dominadomagicamente; na observação dos fatos ou nas idéias sobre a realidade; no método científico depensar a realidade; nas formas de socialização do saber; nos símbolos e códigos que desenham opensamento; nos instrumentos e na cultura multiforme; na complexidade. Na produção doconhecimento, a construção de um mundo percebido e compartilhado.

O homem, quando conhece, não apenas descobre, mas também recria. Descobrindo e recriandoo mundo, somos seus artífices, na medida em que sobre ele nos debruçamos e o interpretamos.

Nesse encontro entre sujeito que conhece e o mundo que é conhecido, em diferentes propósitoseducacionais, a Filosofia e a Psicologia formam um campo vasto e interligado de perguntas ecompreensões sobre essa relação sujeito-mundo.

Com o propósito de estudar o processo educacional por meio de contribuições da Filosofia eda Psicologia da Educação, foi criado o APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação,uma publicação semestral que pretende reunir e divulgar artigos, ensaios, monografias, relatos depesquisas e resenhas que tratem do processo educacional em suas variáveis filosóficas e psicológicas,ou contribuições de outras áreas de conhecimento que discutam o processo educacional, de acordocom a linha editorial do APRENDER.

Os editores.

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APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 2 p. 9-21 2004

1 Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professor da Universidade Estadual doSudoeste da Bahia (Uesb).

A EDUCAÇÃO PELO FORA – PEDAGOGIA E FILOSOFIA DADIFERENÇA

Leonardo Maia1

RESUMOA educação encontra seu princípio formador num processo de ‘condução para fora’. Quais exatamenteas condições de realização desse princípio atualmente? Ela encontraria uma inspiração possível naFilosofia da diferença contemporânea, que teve no fora um dos seus temas maiores.PALAVRAS-CHAVE: Pensamento contemporâneo. Filosofia da diferença. Fora.

Uma questão sempre relevante no campo do pensamento é a de se buscar precisar que linhasdemarcam o terreno de sua atividade, quais seus contornos e, portanto, qual seu lugar de direito notempo que é o seu. Não que se pretenda que o pensamento, em especial o filosófico, se fixe em umlocus estanque: trata-se, isto sim, sem qualquer prejuízo a seus necessários movimentos, de investigarse haveria ainda um arco especial de atribuições, de características puras de sua atividade. O problematalvez se torne mais claro se tomado ao revés, a partir de uma compreensão minimalista: o quepermite, ainda hoje, dar o nome comum de ‘filosofia’ a atividades tão diferenciadas quanto a lógicamatemática, a estética ou a teoria política? Qual o mínimo elemento aproximativo a enfeixá-las? Nãoresta dúvida de que, se tentamos estabelecer um plano único de inscrição para a filosofia atual,seremos obrigados a considerar que a resposta possível é na verdade incontornavelmente múltipla, epor isso mesmo ambígua. Desenhando-se como uma obra aberta, a filosofia contemporânea temvárias entradas independentes, vários registros, vários níveis de problematização e, possivelmente,não há mesmo para eles um termo comum que os possa unificar.

Em todo caso, essa mesma multiplicação de planos e campos foi determinante, por outro lado,para que se reconsiderasse o próprio lugar da filosofia e, com esse deslocamento, também para queum novo regime de pesquisa se apresentasse. Cumpre sempre lembrar que ‘o que é a filosofia?’ é umapergunta que só pode encontrar validade quando justamente um sentido antes pressuposto torna-se

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já inevidente. E, portanto, é uma pergunta que, com esse estatuto de um problema decisivo,necessariamente só se poderia atacar tardiamente, diante de diferenças e complexidades que se mostramirredutíveis. Assim, é somente neste último século que tal questão, antes quase inteiramente confinadaao plano especial da história da filosofia, risca o céu das idéias para tornar-se,talvez, o problemafilosófico contemporâneo por excelência. A filosofia parece então concentrar-se em uma interrogaçãosobre si mesma e que, por todas as razões, é vital para a manutenção autônoma de sua atividade oupara a redefinição de suas atribuições constitutivas. Dentre os desenvolvimentos que aí se originam,a compreensão nietzschiana se destaca: a filosofia se desprendeu de sua posição originária porquesofreu uma clara ação do tempo. Mais exatamente, ela reflete um esvaziamento que é característicodeste tempo presente. E assim, se na aragem dessa (nova) ausência pode-se reconhecer o apontar doniilismo (no mundo e no pensamento), é esta também a hora de uma nova questão e de um novocomeço. E a filosofia, para Nietzsche, é a oportunidade de ambos, questão e começo. Para tanto,contudo, ela tem de ser ainda, e em primeiro lugar, uma potência de diagnóstico do campo deacontecimentos ao seu redor.

Essa condição inédita deve suscitar toda uma recolocação do pensamento. Há agora uma questãoadventícia adicional, sobre a relação do pensamento e seu momento, e, sobretudo, as condições parase pensar tal problema. Para não irmos muito longe, a obra de Foucault dobra-se já segundo estaexigência nietzschiana e temas como os da episteme ou da história do presente refletem essa necessidadede dupla vinculação entre pensamento e tempo.

O resultado mais claro dessa inflexão seria talvez, sem que a filosofia se transforme então comisso em uma sociosofia, isto é, em um tipo de saber que se fixa meramente sobre a atualidade correntedo tempo, ou em um modo diferenciado de recensear esta atualidade, que todo um novo territórioconceitual deverá ser fixado. O tempo vem a ter uma centralidade, enquanto problema, possivelmentenunca antes experimentada, sendo ele próprio objeto de uma investigação especial, mas já comimplicações até para o estabelecimento de um novo ordenamento filosófico. Temos então aí outradestas questões cuja forma de vigência altera-se significativamente no último século. Questão que é,em parte, já o desdobramento daquela primeira – o que é a filosofia? – em uma segunda de igualdificuldade: qual o nosso tempo? Em que tempo estamos, exatamente? E pergunta que, mais umavez, é fonte de absolutas ambigüidades e desencontros. Ao que parece, trata-se em especial de provocarum movimento de desvencilhamento, de buscar situar o pensamento para além das camadassuperpostas, midiáticas, ideológicas, mercadológicas, sem que, com isso, por outro lado, ele se desveleapenas segundo uma determinação negativa ou se reduza a uma pura abstração ou ficção. Nessecaso, como para a própria atividade filosófica, não é talvez possível apontar um único estrato comum,mas a questão passa a ser, propriamente, o que nos exige neste tempo, em que ele nos implica, ondeele exatamente nos alcança a todos. O que se pretende não é um resumo da atualidade, mas umquadro que se desenha a partir de suas linhas intensas.

Um tipo de questionamento novo começa a ganhar sentido com todo esses deslocamentos. Umexemplo: Michel Serres considera que não houve uma mudança considerável no plano do pensamentoque respondesse adequadamente ao que foram os grandes acontecimentos do último século, emespecial o advento da bomba atômica. O impacto da bomba, da morte massiva, permaneceu surdo einvisível. Mudou o mundo, não mudara com ele o pensamento. Este, ao final, permanecera fixadonos mesmos modelos clássicos que desde o início deveram orientar a filosofia.

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Mas a importância contida na pergunta está mesmo no fato de que ela possibilita desenhar umadificuldade muito mais ampla: com relativa facilidade, se poderia estender a situação de ausênciaindicada por Serres a outros domínios filosóficos. Por exemplo, teria o pensamento produzido umateoria da imagem que permitisse dar conta da formação social atual, atravessada permanentementepela televisão, pelo computador e pelas demais mídias visuais? Assim como a bomba, a filosofiatambém pouco pensou o cinema e a televisão. Teria o pensamento, por outro lado, já estabelecido umcorreto aggiornamento de suas concepções da democracia, após a recente torção desta pelo capital?Ou seja, boa parte dos eventos centrais do último século pareceriam, enfim, ainda à deriva, no queconcerne à sua adequada conceitualização...

Ou seja, no espírito da posição nietzschiana, mesmo involuntariamente a filosofia se reorientae redefine, mas estaríamos ainda apenas diante de uma nova aurora, de uma nova aventura dopensamento...

É possível que as concepções da chamada Filosofia da Diferença, refletindo os acontecimentosdo final dos anos 60, e de anos anteriores, tenham significado em especial uma atendimento a esterequisitação nietzchiana. Tanto a obra de Foucault, como mais ainda o pensamento de Deleuze eGuattari, sempre tributários de uma vinculação a maio de 68, parecem ter como objetivo maiorquebrar uma antiga linha de continuidade, responder a essas questões sem resposta, reconfigurandoos temas centrais da filosofia, ao mesmo tempo procurando, por exemplo, determinar o esgotamentodo subjetivismo, do sujeito individual e coletivo, e mais amplamente, da própria centralidade de umaantropologia tipicamente moderna, além de estabelecer uma nova configuração do mundo, cortadode um lado por formas de poder e controle inéditas bem como por construções imanentes singularese por isso mesmo revigorantes.

Mas, ainda que grandemente arrojadas, o alcance reordenador dessas novas linhagensinterpretativas não permite talvez considerá-las como a ansiada resposta: elas estão de fato, mesmoagora, ainda muito distantes de nós. Permanecem em grande medida abstratas, dentro de um cadastroespecial, de efeitos locais, teóricos, ou pior, inócuas, se considerado sua potencial capacidade derenovação da interpretação de nossa condição contemporânea. E nesse caso, a situação não é diferentepara as filosofias outras que a tinham imediatamente precedido. Por mais preciso que fosse odiagnóstico das teorias críticas da contemporaneidade que se sucederam ao longo do último século,elas parecem mover-se sempre num plano ainda exterior ao mundo.

Ou seja, diante do que dizíamos de início, a necessidade imperativa do diagnóstico filosóficopassaria nessas condições por uma primeira questão: por que o tempo, ao longo do último século,mostrou-se especialmente refratário ao pensamento? Quase todas as grandes criações contemporâneasnas artes, ciências e filosofia pareceram inteiramente destacadas, deslocadas em seu campo próprioou mesmo incompreensível, como uma afronta e uma usurpação de nossa condição habitual.

Se consideramos outros momentos históricos isso certamente soa como algo profundamentechocante. A tragédia grega é parte integrante da polis, e não apenas um evento cultural a mais. Ocidadão grego está ali envolvido! Por outro lado, os livros de Joyce permanecem hoje intransponíveisaté para os que têm pleno domínio da leitura. Mas se esse exemplo é talvez exagerado, é certo queverifica-se atualmente um distanciamento progressivo da sociedade em relação aos desenvolvimentosdo pensamento. E essa nova segmentaridade que se forja pouco a pouco é não apenas frustrante, masalienante no mais alto grau: desprovidos das experiências e das novas conquistas intelectuais, que

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relações podemos estabelecer, que meios teremos ainda de enfrentar autonomamente nossos desafiosfuturos? E toda essa nova condição humana se deve, em especial, a nosso ver, a um vazio educacional:ela se explica e se mantém porque as próprias concepções de educação e de formação nãoacompanharam minimamente os devires que nesses últimos tempos lançavam para trás a herança detodo um passado.

A CADUCIDADE PEDAGÓGICA CONTEMPORÂNEA

Se generalizássemos o problema apontado por Serres, é no campo da educação que possivelmenteveríamos sua manifestação mais plena: é ali justamente que a profunda mudança que careceria serimplementada parece se dar em menor grau, ser menos perceptível. É que por um lado, a família jáparece ter perdido de todo suas prerrogativas quanto a ser um ambiente verdadeiramente formador.Há hoje a vida própria do pai; há agora, também, a vida profissional da mãe, a vida do(s) filho(s), ecada um, no que resta do dia até o seu fim, dedicado ao refúgio solitário de sua própria subjetividadee às poucas instâncias e instrumentos que dela compartem, em especial o computador pessoal, esteúltimo amigo do homem. Ou à outra atividade freqüentemente tão isolada quanto, de forma que,muitas vezes, o exercício de preenchimento superficial desses recorrentes vazios individuais pareceser o que restou de um processo de formação possível. As vidas profissionais dos pais esvaziaram acasa e, ainda que não apenas por essa razão, a família forçosamente deveu transferir à escola ou àcreche responsabilidades antes exclusivas suas, como o cuidado com a criança e sua formação nosprimeiros anos. A estrutura atual padrão da família é sobretudo a de vidas pulverizadas, que se dãoem paralelo, há os pais que trabalham fora durante toda a semana e há os filhos que crescem emseparado, e é de fato muito difícil às vezes estabelecer uma visão de conjunto sobre um núcleofamiliar qualquer. Quais seus efetivos traços de união neste momento? Mas, se a família mudou, nãoparece ter encontrado, todavia, os meios para fazer tal mudança alcançar os processos de formaçãoque lhe tocavam; estes, insistamos, por força mesmo do grau e do caráter da mudança enfrentada, elafoi obrigada a passar adiante.

Por outro lado, a despeito de um debate constante, em absoluto se evidenciaram ainda osmeios para uma alteração significativa da instituição escolar. Dessa maneira, permanece a escolacom o caráter de ‘santuário’, tantas vezes repelido por teóricos da educação, os mais diversos;permanece a educação, ainda que se creia o contrário, como uma forma petrificada, um processoque, a partir de si mesmo, não foi capaz de levar até o fim uma crítica definitiva... Isso se constata,inclusive fisicamente, na manutenção generalizada do edifício escolar padrão, mas igualmente nomonolitismo que perpassa outros âmbitos educacionais, no que toca às construções curriculares, porexemplo. A formação propiciada em nossos dias é ainda muito próxima, em suas linhas mestras,daquela que foi destinada a nós em nossa infância, a nossos pais e, talvez, também mesmo a nossosavós.

Os efeitos dessa situação de paralisia são facilmente identificáveis. Se a história das sociedades,seja a da sociedade antiga, da medieval ou mesmo da moderna, indica que seus destinos, em grandeparte, se delineavam nas escolas ou universidades (e evidentemente também nas famílias), em tornode uma paidéia própria, se essa paidéia era ela mesma uma espécie de fundamento ou de pedra-de-toque para essas sociedades, hoje essa concepção de uma sociedade que se concebe e se constitui

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pedagogicamente, em torno de uma formação ou de um sentido comum a ser aprendido e em seguidacompartilhado, a partir, enfim, de uma idéia pedagógica fundante, parece de todo ultrapassada. Há umclaro desligamento da sociedade em relação aos processos educacionais, que deveriam ter, em princípio,ao menos a função de uma complementaridade social vital. Ao contrário, vivemos já, talvez, emtempos pós-pedagógicos: por mais que por toda parte se proclamem as virtudes cruciais do ensino ouse clame à exaustão por mais recursos e pelos necessários avanços que urge serem efetivados nocampo da educação, essa conversa mostra-se inteiramente frustrante a quem apenas se aproxima doaparelho educacional contemporâneo, e isso em todo lugar, sem grandes distinções entre os ditosprimeiro e terceiro mundos. Toda a cantilena atual em torno à importância do ensino e da educaçãoapenas dá seguimento à falsa impressão de um valor que de fato está perdido, a uma mitologia depropaganda: a de que vivemos ainda os tempos de uma centralidade pedagógica. E se hoje ela podeparecer até mais intensa, é na verdade apenas mais cansativa, pois que, ao final, seu efeito concretoé nenhum, flatus vocis... Concretamente, a educação não é mais um elemento interveniente decisivonos processos sociais, mas ao contrário, esses é que, de uma maneira ou de outra, se impõem à escola,isso quando não chegam a desertar dela por completo. Os desígnios sociais e individuais parecem sergestados em territórios muito distantes das efetivas possibilidades de alcance da educação, são hojeconcebidos e implementados em instâncias outras e, de modo geral, atingem a escola por uma formamais ou menos sutil de invasão, de fora para dentro, diante de uma recepção passiva. Retornando anossa questão inicial, a educação parece absolutamente impotente para enfrentar seu tempo...

É este, possivelmente, o principal legado no campo da educação que se herda do último século.Sua fragmentação e esvaziamento, seu deslocamento para um limbo social, seu desprestígioquotidiano... Trata-se, evidentemente, de um efeito do assalto da hegemonia capitalista, que seabsolutiza cada vez mais e que absorve também os processos de formação. E, como é de praxe nassociedades contemporâneas ocidentais, a escola e a educação já são regidas pelos valores organizativosdo capital, como a competição irrefletida, a disseminação de uma compreensão limitada e voltadapara a valorização da fórmula e outros modos de facilitação técnicos (ou seja, por tipos vários decondicionamento à técnica, ou mesmo já para um tipo de realização antes caracteristicamenteprofissional que educativo), cujo principal exemplo para nós é certamente ainda o vestibular, aabordagem dos conteúdos pedagógicos disciplinares conforme uma lógica das habilidades especiais(as ‘skills and qualifications’) – ‘bom-para-isso ou aquilo’, o direcionamento para a inserção profissionalcada vez mais antecipada e cada vez mais específica e menos crítica, porque cada vez mais segmentare menos totalizante. A partir dessa inflexão, as mudanças são tremendas. E mesmo alguns pontos quepoderiam aparecer em princípio como avanços, fosse um certo efeito de esvaziamento da formaclássica da educação e de seu caráter impositivo, segundo o projeto anarquista de um saber que nãose transmite, se adquire, ou se cria senão por vontade autônoma, chegam-nos já por outras vias,mostram na verdade o vazio atual do ensino, o monstro pedagógico contemporâneo: não sabemosmais o que ensinar, não temos mais o que dizer... E como não seria assim? Pois quais seriam aindaesses valores formadores a subsistir no seio do capitalismo generalizado? A democracia, a ética, ovalor intrínseco da competição? Mas onde estão, hoje em dia, os exemplos éticos, a efetiva democracia,o valor virtuoso que poderia revelar uma competição responsável?

Contra isso, cabe perguntar, que possibilidades de resistência ofereceria ainda a atividadeeducacional?

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O afastamento da educação do pensamento contemporâneo mostra-se então absolutamenteruinoso para ela. Não é por outra razão que os movimentos de reconfiguração epistemológica quecaracterizam boa parte dos saberes desde o início do último século não têm atingido a educaçãosenão, em especial, através de uma filtragem técnica – assim, as novas concepções didáticas, asdiferentes propostas de reformulação curricular, um recente juridismo educacional, manifesto no interesseexcessivo pelo conjunto de legislações específicas, elementos todos a indicar um reordenamentotecnicizante, micro-ergonômico, da concepção de educação. Por outro lado, a idéia mais plena deformação não pode senão se enfraquecer nesse quadro, e não há como negar que os próprios pedagogostêm alguma participação direta nisso, em especial pela adoção, por muitos deles, mesmoinconscientemente, de uma estratégia de segmentação que se inclina, seja para uma orientação pseudo-científica da construção pedagógica, seja mesmo para uma posição puramente mercadológica. Esteprocesso de evicção do valor e do sentido da educação tem então duas pontas – o empobrecimentodo caráter espiritual e formativo do ensino, por um lado, a tecnicização e o empenho ou atitudepragmáticos como falsa alternativa de manutenção das prerrogativas da pedagogia enquanto disciplina,por outro.

Para não irmos muito longe nesse diagnóstico, no que toca ao dimensionamento do impacto dodivórcio presente entre pedagogia e filosofia, basta que tomemos o exemplo bastante recente daFilosofia da Diferença, quase inteiramente negligenciada pelos estudos no campo da educação. Elaassume como um de seus temas centrais a questão do fora. Trata-se de buscar estabelecer o que é o fora,ou mais exatamente, o que está fora. O que se quer com isso? Posto desta maneira, o problema parecemuito impreciso. Afinal, como seria possível conceber o que está radicalmente para além de nossaexperiência? Ou, mais pragmaticamente, qual o valor de se pensar tal situação, qual a suacomunicabilidade com a experiência atual de nossas vidas? Porém, essa questão de imediato seredimensiona, se entendemos seu alcance organizativo e estratégico. Trata-se de conceber o ‘fora’como um valor, um efetivo operador para o pensamento. O fora, assim, ao mesmo tempo o amplia econstrange: ele o força a mergulhar permanentemente no regime do estranhamento, do thaumás, paraencontrar aí as suas condições de contínua renovação. Tomar tal idéia do fora como horizonte maiorda atividade do pensamento é a condição de possibilidade primeira para se ir além do quadro presentede um estado de coisas, de fazer valer propriamente as forças de criação do pensamento, e nãoapenas reduzir sua capacidade à de um mero recenseamento, de uma reflexão sobre algo já dado... Oque se quer, na verdade, face aos movimentos cada vez mais absorventes de uma sociedade decontrole gerencial e do mercado capitalista globalizado, é identificar quais os acontecimentos, quaisas linhas de fuga, que permitam vislumbrar outras alternativas constitutivas, que permitam ao mesmotempo preservar a instância crítica ao apontar, topologicamente, para novos espaços de liberdade e,como decorrência, numa reversão da compreensão tradicional, que venham a refundar ainda opensamento a partir de suas potencialidades criadoras (pensar entende-se, sobretudo, como pensar o que nãoestá posto e disposto ainda!). Ou seja, o fora, no caso, equivaleria aos modos e condições a seremencontradas para se pensar e sentir diferentemente, de dar-se a possibilidade de criar novaspossibilidades de vida. Trata-se assim, acima de tudo, de um tema que envolve em definitivo ascondições de liberação contemporâneas. Entretanto, tal questão, está claro, tem ao mesmo tempo umsentido metodológico, político, ou ainda meta-filosófico, organizativo. Por ela, libera-se um novométodo de abordagem e um processo de conceituação, um novo sentido e função da política, mas,

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evidentemente também, uma nova condição de criação para a filosofia, uma nova ‘imagem dopensamento’. Pensar é pensar a partir do fora, encontrar o sentido de desterritorialização que é a qualidademaior de um pensamento, – seu verdadeiro objetivo –, e que é também seu grito de liberdade. Por trás daslinhas de fuga, não se deve então perceber apenas um inconformismo ou um desconforto, mas a atividaderigorosa de uma nova configuração. Tudo muda e tem de mudar sob a perspectiva do fora!...

Que a pedagogia esteja implicada por inteiro nessas questões pareceria algo profundamenteóbvio. Mesmo porque, em tudo isso, está envolvida a exigência de uma nova formação pela filosofia,de uma nova pedagogia do conceito. E uma nova idéia e compreensão da liberdade... Mas, mais do queisso, esse tema acaba por envolver uma questão de princípio da própria educação. Ele teria umaimplicação pedagógica clara e fundamental, cujo não reconhecimento imediato é suficiente paraatestar o grau de depauperação a que se chegou, de quão disseminado e profundo tem sido o desmonteda educação. Educar, que vem do latim educere, quer dizer justamente conduzir para fora, propiciar anovidade de uma experiência não vivida, a condição possível de uma transformação e de um devir.Note-se bem que não se trata de conduzir alguém a algum lugar, de se tomar alguém pela mão paramelhor conduzi-lo a um objetivo pré-definido. Não se trata de estipular, de antemão, uma conclusãoe um fim, uma realização!, segundo as imagens tradicionais (e banais) da educação. Com isso, comessa ausência de propósito evita-se fazer do saber um poder, de conferir hierarquicamente a alguém(‘o-que-sabe’) um controle estrito sobre o processo de ensino e aprendizagem. Ao menos, a idéiaprimeira da educação é claramente outra e seria o caso mesmo de se perguntar – há saber? – pois oque a expressão parece querer dizer é que, ao contrário, para toda posição constituída, diante de todacristalização, o processo educacional valoriza antes o contrário, o que importa é antes o contrário:socraticamente, devemos atingir o ponto em que já não sabemos, em que não mais reconhecemos,condição incontornável para sabermos que estamos enfim do lado de fora e podermos, só então,começar a aprender... O ensino é um modo de superação que consistirá em deixar para trás todaimagem acabada (e, portanto, empobrecida), em descobrir o seu fora, em saber ir além, mesmo quenão se saiba bem para onde... Entrar numa relação de aprendizagem é apenas uma promessa deincerteza: ali onde se está, não se permanecerá. Alguém sairá, é tudo. Em princípio, não se vai chegara lugar algum com o aprendizado, não se vai proporcionar um crescimento ou uma expansão, não sevai progredir: de início, apenas se quer que alguém conheça o fora, a possibilidade do fora, oinacabamento das coisas. A simples possibilidade da existência de outras possibilidades. Semprenovos foras, como novos mundos possíveis.

Mas dito isso, impõe-se a pergunta: a que novos lugares nos transporta ainda a educação? Quenovos foras ela é capaz de nos descortinar? Ou antes, essa pergunta fundadora faria sentido aindahoje? Seu tempo e lugar não estariam já irrecuperavelmente ultrapassados? Esta seria, em todo caso,a grande questão a se pensar quando se aponta hoje a crise da educação... Não apenas a falência daformação, mas as razões da inteira desnaturação de seu princípio maior, de sua renúncia paulatina aseu próprio sentido fundante e às suas condições criativas. A crise da educação, mais do que porqualquer outra razão, explica-se por este extravio, este desvio de si em relação a si mesma, que não épor certo resultado de uma nova construção autônoma, mas sim de uma deserção fraudulenta que afaz, progressivamente, deixar de ser um elemento de transformação e de desenvolvimento real, parase instalar comodamente numa posição de simples correia de transmissão (de pretensos saberes, decódigos de conduta e codificações mercadológicas, enfim, de uma doxa imprestável).

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AS FALSAS IMAGENS DO FORA

Em realidade, não é que esse tema não se apresente. Ao contrário, ele é mesmo inevitável!Ainda que de forma torta, a educação permanece sendo atravessada permanentemente por umanecessidade real de pensar o fora. Mas infelizmente, à falta de melhores condições de orientação, elenão aparece corretamente dimensionado e os alvos a serem verdadeiramente visados restam, portanto,inatingidos – a questão do fora se traduz, então, também técnica ou mesmo fisicamente: ela identifica-se muito simplesmente ao(s) ponto(s) ainda não tocado(s) pelo campo educacional, o espaço aindaexterior às suas bordas, reconhecido, mas deixado de fora, mesmo se, em algum momento, certamente,também já uma meta a ser atingida, um próximo passo a ser dado! Primeiro equívoco, e definitivo: ofora é assim confundido com um tipo comum de falta, com um elemento faltante, que de toda formase reconhece, sem maiores dificuldades, mas que não compõe ainda a internalidade do campoeducacional. O fora é, por esta compreensão, algo temporariamente inalcançado, ainda que previamenteidentificado. Ele exige, nesse caso, um simples movimento de expansão, e não uma nova elaboração.Sua abordagem se faz a partir das condições presentes, já postas, disponíveis. Uma reformulação depolíticas, uma alteração curricular, e pronto!, o fora já está dentro...

Dois temas presentes parecem demonstrar claramente esta dificuldade.O principal deles é o binômio exclusão – inclusão e a forma como a educação deve enfrentá-lo.

Este tema ganhou tal relevância no país, que é hoje talvez a principal questão a solicitar o campopedagógico ou, pelo menos, a direcionar a implementação das políticas públicas na área. Como seinclui o excluído? Aparentemente, não haveria questão mais apropriada para nos colocar diretamenteem contato com o que se encontra fora, mesmo porque nosso tipo de organização social é de fatopródigo na produção de vastos continentes marginalizados, cada vez mais amplos, cada vez maisacentuadamente espoliados. A defesa dos processos de inclusão na educação revela-se, por essarazão, bastante ampla: inclusão social, racial, de portadores de necessidades especiais, até mesmouma ‘inclusão digital’...

Não é o caso, evidentemente, de diminuir a grande relevância de todas essas ações afirmativasrecentes. Elas são muitas vezes responsáveis por uma alteração importante nas disposições tradicionaisdo poder e de sua interação e intervenção na sociedade. Não resta dúvida que os diversos processosde inclusão educacional já refletem, certamente, não apenas uma vontade política circunstancial, oumesmo uma imposição da hora, efeito espontâneo de uma nova compreensão social ou cultural, mas,por força dessas ações, sobretudo, indicam um avanço definitivo no nosso (precário) processo deconsolidação democrática. Mas, para além disso, no que concerne aos aspectos educacionaispropriamente ditos, o que vem mostrar de fato a proliferação de tais políticas? Elas mostrariam quese está de fato alterando a lógica sistêmica do ensino ou, por outro lado, apenas o quão esvaziadasestão (ou estavam) as salas de aula por todo o país, sem pobres, sem negros, sem deficientes? Salasestas que, possivelmente, pelo não enfrentamento desta mesma lógica sistêmica pelas políticas quotistasou minoritárias, permanecerão esvaziadas pelos neo-excluídos, ainda não descobertos, e que aengrenagem intocada não cessará de produzir...

Trazer o fora à reflexão não é, portanto, trazer apenas o excluído à inclusão, pois com esta nãose vence de modo algum a lógica perversa da produção incessante de contingentes marginais. Aocontrário, esta preserva-se aí até com vantagens, pois parece mesmo mais doce: em todos estes

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casos, promove-se uma expectativa da boa vontade, enquanto permanece-se ainda em meio aoselementos de sempre, às dificuldades de sempre, às impossibilidades de sempre dos programas sociaise educacionais, numa espécie de cegueira que talvez só pudesse ser de fato vencida a partir de novasperspectivas, de vazios ainda inexplorados. Caberia lembrar a reação de Gilvan Fogel contra adisseminação irrefletida desta necessidade de inclusões muitas vezes acríticas: “Num mundo regidopor tantas utilidades e tantas inclusões, é bom que haja, que se faça uma atitude que resista a certasondas, a certos arrastões e, desse modo, não se distraia tanto da vida, inaugurando um lugar deexclusão, isto é, à parte, à margem, desde onde se possa ver”.2 Com esses processos, por mais valiososque possam ser, mas de efeito inevitavelmente localizado, não se irá sequer reformar a sociedade, outampouco arranhar a redoma reluzente que se quer passar sobre o caos geral, pois a lógica defuncionamento disposta exige que, nesse mesmo movimento de inclusão, e como uma contrafaçãocruel a ele, alguém de imediato reste de fora, seja lançado a novas exclusões, a gemer por novospatronos. Há mesmo um paradoxo cortante em se considerar possível a inclusão desta forma, qualquerque seja ela, em um meio social cujo princípio primeiro parece ser justamente a possibilidade de tudoexpelir.

Nessa concepção, a artificiosidade ou superficialidade é dupla. Por um lado, cria-se uma pretensaaura democrática, ou uma imagem inclusiva da educação pelo simples fato desta avançar em direçãoao que não fora ainda antes alcançado. Como se a exclusão se devesse à escola! Ou fosse contornadapelo mero acesso a ela... O que é mais grave nesse caso, porém, é que se confundem os quadros deum real processo de inclusão. O reconhecimento das diversas formas de marginalização social e astentativas de fazer passar pela escola e pelo ensino o que está fora dele, de incluir ‘excluídos’, não sãoevidentemente recentes. A linguagem para surdos-mudos, a escrita braile foram iniciativas clarasnessa direção, para ficarmos em dois exemplos. É, aliás, uma tarefa a que os educadores, corajosamente,sempre se impuseram e que, em geral, por razões menores que sua vontade, tiveram umaimplementação apenas parcial ou foram em algum momento abandonadas. Isso porque o alcancesocial da escola e seu potencial de transformação foram sempre limitados, e em especial porque, pormais ousadas que sejam tais iniciativas, permanece inalterado o regime causador de exclusão.

O excluído, portanto, não é o fora. Esta imagem, se considerada sob a perspectiva de umapretensa ‘vontade de inclusão’ pelo capital, segundo a lógica tradicional da oportunidade para todos,é até talhada para uma confortável compreensão cínica: sempre haverá a oportunidade de um recomeço,sempre haverá uma porta aberta, ou uma chance para todos: ninguém será deixado para trás... Aexclusão entende-se como um produto residual, de um sistema que busca sempre se aprimorar,‘incluindo’.

Mas o fato é que as margens presentes do jogo globalizado do capitalismo se expandemcontinuamente e a linha de corte da exclusão é empurrada junto com ela: antes, a medida da inclusão(ou exclusão) já fora a necessidade de alfabetização, depois a necessidade de mais anos de ensino oumesmo do ensino superior, hoje, o domínio de línguas e já também, o da computação... Ou seja, ainclusão, pensada apenas a partir das condições de organização internas ao capital é uma grandeilusão, um adiamento apenas de uma situação da qual, segundo um processo de eterno retorno nefasto,

2 FOGEL, G. Aviso aos desavisados. A Tarde, 16 out. 2004. Suplemento Cultural, número especial por ocasião da XI Reunião Nacional daAnpof, Salvador.

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ninguém, a rigor, encontra-se verdadeiramente a salvo. Por uma ou outra reviravolta, este que hoje se‘inclui’ estará talvez novamente em situação de exposição mais cedo ou mais tarde. Portanto, pensadadesta forma, não há como se considerar a inclusão como um antídoto perene contra novos desastresindividuais e sociais.

A segunda imagem falsa de uma incorporação do fora mostra-se, contudo, mais importante,por seu pretendido valor organizativo da própria educação contemporânea, e envolve a questão datécnica.

Ela se insinua, mais uma vez, a partir não de uma nova idéia exploratória, de uma novaconstituição pelo fora, mas igualmente segundo a constatação de uma falta. Se no primeiro caso,tratava-se de mostrar que faltava alguém, agora é preciso mostrar que falta algo, o objeto técnico.Duas formas superficiais do vazio na sala de aula: ela estaria incompleta na ausência de determinadoscontingentes sociais ditos minoritários, assim como está vazia na ausência da hiper-novidadetecnológica, da última geração dos computadores, datashows etc. A intervenção visada, nesse caso,mostra-se mais crucial, porque mais decisivamente mercadológica. Trata-se de se considerar a salade aula também como um ambiente comercial e, mesmo sem as mais primárias condições de ensino,mesmo com salários baixíssimos pagos aos professores, trata-se de ungi-la pela presença magníficados computadores e do acesso à Internet!...

Assim, já é possível com facilidade se ouvir a pergunta: quem ensina melhor, o professor ou ocomputador? Ou ainda: A educação à distância caminha para uma intervenção tão ampla no campo educacional,que em pouco, não haverá mais sentido na distinção entre ela e as formas presenciais ou semipresenciais. É umcercamento asfixiante, mesmo porque ele impõe-se desde outros ambientes. Como a escola não teriacomputadores? Como se poderia acreditar num processo formador que não acompanha os rumos deseu tempo?

Parece que, face a essa nova usurpação de suas prerrogativas, face a uma nova desnaturaçãotécnica do sentido e do valor da formação, a educação encontra-se inteiramente indefesa. Pois não setrata de um recurso a mais que se disponibiliza, mas de uma reconfiguração total da significânciapedagógica. Em outras palavras, a escola não se mede mais por ela mesma, pelo valor de seusprofessores ou de seus outros profissionais, ou mesmo de sua filosofia pedagógica, mas, muitas vezes,pela sua suntuosidade tecnológica, pelos ‘recursos’ oferecidos, por um valor de mercadoria... Claroque não se trata de estigmatizar inocentemente a tecnologia, mas por outro lado, constituí-la comoum valor em si é apostar no esvaziamento de verdadeiros valores de formação. Formar-para-o-computador, para o mundo técnico apenas, poderia ser considerado um processo pleno de formação?Ou nisso, se deveria ver antes uma instrumentalização equivocada das potencialidades reais do ensinoe de sua caída num finalismo que não é, em si, constitutivo, mas meramente interessado, – finalismoda capacitação antecipada ou da integração acrítica?

Estas questões ou já mesmo afirmações muito presentes, como outras tantas que poderiamigualmente ser evocadas neste contexto, servem para mostrar as profundas transformações que têmcortado o campo da educação na atualidade e por toda parte, mas nelas não se revela na verdadequalquer mudança efetiva. Não se criou um novo ambiente, não há um novo fora, propriamente dito,em nenhum desses casos. Nas duas situações, todos os elementos compreendidos são inteiramentevisíveis e não exigem nenhum esforço singular de pensamento ou de reorientação conceitual. O fora,nesses casos, não é o impensado, mas apenas o não implementado. Ele, na verdade, já se acha incluído,

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porque totalmente reconhecido. O fora tem então a força apenas de uma protelação: ainda não. Ainda nãohá negros ou índios nas universidades, ainda não há computadores nas salas de aula dos colégiospúblicos do nível médio, mas um dia certamente haverá. Certamente...

CONCLUSÃO

O risco maior que perpassa estas novas formas de realização, de rearranjo das atribuiçõesescolares ou formativas, num sentido mais geral, indicam sempre um apagamento dos horizontes,uma redução ao particularismo imediato e ao enfrentamento acrítico e localizado dos problemascolocados, à busca quase desesperada, forçada pela hora, da solução momentânea, que por sua vezserá vencida também pela hora, ainda que não esta, mas a que se anuncia já para depois dela. É umciclo viciado que faz da escola, mais uma vez, um sistema fechado, premido, desde cedo, pelascondições impostas por um mundo-em-processamento. Técnico, profissionalizante ou aplicado, estenovo ensino assim se apresenta, segundo concepções utilitárias e instrumentais, em todo os seusníveis, seja nos cursos que atendem por esse nome, seja nos pré-vestibulares que parecem de fato virse constituindo no principal modelo direcionador ou ordenador de boa parte do efetiva processoformativo atual do país, seja, portanto, a partir disso, em situações e lugares inesperados (os‘vestibulinhos’ desde as primeiras séries, a necessidade de aprovação valorizada em detrimento darecepção real e ativa dos conteúdos...). É uma educação e uma escola impensada nela própria, por elaprópria, mas pensada de fora, servil no sentido de que serve a uma orientação que não deveria ser asua, ou ao menos não exclusivamente a sua. Uma escola que se submete incontornavelmente aditames cada vez mais insuportáveis.

De tudo isso, o risco maior parece ser o de um novo fechamento na educação. Eis então nossaquestão: o que a possibilitaria retomar neste momento sua força própria, de condução para fora, queforas a atravessariam ainda neste momento, conduzindo sua atividade a recuperar o valor e o sentidoperdidos? Trata-se, mais do que nunca, de uma questão fundamental, uma vez que, via de regra, elanão é hoje central, nem tampouco periférica: ela simplesmente inexiste no campo da educação.

Devemos considerar que a ação típica da educação, ou mais precisamente a da escola e daeducação escolar, fora a de vir complexificar os modos simples de transmissão do saber, de dar cursoa possibilidades inéditas: assim, através dela, o filho do ferreiro não seria necessariamente o aprendizdo pai, ao filho do agricultor não caberia a simples assunção mecânica de lavrar a terra. A continuidadenuclear da família, por contigüidade, é radicalmente revirada. Que se pense nas páginas iniciais doVermelho e o Negro, por exemplo, dentre a quantidade de exemplos que enxameiam na literatura...De um modo fechado, familiar, passa-se a um modo aberto de livre assimilação dos saberes. Portanto,mais do que simplesmente chancelar competências, a educação promove antes como seu fruto própriouma situação que precede logicamente tal possibilidade: antes que qualquer processo de aprendizagem,e mesmo que em princípio sob a forma de um quadro bastante geral e indeterminado de inscriçãocomum, ela dissemina a situação essencialmente plural dos diversos saberes e de sua distribuição e,em princípio, também da possibilidade de sua livre escolha. Situação em que, exclusivamente, fazsentido considerar um ‘problema das competências’. Deveríamos dizer, usando já um conceitodeleuziano, que a educação é o primeiro grande processo social de desterritorialização. Ela abre, masao mesmo tempo deforma, reconfigura a família, deslocando os horizontes limitados e a lógica interna

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desta. Ela deforma, uma forma, um processo, um lugar natural, em vista de uma indeterminaçãorepotenciada, a se perfazer plenamente num âmbito inteiramente diverso do original, que é inicialmenteo da escola, mas que aponta evidentemente para além dela, e talvez mais do que propriamenteformação, seria o caso de defini-la como uma deformação.

Ou seja, o primeiro impacto da educação é topológico: ela esvazia o lugar familiar de umaposição privilegiada de controle e transmissão do saber e, valendo-se ainda de um ambiente políticopúblico que a favorece e amplia, busca constituir, constituindo-se por sua vez num processo depassagens, um (não) lugar outro, em princípio indefinido. Seria esse o momento primeiro da realizaçãopedagógica. Se antes eu tendia naturalmente a repetir, como herança familiar e sem grandes variações,a vida e a atividade privada que foram a de meu pai e meu avô, a educação, como um princípiodiferencial, condena essa possibilidade a sua mera circunstancialidade, a ser uma possibilidade emmeio a outras. E isso sem contudo colocar forçosamente qualquer outra em seu lugar. Se a educaçãoaponta para disciplinas, profissões e competências, cabe frisar que, ao contrário da situação anterior,ninguém conhece de antemão a posição a ocupar. Isso, precisamente, é o que será propiciado numsegundo passo ainda em parte pela educação. Mas sua tarefa de fato é a de interditar a mera reproduçãosem alternativas e de superar a monotonia de um mundo fechado.

Mas, precisemos, ainda, o que queremos dizer com a idéia de deformação pela educação. O usodo termo poderia fazer-nos confundir ou deturpar o verdadeiro significado dessa atividade primeirada educação, que não é outra senão a de uma liberação. Ao atentar contra uma determinada ordemtradicional, a educação provoca choques importantes, traumas que inclusive até hoje não se venceramde todo, como por exemplo, qual a real relação entre a escola e a família no conjunto da educação dacriança? Aparentemente, elas, ainda em nossos dias, mais se frustram que se complementam: você sópode ter aprendido isso na escola... Há a mesma relação tensa de anos e anos atrás, pela contrariedadeimposta a uma ordem de expectativas, no caso a familiar. Mas, considerada positivamente, a educaçãodescortina através de sua ação nada menos que um modo de liberdade, instaurado pela demarcaçãoda possibilidade de um (novo) começo, e com ele também de um novo ethos.

Ao desviar-se dessa potencialidade característica para fechar-se num modo estreito de realização,para reconfigurar-se como um tipo de atividade que responde a meras necessidades de inserçãoprofissional ou de colocação social, e aparecer como um elemento atestatório inicial de uma futurapossível inclusão ou exclusão, ou seja, um lugar onde de alguma forma, já está em jogo a vida, definida epré-formada, antes que, ao contrário, a experiência de uma primeira construção, numa clara inversãode expectativas, a educação ma realidade vem comprometer a própria possibilidade do sonho humano,do gosto pela criação, pelo inesperado e pela descoberta, gosto do novo como principal motivaçãovital. A educação, na verdade, contra a opinião corrente, torna-se com isso um forte vetor de niilismoe desesperança... Ela contribui, por uma sucessão de preenchimentos superficiais, para a anulação dovazio e do segredo do homem, este grande segredo de que falava Kant, em suas Reflexões sobre aEducação, ao considerar que “é no fundo da educação que jaz o grande segredo da perfeição danatureza humana”.

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L´ÉDUCATION PAR LE DEHORS – PÉDAGOGIE ET PHILOSOPHIE DE LADIFFÉRENCE

RÉSUMÉL’éducation trouve son principe fondateur dans un processus de ‘conduction vers le dehors’. Quellesseraient exactement les conditions de réalisation de ce principe actuellement? Possiblement, elleretrouverait une inspiration nouvelle dans la philosophie de la différence contemporaine, étant donnéque celle-ci a eu le dehors comme un des ses sujets majeurs.MOTS-CLÉS: Pensée contemporaine. Philosophie de la différence. Le dehors.

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APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 2 p. 23-34 2004

1 Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – Rio).

FACETAS DA ALIENAÇÃO:UMA ABORDAGEM TEÓRICA

Gustavo Gadelha1

RESUMOEste trabalho é uma tentativa de contribuição para uma releitura da tradição da crítica dialética aoreal, retomando – sobretudo – os conceitos de “alienação” e de “práxis”. A subjetividade imanenteao modo de produção, que pode dele se distanciar na medida em que cria e com ele se debate e choca,coloca a questão da educação na ordem do dia; novas linhas de ação podem vir a surgir medianteuma reflexão acerca da sociedade. Desta forma, vendo o marxismo como uma filosofia da natureza,isto é, a filosofia que encara o homem como um ser inserido em seu meio – e não como o resultadodos malogros do chamado socialismo real – o pensamento pode reganhar uma aguçada ferramenta deentendimento diante das questões presentes.PALAVRAS-CHAVE: Práxis. Dialética. Alienação.

O presente trabalho é uma tentativa de se revalorizar a tradição da crítica dialética ao real,retomando – sobretudo – os conceitos de “alienação” e de “práxis”. A subjetividade imanente aomodo de produção, que pode dele se distanciar na medida que cria e com ele se debate e choca,coloca a questão da educação na ordem do dia. O conhecimento e sua transmissão não são abstrações,reduzíveis a um acúmulo de saber, de resto indistinto: individualmente sem inquietação; objetivamente,um continuísmo com a ordem estabelecida. A forma caminha a par e passo com o conteúdo – diferentese indiscerníveis, dizia Walter Benjamin. Por isso, a imanência radical é obrigada a se deparar com aquestão das relações econômicas – eis o pathos – como as instâncias produtoras do entorno social dohomem e concomitantemente seus produtos. Antes de mais nada, “o educador deve se educar”: nãosó com livros, mas também com a imersão nas diferenças das formas sociais e com o acompanhamentoativo das políticas educacionais. Nesse sentido, a academia pode, ao invés de reproduzir idealmenteum discurso que assegura o poder de interesses capitalistas nas instituições (tal intimismo é tolerado,pois, seguro), incluir a grande diferença prática na discussão de seus temas – e assim aglutinar quadrostransformadores da sociedade. Por mais absurdas e anacrônicas que possam parecer essas considerações

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2 “Decerto, não é a primeira vez que Marx se encontra, como ele mesmo disse, na ‘necessidade’ de dar a sua opinião sobre questões de ordemeconômica (assim, desde 1842, a questão dos roubos dos bosques evocava toda a condição da propriedade feudal agrária; assim, o artigo de42, igualmente, sobre a censura e a liberdade de imprensa, reencontrava a realidade da ‘indústria’ etc), mas da Economia não reencontravamais do que algumas questões econômicas, e de viés com os debates políticos: em suma, não encontrava a Economia Política, mas algunsefeitos de uma política econômica, ou certas condições econômicas de conflitos sociais (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel)”(ALTHUSSER, 1966, p. 156-157).3 Indo de choque com a concepção de Althusser, poderíamos argumentar que se anela a emancipação do homem, numa abordagem dasuperestrutura encarada, não como um reflexo da estrutura econômica, mas sua expressão e fenômeno original: “A expressão de um sistemaeconômico em sua cultura pode ser descrita, mas não a origem econômica da cultura. Em outras palavras, o ponto é tentar entender oprocesso econômico como um concreto fenômeno original” (BENJAMIN, 1989, p. 46, [N. 1a 6]). Não se trata de uma aparência ou tampoucode um aparecer, mas da imagem daquilo que aparece. O tema da Origem aparece em Benjamin desde o trabalho sobre o Barroco, mais tardetransformando-se em Imagem Dialética. Trata-se, em poucas linhas, das exigências do presente que se conectam com o passado; o puro fluxoé retido, formando uma Mônada, Ser do Devir ou Imagem Dialética. Estabelece-se então uma pré e pós história a partir desse novo pontode parada, de uma constelação que não se escoa. Os indivíduos, para os quais chamamos atenção nesse estudo, que criam de dentro da pobrezade experiência, não são independentes do processo de produção que os originou, mas podem afirmar sua autonomia em relação ao processoao qual sobrevivem, criando uma Origem (op. cit., p. 56, [N. 5 a 7]). Deixemos claro, não obstante, que Benjamin é avesso à intencionalidadee consciência fenomenológica no sentido de Husserl e seus seguidores (como diria Engels, o fenômeno não guarda relação com a “coisaem si”, mas sim com o trabalho).

em tempos que não dão indícios de ruptura com o neoliberalismo, e uma vez que o estudo crítico seencontra desamparado pelas políticas governamentais e sem reverberação nas esferas da opiniãopública, leiamos mais uma vez Marx. Celebra-se, comumente, o “retorno da filosofia a Kant”; poisbem, acompanhando Michael Löwy, cremos que é hora de um “retorno a Marx” (2002, p. 14), a fimde cultivarmos um pensamento de exterioridade capaz de denunciar a prática para além do discurso,a esquerda para além dos cargos de chefia.

Os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 marcam o momento do pensamento deMarx em que se dá, de uma forma temática, o encontro da filosofia com a Economia Política.2 Aabordagem althusseriana estabelece um “corte epistemológico” na démarche do filósofo alemão, umano após o referido texto, a partir da Ideologia Alemã (ALTHUSSER, 1966, p. 25-27). O surgimentode uma nova preocupação com a dinâmica do real – o rompimento com a volição e a metafísica daintelligentsia neo-hegeliana e o contato com revoltas operárias independentes da organização externada intelectualidade – marcam a criação da ciência histórica e o confrontamento direto e aberto coma economia política clássica, sobretudo de tradição inglesa (veja-se Smith, Ricardo, Say etc). Estabelece-se, pois, uma divisão: as obras de juventude (de 1840 a 1844), as obras do corte (1845), as obras damaturação (1845-1857) e, finalmente, as obras da maturidade (até 1883). O que caracteriza estaciência – cujo nome repetiremos inúmeras e exaustivas vezes ao longo de nosso trabalho – é o estudoda “alocação de recursos e a determinação da atividade econômica agregada”, ou a teoria, cujaaplicação prática é do campo político, da acumulação e distribuição social da riqueza (BOTTOMORE,2001, p. 118); a sociedade, individualista ou comunal, é um fator a priori.

Na Paris de 1844, Marx trava relações com Engels, que então, no mesmo ano, escrevera oEsboço à Crítica da Economia Política – trabalho este considerado “genial” por Marx, indicandona tendência à crítica social uma transição. Dão-se também os primeiros encontros de Marx com ummovimento proletário organizado – e, diga-se de passagem, “real” –, oriundo das grandes economiasindustriais capitalistas (sobretudo Alemanha, Inglaterra e, em menor escala, França). Como diriaLeandro Konder, o filósofo do trabalho era também o filósofo do trabalhador.

Marx inicia uma reflexão que visa estabelecer os fundamentos da Economia Política, não seatendo somente às descrições da ação da propriedade privada na vida humana. A abstração das leiseconômicas autorizaria um pensamento, segundo Althusser, ainda idealista, calcado numa“fenomenologia” econômica,3 em detrimento da analítica de sua epistemologia; a extração, desdeeste ponto, de postulados críticos à sociedade burguesa, a saber o “trabalho alienado”, é ungida como

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“fundamento originário” por uma dada concepção de homem (ALTHUSSER, 1966, p. 158-159).Entretanto, surge a pergunta: de que homem e de que humanidade falamos aqui? O principal pontode entrada no texto é o conceito de “Alienação”, sua chave filosófica: “É essa filosofia que resolve acontradição da Economia Política “pensando-a”, e através dela toda a Economia Política [...]” refere-se, dialeticamente, ao trabalho alienado. A filosofia tratava de um conteúdo independente dela, aeconomia,4 de onde a diferenciação seguiu seu rumo; mesmo na tentativa de se antecipar nosManuscritos categorias que futuramente viriam engendrar as análises de O Capital, desconsiderar-se-iam as singularidades do presente em questão: ainda estaria ligado ao humanismo de Feuerbach eà utopia messiânica – e, logo, a uma essência e a um telos, como deixa claro Althusser ao longo de seutexto. A tensão dos polêmicos escritos de Marx, que o autor rascunhou para estudo próprio, só sendopublicado no primeiro quarto do século XX, é assim descrita por Althusser, finalizando seu ensaio;trata-se do “[...] pensamento triunfante e vencido, no limiar de ser, enfim, ele mesmo, por umamodificação radical, a última: isto é, a primeira” (ALTHUSSER, 1966, p. 160). Em célebre ensaio dosanos sessenta, Nietzsche, Marx e Freud, Michel Foucault parece se aproximar de Althusser (1967,p. 194), quando afirma que a Economia Política, tendo internalizado conceitos e práticas de mudança,pode abrir mão da filosofia e sua especulação.

Todavia, esse encontro de Marx e da filosofia germânica com a Economia Política não se deuem vão; ainda que distintos da lógica macroeconômica da auto-reprodução de O Capital, consideradaa principal obra do autor, os Manuscritos renderam valorosos frutos, fruta-homem que sai da terra...O papel do sujeito é resgatado, trazendo à tona o conceito de práxis, e a produção de subjetividade éigualmente posta em xeque pela denúncia da Economia Política e suas fantasmagorias – imanentesao método. Se, por um lado, o simples anúncio do comunismo não significa sua efetivação, vislumbra-se uma outra organização social possível,calcada no desejo de mudança e na crítica ao Real; o nãoestabelecimento de linhas programáticas, tanto na ação quanto na política, não retiram dosManuscritos seu caráter revolucionário e denunciador da exploração do trabalho pelo capital,ensejando, no mínimo, uma ética de resistência. Não nos esqueçamos que ali se adere, aberta econscientemente, ao comunismo, explicitado como a superação das alienações. Marx não nos deixamentir, logo nas primeiras páginas sobre O Trabalho Alienado, o primeiro dos três manuscritos:

“Com a própria Economia Política, em suas próprias palavras, temos demonstrado que otrabalhador desce ao nível de mercadoria e de uma mercadoria miserável; [...]” (MARX, 1962, p. 103-104); ou ainda, mais diretamente: “A Economia Política parte do fato da propriedade privada; não oexplica. [...] não traz uma explicação da base da distinção entre trabalho e capital [...]”; assim sendo,“as únicas forças operantes que reconhece a Economia Política são a avareza e a guerra entre osavaros, ou seja, a competição”. Tal ciência parte de acidentes externos ao processo produtivo, nãopercebendo aí “a expressão de um desenvolvimento necessário”; em não se compreendendo as relaçõesacima mencionadas, “foi possível opor a doutrina da competição à do monopólio”. Ou seja, omovimento da competição ao monopólio, da liberdade dos ofícios às agremiações e instituições, daterra dividida ao latifúndio (para citarmos os mesmos exemplos de Marx) é visto acriticamente –resultado de um desinteresse naturalizado e ontologizado, de um laissez-faire econômico. Por fim, oeconomista explica a realidade lançando mão de mitos: “Afirma como fato ou acontecimento o que

4 Contra Althusser poderíamos propor a seguinte indagação, não sem espanto: “Mas não é justamente disso que trata toda a filosofia?”.

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deveria deduzir, ou seja, a relação necessária entre duas coisas; [...] assim como a teologia explica aorigem do mar pela caída do homem, é dizer, afirma como fato histórico o que deveria explicar”.“Dedução”, nesse sentido estrito, é mostrar o que liga dois pontos – o seu como; dir-se-ia que talprocesso consiste na historicidade.5

Portanto, através da exposição da filosofia da natureza, latente nos textos de 1844, tentaremosexpor o humanismo marxista e alguns aspectos de sua teoria da alienação,6 num “corte político”. Nãonos esqueçamos que, nas últimas páginas do primeiro manuscrito, Marx afirma que uma EconomiaPolítica universal deve partir da análise do trabalho alienado (MARX, 1962, p. 117).

Retornando à nossa questão, a alienação é alienação de alguma coisa; melhor dizendo, é sempre“auto-alienação”, do homem para o homem, em atividade cujo objeto resultante não mais pertence aseu criador; por vezes sequer é reconhecido por ele enquanto tal – malgrado todo o trabalho materiale as relações sociais que o determinam. Neste segundo caso, a potência criadora adormece, repousandoenquanto mera possibilidade.7 O domínio dessa dinâmica é a sociedade; ou, numa outra dicotomiaque expressa a relação entre Eu e Não-Eu, Homem e Não-Homem, Sujeito e Objeto: homem e“natureza”: “O trabalhador não pode criar nada sem natureza, sem o mundo sensorial externo. Esteé o material no qual se realiza seu trabalho, no qual atua, do qual e através do qual produz coisas”(MARX, 1962, p. 106). Isso aparece mais explicitamente mais adiante no corpo do texto, assegurandoa relação e o vínculo direto do homem com seu entorno social: “A natureza é o corpo inorgânico dohomem; é dizer, a natureza excluindo o corpo do homem” (MARX, 1962, p. 110). Articulando-se aessa temática, Marx pega emprestado de Feuerbach o conceito de “Ser Genérico”, desenvolvido poreste em sua obra A Essência do Cristianismo, de 1841: o homem tem consciência de si não apenascomo indivíduo, mas também como espécie – o que o distingue dos demais animais. A comunidadeé, dessa forma, seu objeto, tanto prático quanto teórico – teoricamente, seu meio intelectual;praticamente, produto e meio de atividade. É guardada uma relação de diferença e unidade:

Dizer que o homem vive da natureza significa que a natureza é seu corpo, com o qual devepermanecer em contínuo intercâmbio para não morrer. A afirmação de que a vida física e mentaldo homem e da natureza são interdependentes significa simplesmente que a natureza éinterdependente consigo mesma, posto que o homem é parte da natureza (MARX, 1962, p. 110).

Esse panteísmo materialista, insinuado na conexão cósmica entre homem e natureza, modosdiferentes da mesma substância, mostra sua imanência nessa passagem: “A vida produtiva é, semembargo, vida da espécie. É a vida que cria vida. No tipo de atividade vital reside todo o seu caráterde espécie [...]”; e, no caso do homem, “[...] sua própria vida é um objeto para ele posto que é um sergenérico”, o que faz sua atividade ser livre (MARX, 1962, p. 111). A contraposição com o mundodeve contaminar o homem e afirmar as diferenças em jogo:

5 Pode-se depreender, entre dois pontos, uma realidade pulsante e viva, ou uma “Duração”.6 Nosso recurso a Louis Althusser dá-se menos por motivo de adesão do que em razão de uma contextualização de vida e obra do autor.Pode-se também levantar o argumento em prol de uma “exposição dialética”.7 “É possível que o acordar seja a síntese à qual a tese é a consciência sonhadora e a antítese é a consciência? Então o momento do acordardeve ser idêntico ao ‘Agora do Reconhecimento’, no qual as coisas são postas em sua face – surrealista – verdadeira” (BENJAMIN, 1989, p.52, N[3 a3]). Uma das epígrafes de Marx que Benjamin escolheu para o seu trabalho sobre a Paris do século XIX e suas galerias ilustram bemo fenômeno da alienação: “A reformulação da consciência repousa somente no acordar do mundo [...] de seus sonhos sobre si mesmo”(MARX apud BENJAMIN, 1989 p. 43).

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8 Personagens de Dostoievski e Thomas Mann sentem o ocre gosto da loucura ao não conseguirem se livrar dos valores burgueses quecarregam. Como exemplos clássicos, temos os delirantes – e outrora lúcidos, demasiado lúcidos [...] – Ivan Karamazov e Adrian Leverkühn,respectivamente. Não conseguindo passar à ação, não fazendo dela sequer a mais pálida idéia, fica-se refém de um ser alienado, o qual nãose reconhece como parte integrante da subjetividade, contraditória em essência. Essas figuras literárias do “mal-estar do homem burguês”são incapazes da Aufhebung, de um retorno inovador a si mesmos como parte do mundo que desfalece.9 O que, para alguns autores, é sinal de influência do movimento feminista e de nomes como Flora Tristan.

Produzem [os animais] unicamente sob o imperativo de uma necessidade física direta, enquantoque o homem produz quando está livre da necessidade física e só produz verdadeiramentequando está livre dessa necessidade. Os animais se produzem somente a si mesmos, enquanto queo homem reproduz toda a natureza (MARX, 1962, p. 111).

A partir dessa experiência sensível, a natureza surge para o homem como humana, efetivaçãode sua essência, sua vida objetificada – exteriorizada – pela atividade prática. São os primeiros esboçosdo rompimento definitivo com Feuerbach, manifestado nas famosas Teses. O novo materialismo, aocontrário do que foi dito no mesmo A Essência do Cristianismo, recusa o entendimento humanono formato de uma “caixa vazia” onde se depositariam impressões intuitivas da objetividade exterior.Em suma, o caráter sensível do objeto deve ser acompanhado por uma “atividade” na percepção(MARX, 2002, p. 99); leva-se em conta a mudança das forças sociais, e não apenas a existência daexperiência. Cunha-se a “Filosofia da Práxis”, termo criado por Gramsci, no momento mesmo emque a mudança empreendida pelo homem coincide com sua “automudança”, momento revolucionário(MARX, 2002, p. 100). O fato de a “base profana” colocada nas nuvens de alhures (alienação dohomem na religião) só pode ser explicado pelo “auto-rompimento”, pela “autocontradição” dessabase (MARX, 2002, p. 101). A essência do homem repousaria para além de um padrão religioso, quecarrega em si implícita a idéia de isolamento e “[...] não vê que o ‘espírito religioso’ é ele próprio um“produto social” e que o indivíduo abstrato que ele analisa pertence na realidade a uma forma socialdeterminada” (MARX, 2002, p. 102). A prática egoísta de Feuerbach isola abstratamente os indivíduos,também eles pertencentes a uma forma social determinada (MARX, 2002, p. 102). Mesmo o sujeitovoluntariamente afastado do vivo e cambiante embate social, ou o intelectual de gabinete que anelapureza, leva “[...] consigo já, dinamicamente, as forças da sociedade” (MARX, 1982, p. 4).8 A práxisé, concomitantemente, uma atividade 1) objetiva, 2) revolucionária e 3) crítico-prática: 1) objetiva-se no mundo, 2) modificando-o e incorporando novos elementos, 3) onde a teoria já é práticarevolucionária “[...] e a prática [é] carregada de significação teórica” (LÖWY, 2002, p. 172). Comodiria Lênin no combate à vulgarização do legado de Marx, abandonado a “guerrilhas de apartamento”e volições não reflexivas, “não há prática revolucionária sem uma teoria revolucionária” (LÊNINapud LÖWY, 2002, p. 171). Em suma, “a práxis é a síntese agente entre o pensar e o agir”.

Marx desenha um complexo quadro que surge do mais simples e básico encontro humano,9 noterceiro dos Manuscritos de 1844. A situação que enseja tanto, diz ele, é a relação homem e mulher,imago mundi, como talvez propusesse Benjamin, dos vínculos sociais e das possibilidades de trocaintersubjetiva de um dado momento histórico. Por ser um vínculo natural da espécie, carregariaconsigo tudo de humano que nele se depositou:

A relação imediata, natural e necessária do ser humano com o ser humano é também a relação dohomem com a mulher. Nesta relação natural da espécie, a relação do homem com a natureza édiretamente sua relação com o homem, e sua relação com o homem é diretamente sua relaçãocom a natureza, com sua própria função natural (MARX, 2002, p. 134).

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10 Analisaremos mais adiante as ligações estreitas entre trabalho, alienação e propriedade privada.11 David Herbert Lawrence, romancista inglês, ao longo de sua obra descreveu inúmeros tipos que a todo custo tentam se diferenciar domeio hostil que os cerca. Muitas vezes o autor usa personagens femininos que, para ter a autonomia de criar a própria vida, criando a simesmos, têm que passar pelas dificuldades da aceitação por parte da pequena burguesia de grotões carvoeiros – ressentida, mesquinha epuritana –, e o desfecho no rompimento com as raízes morais e na assunção de um modus vivendi completamente diferente daquele anterior.O escritor elege como ponto de desenlace das vidas sufocadas que descreve a relação amorosa entre um indivíduo comum e um par emtudo estrangeiro, figura de outra cultura ou outra classe, uma Diferença total. Assim como Marx (e independente deste, uma vez que falamosde um artista), foge-se de concepções calcadas numa falta subjetivista e ontologizada, quer seja via o mito de Aristófanes em O Banquete,quer seja via psicanálise – que paralisam a ação e impedem a escolha.12 Nesse sentido, é desvelada a ideologia arrivista e competitiva de que o acesso à educação depende meramente do senso de oportunidadeindividual, deixando-se de lado a questão de classe; veja-se, por exemplo, o debate atual no Brasil a respeito das cotas universitárias.

No entanto, o casamento estabelecido dentro dos cânones burgueses corresponde a um tipo de“propriedade privada”.10 Em função da ignorância da antítese entre capital e trabalho (e de suasistemática propaganda de abafamento...) a gênese e o estatuto da propriedade seguem a cegueiradecorrente dessa primeira contradição. A propriedade privada é uma realidade, e sua essência nãopoderia deixar de ser o trabalho. É esta sua positividade, o “trabalho” – e quanto a isso, em nadadifere de uma outra proposta política, “apenas formalmente falando”, sempre calcada na ação sobrea matéria. Não se rompe, contudo, a ordem da propriedade privada, “[...] que segue sendo a relaçãoda comunidade com o mundo das coisas”. Trata-se de um “comunismo” vulgar, no sentido de que“nega a personalidade do homem em todas as esferas, é simplesmente a expressão lógica da propriedadeprivada, que é essa negação” (MARX, 2002). Inveja e cobiça, a mentalidade competitiva toma afrente. As opções permitidas para o enlace amoroso são poucas: ou bem se cai numa propriedadeprivada exclusiva, ou se está irremediavelmente na mundanidade da prostituição (via moeda ou viafavores e tráfico de influências), uma comunidade homogênea na qual basta retirar-se um elemento(uma coisa). Nega-se a personalidade do homem por um “reformismo sensível”, ou, como propôsMarcuse, uma “dessublimação repressora”, no momento em que a inveja surge como força dedesagregação social, disfarce da propriedade privada.De qualquer modo, veda-se o desvelar do Outro,11

aporias do niilismo: “A posse física direta é para ele [o comunismo vulgar] a única finalidade da vidae da existência; a categoria de operário não é suprimida, mas estendida a todos os homens; a relaçãoda propriedade privada permanece ante a relação da comunidade com o mundo das coisas”(MARCUSE, 1967).

Voltemos, pois, à “filosofia da natureza” propriamente dita. O homem, como ser vivente,sente necessidades naturais e materiais, que só se realizam fora dele. Quando a realidade objetiva seconverte em sociedade “os objetos se convertem para ele [homem] em objetivação dele mesmo. Osobjetos então confirmam e realizam sua individualidade, são seus próprios objetos, ou seja, o homemmesmo se converte em objeto” (MARX, 1962, p. 141). O educador deve, antes de mais nada, seeducar: Marx fala dos sentidos do homem social, para quem o sentido do objeto coincide com a faculdadesubjetiva. Sobre a música, um mero exemplo, um objeto não reconhecido por um indivíduo – apesarde sua beleza – ele diz que “só pode sê-lo [objeto] para mim contanto que minha própria faculdadeexista para si como uma capacidade subjetiva, porque o sentido de um objeto para mim não vai maisalém de meu sentido correspondente” (MARX, 1962, p. 142). Só o contato com o mundo é que podecultivar a sensibilidade; a amplidão ou limitação dos sentidos se dá em função da história (MARX,1962, p. 142)12 Num paralelo com as Teses de 1845, o sujeito da ação é a subjetividade das faculdadesobjetivas, cujo sentido e natureza são igualmente objetivos, existentes (MARX, 1962, p. 187). Estáaberto o caminho para a “Filosofia da Práxis”, ação que se pensa e se antecipa, superação e terceira

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429Facetas da alienação: uma abordagem teórica

13 A última parte do terceiro dos Manuscritos aborda justamente a filosofia de Hegel, o que por ora não nos diz diretamente respeito,apontando seus descaminhos idealistas bem como a indicação de soluções: “Hegel descobriu simplesmente uma expressão abstrata, lógicae especulativa do processo histórico, que não é todavia a história real do homem como sujeito dado, senão só a história do ato de criação,da gênesis do homem” (MARX, 1962, p. 179). Seu parentesco e pé na realidade material está em suas próprias premissas: toda alienação é auto-alienação; por mais que parta de um princípio contraditório e de um pathos na experiência, o pensamento alienado vai ser sempre abstratoporque retorna a si, anulando o objeto – sendo pensamento sobre pensamento. A dialética marxiana inverte o pensamento de Hegel; sai dasalturas, pisando no concreto: “Toda a história da alienação e da reenvocação dessa alienação é, portanto, só a história da produção dopensamento abstrato, quer dizer, do pensamento absoluto, lógico, especulativo” (MARX, 1962, p. 181).

instância da histórica antítese entre pensar e agir, cuja meta é o homem natural e a naturezahumanizada, via auto-emancipação proletária – interditos pelos interesses individualistas dapropriedade privada:

A solução das contradições teóricas é possível só através de meios práticos, mediante a energiaprática do homem. Sua resolução não é, pois, de nenhuma maneira, só um problema de conhe-cimento, senão um problema real da vida, que a filosofia foi incapaz de resolver precisamenteporque só via nele um problema puramente teórico” (MARX, 1962, p. 143) .13

Criticando a “fraseologia” de Bruno Bauer, Max Stirner e David Strauss, Marx se indagapor que motivo eles jamais ligaram a filosofia alemã à realidade alemã (em A Ideologia Alemã).Parte-se, portanto, de uma base empírica, da qual só se pode abstrair na imaginação que “são osindivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontraramprontas, como aquelas engendradas de sua própria ação” (MARX, 2002, p. 10). É esse, diz o autor, ocaminho da historiografia, onde os homens produzem seus meios de existência e sua vida material(MARX, 2002, p. 10). Do combate de cunho “aparentemente” acadêmico e individual, engendra-seuma concepção de produção. A partir de uma realidade dada, o Ser dos indivíduos vai ser refletidoem suas atividades: “O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que elesproduzem quanto com a maneira como produzem” (MARX, 2002, p. 11). A transposição para oterreno da história obedece ao mesmo princípio materialista:

Assim como não se julga o que o indivíduo é a partir do julgamento que ele se faz de si mesmo,da mesma maneira não se pode julgar uma época de transformação a partir de sua própriaconsciência; ao contrário, é preciso explicar essa consciência a partir das contradições da vidamaterial, a partir do conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção(MARX, 1982, p. 26).

Com o aumento da população, há novas necessidades bem como novas oportunidades deintercâmbio. Ressaltamos que se trata de esferas condicionadas pela produção – como toda a práticahumana, síntese do pensamento e da mesma produção: “As relações entre as diferentes naçõesdependem do estágio de desenvolvimento em que cada uma delas se encontra, no que concerne àsforças produtivas, à divisão do trabalho e às relações internas” (MARX, 2002, p. 11). Na introduçãode Contribuição à Crítica da Economia Política a produção material aparece como o sinônimo decorpus social, posto que o indivíduo isolado seria um retorno abstrato ao naturalismo (MARX, 1982,p. 3). Na mesma obra aponta-se que a troca não começa entre “comunidades primitivas”, masjustamente onde estas terminam, onde sua produção não mais supre as necessidades de seus habitantes;assim se formaram as bases históricas e reais para a divisão entre aqueles que “têm” e os desprovidosde tal ou tal produto (MARX, 1982, p. 3).

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A divisão do trabalho é, em parte, determinada pela mudança da força produtiva. É essa divisãoque vai estabelecer as diferenças de exploração do trabalho – o que representa distintas formas depropriedade. Fazendo um breve apanhado dessas propriedades desenvolvidas ao longo da história –tribal, comunal ou do Estado e, por fim, feudal –, chega-se à conclusão de que “indivíduos determinadoscom atividade produtiva segundo um modo determinado entram em relações sociais e políticasdeterminadas” (MARX, 2002, p. 18). Esses indivíduos são o que fazem, e mesmo seu comérciointelectual aparece como “a emanação direta de seu comportamento material” (MARX, 2002, p. 18).Nesse sentido, a relação de classe do intelectual deve seguir a pergunta “a que classe representa?”,em vez do mecanicismo vulgar revelado em “a que classe pertence?”. Os quadros sociais daintelectualidade vêm, mormente, da pequena burguesia. A divisão do trabalho na sociedade capitalistacatalogou essa, por assim dizer, “função” como aquela ociosa desatenção do contato com as coisasdo espírito – o que, de forma alguma, elimina magicamente os conflitos de classe, inalienáveis. Surgemos ideólogos do sistema, já reconciliados consigo mesmos, desde o mais tenro berço. A autonomia domundo do pensamento (e da superestrutura em geral) é relativa; em última instância, como dizAlthusser, a determinação econômica reclama sua primazia, sempre via mediações de estruturasobjetivadas da sociedade. Entre o mundo platônico e o universo sempre contingente da história,entre a passagem mecânica da economia à cultura e o fetichismo da pura afirmação do novo há acrítica dialética. É dessa natureza a autonomia parcial da qual falávamos anteriormente. Oreconhecimento e o debate de um acontecimento histórico se dão menos por sua objetividade do queatravés da forma pelas quais são acolhidos nas interpretações do poder constituído, assim como opróprio acontecimento abala as relações humanas de tal ou qual pensamento, sempre de classe. Aocondicionamento ou sobredeterminação de quadros humanos dados, juntam-se outras nuances daspossibilidades históricas humanas, sua capacidade de inovação e revolta, sua reflexão prática.

Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte é ressaltado mais uma vez o caráter prático dasescolhas, das quais nem mesmo intelectuais podem se ver livres:

Não é preciso tampouco imaginar que os representantes democratas são todos eles ‘shopkeepers’ou que eles se entusiasmam por estes últimos. Por sua cultura e situação pessoal, podem estarseparados deles por um abismo. O que deles faz representantes da pequena burguesia é que seucérebro não pode superar os limites que o próprio pequeno burguês não supera em sua vida eque, por conseguinte, são teoricamente impelidos aos mesmos problemas e soluções às quais seuinteresse material e sua situação social impelem praticamente os pequeno burgueses”; e arremata:“tal é, de modo geral, a relação que existe entre os representantes políticos e literários de umaclasse e a classe a que representam (MARX, 1948, p. 201).

Salta aos olhos que o refinamento do gosto e a erudição perfazem um abismo entre umadministrador de empresas e um Lógico Príncipe Consorte. Como consumidores defendem os interessesuniversais da não contradição, do respeito às leis, à ordem e ao fruto do trabalho – a divindadepersonificada da propriedade privada.–“Para que participação popular, se estamos tão bemrepresentados?”– conversam intimamente na mesa de um bar freqüentado por universitários. Umaoutra passagem, desta vez de A Ideologia Alemã, nos ajuda a ilustrar nosso apontamento de hostilidadeindivíduo-pessoal e confraternização na propriedade individual: “Os indivíduos isolados só formamuma classe na medida em que devem travar uma luta comum contra uma outra classe; quanto ao

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14 O pós-estruturalismo francês, sobretudo sob a influência de Gilles Deleuze, caracteriza esse movimento como “desterritorialização”; cf.O Anti-Édipo e O Que é a Filosofia?15 Uma vez que “o proletariado é a única classe cujos interesses históricos exigem o desvelamento da estrutura essencial da sociedade”(LÖWY, 2002, p. 26).16 Essa perspectiva nos aproxima de Walter Benjamin e suas Teses Sobre o Conceito de História (1985). Deve-se libertar o futuro existenteno pretérito, contar a história calada dos vencidos. A luta de classes é, primeiramente, a luta pelas “coisas brutas e materiais”, sem as quaisas belezas do espírito não podem se manifestar. O proletariado não pode entregar o legado espiritual aos vencedores, devendo cultivar “[...]sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza [...]” a idéia de salvação terrena (p. 224), entendida como desalienação.Questionando cada vitória do dominador, percebe-se que os bens culturais são carregados por estes como despojos (p. 224-225). Restaconectar-se praticamente com eles.

mais, eles se comportam como inimigos na concorrência”; a classe, de certa maneira, independe dorelacionamento individual, posto que este, quando nasce, já recebe um legado do qual vai sedesenvolver (MARX, 2002, p. 61).

É possível romper com a classe de origem, gerando uma disponibilidade intelectual e umaposterior adesão, tanto à esquerda quanto à direita (LÖWY, 2002, p. 34).14 A sensibilidade à exploraçãodo homem pelo homem, a abertura ao outro e a imersão nas contradições entre as forças produtivase as relações de produção fazem com que o intelectual assuma anseios e perspectivas da classe;atravessado por essas vivências, orienta sua crítica para uma relação ativa e dialética com oproletariado, quadro e agente de seu pensamento; na proposta gramsciniana, intelectual orgânico dasmassas e seu representante teorético.15

Lukács, no clássico estudo História e Consciência de Classe, discorre acerca doposicionamento do intelectual como problematizador do real, na antítese consciência adjudicada econsciência psicológica. A consciência de classe possível reside no “futuro do pretérito”, daquilo quepoderia ter sido depreendido objetivamente de algum fato histórico, caso fosse possível captar

[...] perfeitamente essa situação e os interesses que daí decorrem, tanto com relação à ação imedi-ata, quanto em relação à estrutura, conforme seus interesses, de toda a sociedade; descobrem-se,portanto, os pensamentos [...] que estão em conformidade com sua situação objetiva (LUKÁCS,2003, p. 102).

O que se quer dizer é, em um só tempo, que economia e vontade humana estão indissolúvel edialeticamente juntas: uma é a outra (reificação, inversão), uma é o meio para a outra (campo materialde imanência para a prática, criação de condições de desenvolvimento) e uma cria a outra(humanização da produção e produção humana; dada a ligação dialética, a realização de uma dasesferas cria a outra).16

A relação entre trabalho alienado e propriedade privada não leva apenas à superação dapropriedade privada, mas à emancipação dos trabalhadores e de toda a sociedade, “porque toda aservidão humana está implícita na relação do trabalhador com a produção e todos os tipos de servidãosão apenas modificações ou conseqüências dessa relação” (MARX, 1962, p. 117). A luta pelareorganização do trabalho, no movimento de seu devir, cria a vontade de mudança, momento detomada de consciência, cuja meta é humanizar a produção. Contrapondo-se ao socialismo utópico,“o comunismo é a expressão positiva da abolição da propriedade privada [...]” (MARX, 1962, p. 133).O homem volta a si como Ser social, conservando a riqueza material dos estágios anteriores, masdividindo-a a partir de poderes democráticos (MARX, 1962, p. 135). Não querendo se queimar nos“caldeirões do futuro”, Marx, contudo, afirma que o comunismo “é a verdadeira solução do conflitoentre a existência e a essência, entre a objetivação e a auto-afirmação, entre a liberdade e a necessidade,

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entre o indivíduo e a espécie. É a solução do dilema da história e sabe que é esta solução” (MARX,1962, p. 136). É possível uma troca não alienada, do tipo afeto por afeto, onde cada relação dohomem com a natureza tenha um objeto específico de sua vontade, “sua verdadeira vida individual”(MARX, 1962, p. 175).

Marx quer escapar, ao contrário do que vulgarmente se espalha nos meios acadêmicos, deperspectivas teleológicas e mecânicas, da história caminhando por si – o que levaria, “necessariamente”,à implementação do comunismo. A história, o nascimento do comunismo e sua consciência pensante“[...] é seu processo de devir compreendido e consciente” (MARX, 1962, p. 175). A base empírica eteórica é a propriedade mudando conforme as relações econômicas. O comunismo é a essência humanaque move as coisas: trata-se da apropriação sensível da vida humana pelo novo homem, movimentode desalienação (MARX, 1962, p. 139). A ação crítica da práxis impõe a “negação da negação”, ouseja, nega-se a propriedade privada e toda forma de alienação, que em si é uma negação das potênciascriativas do homem (MARX, 1962, p. 148-157): “Porque como negação da negação, como apropriaçãoda existência humana que se medeia consigo mesma através da negação da propriedade privada,senão que se origina, antes, na propriedade privada” (MARX, 1962, p. 157).

Para a superação da idéia de propriedade privada basta outra idéia oposta, “mas para superar apropriedade privada real é necessária a atividade comunista” (MARX, 1962, p. 157). Em A SagradaFamília é dito que uma idéia, sem um homem, é inócua, nada faz (MARX apud KONDER, 2002, p.18). Mesmo testemunhando o nascimento da alienação que até hoje nos domina, Marx vê uma chancede mudança no vínculo social e na fraternidade entre os homens. A associação entre trabalhadorescria uma nova necessidade – a sociedade:

Fumar, comer e beber já não são simples meios de se reunir gente. A sociedade, a associação, aconversação, que também têm a sociedade como seu fim, lhes [os trabalhadores] basta; afraternidade do homem não é uma frase vazia senão uma realidade e a nobreza do homemresplandece ante nós em seus corpos extenuados pelo trabalho (MARX, 1962, p.158).

Em 1843, criticando Hegel e sua concepção de Estado, entendido como local da Razão eisolado dos conflitos materiais, Marx vê no Estado liberal um legitimador da propriedade privada,legislando a seu favor (as relações jurídicas não podem ser compreendidas a partir de si mesmas,devendo ser referenciadas às condições materiais de uma época). A sociedade civil é que forma oEstado, não como “o campo onde indivíduos, como pessoas privadas, buscam a satisfação de seusinteresses” (MARX, 1982, p. 25). Essa constatação é decisiva para a tomada de posição pública dojovem Marx – e de todo o crítico em geral: “O Estado é abstrato, só o povo é concreto” (MARX apudKONDER, 2002, p. 13). Trata-se, antes, da instância em que se relacionam os possuidores demercadorias, que guarda em si as relações sociais de produção e as superestruturas (MARX, 1982, p.25). As instituições passam pelo Estado, recebendo o trato político da classe que o sustenta: a leicalcada numa vontade livre é ilusão e esquecimento da base concreta (MARX, 2002, p. 74). Chega-seà raiz do problema, o homem – como diz a célebre passagem.

Contraímos relações de produção necessárias, cuja totalidade perfaz a estrutura econômica deuma sociedade, base real da cultura (MARX, 1982, p. 25). Seres sociais constroem seus referenciaissimbólicos. O comunismo e a liberdade, antes de serem estados de espírito individuais são a visadada ação transformadora da legião de explorados pelo capitalismo. Insistimos mais uma vez que situar

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433Facetas da alienação: uma abordagem teórica

17 “Duvidar de tudo”, resposta escolhida por Marx a um caderno de perguntas, espécie de brincadeira da época, de sua filha Laura (MARX,1962, p. 266).

pontos de ruptura nada tem que ver com mecanicismos. O materialismo se preocupa exatamente emdescrever os movimentos da realidade para sobre ela poder intervir. É importante apontar que omovimento crítico não parte de condições ideais, mas da efetiva e real alienação histórica da sociedade,superando-a. A citação de Marx no prefácio de Contribuição para uma Crítica à Economia Políticase faz necessária não como “Oráculo” ou “bola de cristal”, mas como elemento crítico da auto-emancipação popular:

Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entramem contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a suaexpressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então tinham semovido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas essas relações se transformamem seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social (MARX, 1982, p. 25).

Que a constatação lúcida dos problemas reais da sociedade capitalista (aqui apenas timidamenteesboçados e ainda sob uma forma mormente teórica) não nos paralise. A humanidade pensada aguçao senso crítico: de omnia dubitandum.17 No entanto, não acreditar é por si uma convicção, que nem omais ardoroso (ou passivo...) cético pode deixar de sustentar. A dúvida radical não é apenas lógica,mas leva em consideração a prática do homem ao longo da história. Agindo sobre condições materiaisdadas (condicionamento) há no sujeito uma iniciativa, nunca inteiramente previsível. Por outro lado,a indiferença diante das contradições vitais impede a ação. É a prática que vai afirmar essas convicções,mesmo que as antecipações e especulações teóricas estejam prenhes de dúvidas. Oscilando entre odiagnóstico pessimista e a ação apaixonada, recaímos na postura ética elaborada por Gramsci, napráxis: “Na filosofia, o centro unitário é a práxis, ou seja, a relação entre a vontade humana e aestrutura econômica” (GRAMSCI, 1978, p. 132-133).

QUELQUES ASPECTS DE L´ALIÉNATION:UNE APPROCHE THÉORIQUE

RÉSUMÉ:Ce travail n’est qu’une tentative de contribution à une relecture de la tradition de la critique dialectiquedu réel, en reprenant surtout le concept de l’“aliénation” et celui de la “praxis”. La subjectivitéimmanente au mode de production, qui peut s’en éloigner au fur et à mesure où elle crée et s’y débatet même s’y heurte, pose la question de l’éducation dans l’ordre du jour; donc, de nouvelles lignesd’action peuvent apparaître par le moyen d´une réflexion sur la société. Ainsi, tout en voyant lemarxisme comme une philosophie de la nature, c’est à dire la philosophie qui envisage l’hommecomme un être inséré dans son milieu – et non en tant que l’issu des échecs du soi-disant socialismeréel –, la pensée peut regagner un très aigu outil de compréhension face aux questions actuelles.MOTS-CLÉS: Praxis. Dialectique. Aliénation.

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UMA ESCUTA HEIDEGGERIANAAO PROBLEMA DA EDUCAÇÃO

Flávio de Oliveira Silva1

RESUMOInspirado pelo pensamento filosófico de Martin Heidegger (1889-1976), o texto expõe como razãofundamental da crise na educação atual a concepção de educação comumente aceita, que lhe atribuio entendimento restritivo, circunscrito a um modo de fazer, enquanto método. O texto sinaliza que oconceito corrente de educação não alcança o sentido de educação capaz de acolher o ser humanonaquilo que ele é e como é. Em vista disto, considera urgente pensar a questão da educação nas suasreais possibilidades de investigação, objetivando o alcance do homem na totalidade de seu ser.PALAVRAS-CHAVE: Sentido. Educação. Homem. Ser. Método.

A situação atual de descrédito que ronda e alcança a economia, a segurança, a saúde, a educaçãoe enfim, todos os setores e segmentos da sociedade, mostra-se em seu ápice; e nenhuma ação do tipoque estamos acostumados a presenciar parece surtir qualquer efeito transformador. No palco dasdiscussões, comumente é atribuída à educação a responsabilidade pelo colapso nos demais setoresda vida pública, como resultante do modo como o homem se percebe, se desenvolve e se movimentaem suas questões pessoais, em sua vida privada, razão pela qual as estatísticas mostram um crescenteolhar e investimento na educação, com vistas a modificar a situação vigente. Contudo, entendemosque as ações a ela direcionadas não conseguem se desenvolver numa relação próxima e familiar e,como conseqüência, os resultados deixam muito a desejar.

Trata-se de ações eivadas de discussões, falatórios, medidas e desmedidas que na maioria dasvezes deixa no esquecimento a atitude de escuta e silêncio que deve preceder e permanecer na ação.Com vistas à reflexão que reclama uma escuta ao problema da educação, consideramos urgente umpensar quanto ao seu sentido.

A nomeação da discussão como “problema” não deve ser pensado no entendimento do sensocomum, que toma a referida palavra para expressar uma experiência negativa, indesejável e, portanto,sem nenhuma significação positiva. O termo “problema”, utilizado inclusive no título do nossotexto, nomeia a complexidade da questão em foco e busca tematizá-la em duas perspectivas: 1- o

APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano I I n. 2 p. 35-46 2004

1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor da Universidade Estadual da Bahia (Uneb).

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modelo sobre o qual a experiência da educação, destituída de seu sentido fundamental, se mostra emseu conceito corrente e; 2- o solo fundamental no qual o fenômeno educação se instaura e reclamauma escuta ao seu sentido. A partir destas considerações, encaminhamos nosso pensar acerca doproblema da educação como exercício de uma escuta. Toda crítica é desenvolvida na perspectivapositiva de apropriação do fenômeno, por entendermos na questão como problema, um reverberardo sentido da educação a exigir cada vez e sempre o poder vir à tona em suas reais possibilidades dese fazer ouvir naquilo que fundamentalmente é.

Frente à sinalização da necessidade de se pensar o sentido da educação, talvez o leitor faça aseguinte pergunta: a educação, quanto ao seu sentido, já não está devidamente pensada? Todavia, nossareflexão nos leva a dizer que, embora sejamos motivados a pensar que esta tarefa já de há muito permeiaas práticas e as teorias da educação dentro das universidades e junto aos profissionais da educação, noentanto, o sentido para o qual aponta o fenômeno educação, caiu no esquecimento.2 Surge então, aseguinte pergunta: o que estamos a nomear por sentido? Apropriamo-nos do entendimento de “sentido”na perspectiva do pensamento heideggeriano como: “aquilo em que se sustenta a compreensibilidadede alguma coisa [...] aquilo que pode articular-se na abertura de compreensão” (HEIDEGGER, 1998, p.208). Obviamente, falamos do sentido da educação na perspectiva de focalizar a educação como questãotemática a ser investigada, mas este focalizar é na suposição precedente de que o “sentido” é umexistencial, isto é, é um constitutivo do homem que se dá na compreensão.

Compreensão é um modo fundamental do ser do homem que possibilita o seu existir no mundo,isto é, possibilita-o perceber estar junto às coisas e na relação com os outros homens. Entendida naótica heideggeriana, compreensão não é exclusivamente fruto do entendimento racional, mas doaçãode sentido na vida pré-teórica. Deste modo, a compreensão aqui referida é originária, não deve sertomada como esclarecimento, nem entendimento, que são modos derivados de ser da compreensãooriginária referida.

Embora pareça ousada e equivocada a afirmação de que a educação encontra-se impensadaem seu sentido, esta afirmação tem a pretensão de pontuar a necessidade que agora, mais do quenunca urge desenvolver: a reflexão, o questionamento acerca da educação quanto ao seu sentido,numa atitude radical, fundante, primeira, isto é, naquilo que lhe radica, que lhe possibilita e que lhemantém no seu vigor.

Entendemos o conceito corrente de educação como um acontecimento impessoal, no qual aeducação está em toda parte como expressão, ação e decisão na afirmação do que é convenientecomo valor; e negação do que é convencionado como desvalor a guiar a compreensão da naturezahumana. Na impessoalidade da educação o fenômeno educação é tomado como evidente por simesmo, disto se depreende que a força, a primazia, enfim, o fundamento do fenômeno quepropriamente o instaura cai no impensado do pensamento, e em seu lugar se instaura um dizerimpessoal. Porque no impessoal a educação não é ela mesma pensada a partir do quefundamentalmente reverbera como sentido de seu acontecimento originário, é pertinente também, acaracterização do modo de ser da impropriedade ao conceito corrente de educação.

2 Pode-se dizer que o fenômeno do esquecimento, concebido por Heidegger, atesta, na história do pensamento que a tradição não percebeua diferença ontológica entre ente e Ser, por isto tratou o homem na consideração e julgamento em que tratou os entes como coisas domundo. Mesmo quando a tradição fez referência ao Ser e acreditou desenvolver uma diferença entre ente e Ser, tão somente reforçou esseesquecimento da diferença, originariamente vislumbrado por pensadores gregos no período da antiguidade. Voltaremos a esta questãooportunamente.

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437Uma escuta heideggeriana ao problema da educação

Atribuímos a denominação “conceito corrente de educação” ao entendimento comumenteveiculado que se tem de educação. Neste conceito, a exposição da educação mostra-se apenas sobum ponto de vista, e ainda assim, numa falta à apropriação desse ponto de vista. Em nossa consideração,o ponto de vista que guia a interpretação do ideal de homem e sociedade é vazia de sentido, porqueesse ideal não mais vigora a partir da experiência humana questionadora de seu ser.

Muitos estão inclinados a discordar que o problema da educação esteja impensado quanto aoseu sentido, ao considerarem os inúmeros projetos na área de educação e/ou envolvendo educação,que foram e estão sendo disseminados pelo país afora; e ainda, pelo fato do tema educação estar emvoga na maioria dos setores da sociedade, sendo veiculado pela mídia como um dos problemascentrais no início deste novo século. No entanto, trata-se de uma crença que pouco apresenta desubstancial, de essencial em seu tratamento. Crença esta que envolve os agentes e os pacientes daação numa repercussão sem igual. Essa crença se dá num círculo vicioso, porque somos os própriosque a empreendemos e ao mesmo tempo por ela somos alimentados.

Encontramos no dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001, p. 1100) a descrição, osignificado de educação como: “ato ou processo de educar-se; aplicação dos métodos próprios paraassegurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral de um ser humano; pedagogia,didática, ensino”. Trata-se de uma significação que nos encaminha a pensar a educação como ummétodo, um modo de aplicação que teria a possibilidade de resguardar o encaminhamento do serhumano em vida. Neste entendimento está escrita a história da educação, (GADOTT, 1993) e emnossa consideração, a raiz das dificuldades em liberar a educação para si mesma. Correntemente,educação está entendida como a busca mais eficiente e eficaz de método, a ser desenvolvido naformação da pessoa humana; contudo, a pessoa humana mesma não aparece como fenômeno essencialda investigação. Observa-se que a problemática está voltada para o método com vistas a atender umproblema estrutural da sociedade. Não é ao ser humano que se quer alcançar e sim o que se pretendeé encontrar uma saída para situações que parecem comprometer um ideal preestabelecido de homeme sociedade. A discussão se dá em torno de uma busca de um melhor método, ao qual o indivíduodeva se adequar, possibilitando resultados satisfatórios. Não há sequer uma orientação à pessoacomo núcleo da discussão a partir do qual se venha propor um método capaz de acolhê-la naquiloque ela é. Questionamos, portanto, o pensar exclusivo da educação enquanto método e, ainda, o fatodo seu acontecimento se dar numa inversão de prioridade e de importância do que se apresenta comofundamental na questão, visto que, guiados por Heidegger, entendemos que o pensar não pode reduzir-se ao método. Este, o pressupõe.

Registros históricos possibilitam verificar a nossa afirmação, na medida em que nos deixa entreverque no encaminhamento do pensar e fazer educação, via de regra, a disposição,3 a preocupação4 e a

3 Nomeado no sentido heideggeriano como fenômeno fundamental constitutivo do ser do homem, este termo expressa que o homem estásempre mergulhado numa situação a subsidiar novas possibilidades ou a mantê-lo nas possibilidades em que se encontra. O termo emalemão para relatar a experiência da disposição como fenômeno fundamental é stimmung. Na tradução de Ser e Tempo, c.f. (N45) (HEIDEGGER,1998, p. 321) a palavra é traduzida por humor para significar: “o estado e a integração dos diversos modos de sentir-se, relacionar-se e de todosos sentimentos, emoções e afetos bem como das limitações e obstáculos que acompanham essa integração”. Dito isto, enfatizamos, nareferência à disposição da educação, uma falta de sentido em que não se expressa a totalidade das relações, apenas uma tímida consideraçãoàs situações fragmentárias e momentâneas, ainda assim, avaliadas numa dada situação espacial e temporal.4 Traduzido do termo em alemão Füsorge, a preocupação designa que o mundo do homem é mundo com-partilhado com outros homens,numa consideração à estrutura fundamental de seu ser. Nesse sentido, o homem é um ser-com. Mesmo quando o outro está ausente ou nãoé percebido, ainda assim o homem se movimenta sempre numa relação de encontro com um outro. Na referência à educação, no que serefere à preocupação, ou seja, às relações humanas no fazer educação, o tratamento da questão mostra-se circunscrito a modelos operacionaisem que o homem é pensado na consideração, custo e benefício, segundo os valores vigentes.

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ocupação5 estiveram voltadas para garantir e afirmar a educação enquanto método, enquanto umprocesso, onde o ponto investigado é sempre a situação vigente num espaço e num tempo, previamentedado em perspectiva linear de passado, presente e futuro, sem considerar a complexidade da questão,deixando a mesma, no esquecimento quanto ao seu sentido. Veicula-se a concepção de educaçãocomo fenômeno evidente, compreendida em si mesma, sem que nenhum questionamento acerca dasua natureza tenha efetivamente ganhado fôlego nas discussões e no fazer daqueles que professameducação. Não se quer retirar aqui, os méritos dos trabalhos desenvolvidos sobre o assunto, nem tãopouco negar os resultados obtidos, mesmo que ainda, sem muita expressividade, no âmago do tema.O que se quer, no entanto, é provocar, no sentido de incitar a que se pense, a que se volte aofundamento da questão, em vez de limitar-se a ficar em torno.

Na perspectiva e cadência em que testemunhamos o caminhar do que habitualmente se chamaeducação, acreditamos não haver muito a esperar. Supomos que tudo que se poderia lograr, já serealizou. Insistimos que a educação não é uma questão de método; método é secundário, ele tem seuvalor e sua força na questão central (educação) e não como questão central. A centralização emmétodo, em aplicação subsistiu e pôde dar conta de uma tarefa, dar conta de um estado de coisa, darconta de uma situação constitutiva, enquanto o homem esteve na sua infância e adentrou suaadolescência. Na fase adulta em que se encontra a humanidade, a educação enquanto método já nãoconsegue se articular e, ao contrário do que se espera, impossibilita a clareza da questão.

Um conflito se estabelece, e neste aspecto pontuamos seu caráter des-encobridor. Na medidaem que a abertura da compreensão do homem se expande, ele experimenta que dentro do possíveltudo é possível; rompem-se barreiras, desmoronam-se ortodoxias, questionam-se valores,intransigências, resignação, paz, guerra, vida e morte.

A educação, enquanto um método e sua aplicação desenvolve-se nos mais variados modos.São modos que visam um momento, uma situação e um espaço específico, numa compreensão demundo compartimentalizado. Não há aqui nenhuma negação ao modo em que dizemos conhecer ascoisas, segundo seu aspecto social, temporal, político, econômico, entre outros, mesmo porque,enquanto ramos do saber, essa é precisamente a função da ciência, dar a conhecer o seu objeto deestudo, a partir de seu método de investigação. A nossa questão é precisamente outra, a de mostrar ospossíveis entraves que impedem compreender o problema da educação. Nossa reflexão é, por exemplo,um questionamento à idéia de formação, pensada na idéia do somatório entre as diversas disciplinasde uma vida escolar. A junção das partes que compõem as diversas ciências não equivale a conhecero todo, também por isto falamos de um esquecimento que perpassa a história da humanidade.

Não questionamos o fato do homem ser histórico e com isso, sofrer influências ao mesmotempo em que influencia seu mundo circundante; contudo, ele (o homem) nunca deixa de ser o queele é em seu ser6 a caracterizá-lo enquanto tal. Neste ponto dizemos ser pertinente abordar a educação.A tarefa não se orienta numa tentativa de determinação da educação mediante um conceito, mas de

5 Traduzido do termo alemão Besorgen para referir-se ao modo de ser da existência, caracteriza que o homem está sempre numa lida junto aosentes simplesmente dados, isto é, numa relação junto às coisas no mundo. No que concerne à educação, sinalizamos, a exemplo dapreocupação, que todas as providências do homem em seu lidar junto às coisas, traduzem um abordar a questão nos limites da circunscriçãoreferida em nota anterior.6 Ser está naquilo que é como vigência fundante e originária. Em sua estrutura originária, o ser do que é, mostra-se apreensível quanto ao seusentido. Convém atentar para a diferença fundamental entre Ser e ente, porque essa diferença está subjacente à nossa discussão e suaapreensão nos encaminha à apropriação da questão da educação em sua real possibilidade de investigação. Ente é tudo ao qual nos referimose determinamos como sendo isto ou aquilo, ou seja, é todo e qualquer objeto e situação que nos envolve, que percebemos.

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compreendê-la quanto ao seu sentido. Certamente, não será pela investigação da sociedade comoinstituição em todos os seus âmbitos e valores que se poderá guiar a questão proposta, antes, énecessário perguntar pelo homem, pelas estruturas visíveis e invisíveis de seu ser. Perguntar pelohomem na sua relação com os outros homens, consigo mesmo e na sua relação com o mundocircundante. Dito de outro modo é tentar alcançar a compreensão do homem em seu ser. Isto significa,fundamentalmente, perguntar pelo homem que sou eu mesmo. Na questão da educação não se realizao trabalho de um agente externo, à parte da questão. O que pergunta é o questionador e o questionadoao mesmo tempo. Porque a educação não se reduz a uma questão de método, nem de aplicabilidade;não procede acreditar que o agente desenvolve uma ação exterior ao seu modo de ser. A educação,quanto ao seu sentido, nos encaminha para a percepção de uma relação de proximidade, intimidadee cumplicidade. Os agentes da educação se confundem com os recipiendários; eles se diferenciampela sua semelhança. Eu me aproprio autenticamente de meu ser, na medida em que alcanço o outroe por ele sou alcançado. Nos parece ser esse um indicativo da expressividade que intimamente secumpre como educação. Tudo mais se articula como conseqüência: a sociedade, a política, a economia,a saúde, enfim tudo, pois que todos esses elementos estão co-presentes.

Se não atentarmos para um pensar des-encobridor da questão em seu sentido, continuaremos apresenciar a impotência que se verifica enfaticamente no tratamento da educação como método, poiscomo tal, a educação já não consegue ter ascendência, nem se legitimar frente aos novos momentosestruturais no pensar e fazer humanos. Em vista disto, é perfeitamente verificável que os processosde educação tornam-se obsoletos; os ortodoxos da educação resistem a um olhar crítico e reflexivo,orientando sua ação para manutenção e fortalecimento de velhos paradigmas. Pensando a educaçãocomo método, reclamam por novos modelos de educação, buscam processos atualizados e futuristasque venham a enquadrar-se ao momento atual, contudo, permanecem circunscritos ao escopo dosparadigmas já cristalizados.

Hoje muito se fala de rebeldia e falta de perspectiva entre os jovens, inversão de valores,hipocrisia na política, falta de ética profissional, falta de humanidade, dificuldades nas relaçõesinterpessoais, entre outros, como resultante da má formação educacional, isto é, como problema deeducação. Em razão disto, surgem os mais variados encontros dentro e fora dos setores da educação,a fim de tematizar os problemas acima mencionados. Ocorre que, muitos, depois de exortações,parecem gozar a sensação de dever cumprido, gozar da sensação de participação nos problemasemergentes da sociedade. Consideram que, se não resolvem, pelo menos minoram os problemas,colocando-os em discussão. Dizemos que aí se segue um círculo vicioso e não é sem razão quemuitos desabafam estar entediados em participar de discussões infindáveis, que não chegam a lugarnenhum, ou melhor, que chegam sempre ao mesmo lugar.

É bem verdade que às vezes tomamos conhecimento de casos isolados, na maioria das vezesem comunidades isoladas, de experiências, em se tratando de educação escolar, em que o fazereducação tem apresentado resultados satisfatórios, haja vista as crianças, os jovens, e em geral aspessoas envolvidas no processo, apresentarem comportamentos condizentes àquele postuladopertinente ao que se considera sociedade equilibrada, progressiva. No conhecimento dessasexperiências exitosas se tenta averiguar o que há de particular, de singular na experiência, a fim deestendê-la a outras comunidades, quiçá à educação como um todo. Os resultados da observaçãogeralmente provocam frustração, ainda que muitas vezes não revelada. Conclui-se que não há o

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particularmente novo a permear tais práticas. Nem um método, nem um processo especial se verificaque não sejam aqueles veiculados e tematizados na educação. Quando muito, há uma perfeita harmoniano emprego de métodos e processos prescritos na educação. Tal fenômeno nos leva a questionar asrazões pelas quais tais práticas se desenvolvem com sucesso num e não em todos os lugares. Quandose pensa em atribuir a razão do êxito ao ambiente segundo o nível social, econômico e político, outrasurpresa nos alcança, porque se verifica ocorrências bem sucedidas, tanto em áreas sociais bastantecarentes, a exemplo de favelas, como em áreas onde se concentram pessoas de alto poder aquisitivo.Deste modo, parece não ser possível tratar esses fatos a partir dessas condicionantes. A impossibilidadede clareza na compreensão do fenômeno tende a considerar contingente a experiência, parecendoestar, portanto, ao sabor do acaso.

Contudo, um olhar mais apurado será capaz de pontuar alguns aspectos pertinentes à questão.As experiências exitosas não são efetivamente exitosas o quanto julgamos. Evidentemente, algunsaspectos do êxito merecem destaque, todavia, outros tantos são apenas aparentes, e em momentoalgum revelam na experiência qualquer compreensão singular de educação. Primeiro porque não há,por parte dos agentes envolvidos na experiência, uma compreensão radical, originária do fenômeno.Trata-se de uma pré-compreensão, no sentido de uma intuição subjacente à ação, mas que não seaclara na compreensão do agente, mantendo-se turvada, obnubilada.

Enfocamos mais uma vez que, em nosso entendimento, mesmo as denominadas experiências“existosas” não transitam no âmbito originário da questão. Abordaremos mais adiante que esseacontecimento é estrutural, proveniente do modo pelo qual a tradição do pensamento encaminhou acompreensão de mundo, portanto, não estamos a impor aos agentes educacionais a tarefa derealinhamento na condução da questão. Nossa tarefa é mostrar como esses agentes reproduziram ereproduzem a decisão gerada pelo movimento histórico do pensamento humano que, sobretudo,desde o inaugurar da modernidade, preza pela eficácia metodológica em detrimento do pensar sobreo sentido. Somos herdeiros deste imperativo, ou seja, nosso “ser-no-mundo”7 reverbera a ditadura dométodo eficaz que não é deste ou daquele grupo em particular, e sim proveniente da estruturafundamental do homem enquanto “ser-no-mundo”.

Embora nossa pretensão seja dispor um diagnóstico acerca do que se tem tomado por educação,cabe enfocar que a pedagogia já sinalizou como necessidade do pensar educação, uma apropriação demétodos de outras disciplinas, concebida na idéia da interdisciplinaridade, como também a apropriaçãodo rigor filosófico no tratamento da questão, pela concepção da disciplina “filosofia e educação” ou“filosofia da educação”. Assim, entendemos que se instaura aí uma responsabilidade dos agentes daeducação, pelo menos, na escuta ao dizer da filosofia quanto à pergunta pelo fundamento, no que serefere a questões fundamentais pertinentes à educação.

A partir das considerações acima, fica concebido a recusa ao modo superficial de abordar umaquestão. Esse modo superficial é caracterizado no pensamento heideggeriano como modo de-cadente.8

O modo de-cadente em que consideramos estar a educação dificulta o olhar novo sobre todaintuição, isto é, sobre toda pré-compreensão originária que possa se efetivar em sua totalidade, porque7 Alusão à compreensão de homem em que é ele próprio um relacionamento do ser. Fenômeno que caracteriza a diferença fundamentalentre ente e Ser, na medida em que os entes não são nem indiferentes, nem são indiferentes em seu ser, mas o homem, enquanto “ser-no-mundo” é compreensão de si mesmo e das coisas com as quais lida na interpretação do compreender.8 Alusão ao termo de-cadência, correspondente à expressão alemã Verfallen, a expressar que o homem no seu lidar junto às ocupações epreocupações no mundo, freqüentemente está perdido no impessoal (ver notas 2-3 e 4 da p. 5). A impropriedade do homem indica o modode ser de-cadente. Neste modo de ser, o ser do homem se mantém impensado quanto à diferença ontológica entre ente e Ser.

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acaba por direcionar, por encaminhar o insight na perspectiva de modelos operativos. Enfaticamente,voltamos a afirmar que todo o caráter fundante, todo o aberto de uma compreensão se fecha e aquiloque motivou uma experiência singular cai no esquecimento. Isto pode ser verificado quando os agentesde experiências “exitosas” são ouvidos e questionados em seu fazer. Valem-se dos métodos e processoscomo respostas para justificar o êxito do seu fazer. Muitas tentativas de ampliação dessas experiênciasmeritórias não alcançam o êxito previsto. É que a questão mesma da educação ensaia ser apreendidae interpretada numa intuição que se articula a partir da compreensão originária, constitutiva do serdo homem. Este ensaio se articula num primeiro momento, contudo, não se realiza enquanto reflexãode si mesma. Disto se depreende que o fenômeno não é pensado em seu caráter fenomenológico, istoé, a partir da coisa em si mesma.

No sentido heideggeriano, a fenomenologia enquanto um investigar as coisas a partir de simesmas, nos encaminha para a necessidade de escuta do que se impõe na própria coisa investigada,em oposição às pseudoquestões que muitas vezes se apresentam como “problemas” (HEIDEGGER,1997, p. 56-57). O centramento da educação enquanto método indica, conforme a orientação queadotamos, um desviar do que é fundamental investigar. Nesse conceito, o que está amplamentediscutido e tomado como problema têm sido os métodos e os processos do fazer educação. Nessapreocupação, o foco está na superação e busca de resultados que expressem eficiência e eficácia demodelos operativos. Toda resposta dada nesse sentido converge para a mobilização em termos denovos projetos ou de medidas correcionais dos modelos em voga. Do que tratam senão depseudoproblemas? Disto decorre a impossibilidade de ver na sensação de fracasso da educação oanunciar-se de algo que não se mostra como problema de método ou processo, mas como problemade sentido. Conforme já sinalizamos, no conceito corrente de educação, o ser humano não aparececomo ser privilegiado na investigação e discussão, seu acontecimento recebe um tratamento secundário.Quando nos referimos à fenomenologia, queremos nos remeter à pergunta que questiona a educação.No conceito corrente de educação, a problemática não se envia nesta direção, porque já está cristalizadoo preconceito de educação enquanto método a empreender. O tratamento fenomenológico,radicalmente nos envia a perguntar pelo que se anuncia na questão em foco, e a partir disto, encaminhapara a necessidade de apreensão do anunciado.

Ainda que na tradição do fazer educação se afirme estar a pensar o homem em seu fazer, nãose pensa na diferença ontológica, não se pensa, fora do esquema de cálculos, custos, benefícios enormas de ação, portanto, não se pensa fora dos ditames impostos pela ciência em seu modo deconhecer. Pensar o homem como ponto central para o qual se destina e se fundamenta a educação éantes de tudo empreender a investigação do ser do homem, ou seja, a investigação dos acontecimentosque singularizam o ser homem na diferença a tudo mais tomado como “coisa” no mundo.

Explicitamente, a partir de Ser e Tempo, Heidegger denuncia a impropriedade do homem noseu modo de conhecer: “a comparação sincrética de tudo com tudo e a redução de tudo a tipos, aindanão garante de per si um conhecimento autêntico de essência. A possibilidade de se dominar amultiplicidade variada dos fenômenos num quadro de conjunto não assegura uma compreensão realdo que assim é ordenado” (HEIDEGGER, 1997, p. 89).

Na consideração ao pensamento heideggeriano, dizemos que não há uma apreensão autênticado fenômeno e sim uma compreensão delimitada, segundo parâmetros já interiorizados. Esquecidodo fenômeno em si e lançando mão do que se julga conhecer, traça-se um paralelo entre o que se quer

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conhecer e os demais entes supostamente conhecidos. Como resultado, o que antes era estranho,desconhecido, na relação com o já conhecido, se faz conhecido. Atentemos que a coisa, tal como semostra (o fenômeno), continua impensada em seu ser, e aquilo que dizemos conhecer, não é, senão,numa referência aos entes que explicitamente já se encontram determinados em nosso modo deconhecer como isto ou aquilo.

O mostrar-se da educação não é um mostrar qualquer, assim como não é um mostrar qualquero mostrar da vida, do homem e do mundo. Assim como significar vida não se resume a uma oposiçãoà morte, assim como significar o homem não se resume a ser animal racional, assim como significar omundo não se resume a seu aspecto físico, nem pelos elementos que lhe povoa o espaço geográfico,nem como espaço geográfico; também a educação não se resume num apanhado de processos, métodose modos de encaminhamento do ser humano, segundo esta ou aquela perspectiva, porque assim estáa se privilegiar apenas determinada região do fenômeno, visualizando-o num entendimentofragmentado de partes de suas partes. Nessa consideração equivocada, se julga poder dizer o todo,conforme postulou Descartes na obra Discurso do Método (1999) na sua concepção puramenteracional e mecanicista da natureza, em que propõe poder dizer conhecer o todo a partir da investigaçãoisolada das partes.

A despeito do modo de-cadente sobre o qual o homem estabeleceu as bases e a estrutura doconhecimento, que sem dúvida propiciou um avanço científico e tecnológico num crescenteconhecimento das categorias constitutivas dos elementos do mundo macrofísico, numa exaltação àmodernidade; estamos, no entanto, vivenciando em nosso momento contemporâneo, mesmo queainda timidamente, um mergulho humano nas entranhas e estranhezas do ser. Evidencia-se umquestionamento espantado frente ao que nos rodeia e nos envolve. O questionamento que outroramotivou os gregos antigos a perguntar “o que é o que é?” (HEIDEGGER, 1996) vem nos inquietar.Já começamos a perguntar pelo ser da técnica, pelo ser do homem, pelo ser do mundo, pelo ser davida (HEIDEGGER, 2002) e, por isto, convém o questionamento pelo ser da educação. O óbvio jánão satisfaz enquanto óbvio. Aspiramos por questioná-lo quanto à sua raiz, quanto ao que lhefundamenta e lhe permite ser o que é. Já não se mostra suficiente alcançar os entes em suas estruturasfísicas; convém alcançá-los em sua estrutura fundamental e anterior, e não apenas alcançar o que semostra em sua visibilidade. O pensamento de Heidegger nos incita, a exemplo dos primeirospensadores, a questionar o fenômeno em seu cobrimento e des-encobrimento. A pergunta é pelaaletheia, pensada pelos gregos, como o permanente jogo do velar e des-velar-se do ser dos entes. Nainterpretação grega de aletheia como desvelamento, os gregos apreenderam, como caráter das coisasou das situações, o modo fundamental do velamento que lhe é inerente.

A palavra grega alhJeia (Alethéia) exprime o que os gregos conceberam como sentido de ver-dade. Este, apreendido como o estar des-velado do ente, como o que aparece saindo dovelamento, como aquilo que surge da sua ocultação, concebe a verdade numa dimensão decompreensão não alcançada pela “veritas”9. [...] Alethéia é precisamente o pensar ontológico quequestiona o eclodir, o surgimento dos entes, como o que há de mais original na existência(SILVA, 2002, p. 72).

9 A tematização da veritas está em nossa dissertação de mestrado “O problema da verdade em Heidegger” no qual tratamos da diferençafundamental que separa o pensamento grego antigo de verdade como aletheia, do pensamento tradicional de verdade centrado na veritas. Oimportante em nossa discussão acerca da educação é para o que nos envia o sentido grego antigo de aletheia.

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O conhecimento em sua estrutura tradicional está conceitualmente cristalizado, ele é restritivoe por demais limitado. É fato que a concepção de uma realidade circunscrita ao seu aspecto unicamentemacrofísico deixa sem resposta uma gama de questionamentos que o ser (aqui numa referência aohomem que questiona e compreende em seu sendo) em sua transcendência já ultrapassou enquanto“ser-no-mundo”. A experiência do espanto que des-vela, estranha o mundo como ente macrofísico eesse estranhamento se faz ouvir, inclusive, na própria ciência. Por tal estranhamento o físico BararabNicolescu registra em seu livro O Manifesto da Transdisciplinaridade (1999) a revolução ocorridano início do século passado, quando o pensamento clássico, baseado nos conceitos da física clássica,entra em derrocada. A Física testemunhara uma revolução quântica no plano do invisível. Nesteplano, a física quântica re-vela cientificamente a existência de outros níveis de realidade. Níveis estesjá tematizados na filosofia, que pelo modo de ser desse saber, se manteve na circunscrição de filosofiaespeculativa.

Diante das novas descobertas da ciência, somente a aquiescência de outros níveis de realidadetorna possível à física quântica se estruturar sem negar o que até então se construiu sobre as bases dafísica clássica, que pensa o mundo na perspectiva da realidade macrofísica, realidade esta, circunscritaao entendimento entificado de mundo. A menção à descoberta dos níveis de realidade tem a pretensãode nos situar no complexo emaranhado em que a questão do sentido da educação deve se fazer ouvirem sua autêntica escuta.

Nossa reflexão chega, por fim, a um momento em que consideramos, mesmo que resumidamente,contribuir para uma des-construção do pensar educação enquanto método, enquanto processo deaplicação de um fazer. Consideramos ainda, estar contribuindo com subsídios provocantes e incitadorespara um pensar originário e fundante, cujo interesse é a compreensão do ser humano na totalidade deseu ser. Até agora, atribuímos como problema na investigação da educação, o conceito corrente deeducação enquanto um método, que deixa sem reflexão a educação quanto ao seu sentido. Contudo,queremos nos reportar a um problema de compreensão na história do pensamento, que é anterior aodo conceito corrente de educação e que, portanto, aparece como problema fundamental a justifica oscaminhos empreendidos em todas as áreas de conhecimento. Nessa tentativa, evoquemos o pensamentode Heidegger, a expressar o fenômeno do esquecimento do ser quanto ao seu sentido.

Segundo Heidegger, a tradição filosófica tratou do ser enquanto ente, e com isto encaminhousua investigação acerca da verdade, do homem e do mundo, de modo equivocado, sem propriamenteapreender o fenômeno em sua inteireza, limitando-se apenas a determinar certas regiões destesfenômenos. Em razão disto, apontamos a dificuldade em se alcançar questão da educação quanto aoseu sentido.

Conforme Heidegger, o esquecimento é próprio do ser e como tal é experienciado pelo homemem sua cotidianidade. Nesse entendimento, nos dá a conhecer que a apreensão do ente enquantoente em sua manifestação, se dá (se abre) para sua condição de ente, mas num fechamento, isto é,num ocultamento em seu ser. Esse fechar da compreensão do ser caracteriza que o ser, quanto ao seusentido, caiu no esquecimento. Porque esse esquecimento é próprio do ser e se dá na medida em queo ente se mostra na sua estrutura constitutiva, na abertura da compreensão humana, não há, por isto,a crítica heideggeriana ao esquecimento e sim ao fato da tradição ter esquecido do esquecimento queé próprio do ser.

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Quanto à educação, é o fazer educação na perspectiva do desenvolvimento de métodos, e deprocessos, o que tomamos como manifestação do ente, isto é, como dado objetivo. O ente, aquideterminado como método, como processo, é apenas um dos aspectos, uma das regiões em que o serda educação se desvela no ente e se mostra como elemento concreto. Esse modo de ser da educaçãoé ainda o mais impróprio, o mais impessoal, o mais distante do ser para o qual a educação se destina(o homem). Há cerca de três séculos a.C., já Aristóteles havia intuído em seus livros da Metafísica(1982) que o ser se diz em vários sentidos, sendo conveniente investigar o sentido do ser compreensívelem sua totalidade.

Se, fundamentados no pensamento de Heidegger, podemos dizer que a questão da educação,em seu sentido, caiu no esquecimento, então, podemos também afirmar que a referência aoesquecimento quer significar que já experimentamos uma pré-compreensão do fenômeno e por issopodemos falar de um esquecimento, ou ainda podemos falar de esquecimento, porque o fenômeno,quanto ao seu sentido, às vezes vem ou tem a possibilidade de vir à tona, para depois novamente cairno seu velamento como questão temática. Se falamos de um esquecimento é porque de um modo oude outro a apreensão do sentido fundamental de um fenômeno pode se dar na abertura de nossacompreensão. Só o que é de algum modo familiar, pode gozar da possibilidade de ser esquecido.

No não-esquecimento do esquecimento do ser, é que se pode vivenciar a compreensão de serpropriamente no ser, num mergulho que permite com-partilhar ritmo e cadência com o “ser-do-mundo”. No livro Introdução ao pensar, Buzzi transcreve uma descrição de Chuang Tzu, a qualrelata uma passagem em que mundo e homem se mostram numa relação de proximidade, de com-partilhamento, de mútua entrega e des-velamento de sentido:

Confúcio contemplava a catarata de Lu-Liang. A cortina de água tem a altura de dez homensem pé, um em cima do outro.Depois da queda, a corrente impetuosa de águas espumantes se precipita ao longo de qua-renta milhas, entre as rochas. Nem tartarugas, peixes ou crocodilos podiam nadar nesseturbilhão.Viu, porém, um homem nadando na torrente.Crendo tratar-se de um suicida cansado dos sofrimentos da vida, mandou que seus discípu-los o salvassem da morte.A uns cem passos abaixo, porém, o homem saiu da água, sacudiu alegre os cabelos molha-dos e cantarolava.Disse Confúcio:‘Pensei que você fosse um espírito. Vejo, porém, que é mortal. Diga-me, por favor, em queconsistem a técnica e o método de sua natação?’(grifo nosso)Respondeu-lhe o mortal:‘Não sei. Instalei-me na terra, enraizei-me no hábito do cotidiano; no desempenho recolhidodo habitat diário, alojei-me na fluência da vida; aos poucos a fluência da vida se tornou ohabitáculo da minha natureza como a lei perfeita da regência do corpo. Caio na água, desçoe subo com ela, na correspondência à sua doação. Não há técnica nem método’.Perguntou-lhe Confúcio:‘O que significa instalar-se no hábito do cotidiano, alojar-se na fluência da vida, tomar corpona regência da lei perfeita?’Respondeu-lhe o homem:‘Sou campônio. Nasci na terra. Moro nela. Isso se chama paz, o recolhimento do diário. Dapaz flui ávida. Deixar fluir a vida no recolhimento diário é o hábito. Isso se chama: ser. Com

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445Uma escuta heideggeriana ao problema da educação

o tempo, o ser toma corpo, cresce como fruto da vida, prenhe de vigor. Tudo é uno. Cadacaminho é ressonância da vida. Isso se chama: liberdade ou espírito. É só isso, nada mais’(BUZZI, 1987, p. 245).

Na obra Paidéia, Jaeger relata a experiência dos gregos antigos na sua vivência de educação.Em seu modo de ser os gregos vivenciaram a compreensão de educação num entendimento lúcido,claro e totalizante muito mais próximo daquilo que intuitivamente buscamos alcançar na educação.O modo peculiar de vida, próprio dos gregos antigos, se singularizava pela compreensão abarcantedo todo na cadência da escuta, do silêncio e da fala. Na introdução da referida obra, o autor afirma:“Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ouuma teoria abstrata, distinta da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação” (JAEGER,2001, p. 01)

Segundo Jaeger, a educação para os gregos consistia no sentido de todo esforço humano, que seevidencia entre os gregos numa vivência sedimentada, fundamentada por um sentido que consideravamconceber de educação. Assim explicita:

Os gregos tiveram o senso inato do que significa “natureza” [...] consideravam as coisas domundo numa perspectiva tal que nenhuma delas lhes aparecia como parte isolada do resto, massempre como um todo ordenado em conexão viva, na e pela qual tudo ganhava posição esentido [...] A tendência do espírito grego para a clara apreensão das leis do real, tendência poten-te em todas as esferas da vida – pensamento, linguagem, ação e todas as formas de arte -, radica-se nesta concepção de ser como estrutura natural, amadurecida, originária e orgânica (JAEGER,2001, p. 11).

Conforme expõe Jaeger (2001, p. 12-16), todos os povos criaram seus códigos de leis, mas opovo grego buscou a “lei” que age nas próprias coisas e que orienta a essência humana. Os gregosantigos não concebiam educação como uma soma de técnicas organizadas por instituições com vistasa uma individualidade perfeita e independente. Sua idéia de educação esteve voltada para exaltaçãodo espírito criador do homem, num profundo enraizamento da vida comunitária.

Por fim, queremos ressaltar que o pensar e fazer educação não se esgota nem se conclui. Noentanto, entendemos que apropriar-se desta questão significa ter que pensar a educação quanto aoseu sentido, a fim de que com clareza, possa legitimar todo e qualquer fazer. A partir das indicaçõesde nosso texto, deixamos entrever que não se trata de tarefa simples, porque pensar o sentido daeducação é primeiramente ter garantido uma compreensão original, fundante do que seja o homem,do que seja a vida e do que seja o mundo.

Falamos de uma investigação em seu caráter radical, originário e fundante, porque num menorrigor, já sabemos o que é o homem, o que é a vida e o que é o mundo; mas, só sabemos aquilo queestá evidente, que está a descoberto. Certamente, na compreensão do sentido da questão, nosso fazernão será um fazer qualquer. Será um fazer legitimado pelo cuidado, pelo respeito, e pela reverência aohomem, à vida e ao mundo, numa compreensão ao que Loparic (2003) considera pertinente comoquestão primordial na dimensão ética do pensamento heideggeriano, a se exprimir na indagação decomo deixar acontecer, estando no mundo e com o mundo tanto o que “tem-de-ser”, como o quepode “vir-a-ser”.

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A HEIDEGGERIAN ATTENTION TO THE EDUCATIONAL PROBLEM

ABSTRACTInspired by the philosophical thought of Martin Heidegger (1889-1976), this paper shows therestrictive concept of education as a basic reason for the educational crisis today. The text explainsthat the current concept of education does not correspond to the real sense of education, which isable to accept the human being in the way he/she feels or is like. For this reason, we think that it isurgent to research education problems with the objective of reaching humankind as a whole.KEY-WORDS: Sense. Education. Human being. Being. Method.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Metafísica. Edición Trilingüe. Madri: Ed. Gredos, 1982

BASARAB, N. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999.

BUZZI, A. R. Introdução ao pensar. Petrópolis: Vozes, 1987.

DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores).

GADOTT, M. História das idéias pedagógicas. São Paulo: Ática, 1993.

HEIDEGGER, M. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural. (Os Pensadores).

______. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.

______. Ser e tempo. (Parte I). Petrópolis: Vozes, 1997.

HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

JAEGER, W. Paidéia – a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

LOPARIC, Z. Sobre a responsabilidade. Porto Alegre: Edipucrs. (Coleção Filosofia).

SILVA, F. O. O problema da verdade em Heidegger. 2002. Dissertação (Mestrado em Filosofia)– Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2002.

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O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO NA FILOSOFIADA RAZÃO VITAL DE ORTEGA Y GASSET

Danilo Santos Dornas1

RESUMONeste trabalho, examinamos quais são os aspectos da Filosofia da Educação segundo o pensadorespanhol José Ortega y Gasset (1883-1955). Adicionalmente, procuramos compreender qual a posturado educador e do educando nesse modelo teórico.PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Educação. Raciovitalismo.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A pedagogia é a ciência que investiga os pressupostos teóricos da educação. Para pensá-la,valemo-nos das indicações do pensador espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955). O que caracterizao pensamento de Ortega y Gasset? Ele altera o rumo da indagação do que seja a realidade, ou omodo de considerar a razão de ser de tudo. Formulando um pensamento distinto do realismo antigoe do idealismo moderno, Ortega postula que não podemos pensar o mundo sem o Homem e nem esteà parte do mundo. Ao abrir a compreensão da existência para um diálogo com a cultura e com otempo, o filósofo espanhol nos fala da responsabilidade com o mundo a ser criado por nossas vidas.Essa forma orteguiana de pensar compromete o Homem com a explicação do mundo e dá significadoà filosofia num tempo que precisou aprimorar os paradigmas que marcaram o modo de pensar nosúltimos séculos. A filosofia proposta por Ortega contempla a responsabilidade de construir umaexistência pessoal num mundo sem garantias e perigoso, numa história sem sentido prévio. Viver éabrir-se ao contato com os outros homens e com as coisas, é sair de si mesmo, é arriscar-se naconstrução do futuro. A filosofia orteguiana foi uma forma inovadora de pensar, colocando ofundamento na vida e transformando-a numa realidade capaz de alterar as circunstâncias e realizar avocação de cada Homem.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 2 p. 47-57 2004

1 Pós-graduando (lato sensu) em Filosofia Contemporânea – Ética, pela Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ.

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Neste trabalho, nosso objetivo é examinar os fundamentos da pedagogia raciovitalista, fundadapor Ortega. Além disso, buscaremos compreender como os estudantes devem proceder dentro dessemodelo educacional que lhes permitirá crescer como seres criativos. Indicaremos ainda como oeducador, seguindo as indicações da educação raciovitalista, deve aprofundar os fundamentos dasteorias pedagógicas do século XX, porque um educador tem que ser mais que um regulador outransmissor daquilo que é preciso aprender numa certa circunstância. O educador deve ser capaz deatualizar as potencialidades do educando.

Nos últimos dois anos, nós nos dedicamos ao estudo de alguns aspectos da Filosofia de Ortega.Este trabalho, fez parte de um projeto maior sobre a Filosofia da Educação que desenvolvemoscom o apoio do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),nos Programas de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), sob a orientação do Prof. Dr. José Mauríciode Carvalho.

As referências principais para a realização deste trabalho foram as Obras Completas, de JoséOrtega y Gasset, editadas em Madri, pela Alianza. Além disso, valemo-nos dos seis números jáeditados da Revista de Estudios Orteguianos e das obras de Margarida I. A. Amoedo, intituladaJosé Ortega y Gasset: a aventura filosófica da educação, editada em Lisboa, pela Estudos Gerais;e Introdução à Filosofia da Razão Vital de Ortega y Gasset, de José Mauricio de Carvalho,editada em Londrina, pela Cefil.

O estudo da obra orteguiana não pode ser realizado em nossos dias à parte do que sobre eleescreveram os principais comentadores. Entre os estudos mais conhecidos, queremos mencionar:Acerca de Ortega, de Julián Marías; A Gratuidade ética de Ortega, de Leopoldo Gonzáles. Alémdesses autores, consideramos as contribuições para o tema dos orteguianos brasileiros: Eis as obrasmais significativas: Ortega y Gasset, a aventura da razão; A pátria descoberta; Viver é perigoso;Discurso sobre a violência; O Ocidente e sua sombra; O Valor da Vida; de Gilberto de MelloKujawski. A presença da moral na cultura brasileira e outros ensaios; Metamorfoses daLiberdade; A idéia de Liberdade no século XIX; de Ubiratan Macedo. Além desses, referimos àsobras de Nelson Saldanha: Filosofia, povos, ruínas; Historicismo e Culturalismo e Pela Presençado Humano.

A INFLUÊNCIA DE HERBART

Ortega escreve seus trabalhos sobre pedagogia influenciado por Johann Friedrich Herbart (1776-1841). O ensaio herbartiano que influencia Ortega se intitula Pedagogia General derivada del finde la educación. Neste texto, o filósofo explica que aquilo que chama sua atenção é o estudo daatividade educativa espontânea num regime científico.

Com esse ensaio de Herbart (ORTEGA Y GASSET, 1993, T. VII, p. 266), a pedagogia torna-seuma atividade prática. Dentre as teses principais ali propostas, destaca-se a que o mestre é obrigadoa valer-se das evidências científicas para ensinar. Ortega critica esse entendimento de Herbart, porinfluenciar os métodos educacionais do seu tempo. Eis o que pensa: “não se exige que seja um físicopara ensinar física, nem historiador para ensinar história. A única ciência especial que se exige paraensinar é a pedagogia”.

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449O problema da educação na filosofia da razão vital de Ortega y Gasset

O que tornou a pedagogia uma atividade prática foi acreditar que seu significado é oferecersoluções para os problemas técnicos do homem. Para uma discussão das teses filosóficas queinfluenciaram o pensamento pedagógico de Herbart, Ortega refere-se à ética, que determina osobjetivos da educação, e à psicologia, que regula os métodos a serem aplicados. Vejamos, a seguir, oque diz a respeito.

A psicologia recebe uma aplicação efetiva no sistema pedagógico. O “eu” visto por Herbartnão é sinônimo da subjetividade moderna, mas traduz um complexo de representações. Deve-seobservar que existe na pedagogia uma preocupação em demonstrar como é possível a variedade dofenômeno psíquico na unidade do “eu” por vias relacionais.

Este entendimento aponta para a consciência moral e estética. Para Ortega, a pedagogia guiadapelos ditames desta “psique” reflete o temperamento do século XVIII, cujos valores predominantessão: a serenidade e o racionalismo que culminaram num intelectualismo psicológico.

Já a ética de Herbart é importante por outras razões. Para Ortega, esta ética segue um caminhooposto ao seguido por Immanuel Kant (1724-1808). Esta diferença reside no propósito de Herbartem tratar a ética como uma fonte de ações boas. O “bom” é uma qualidade que força nossa aprovação,enquanto o “mau” força nossa reprovação. Isto significa que, para a concepção ética de Herbart,cada homem tem a capacidade para distinguir o “bom” e o “mau”, e esta capacidade não se funda naquantidade de conhecimento. O valor não se conhece, se reconhece, se aceita. Não é a razão, aciência que podem dizer quais os valores são bons (positivos) e quais maus (negativos): o órgão paraos valores é uma peculiar sensibilidade de aprovação ou desaprovação (ORTEGA Y GASSET, 1993,T. VII, p. 286).

Perceber o “belo” da realidade física é, para Herbart, um capítulo da ciência estética dasensibilidade. Desse modo, a operação científica transcreve os ditados do real em expressõesconceituais. Para Ortega, esta forma de tratar o assunto sugere que o cientista deve perceber a realidadeque está a sua volta para encaminhar os estudantes à maturidade. A maturidade se caracteriza pelacapacidade de distinguir os valores verdadeiros e falsos.

COMO SE PENSAVA A EDUCAÇÃO NOS TEMPOS DE ORTEGA Y GASSET?

Ortega apresenta suas idéias pedagógicas contrapondo-as às idéias educacionais, então vigentes.Naquele momento, as teorias da educação consagram o saber prático. Assim, verificamos que oprincipal problema educacional de sua geração é a conversão dos conceitos educacionais nos termosdas ciências técnicas.

O problema da educação, nesse caso, é um problema de eliminação. Eliminação significa acapacidade de o Homem selecionar o que é essencial para sua vida, eliminando o que não é. Asfunções essenciais que o Homem deve perseguir são de ordem psíquica e é essa ordem que o distinguede uma máquina.

As máquinas são construídas para realizar algumas tarefas que cansam as pessoas. Para Ortega,as máquinas trabalham em limitadas condições e reduzem a atividade humana ao mínimo, impedindodistinção entre o vital e o operacional. Para o filósofo, é necessário distinguir a função vital e osubstituto dela. Eis o que diz nos Ensayos Filosóficos – Biologia y Pedagogia:

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o uso da bicicleta é mero mecanismo e, portanto, menos vital que o uso do pé, tampouco esterepresenta a vitalidade essencial, também é um mecanismo em comparação com outras funçõesbiológicas primárias (ORTEGA Y GASSET, 1993, T. II, p. 276).

Ortega entende que ensinar o homem pelos modelos funcionais, como as teorias mecânicasentão predominantes, não esclarece as realidades vitais do Homem. Quais são elas? Para o filósofo,são três: 1) a realidade mecânica ou técnica, que em seu conjunto chamamos de civilização ecorrespondem a montar uma bicicleta; 2) as realidades culturais do pensar científico, que se inseremnuma vitalidade psíquica dentro de causas normativas, e é com esta que a pedagogia da razão vitaldeve se preocupar para que haja a capacidade do homem em eliminar o que é desinteressante de suavida; e 3) os ímpetos originais da “psique”, como as emoções. Essas três realidades distinguem oshomens, mas são as raízes da existência pessoal. O erro das concepções pedagógicas de sua época foisupor que ensinando técnicas ao indivíduo iria dotá-lo de visão científica e de uma inteligênciainquestionável.

A VIDA ESPONTÂNEA COMO PROCESSO DE ADAPTAÇÃO

Ortega, no ensaio intitulado Biologia y Pedagogia, explica que a missão da escola é prepararo Homem para a vida. Para isso, ele acrescenta, que as escolas precisam ensinar a educação culturale a civilização para constituírem um instituto que permaneça idêntico desde os tempos remotos eestimular a criatividade para o educando enfrentar os problemas do futuro. Para o filósofo, é maisurgente e necessário preparar o homem para nossos desafios do que para repetir técnicas.

O ensino das técnicas é adequado apenas para quem quer se especializar numa função que nãoseja essencial para sua vida. Ortega explica que o ensino técnico é a principal forma de educar o homemde sua geração. A geração que antecedeu a sua preocupou-se com a exploração de minerais e, assim,com um objetivo limitado, não tinha um olhar mais aguçado para o futuro. Também ficou sem função apossibilidade de admirar ou contemplar o mundo, que está na raiz de todo conhecimento humano.

O estudo da realidade principia com um impulso inicial que é a admiração. Ortega nos lembraque a admiração fez mover a Filosofia desde suas origens gregas. O filósofo conclui que a admiraçãono povo grego nasce não só da sua cultura, mas também do desejo de riqueza, glória e sabedoria.Uma pedagogia, para ter sucesso, tem que sistematizar a vitalidade espontânea dos educandos. Pararealizar essa tarefa, é necessário analisar, equilibrar e corrigir as deformações que surgiram na história.

Ortega entende que o homem não tem natureza, mas história. Por isso, contrapõe suas teseseducacionais às de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), para quem a vida espontânea deve ser negadae a vida primitiva, valorizada. Entendemos que tratar o homem primitivo como selvagem, como fezRousseau, significa fazer a distinção entre homem selvagem e homem civilizado a partir dos recursostécnicos que cada um dispõe para a sobrevivência. E isso consiste em admitir o progresso contínuocomo processo único de construção do saber humano. Porém, essa teoria progressista não explicaporque a origem da civilização aconteceu quando os homens primitivos sentiram a necessidade deorganizar-se em comunidade.

Ao contrário do que entende Rousseau, Ortega diz que a educação nunca será uma ficção danatureza. O filósofo espanhol entende que entre os anos de 1850 e 1900, os pensadores definiram

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451O problema da educação na filosofia da razão vital de Ortega y Gasset

que a vida essencial era a adaptação do homem ao meio em que ele se encontra. Essa característicaatende somente à sua vida orgânica. Na passagem seguinte, Ortega sintetiza as conseqüênciasde semelhante modo de pensar “a mão, sobretudo no homem, é o órgão exemplar da adaptaçãocriadora, que consiste em transformar proveitosamente o meio” (ORTEGA Y GASSET, 1993, T. II,p. 284).

A biologia refere-se à vitalidade como um processo de adaptação. Esse mesmo propósito orientaa psicologia, cuja vitalidade psíquica é inspirada na biologia orgânica do século XIX. As teoriasbiológicas e psíquicas daquele século entendem que a percepção do mundo circundante inicia-senum processo de adaptação do sujeito ao meio em que está situado. Esse processo relaciona a vidacom o meio e é regido por ele. Porém, explica Ortega, ao penetrarmos fundo na alma humana,percebemos extratos profundos que dificultam entendê-la a partir de conceito de adaptação.

Para Margarida Amoedo, o conceito de “paisagem” que o filósofo apresenta, visa combater acategoria biológica de “meio”. Em nosso entendimento, o conceito de “paisagem” significa que cadaespécie animal tem o seu lugar natural, embora o Homem viva em toda parte. O termo “paisagem”,além de diferir de “meio”, significa o conjunto das circunstâncias que o homem encontra em suavida. Desse modo, “circunstâncias e paisagens” são ao mesmo tempo as limitações do Homem, masabrem um conjunto de possibilidades, o impulsionando a sair destas circunstâncias.

Com o conceito de “paisagem”, podemos auferir as seguintes implicações pedagógicas: 1) oêxito da aprendizagem depende do uso de mecanismos adequados; 2) a compreensão da paisagem doindivíduo permite investigar seu potencial criador; e 3) educar deverá conduzir ao estabelecimentode paisagens novas.

A FORMA PSÍQUICA INADAPTADA E A PULSAÇÃO VITAL COMO SENTIMENTODE VITALIDADE

No item anterior, procuramos explicar em que consiste a adaptação e como o conceito foiintroduzido nas teorias pedagógicas. Consideramos também que essas práticas educacionais suscitamdificuldades, porque não incentivam a criação humana. Agora, em contraposição ao que proclamamessas teorias, vejamos como Ortega aborda a forma psíquica como o que tipifica a vida humana.

Para levar adiante essa elucidação, recorremos, às palavras: “querer e desejar”. O “querer”significa apropriar-se da realidade de algo e dos meios que se utiliza para fazer algo; o “desejar”implica em dar conta de que o desejado é relativo ou absolutamente impossível. Na criança, essadistinção não existe. Quando sua experiência lhe mostra o que é ou não possível, sua vontade vai semodificando entre o realizável e o irrealizável. A sua existência torna-se uma constante luta de fronteirasentre o “querer” e o “desejar”. Assim, o “desejo” é um “querer” fracassado. Porém, Ortega entendeque é o “querer” que nutre o “desejo”, movendo-o e ampliando-o. Assim, o desejo é o motor dentrodo universo psíquico porque por ele o Homem sente suas necessidades e se empenha em supri-las.

Ao olhar a esfera política, Ortega explica que o estado de barbárie resulta do triunfo do Homemque tem poucas necessidades. São as necessidades que abrem as possibilidades para que ele saia desuas circunstâncias pelo “desejo” e amplie os seus horizontes.

Uma pedagogia voltada para a adaptação do indivíduo ao meio exclui os desejos e se fecha apossibilidade do indivíduo realizar grandes feitos porque o desejo de ser diferente foi abafado. Assim,

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os mestres cegam o indivíduo de suas possibilidades e de suas potencialidades criadoras. Uma pedagogiaraciovitalista considera que o pensamento é a ação sobre a outra pessoa porque influi na relação comela. Desse modo, a censura muitas vezes empregada pela pedagogia de adaptação pode nascer tantodo amor quanto do rancor pelo outro.

Para o filósofo, as emoções que sentimos na relação com o outro revelam nossas instânciaspsíquicas e são elas que nos dirigem, nos alimentam, nos deprimem, mas que também nos são íntimase podem nos nutrir. Essas emoções são influenciadas por uma dinâmica psíquica que varia entre oshomens. Isso significa que o sentimento de vitalidade existente em cada homem parte de um pulsopsíquico íntimo que o faz cada um experimentar os desafios de sua época.

Não há que se esperar valores éticos nos pulsos vitais, mas cabe ao homem assegurar sua saúdevital. Assim, a pedagogia deve preocupar-se em submeter a atividade educacional aos ditames doimperativo de vitalidade. O ensino fundamental, explica o filósofo, deve ter o objetivo de produzir ohomem saudável. Isso quer dizer que o homem deve sentir sua pulsação vital já no período inicial daformação. Ortega ainda explica que as demais ciências, a moral, a técnica e o ideal de cidadania nãodevem consistir no ponto de partida da pedagogia raciovitalista, pois são preocupações posterioresdo educando.

A IMPORTÂNCIA DOS MITOS NA EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL

Até aqui, identificamos o perfil da pedagogia raciovitalista; entretanto é ainda necessário abordara questão dos mitos, porque ela interfere na educação fundamental. Na educação fundamental, oindivíduo necessita estar envolvido numa atmosfera de sentimento audacioso, ambicioso eentusiasmado. É aí que entram os mitos.

Uma pedagogia prática, certamente, desprezará o ensino dos mitos por considerá-los umemaranhado de imagens fantásticas e, em contraposição, procurará desenvolver uma idéia exata sobreas coisas. Essa pedagogia rejeita o papel que o mito possui e despreza a função interna que elealimenta, sem a qual a vida psíquica fica paralisada. Ortega explica que o mito nutre o pulso vital e,por isso, o filósofo o denomina de “hormônio psíquico”. O filósofo acrescenta que, até o século XIX,o “meio” é a tradução do mundo físico-químico onde estão os indivíduos, e eles teriam que se adaptara ele do melhor modo possível. Assim, a biologia transforma os fenômenos vitais em fenômenosmecânicos. As coisas, no entanto, não se relacionam por atividades mecânicas.

A dificuldade do ensino fundamental vigente é a suposição que os educadores fazem da vidaeducacional dos educandos. Eles pensam que os jovens possuem o mesmo mundo que eles, porquepartem do próprio mundo como algo definitivo, pronto e acabado e o tornam como modelo. Entretanto,quem pensa desse modo esquece que a maturidade e a cultura são criações da criança e do selvagem.Para Ortega, a maturidade não é a superação da imaturidade, e sim uma interrogação da realidadeque se apresenta ao indivíduo. Para o filósofo, a pedagogia de Rousseau se assemelha ao emprego deum método cruel, porque intenta suplantar a paisagem natural da criança com os elementos querodeiam as pessoas maiores. O filósofo ainda explica que o homem é um conjunto de órgãos seletosque interferem na realidade circundante; porém, o “meio” depende não só de sua estrutura corporal,mas também da estrutura psicológica. Por isso é importante ensinar os mitos aos jovens, para que elepossa exercitar sua pulsação vital.

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O jovem imagina uma realidade ilusória e, por isso, sua educação vai se consolidando na medidaem que as interrogações vão perdendo as ilusões. Esse processo de desilusão inicia-se quando a razãocomeça a operar em torno do novo objeto. Todo empenho da razão será guiado pela vontade de sabere obter uma noção exata do objeto. A razão quer elaborar uma cópia intelectual que a transcrevacomo o objeto aparece. Para Ortega, não há nada que chegue até nós num primeiro instante e quenão nos cause uma dupla reação: história e lenda. A lenda ocupa tanto nossa paisagem que atémesmo a ciência pode ser incorporada nela. Essa maneira de entender é uma crítica ao positivismo,que é exemplo de uma grande exaltação à ciência. O que o positivismo fez foi criar uma nova religiãoque acredita haver suplantado as demais religiões.

O ATO DE ESTUDAR NA PEDAGOGIA RACIOVITALISTA

Até aqui, apresentamos os principais conceitos da pedagogia raciovitalista. Passamos agora aconsiderar o perfil do estudante e o ato de estudar. Para o filósofo, o ato de estudar consiste naconstante busca da verdade. Sendo assim, a verdade é o fator que acalma a inquietude de nossainteligência. Nessa perspectiva, Ortega explica que o saber deixa de ser científico. Isso ocorre tambémcom a metafísica. Para quem não vê a necessidade da metafísica, os seus assuntos consistem numfalatório sem sentido.

Para compreender o sentido dos discursos metafísicos, não precisamos de nenhum talento ousabedoria inata, mas de uma condição fundamental: investigar para que ela serve. Ortega entendeque para aceitar sua necessidade deve-se reconhecê-la como um sentimento próprio e, da mesmaforma, possuir uma necessidade das coisas que nos chegam da realidade. Assim, percebemos que anecessidade de conhecer é o motor que precisamos para buscar a descrição das coisas que nos chegam.

Nesse processo de conhecimento, ainda cabe examinar a questão: o que é o estudante? O estudanteé um ser humano a quem a vida não impõe a necessidade das ciências. O estudante encontra a teoria e éestimulado a aprendê-la. Em contrapartida, está aquele que cria a ciência, pois o cientista sente umanecessidade vital com seu trabalho. Desse modo, não é o desejo que resulta no saber, mas a necessidadeem saber. Podemos ainda completar que o desejo não existe sem que exista uma coisa desejada; ao contrário,a necessidade é percebida quando uma carência brota na alma e precisa ser preenchida.

O estudante tenderá a não questionar o conteúdo da ciência que lhe foi comunicada. Aocontrário, quando está diante de um conceito determinado se sente acomodado e amparado pelateoria e passa a crer que ela é definitiva, pronta e acabada. Existe uma outra questão que deve seranalisada. Ortega indaga se, caso a ciência não estivesse aí, o estudante sentiria a necessidade dela.Para responder, o filósofo explica que a situação de estudante é artificial, ele apenas finge a necessidade.Portanto, o ideal é que o estudante alimente um sentimento que brota na sua alma com o intuito dedesbravar os diversos saberes. Mas estudar tem sido em nossa cultura a obrigação de se interessarpelo que não interessa.

O perfil do criador, para Ortega, sustenta-se na curiosidade. Em Martin Heidegger (1889-1976), a palavra “curiosidade” possui um sentido que parece adequado ao que Ortega quer exprimir.Para Heidegger, “curiosidade” se origina na palavra “cura”, que significa “cuidado” ou “preocupação”.Assim, um homem cuidadoso faz tudo com atenção e extremo rigor e se preocupa com sua ocupação.Ortega entende que o vício do homem é fingir o cuidado, ou seja, ser incapaz de autêntica preocupação.

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Através da curiosidade se instala a preocupação com a ciência e aí o homem revela sua sincerapreocupação necessária, imediata e autônoma. O estudante que não sente essa curiosidade vivefraudando sua própria existência.

A EDUCAÇÃO PARA OS JOVENS

Os ensinamentos de Ortega para educação infantil foram tema de um breve ensaio intituladoPara Los Niños Españoles, contido nas Obras Completas, Tomo IX. Nesse ensaio, o filósofoexplica que as crianças devem saber apenas fazer a distinção entre os diversos tipos de homens e issonão se faz com exercício ou adestramento. Como é que se aprende a diferenciar os homens? Domesmo modo que se aprende a fazer outras formas de discriminação.

O pintor chega a notar a diferença entre as cores que aos demais parecem iguais. O músicodistingue as mais leves divergências entre os sons. Para o colecionador de vinhos não há vinhosiguais. A palavra “sábio” significa um princípio que distingue os sabores (ORTEGA Y GASSET,1993, T. IX, p. 437).

Para Ortega, a vida social depende que um povo saiba distinguir os homens e não confunda osignorantes com os inteligentes. É a maturidade a responsável por essa distinção. A partir dela épossível aos jovens estudantes conduzirem suas vidas sabiamente.

As propostas pedagógicas para os jovens estudantes são em síntese as seguintes: a) não encontrara verdade na opinião vulgar; b) evitar o contágio de informações, evitar a verdade que outra pessoatransmite; c) O valor intelectual e o valor moral são a mesma coisa. Com essas propostas, esperaOrtega que a formação dos jovens possa melhorar o futuro, pois eles se tornarão investigativos,críticos e não se diluirão nas massas que dão o perfil da sociedade do seu tempo. Com esse método,espera o filósofo solucionar os problemas que afligem sua geração.

A EDUCAÇÃO PARA O FUTURO

A idéia sobre a educação pede uma teoria filosófica fundamental. No entendimento de Ortega,o ponto de partida para consolidar uma filosofia da educação é a identificação do paradigma filosóficoque a rege. E esta tentativa de identificação do modelo filosófico vigente esbarra na diversidade dossistemas filosóficos presentes em cada momento. Compreendendo as diversidades filosóficas queOrtega elucida, as soluções dos problemas pedagógicos se tornaram mais claros.

Para Ortega, a filosofia é o que permite entender o Homem e o mundo. Entretanto, em cadasociedade existe uma pluralidade de interpretações do mundo e do homem. Assim, a diversidadefilosófica apresenta-se em duas dimensões: a) a extensão de cada uma das filosofias no corpo socialrevela a cultura específica na qual ele se insere; e b) o grau de divergência e incompatibilidade entreos sistemas filosóficos abre espaço para o surgimento de uma nova Filosofia. Esclarecer estas questõesé o primeiro passo para entender o homem e o mundo. É esse o propósito da educação raciovitalista.

No texto Apuntes Sobre uma Educación para el Futuro, Ortega explica que o Cristianismodividiu a Europa, produzindo a guerra das religiões. Porém, o cansaço dessa luta estimulou atolerância religiosa como meio de apaziguar os conflitos. A tolerância, por sua vez, alimentou o

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racionalismo do século XVIII. Já o racionalismo propôs modificar radicalmente o Estado com ummétodo revolucionário. Esse método consistia em acreditar que a cultura e as ciências levavam àplenitude do homem. Essa busca da plenitude culminou no socialismo do século XX, cujas teseseram fundamentadas na reclamação dos trabalhadores contra o Estado e num convite para seassociarem com trabalhadores de outras nações, fazer a revolução e achatar todos os homens, culturasa um único fio histórico.Para Ortega, o que caracteriza essa redução do processo histórico é anecessidade de extremismo dos homens.

Os extremismos em que o homem mergulha desde os tempos medievais refletiram nos maisvariados objetos do pensamento filosófico. A arte, a técnica, a política, as ciências e a educação setornaram confusas com o radicalismo e sentem-se incapazes de estabelecer uma filosofia da educaçãoque acompanhe o desenvolvimento humano em sentido pleno.

Para esclarecer em que consiste uma Filosofia da Educação, o filósofo sugere que se investiguetodas as questões que envolvam e problematizem o homem e seu tempo. Porém, devem-se evitar asdisciplinas científicas que incluam a noção de progresso. Isso porque, Ortega entende que tais discursossão conseqüências do positivismo francês que é limitado do significado das ciências.

Portanto, a educação para o futuro deve possuir um fundamento filosófico profundo para quenão fique distante da realidade vivida. As tentativas de extremismos foram responsáveis pelodistanciamento do homem e do mundo e cabe aos homens de hoje formular uma Filosofia da Educaçãoque supra as necessidades de sua sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, examinamos a importância das contribuições da filosofia raciovitalista para aeducação. As teses educacionais se fundam nos problemas encontrados pelo filósofo ao contrapor aspráticas educativas puramente técnicas vigentes em sua época e que se inspiravam nos pensadoresdo século XIX, sobretudo nas concepções idealistas e positivistas. Essas práticas compreendiam oHomem como um ser que se adapta ao meio e, assim, tratavam a vida humana como algo que serestringe ao orgânico.

Diversamente, a educação raciovitalista compreende o Homem como um ser além de suaslimitações orgânicas. Ele é um ser que possui pulsão psicológica e nutre o desejo de conhecer com arealidade vital. Os aspectos psicológicos sofrem influxo da pulsação vital que impulsiona o homempara além de suas circunstâncias e precisam ser considerados pelas teorias educativas.

Para que haja a expansão desse pulso vital, o educador deve se valer dos mitos, porque são elesos principais recursos para ensinar as virtudes necessárias para a sobrevivência de uma comunidade.Os mitos não são simples lendas, são “hormônios vitais” que ajudam o homem a exercer sua atividadecriadora; ela alimenta a audácia, a coragem e a ambição necessárias para a vida. Os mitos devem serensinados ao jovem para que ele cresça sem se fixar em verdades prontas e desenvolva o gosto pelapesquisa e busca da verdade.

O estudante, formado neste processo de constante indagação, se transforma num pesquisador.Assim, segue a vida pela eterna busca do saber. A educação, assim vista, significa a ação de extrairuma coisa de outra, de converter uma coisa menos boa em outra melhor.

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THE PROBLEM OF EDUCATION INORTEGA AND GASSET´S REASON PHILOSOPHY

ABSTRACTIn this paper, we examine the aspects of the Philosophy of Education by Spanish thinker José Ortegay Gasset (1883-1955). Additionally, we try to comprehend the teacher and student’s position inrelation to this theoretician model.KEY-WORDS: Philosophy. Education. Ratiovitalism.

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VIOLÊNCIA: UMA FORMA DE EXPRESSÃO DA ESCOLA?

Marilena Ristum1

RESUMOColoca-se a questão da educação como base de ações efetivas no combate à violência e a própriaconceituação de violência escolar. Muitos estudos apontam, na perspectiva de Bourdieu, que a principalviolência promovida pela escola é a simbólica que, ao criar a possibilidade de consenso, é utilizadacomo forma de dominação. Alguns estudiosos sugerem que este conceito distancia-se das novas relaçõessociais que se estabelecem no mundo atual, propondo sua substituição pelo de violência psicológica.Pretende-se questionar a utilidade desses conceitos para a compreensão da violência e para a adequaçãodas ações, surgidas desta compreensão, a serem empreendidas pela escola, no cenário da violência.PALAVRAS-CHAVE: Violência escolar. Educação formal. Violência simbólica. Violênciapsicológica.

É A ESCOLA, POR SUA NATUREZA, UMA INSTITUIÇÃO ANTI-VIOLÊNCIA?

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é elaborado com base em três indicadores:- Educação (alfabetização e taxa de matrícula);- Saúde (esperança de vida ao nascer) e- Renda (PIB per capita).

Este índice tem por finalidade medir a qualidade de vida das populações, permitindo umacomparação entre os diferentes países do mundo. No Brasil, os últimos relatórios sobre desenvolvimentohumano têm mostrado que, apesar de os dados referentes à saúde e à renda terem piorado, a educaçãotem contribuído para que o IDH não caia muito, pois apresenta uma diminuição do analfabetismo e umaumento na taxa de matrícula da população em idade escolar (ZALUAR; LEAL, 2001).

Por outro lado, dados do Ministério da Saúde mostram um aumento alarmante das mortesviolentas, especialmente nos grandes centros urbanos, atingindo, preponderantemente, os jovens dosexo masculino, apesar de haver também um aumento importante nas taxas relativas às mulheres.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 2 p. 59-68 2004

1 Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

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É freqüente encontrarmos na literatura, e também nas conversas informais com professores oucom a população em geral, e mesmo nos discursos dos nossos governantes, a citação do analfabetismo,da falta de escolas, do baixo nível de escolaridade, da precariedade das escolas como importantesfatores de causação da violência.

Ao vermos, por um lado, as estatísticas sobre a diminuição do analfabetismo e sobre o aumentono número de matrículas da população em idade escolar e, por outro lado, as estatísticas que apresentamum alarmante incremento nos índices de violência, nas suas diversas categorias, a questão que seapresenta, de imediato, é a de que, então, a educação não contribui, efetivamente, para combater oupara, pelo menos, minimizar a violência. Inúmeros trabalhos que relacionam violência e educaçãojuntam-se a vários setores da sociedade, inclusive governamentais, na colocação da expectativa deque a educação formal constituiria a base de qualquer ação efetiva de combate à violência. Noentanto, as estatísticas parecem frustrar tal expectativa, colocando um cenário que sugere não ser aeducação fator de importância vital na causalidade da violência. Pretende-se, neste trabalho, mostrarque estas conclusões são, no mínimo, precipitadas e que, antes disso, seria necessário empreenderestudos mais cuidadosos que pudessem ir além dos dados estatísticos, que pudessem analisar ascaracterísticas da escola que é oferecida à população e as características da violência que se manifestanas instituições da sociedade, inclusive na escolar, nosso alvo de maior interesse neste trabalho.

Os estudiosos da violência têm, reiteradamente, apontado a sua multicausalidade, mostrandoque as diversas causas atuam em rede, havendo, portanto, uma impossibilidade de isolá-las ou deestudá-las fora do contexto mais amplo em que ocorrem. Em trabalho anterior em que foram focalizadasas causas da violência (RISTUM, 2001), considerou-se que elas contribuem sobremaneira para atribuircaracterísticas de complexidade à violência, dada a sua grande quantidade, variedade e formas deinteração. Em vista desse cenário, para sistematizar essa grande variedade e quantidade de causasrelatadas na literatura sobre violência, propôs-se sua organização em um modelo que apresentasemelhança com a proposta de Bronfenbrenner (1996) para o estudo do desenvolvimento humano.As causas foram, então, classificadas em função de como o ambiente em que elas se encontram estárelacionado àqueles que praticam a violência, estabelecendo duas grandes categorias:

- Causas Pessoais (próprias do indivíduo que pratica a violência; podem ser exemplificadaspor consumo de drogas e álcool, desequilíbrio emocional, questões passionais, estresse, temperamento,natureza ou índole, etc.);

- Causas ContextuaisAs causas contextuais foram divididas em duas subcategorias, de acordo com sua maior ou

menor proximidade em relação aos agressores;- Causas Contextuais Distais (conjuntura social, política, econômica: pobreza, miséria, fome,

desemprego, discriminação social, narcotráfico, impunidade, corrupção, exclusão social, abandonode crianças, etc). Moldam todo um modo de ser e de funcionar de uma sociedade;

- Causas Contextuais Proximais (modelos de violência em casa, na rua e nos meios decomunicação, tipo de estrutura familiar, uso predominante de punição para promover disciplina emvárias instituições sociais – família, escola, religião, Febem, etc. – baixa renda familiar, desempregofamiliar, etc.)

Deve-se notar que mesmo as causas ditas pessoais estão intimamente relacionadas aos contextosproximais e distais, assumindo-se, de acordo com a posição da teoria sócio-histórica, que a construção

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da individualidade humana processa-se do social para o individual, através das relações sociais quese estabelecem no contexto sócio-histórico-cultural. Assim, a divisão em causas pessoais e contextuaisteria mais um sentido de organização que de separação conceitual.

Mas, voltando à literatura sobre violência, pode-se observar que, apesar das muitas diferençase divergências apresentadas, há uma clara concordância quanto a:

A) Multicausalidade da violência;B) Interação entre os fatores causais eC) Atuação de fatores pessoais e contextuais na constituição da violência.

Assim, ao considerar a multicausalidade e a ação em rede, é óbvio que a linearidade da relaçãocausal não se aplica à complexidade da situação de violência e que, portanto, não se pode reduzir,dessa maneira, a relação violência e escola. Gonçalves e Sposito, referindo-se à violência escolar,afirmam que

a intensidade e a complexidade do fenômeno demandam um intenso trabalho de pesquisa, poisa produção de conhecimento ainda é incipiente e somente nos últimos anos tem mobilizado, deforma mais nítida, os investigadores de algumas instituições de ensino superior e organizaçõesnão governamentais (GONÇALVES; SPOSITO, 2002, p. 102).

Em um artigo que faz um balanço da pesquisa sobre violência e escola no Brasil, a partir de1980, Sposito (2001) considera que, apesar de pequena, a produção sobre o tema aponta para umquadro importante, em que se destacam as seguintes modalidades de violência: ações contra opatrimônio (depredação, pichação) e agressão interpessoal, especialmente entre os alunos. Em umtrabalho com professoras do ensino fundamental, a respeito do conceito de violência (RISTUM,2001), essas professoras relataram, concordando com os dados apresentados por Sposito (2001), quea maior freqüência de violência na escola é a que ocorre entre os alunos, nas suas mais variadasformas (xingamentos, brigas com e sem violência física, ameaças, roubo de material, rixas de gangues,etc). Entretanto, as ações contra o patrimônio foram pouco relatadas por essas professoras.

No mesmo artigo, Sposito (2001) observa que a violência escolar foi estudada sob dois ângulosdiferentes: 1) como decorrência de práticas escolares inadequadas e 2) como um aspecto da violênciana sociedade contemporânea. No primeiro caso, trata-se de violência produzida na e pela escola, emfunção de formas de atuação que estariam propiciando seu aparecimento e manutenção. Já o segundocaso refere-se a uma reprodução, dentro dos muros escolares, da violência que ocorre na sociedade.Só para explicitar melhor, a maior parte dos trabalhos, aí apresentados, focalizava a dinâmica e ofuncionamento das escolas situadas em áreas de risco (sob influência do tráfico de drogas ou docrime organizado) e uma pequena parte dos estudos focalizava o comportamento violento dos alunoscomo característica da incivilidade advinda da crise do processo civilizatório contemporâneo. Umaprimeira pergunta que surge, diante desse cenário, seria referente à própria conceituação de violênciaescolar. E, antes disso: existe mesmo a violência escolar? Se existe, o que é exatamente que estamoschamando de violência escolar? Uma coisa é falar da violência engendrada nas especificidades dasrelações escolares; outra é falar da violência que pode ocorrer em praticamente todas as situaçõessociais e, sendo a escola uma instituição social, ela também se constituiria num dos cenários sociaisda violência, sem, entretanto, imprimir à violência uma especificidade que a torna escolar.

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No trabalho anteriormente referido, (RISTUM, 2001), sobre o conceito de violência, foinecessário estabelecer um Sistema de Categorias que pudesse dar conta de organizar as falas dasprofessoras sobre a violência, possibilitando, inclusive, a comparação entre diferentes professoras ediferentes escolas. Nesse Sistema de Categorias, a violência escolar foi colocada como umamodalidade de violência, ao lado de outras como: violência policial, violência contra gruposminoritários, violência familiar, etc. Dois critérios foram estabelecidos para categorizar a fala daprofessora como uma referência à violência escolar: um deles relacionado aos protagonistas da açãoe outro, aos motivos da ação. Assim, considerava-se violência escolar, quando a ação relatada eraprotagonizada por pessoas pertencentes aos quadros escolares (docente, discente, técnico e defuncionários) e realizada com motivação pertinente às características e à dinâmica da instituiçãoescolar.

Violência Escolar: violência que envolve membros dos corpos docente e/ou discente e/outécnico e/ou administrativo e/ou direção e/ou pessoal de apoio, referente a questões escolaresadministrativas, disciplinares e acadêmicas. Nesta categoria foi também incluída a depredação daescola, praticada tanto por elementos externos à escola como pelos próprios alunos da escola(RISTUM, 2001, p. 134).2

Com isso, um assassinato nas dependências da escola pode não ser considerado violência escolar,se executado por pessoas alheias aos quadros escolares e/ou se os motivos do crime forem alheios àsquestões próprias da instituição escolar. Da mesma forma, não poderíamos chamar de violênciafamiliar ou doméstica a violência ocorrida nas dependências de uma casa em que mora uma família,mas que não envolveu membros dessa família.

Se aceitarmos o uso desses critérios, vários dos estudos publicados com o rótulo de violênciaescolar estariam usando um rótulo inadequado ou, no mínimo, pouco esclarecedor do que se pretendetratar. No artigo de Sposito (2001), intitulado: Um breve balanço da pesquisa sobre violênciaescolar no Brasil, ficaria de fora grande parte dos artigos que pertencem ao segundo conjunto, comfoco na violência como um aspecto da sociedade contemporânea, praticada nas dependências escolares.

Não se pretende, com essa colocação, afirmar uma independência entre a violência que ocorrena sociedade em geral e a violência escolar, como se fosse possível que o indivíduo, ao adentrar osmuros escolares, deixasse lá fora tudo o que, na sua constituição social, não se referisse, especificamente,à escola. Pretende-se, apenas, dizer que, se há uma modalidade de violência que pode ser adjetivadade “escolar”, então ela deve apresentar características distintivas das demais.

Então, considerando a violência escolar nesse sentido mais restrito do termo, pode-se passar aanalisar o seguinte questionamento:

A escola, como uma instituição da sociedade, deve, necessariamente, atuar comoreprodutora da violência ou, por sua natureza educativa, poderia trabalhar no sentido deoposição à violência?

2 A depredação escolar está relacionada especialmente à escola pública, seu estado de conservação e seu relacionamento com a comunidade(MEDRADO, 1995; ROAZZI; LOUREIRO; MONTEIRO, 1996).

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463Violência: uma forma de expressão da escola?

A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA

Vários estudos referem-se à violência simbólica, na perspectiva de Bourdieu, como a principalviolência promovida pela escola. Ao criar a possibilidade de consenso, é utilizada como forma dedominação, inclusive pelos professores, posto que os símbolos são instrumentos estruturados eestruturantes de conhecimento.

Bourdieu considera o campo do poder como um “campo de forças” definido, em sua estrutura,pelo estado de relação de forças entre formas de poder ou espécies de capital diferentes. Trata-se deum campo em que se processam as lutas pelo poder, envolvendo os detentores de diferentes poderes;trata-se de um espaço de jogo, em que agentes e instituições, ao possuírem uma quantidade de capitalespecífico (especialmente econômico ou cultural) suficiente para ocupar posições dominantes nointerior de seus respectivos campos, afrontam-se em estratégias destinadas a conservar ou a transformaressa relação de forças (BOURDIEU, 1989, p. 375).

O poder simbólico é, para Bourdieu, “uma forma transformada, quer dizer, irreconhecível,transfigurada e legitimada, das outras formas de poder” (BOURDIEU, 1998, p. 15).

As leis de transformação regem a transmutação de diferentes espécies de capital em capitalsimbólico e, em especial, o trabalho de dissimulação e transfiguração, que assegura uma verdadeiratransformação das relações de força, faz ignorar-reconhecer a violência que elas encerram. Transforma-as, assim, em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais, sem gasto aparente de energia(BOURDIEU, 1998, p. 15).

Para Bourdieu, este poder é quase mágico; permite conseguir algo semelhante ao que se obtémpela força física ou econômica, devido ao seu efeito específico de mobilização. Todo poder simbólicosó se exerce se for reconhecido, isto é, ignorado como arbitrário. Assim, o poder simbólico define-seem e por meio de uma relação determinada, relação esta que se estabelece entre os que detêm opoder e os que se sujeitam a ele. No poder simbólico, a ordem torna-se eficiente porque aqueles quea executam reconhecem-na e crêem nela, prestando-lhe obediência (BOURDIEU, 1998). A destruiçãodesse poder implica na tomada de consciência do arbitrário, já que sua força reside na crença e nodesconhecimento.

De acordo com Bourdieu, o poder exercido no Sistema de Ensino é o poder simbólico, “poderinvisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lheestão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 1998, p. 7-8).

Em um trabalho em que analisa as relações de poder na escola, utilizando as propostas deWeber e Bourdieu, Castro (1998) identifica duas situações que caracterizam tais relações. No cotidiano,predominam as relações de um poder formal e impessoal, próprio das organizações burocráticas,exercido em nome dos órgãos administrativos do sistema. Esse poder é usado como escudo ejustificativa para o exercício do poder simbólico pelos dirigentes da instituição, “os atores se submetemàs ordens e exigências de superiores ‘bons’, ‘amigos’ e ‘compreensivos’ que não as impõem por umavontade própria, mas enquanto ‘arautos’ dos órgãos oficiais – os verdadeiros impositores” (CASTRO,1998, p. 11).

De acordo com Castro, nessa ordem hierárquica, as exigências são externas aos atores, vindasde normas regimentais, de leis e ordens dos órgãos administrativos do sistema de ensino. É isto quetorna o poder aparentemente impessoal, dando a idéia de que todos gostariam de colaborar, mas as

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ordens precisam ser cumpridas. “Além disso, todos estão envolvidos em um processo educativo, emtorno do qual há uma mobilização dos atores, em uma prática do poder simbólico, reconhecido, nãoconhecido como arbitrário, exercido com a conivência de todos” (CASTRO, 1998, p. 12).

O outro tipo de situação identificada pela autora refere-se a determinados momentos em queemergem divergências e incompatibilidades. Ocorre, nesses momentos, que o poder consentido, enão admitido como tal, é desvendado, perde sua invisibilidade, dando lugar a um poder explicitado,que se revela nas relações de confronto, em que surgem os antagonismos e as lutas pela imposição deidéias ou pela conquista de posições de poder (CASTRO, 1998). Esses momentos, que costumam serdesgastantes para a instituição, são, segundo Bourdieu, próprios das relações de poder e, por ensejara tomada de consciência do arbitrário, promove avanços nessas relações.

A violência simbólica consiste no poder de construção da realidade, capaz de estabelecer osentido do mundo, especialmente do mundo social, tornando possível o consenso, a concordânciaentre as inteligências. Ao possibilitar tal consenso, possibilita a dominação, a domesticação dosdominados (BOURDIEU, 1998). Neste processo, Bourdieu utiliza um conceito que caracteriza areprodução de práticas e símbolos, garantindo a continuidade da sociedade: o conceito de habitus.Este conceito refere-se a um conjunto de padrões de pensamento, comportamento e gosto que relacionaa estrutura com a prática social. O habitus é, então, resultante, “da relação entre condições objetivase história incorporada, capaz de gerar disposições duráveis de grupos e classes” (ZALUAR; LEAL,2001, p. 149).

Ao afirmar que o conceito de habitus fornece uma base para uma aproximação cultural dadesigualdade estrutural, possibilitando enfocar as agências socializadoras, Zaluar e Leal (2001)apontam, de forma crítica, a seguinte questão: o conceito sugere a indistinção entre os mecanismosde dominação (ou de negação do outro como sujeito) e os processos de reprodução cultural ou desocialização. Dessa forma, dificulta a distinção entre sociedades democráticas e sociedades ditatoriaisou totalitárias.

Zaluar e Leal continuam sua crítica apontando um outro problema na utilização da teoria daviolência simbólica na atual realidade brasileira, especialmente dos grandes centros urbanos: as agênciasde socialização e “reprodução cultural” devem incluir, além da família e da escola, as quadrilhas detraficantes e as galeras de rua. E continuam dizendo que, de acordo com a teoria, a violência simbólicaopera reforçando o habitus primário dos que ocupam posições mais altas da hierarquia social e que,além de excluir, selecionar e manter por mais tempo na escola os pertencentes aos estratos dominados,a escola acaba mantendo a ideologia do mérito e contribui para reforçar os estratos dominados.Esclarecem, as autoras, que a socialização das quadrilhas e galeras concorre com a da escola, masnão é libertadora. Institui-se, nesse tipo de socialização, um habitus que nada tem a ver com o méritoe que muda a dinâmica de vida dos que seriam subalternos: diminui a expectativa de vida dos jovens,dissemina o medo e a insegurança na vizinhança, e na cidade em geral, e institui o poder do mais forteou do mais armado (ZALUAR; LEAL, 2001).

Uma última consideração crítica que Zaluar e Leal fazem a respeito das dificuldades no uso daviolência simbólica, diz respeito à confusão entre conflito e violência. Freqüentemente, a violênciatem sido colocada como um instrumento presente na sociedade, de forma permanente e excessiva.Como não há consenso total e permanente, o conflito torna-se inevitável e necessário nas sociedades.Dessa forma, é preciso dar lugar à sua manifestação sem que, entretanto, um dos oponentes seja

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465Violência: uma forma de expressão da escola?

calado ou destruído. Isto torna o consenso incompleto e precário, por um lado, e muito mais dinâmico,por outro. Acontece que um dos usos da violência física (e não da simbólica) no Brasil e no mundotem a finalidade de defesa da ordem social, de manutenção da unidade ou da totalidade, de forçar oestabelecimento do consenso. O problema parece estar, então, não na negação do conflito, mas naforma que o conflito assume. A questão é se esta forma vai possibilitar a negociação que implica naautonomia do sujeito e na criação de novas idéias, envolvendo diferentes personagens, concepções erelações. Citando Simmel como um importante teórico do conflito, as autoras colocam que, assumindoesta forma, o conflito é visto como socializador, pois possibilita o desenvolvimento de normas eregras de conduta, de maneiras de manifestar divergências e interesses opostos, instituindo a medidae o limite para a violência.

Após algumas considerações sobre o conceito de habitus de Norbert Elias, desenvolvidoespecialmente em O Processo Civilizador, que se refere a práticas internalizadas através de longosprocessos de socialização, variáveis segundo a época e a classe social, Zaluar e Leal (2001) afirmamque suas vantagens em relação ao de Bourdieu reside no fato de que indica a existência dedesenvolvimentos variáveis e diferentes dos processos de socialização, além de colocar a positividadeda domesticação ou do autocontrole, abrindo a possibilidade de maior precisão para o conceito deviolência.

Propõem, ao final, a substituição do conceito de violência simbólica pelo de violência psicológica,“evitando as indistinções apontadas acima, por estabelecer os limites e as regras de convivênciacomo parâmetros para sua caracterização como violência” (ZALUAR; LEAL, 2001, p. 150-151).

As autoras referem-se, várias vezes, à violência psicológica, separando-a da violência física,mas não explicitam o conceito. No trabalho, já citado, sobre o conceito de professoras do ensinofundamental acerca da violência, o Sistema de Categorias descreve três tipos de conseqüência paraa violência: física, social e psicológica, sendo que essas conseqüências não são excludentes. Assim,uma mesma ação violenta pode produzir um, dois ou os três tipos de conseqüência. Dessa forma, otermo “psicológica” não qualifica a violência (a ação violenta), mas o tipo de dano que ela produz(RISTUM, 2001)

Parece, então, que a substituição da violência simbólica pela psicológica não focaliza o âmagodo problema. Na realidade, trata-se de verificar se esses conceitos têm contribuído para uma melhorcompreensão das relações que se processam na escola. De um modo geral, os trabalhos fundados naproposta de violência simbólica de Bourdieu apenas identificam e descrevem esta violência na escolacomo algo já posto (por ex., CASTRO, 1998), parecendo que o rótulo é auto-explicativo. Por outrolado, os trabalhos que se propõem a identificar e compreender essas relações têm se mostrado maispromissores, no sentido de ensejarem reflexões e ações de mudança. Pode-se exemplificar com otrabalho de Mundim Neto (2003), sobre a opressão na escola, que denuncia a existência de umaorganização cuja dinâmica privilegia atividades burocráticas em detrimento de atividades pedagógicase das relações humanas que ali ocorrem. Busca compreender como é engendrada a opressão, comoela se mantém e as circunstâncias em que poderia ser anulada.

Em um artigo sobre a violência no imaginário dos agentes educativos, Itani (1998) refere-seaos trabalhos que, desde a década de 1970, vêm desvelando a violência na escola, mostrando aspráticas educacionais que reproduzem a desigualdade social, chamada, então, de violência simbólica.Mas, diz a autora,

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[...] a reprodução da violência não está somente no nível simbólico. Ela surge concretamente naspráticas da desigualdade. Na realidade, o professor ou a professora são em si objetos da violên-cia nas relações de trabalho, suscetíveis a pressões e conflitos decorrentes dessas relações desi-guais. Às vezes, o professor vive a experiência da desmoralização de seu trabalho, com a imposi-ção contínua de mudanças no sistema de ensino. Entretanto, pode ser também co-autor deatitudes discriminatórias contra alunos, que escapam, às vezes, à reflexão (ITANI, 1998, p. 40).

Apesar de não muito clara, percebe-se na colocação de Itani, uma crítica ao papel central quea violência simbólica tem ocupado em diversos trabalhos, por não ser um conceito suficientementeinclusivo de importantes relações que se processam na escola.

Também no artigo de Aquino (1998) identifica-se uma crítica ao conceito de violência simbólica.Vejamos: ao se referir a um olhar institucional sobre a violência escolar, o autor discute a questão daescola como refletora da conjuntura política, econômica e cultural. Afirma não ser possível sustentarque a escola seja mera reprodutora de valores de força exógenos a ela. “É certo, pois, que algo denovo se produz nos interstícios do cotidiano escolar, por meio da (re)apropriação de tais vetores deforça por parte de seus atores constitutivos e seus procedimentos instituídos/instituintes” (AQUINO,1998, p. 10).

Concordando com esta posição de Aquino, afirma-se que o sistema educacional reflete a ideologiado sistema sócio-político-econômico em que se insere, mas isto não significa, entretanto, que ainstituição escolar tenha que, necessariamente, estar a reboque dos sistemas mais amplos “já que,numa perspectiva gramsciana, ela é uma instituição que traz, em si, as contradições sociais em cujasbrechas podem brotar as transformações de uma realidade” (RISTUM, 2002).

É este também o sentido da colocação de Guimarães a respeito de violência e indisciplinaescolar, “apesar dos mecanismos de reprodução social e cultural, as escolas também produzem suaprópria violência e sua própria indisciplina” (GUIMARÃES, 1996, p. 77).

Aquino (1998) propõe que o estudo da violência escolar deve rastrear, na própria escola, oscenários constituintes da violência, assim como seus efeitos. Propõe, também, que a descrição e aanálise do fenômeno se referenciem nas relações institucionais que o retroalimentam. E, neste caminho,chega à questão da crise da autoridade docente, que ele considera o ponto nevrálgico da ética docente,reguladora do trabalho pedagógico e antídoto contra a violência escolar. Cita, então, Arendt, afirmandoque ela aponta caminhos importantes ao definir a qualificação do professor como a capacidade deconhecer o mundo e de ser capaz de instruir os outros acerca desse mundo, acrescentando que o quesustenta sua autoridade é a responsabilidade que ele assume por este mundo (ARENDT, 1994).

Aquino finaliza seu artigo propondo que nos perguntemos:

Qual mundo temos apresentado a nossos alunos? Quais de seus detalhes lhes temos apontado?Qual história queremos legar para as novas gerações? Há, ainda, no encontro habitual da sala deaula, responsabilidade por este mundo e esperança de um outro melhor? (AQUINO, 1998, p. 17).

Numa direção que poderia ser considerada complementar às anteriores, Zaluar e Lealapontam o caminho da retomada do debate sobre a educação moral, no sentido contemporâneo deautonomia moral,

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467Violência: uma forma de expressão da escola?

[...] entendida como preparação para o exercício da cidadania nas escolhas éticas [...] naquelasescolhas que não implicam a destruição ou o silenciamento dos outros. Sobretudo, a autonomiana participação na vida pública em seus diversos canais, como princípio condutor e possivelmen-te redutor de situações de violência (ZALUAR; LEAL, 2001, p. 161).

VIOLENCE: IS IT A WAY OF EXPRESSION AT SCHOOL?

ABSTRACTThis paper discusses education as and effective ground for actions in the combat to the violence, aswell as the proper concept of violence at school. Many studies point out, under Bourdieu´s perspective,that most of the violence that happens at school is symbolic and is used as a form of dominance.Some researchers suggest that this concept is moving away from the new social relations which areestablished in the current world, and suggest its substitution by psychological violence. Finally, thepaper discusses the usefulness of these concepts for the understanding of violence and the adequacyof some actions to be understood by school, in face of violence.KEY-WORDS: School violence concept. Formal education. Symbolic violence. Psychologicalviolence.

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A INVESTIGAÇÃO COM CRIANÇAS:ESPECIFICIDADES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Herculano Ricardo Campos1

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RESUMOAs opções teórico-metodológicas em pesquisa com crianças são determinadas pela compreensão dossignificados atribuídos ao conceito de infância. Dessa forma, no campo “psi”, a crença no caráter“natural” do desenvolvimento ou a adoção de uma perspectiva sócio-histórica engendra procedimentosde pesquisa diferenciados. A primeira acaba construindo um sujeito universal, sem história e semcultura. Este trabalho procura problematizar essa visão naturalista da infância, compreendendo queas opções do pesquisador são determinadas e determinam a construção do conceito de infância.PALAVRAS-CHAVE: Infância-conceito. Desenvolvimento. Infância-pesquisa.

INFÂNCIA: SINGULAR E PLURAL

Grande parte dos estudos atuais sobre a infância tem na produção de Philippe Ariès umareferência, com base na qual são revelados os marcos da construção de um novo conceito para ela.Embora de importância fundamental para esclarecer desdobramentos de caráter histórico, esse autorfrancês não reflete as raízes de âmbito filosófico que perpassam a discussão a respeito da constituiçãodos sujeitos crianças a que o conceito se refere – enquanto atributo. Neste sentido, quando Wartofsky(1999, p. 92) afirma que entende por criança “uma classe social e histórica, em vez de uma classe naturale, portanto, também uma classe construída e não dada, por assim dizer, pela natureza, de algumaforma invariável ou essencial” remonta, primeiro, à perspectiva sócio-histórica de compreensão daconstituição dessa criança e, em oposição a ela, ao essencialismo aristotélico.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 2 p. 69-77 2004

1 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professor da Universidade Federal do Rio Grande doNorte (UFRN).2 Doutora em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte(UFRN).

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Na compreensão de Aristóteles, depreendida de Wartofsky, infância seria um atributo universaldos indivíduos crianças, de modo que esses possuiriam tal atributo pelo fato de portarem uma“essência” ou “natureza” em comum. Opondo-se a essa visão naturalística da criança e da infância,que as homogeneíza e as aprisiona na sua dimensão biológica, apresenta-se uma outra, cuja ênfase,por um lado, recai sobre a capacidade ativa da própria criança se constituir nas interações com o meiocultural – bem como participar da constituição desse meio, e assim estabelecer a relatividade da suainfância. E por outro, sobre a própria noção de criança que sobrexiste em um determinado contextosocial e histórico no qual vive uma criança em particular, noção esta responsável por configurar umconjunto de práticas, atividades, fazeres etc. direcionados ao ser criança – aqui incluída a atividadede pesquisa. A respeito dessa discussão, afirma Vygotsky que “é a sociedade e não a natureza quedeve figurar em primeiro lugar como fator determinante do comportamento do homem” (VYGOTSKY,1995, p. 89).

Tendo como pressuposto essa concepção sócio-histórica da configuração da noção de infância,retomam-se os estudos de Ariès, com vistas a assinalar um período histórico em que tal conceitosofreu grandes transformações.3 A partir do século XVI, ou seja, do final da Idade Média e início daera Moderna, mudanças na perspectiva do conhecimento – do paradigma religioso para o científico –, na forma de organização política dos Estados ora existentes – das monarquias absolutistas para ademocracia representativa –, no modo de produção – do artesanato para o capitalismo –, e no fazerreligioso – as diversas reformas no interior da Igreja –, por exemplo, implicaram profundastransformações sociais, culturais, políticas e psicológicas, no bojo das quais observou-se igual mudançana forma de conceber a infância (ÁRIES, 1981; CAUVILLA, 1996; KENNEDY, 1999).

Expressão dessas transformações são as mudanças na estrutura familiar, na escolarizaçãodas crianças e nos cuidados físicos a elas destinados, possibilitados pelos avanços na medicina –que resultaram em diminuição das altas taxas de mortalidade infantil. Segundo Áries (1981, p.231), a família, na Europa da Idade Média, “era uma realidade moral e social, mais do quesentimental”. A união dos seus membros “pelo sentimento, o costume e o gênero de vida” passa aser uma realidade somente a partir do século XVIII, quando ela se organiza de forma a ter existênciaprivada em relação à sociedade – a família nuclear burguesa. Esta “passa a ter como função precípuatransmitir a seus membros uma aprendizagem de cuidados, valores e sentimentos” (FERRARI;VECINA, 2002, p. 293).

No que diz respeito à escola e à escolarização, Ariès aponta-nos que a sociedade do final doséculo XVII encarregou-se de consolidar e/ou criar novos espaços, objetos e práticas de cuidadopara que a criança pudesse, recorrendo a um conceito vygotskyano (VYGOTSKY, 1995), internalizaros novos padrões de conduta, de relações sociais e de moral, característicos da sociedade emergente.“A escola deixou de ser reservada aos clérigos para se tornar o instrumento normal da iniciaçãosocial, da passagem do estado da infância ao do adulto” (ARIÈS, 1981, p. 231). Assim, como destacadopor Boto (2002), a modernidade transformou “crianças em alunos” e operou no sentido de atribuir à

3 A contribuição do trabalho de Ariès, conforme sinalizado por Corazza (2002), “foi relativizada de forma crítica e polemizada por várioshistoriadores, que apontaram, por exemplo, suas carências metodológicas em termos de comprovação das hipóteses, realizada apenas pormeio de fontes iconográficas e figurativas; ou então que deixara de fora todo um segmento das classes sociais em desvantagem” (CORAZZA,2002, p. 82). No entanto, como assinalado pela própria autora, há que se reconhecer que Ariès inaugurou um novo caminho de pesquisas eindagações históricas sobre a constituição da infância, cujo diálogo – concordâncias, recusas ou revisões –, segue utilizando-se de categoriascomo “descoberta”, “invenção”, “sentimento de infância”, “inocência”, dentre outras, estabelecidas por ele.

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471A investigação con crianças: especificidades teórico-metodológicas

escola o papel de âncora da família no processo de educação das crianças, com a tarefa de transmitir-lhes os códigos de conduta exigidos pela sociedade moderna.4

A elaboração de um discurso sobre a infância e de novas práticas que o materializaram, noentanto, não ficou circunscrita ao campo da educação. Mesmo a ciência pedagógica recorreu a outrossaberes que emergiram no contexto das transformações sociais apontadas acima e, em um movimentocircular, reforçou e/ou elaborou novas práticas discursivas que tiveram repercussão nas práticaseducativas. Dentre esses saberes, destacam-se aqueles produzidos no reduto “psi”: psicologia dodesenvolvimento, psicologia genética, psicologia infantil, psicologia evolutiva e a psicanálise – emrelação à qual toma-se a importância atribuída à infância na estruturação da personalidade. Nessecontexto, o recorrente debate sobre o inato versus o adquirido na constituição do sujeito ganha novoscontornos.

Modelos explicativos do desenvolvimento – práticas discursivas – são produzidos, alguns comênfase na condição biológica do ser humano e outros destacando as determinações externas ao sujeito.Segundo Bujes, foram o “caráter ‘natural’ da criança e de seu desenvolvimento [e] a importância dadatanto ao seu patrimônio hereditário quanto às experiências vividas no seu ambiente, que possibilitarama emergência de uma ciência do indivíduo” (BUJES, 2002, p. 70). E a construção de discursos emoutras áreas do conhecimento – medicina, sociologia, antropologia, biologia – que com a psicologiaestabelecem diálogo. Predominam, no entanto, discursos que,

[...] ao descrevê-las [as crianças] em minúcias, segundo interesses particulares e característicos decada campo particular do saber, operam de forma a homogeneizar/tornar dominante um modode concebê-las, acabando por construir para elas uma posição de sujeito ideal, um sujeito univer-sal, sem cor, sem sexo, sem filiação, sem amarras temporais ou espaciais (BUJES, 2002, p. 69).

Trata-se, logo, de um sujeito sem história, sem cultura. Assim, uma vertente das ciênciase, dentre elas, a ciência psicológica, vem contribuindo para a construção de um imaginário social,configurando percepções sobre a infância em que não há lugar para as diferenças, para as especificidadesde condições de desenvolvimento.

Essa postura acaba por orientar práticas sociais, institucionais ou não, homogêneas, de controlee determinação das formas de agir sobre e de pensar a infância. O campo de investigações sobre elanão ficou imune a essas determinações. Diferentes visões de infância orientam o compromisso doinvestigador no que diz respeito às escolhas metodológicas (procedimentos, perspectivas de análisede dados) e às implicações de seu trabalho, seja no sentido de des-ocultar a produção de um modo depensar uma infância homogeneizada, seja na perspectiva de reiterá-lo. É considerando a primeiradessas direções que se adotam as perspectivas sócio-histórica e discursiva e as reflexões que vêmsendo feitas em torno da pesquisa qualitativa, enquanto referenciais para nossa reflexão.

Em se tratando da atividade de pesquisa, algumas discussões estão sinalizadas mais abaixo, nomomento em que se discute o processo de construção do conhecimento e as relações entre pesquisador-

4 Vários autores têm se ocupado de analisar o papel da instituição escolar no processo de transformações sociais que resultou na reinvençãoda escola e na educação das crianças no interior desse espaço. Alguns tratam, de forma mais aprofundada, da história da idéias pedagógicas(CAMBI, 1999; MANACORDA, 1992; NARODOWSKI, 2001; DEBESSE; MIALARET, 1977, dentre outros). Outros, recorrendo igualmente à históriadas idéias pedagógicas, acrescem e relacionam a essa reflexão, a história da infância. Nessa direção, destacamos os trabalhos de Boto (2002);Hansen (2002); Gondra (Org., 2002); Bujes (2003); Carvalho (1997, 2002); Warde (1997) e Kuhlmann Jr. (2002).

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pesquisado neste processo. Ressalte-se, aqui, que adotar a perspectiva sócio-histórica articulada coma discursiva pressupõe enfatizar a linguagem enquanto constitutiva do sujeito e, particularmente,enquanto responsável pela configuração do contexto que emerge no processo de investigação. Ouseja, os rumos que a investigação toma vão sendo construídos e reconstruídos na interlocuçãopesquisador-criança, cada qual redefinindo a fala do outro e o contexto, sem deixar de considerar asdiferenças decorrentes dos distintos papéis que ocupam nessa relação.

ÉTICA E PESQUISA: DO PLURAL AO SINGULAR

Tudo o que dá valor ao dado do mundo,tudo o que atribui um valor autônomo à presença no mundo,

está vinculado ao outro.(BAKHTIN, 1992).

A tarefa de des-ocultar a produção do saber que concebe a infância no singular, ou seja, enquantorealidade universal, encerra uma perspectiva ética e política. No último caso, tal direção diz respeitoà necessidade que se põe para o pesquisador de considerar a dinâmica das relações sociais, econômicase políticas, enquanto determinantes de diferentes inserções dos sujeitos – crianças – nos diversosgrupos ou classes sociais. Isto porque a diferentes classes sociais correspondem diferentes sujeitos,no sentido das reais condições de vida que dispõem, da forma que lhes é possível elaborar taiscondições de vida, das visões de mundo que formulam, das demandas que apresentam etc. No mesmocontexto, ao pesquisador comprometido com tal perspectiva se impõe a necessidade de articular suaprodução com as demandas postas pelos sujeitos com os quais trabalha, ou seja, produzir umconhecimento que sinalize, de alguma forma, caminhos a serem trilhados para a superação de limitessociais e pessoais desses sujeitos.

Em relação à perspectiva ética, antes de mais nada, há que se afirmar, por um lado, sua distinçãofrente à moral e, depois, sua profunda articulação com a política. Diferente da moral, que se pautapela imposição de regras, de procedimentos, posturas a serem assumidas por todos, hábitos enfim, naética o que sobressai é a afirmação do sujeito, da sua vontade de ação e do reconhecimento davontade do outro enquanto diferente. Essencialmente, enquanto a moral visa à universalidade epermanência, ao controle e posse do ser, a ética aponta na direção da singularidade, da instabilidade,da liberdade. Portanto, tal perspectiva sinaliza para o reconhecimento do outro. De acordo com Ricoeur(apud IMBERT, 2001, p. 17), “A ética só é verdadeiramente assumida quando, à afirmação para si daliberdade, acrescenta-se a vontade de que exista a vontade do outro. Eu quero que exista tua liberdade”.No mesmo sentido Novaes, também a partir de Ricoeur, defende que “os homens não são apenasjoguetes, escolhem por razões, têm a capacidade de agir intencionalmente, especulam sobre o mundoe sobre o conhecimento, mudam o curso das coisas, em síntese, têm a capacidade de iniciativa, o quetorna muitas vezes impossível o comércio com os inventores de morais” (NOVAES, 1992, p. 14).

Em relação à política, difícil é descontextualizá-la do que foi exposto acima sobre a ética,como se em tal perspectiva da ética não estivesse contido um aspecto da ação política. Contudo, aoser apontada, nessa abordagem, uma certa intencionalidade na ação humana, torna-se necessárioexplicitar que essa ação se configura nos limites do ideológico, requerendo, assim, da ética um essencial

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nexo com a política, no sentido de ressaltar a necessidade de uma ação que vise desvelar o campo daideologia para que, então, a intencionalidade da ação humana se revista do essencial caráter de liberdade,de autonomia, que é defendido no posicionamento acima. Em outras palavras, certamente é políticaa perspectiva de afirmação do sujeito e do outro, mas somente o é na medida em que tal afirmaçãoescapa às reificações a que estão submetidas as relações – no interior das sociedades de classes.

Enfim, ao contrário da direção que tomou o processo de formação da modernidade, no qualobservou-se uma ruptura da ética com a política (BIGNOTTO, 1992), é essencialmente político eético afirmar-se a indissociabilidade entre elas. Em relação ao objetivo do presente estudo, portanto,que busca problematizar a naturalização do conceito de infância tomando como referência a perspectivasócio-histórica, essa discussão sobre a ética tanto remete a uma afirmação das diferentes infâncias,quanto aos diferentes olhares lançados sobre elas pelos pesquisadores. Ressaltando-se que taisdiferenças decorrem do lugar histórico-cultural ocupado por estes e aquelas, e que é esse lugar quedetermina a natureza das relações que se estabelecem entre conhecedor - conhecido, ou observador– observado, em Maturana (2001), e que configura o processo de construção do conhecimento noque se relaciona à escolha do “objeto”, aos procedimentos e instrumentos de investigação e àinterpretação dos dados da pesquisa.

Em relação a esse segundo aspecto, que se refere ao próprio processo de construção doconhecimento, e que na pesquisa se apresenta como o princípio a partir do qual será definido omodelo de relação a ser com ele estabelecida, o que é particular, no presente estudo, são asespecificidades dos sujeitos-criança. Coerente com a perspectiva teórica aqui adotada, se taiscaracterísticas particulares, por um lado, referem-se às crianças enquanto pessoas em condiçõespeculiares de desenvolvimento (BRASIL, 1990),5 por outro, há que contextualizar social ehistoricamente esse próprio desenvolvimento. Em decorrência, tais características circunscrevem oslimites da escolha de uns ou outros procedimentos e instrumentos – no âmbito da pesquisa qualitativa–, visto que, por exemplo, o uso de computadores, de desenho, de textos, de música etc., dependediretamente das condições dos sujeitos com os quais se trabalha. Por fim, o conjunto dessas condiçõesdireciona o processo interpretativo dos dados.

No que diz respeito ao primeiro aspecto – natureza das relações entre pesquisador / pesquisado– ela é caracterizada, ao menos, por duas condições: a assimetria entre os sujeitos (criança - adulto),configurada por relações de poder/saber observadas na relação entre diferentes faixas etárias e,diretamente relacionada a essa primeira, uma outra em que a diferença é marcada pela relação entrepesquisador/pesquisado, na qual o saber que o pesquisador detém sobre a criança tem o poder –dado pelo caráter do discurso científico – de instaurá-la, de fazê-la criança. Protagonistas de suahistória e de suas condições de vida, as crianças existem a partir do discurso do outro – o adulto:“sempre a mesma; sempre igual, inquebrantável, inamovível, irredutível – um mínimo denominadorcomum. Não falamos mais das crianças, e sim da infância” (BOTO, 2002, p. 57). A ciência, a cultura,as instituições (família, escola, igreja...) pensam a criança e para a criança.

Em se considerando possibilidades diferenciadas de se pensar/investigar a infância, a perspectivaqualitativa em pesquisa, em nosso entendimento, vem responder as inquietações das quais nos

5 Ainda que a referência à criança enquanto pessoa sob condição peculiar de desenvolvimento possa assumir o sentido de uma generalização,tal é relativizada pelo fato de que é a legislação brasileira sobre crianças e adolescentes que assim as considera.

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ocupamos no decorrer deste texto, uma vez que ela “trabalha com um universo de significados,motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes [...] dos processos e dos fenômenos que não podemser reduzidos à operacionalização de variáveis” (MINAYO, 1994, p. 22). Nesse sentido, não se encaixano paradigma das Ciências da Natureza. Técnicas de mensuração e estabelecimento de leis explicativascom vistas à generalização não são consideradas adequadas/suficientes para a compreensão defenômenos que, de alguma forma, dizem respeito ao ser humano.

Ao contrário, as pesquisas que têm por pressuposto uma visão “natural” do desenvolvimentohumano, referido no início deste artigo, quando se voltam para o sujeito criança, utilizam-se demateriais padronizados, como testes e escalas de medidas de inteligência, acabando por enquadrá-lasem percentuais, em médias que, além da homogeneização, pouco dizem sobre as efetivas ediversificadas condições de desenvolvimento.

Conforme apontado por Goldemberg (1997), a pesquisa qualitativa busca enfatizar asingularidade e a subjetividade, no tratamento do fenômeno investigado. Supõe, portanto, não umuniverso extenso de sujeitos, em termos quantitativos, mas, antes, valoriza a “dimensão da intensidade”e do aprofundamento dos fenômenos investigados. Não se trata de negar que dados quantitativospossam integrar o corpus da pesquisa. Antes, há que se avaliar a pertinência de sua utilização,considerando-se, particularmente, o objeto de estudo, suas particularidades, e os limites impostostanto pelo método quanto pelo sujeito investigado.

A análise dos dados ou, interpretação dos dados, parte do pressuposto de que os discursos dossujeitos são reveladores de suas crenças, valores e concepções, cabendo, ao observador, desvelar seusignificado, sem perder de vista a totalidade social e histórica na qual se inserem. Nesse processo,atenção particular requer ser dirigida aos signos, visto que, como ressalta Bakhtin, eles se constituemno interior de um social eivado de ideologia, de modo que, tanto o conteúdo a ser desvelado quantoa interpretação dada a ele pelo pesquisador requerem ser entendidos na sua relação com tal dimensãoideológica. A respeito, afirma Bakhtin que

[...] um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e retrata umaoutra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico,etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica. [...] Ali onde o signo se encontra,encontra-se também o ideológico (BAKHTIN, 1988, p. 32).

Diante da tarefa de análise e interpretação de dados, portanto, ao observador são colocadas, aomenos, as seguintes questões: 1. O que legitima os significados sociais construídos pelos sujeitos? 2.O que significa compreender, ou, ao menos, tentar compreender o significado de ações (individuaisou coletivas), de eventos ou acontecimentos, manifestos, inclusive, através do discurso?

Primeiramente, considerar as inter-relações que se estabelecem no contexto de emergência dosmesmos. Nesse sentido, na interpretação dos dados o pesquisador procede de forma a identificar aspossíveis relações entre essas ações, eventos ou acontecimentos e os determinantes culturais, históricose sociais, partindo do pressuposto de que “nenhum processo social pode ser compreendido de formaisolada, como uma instância neutra acima dos conflitos ideológicos da sociedade” (ALVES-MAZZOTTI, 1999, p. 139). Em outras palavras, a apreensão dos significados das ações do sujeitodepende necessariamente do estabelecimento dos vínculos dessas ações com o contexto social desua emergência e efetivação. Depende, ainda, de acordo com Jobin e Souza & Castro (1998, p. 93),

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recorrendo à Bakthin, de se “buscar as conexões esclarecedoras da verdade do sujeito nos sistemasideológicos sedimentados no contexto social a que este se encontra submetido.” Assim, compreendera(s) infância (s) significa, acima de tudo, buscar sua inserção nos mais diferenciados contextos de seudesenvolvimento, tanto os imediatos quanto aqueles mais remotos.

Em segundo lugar, admitir que nas relações sociais, de modo geral, e na construção do(s)significado(s) pelo observador e/ou pelo observado, a subjetividade desses atores revela-se, objetiva-se, não como algo abstrato, imutável, mas como um processo que, ao mesmo tempo em que éconstituinte nas relações sociais é, igualmente, constituída através dessas mesmas relações. Dessaforma, as relações que a criança estabelece com o outro em seu cotidiano tanto revelam, quantoconstituem sua subjetividade. É essa subjetividade dos sujeitos, manifesta através das mais diversaslinguagens, em momentos, contextos específicos – institucionais ou não – que se busca apreenderatravés dos procedimentos da pesquisa qualitativa.

Desconsiderar tais condições significa limitar o universo da(s) infância(s); naturalizar umaconstrução que se configura, acima de tudo, como histórica, social, cultural. As reflexões aquiapresentadas objetivaram contribuir com essa discussão.

RESEARCH WITH CHILDREN: THEORETIC-METHODOLOGICAL OPTIONS

ABSTRACTThe theoretic-methodological options for research with children are determined by the comprehensionof the meanings attributed to the infancy concept. In this manner, in the “psi” field, the belief in the“natural” character of the development or the adoption of a social-historical perspective leads todifferent research procedures. The first one ends up building a universal person, without history orculture. This work aims to raise this naturalistic childhood vision problem, with the understandingthat the researcher’s options determine and are determined by the construction of the concept ofchildhood.KEY-WORDS: Childhood-concept. Development. Childhood-research.

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REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO INCLUSIVA E SUA IMPLICAÇÃONO DESENVOLVIMENTO DA APRENDIZAGEM DE

ALUNOS COM NECESSIDADES ESPECIAIS

Rita de Cássia Souza Nascimento1

RESUMOEste trabalho analisa os conceitos evolucionistas da educação inclusiva e as diferentes formas deorganização dos espaços educativos existentes como resposta à diversidade, buscando odesenvolvimento de uma prática educativa que visa o favorecimento de ambientes de aprendizagem.Enfoca-se, também, a implicação das relações de cooperação como eixo principal para o ensinoinclusivo, favorecendo o desenvolvimento da aprendizagem, a partir de uma abordagem teóricaconsubstanciada em referenciais sócio-interacionistas.PALAVRAS-CHAVE: Integração. Ensino inclusivo. Necessidades especiais. Prática pedagógica.

INTRODUÇÃO

Torna-se visível o fato de que o cenário educacional apresenta uma crise global nodesenvolvimento da concepção de educação inclusiva, a qual requer que os velhos paradigmas damodernidade sejam contestados e o conhecimento passe por uma re-interpretação.

Sabemos que a racionalidade, segundo Sousa Santos (1988) e outros, evolui a partir de umarede cada vez mais complexa de encontros entre o homem e sua subjetividade com o cotidiano, como social, o cultural, invadindo as demarcações dos espaços disciplinares, buscando maneiras/formasde inventar o dia-a-dia, que subvertem o estabelecido, isto é, a fragmentação das disciplinas, a rupturada compreensão, a cisão entre o saber e o fazer.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 2 p. 79-91 2004

1 Pós-graduada (lato sensu) em Educação Especial pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc). Professora da Universidade Estadual do Sudoeste daBahia (Uesb).

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A quebra dos entraves os quais impedem a integração do ambiente escolar com a vidaexperienciada fora dele é uma tarefa que não visa demolir a escola, mas, reconstruí-la a partir de seusalicerces e de muitas áreas a serem preservadas, pois, constituem o que é próprio da instituição, ouseja, a sua vocação de reunir pessoas para propiciar a cada uma e a todas um tempo de conhecimentomútuo e de autoconhecimento, sem os quais não se aprende ou não se ensina.

A educação inclusiva apresenta-se como uma nova concepção de educação escolar e umaprática pedagógica em que tudo está em constante movimento, ressaltando que o conhecimento seconstrói coletivamente, mediante interações e vivências mútuas. Através de uma escola inclusiva, oprofessor pode tornar-se o mediador de todos os conflitos/situações do contexto de vida dos alunos,suscitando a produção de novas idéias, a elevação de sentimentos, o respeito aos valores e às diferençassociais e culturais dos que compõem as comunidades escolares.

Apontamos que uma análise teórica consubstanciada acerca da inclusão como um conceitoque emerge da complexidade impera sobre a compreensão da interação entre as diferenças humanas,sendo que o contato e o compartilhamento dessas singularidades compõem a sua idéia matriz. Acomplexidade implica não apenas na reforma do pensamento e da escola, mas na formação dosprofessores, de modo que possam ser abertos e capazes de conceber e de ministrar uma educaçãoplural, democrática e transgressora, como o são as escolas para todos.2

A partir dessa compreensão, a diversidade3 interfere na ação pedagógica provocando, assim,uma transformação do ambiente escolar. Devido à diversidade de características dos alunos, o ensinonão pode se limitar a proporcionar sempre o mesmo tipo de ajuda nem intervir da mesma maneira.Para aprender é indispensável que haja um clima e ambientes adequados, constituídos por um marcode relações em que predominem a aceitação, a confiança, o respeito mútuo e a sinceridade. Aaprendizagem é potencializada quando convergem as condições que estimulam o trabalho e o esforço.

Ao enfocarmos essa conjectura, apresentaremos uma análise acerca da concepção de ensinoinclusivo, buscando enfatizar o processo histórico da inclusão, a definição de necessidades especiaise quais as implicações na educação e na prática pedagógica.

EM BUSCA DE UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA

A Sociedade, em todas as culturas, atravessou diversas fases no que se refere às práticas sociais.Ela começou praticando a exclusão social de pessoas que, por causa das condições atípicas, não lhepareciam pertencer à maioria da população. Em seguida, desenvolveu o atendimento segregado dentrode instituições, passou para a prática da integração social e recentemente adotou a filosofia da “inclusão”social para modificar os sistemas sociais gerais. Essas fases não aconteceram ao mesmo tempo paratodos os segmentos populacionais. Ainda hoje vemos a exclusão e a segregação sendo praticadas emrelação a diversos grupos sociais vulneráveis, em várias partes do Brasil, assim como em praticamentetodos os outros países. Mas também vemos a tradicional integração dando lugar, gradativamente, à“inclusão”. No sentido de apresentarmos a concepção de inclusão, abordaremos o processo deevolução dos conceitos a partir do processo de Normalização e Integração.

2 Baseada nos princípios da educação inclusiva, enfatiza as diferenças e a diversidade existente entre os vários sujeitos que compõem o espaço escolar.3 Abordamos a diversidade como elemento primordial para o desenvolvimento do trabalho educativo. A diversidade de sujeitos e culturas exige que para alcançaras metas de participação social em igualdade de condições é preciso prever situações educativas diversas.

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Inicialmente, com a Normalização4 pretendeu-se facilitar a interação dos portadores dedeficiência5 num convívio social, considerando as diversidades humanas. Esse termo “normalização”traz muita controvérsia em seu significado, porque deriva de uma palavra “normal”, e também fazpensar em “normas sociais”, que consideram como “desviantes” aqueles que fogem aos padrõesmédios de comportamento socialmente estabelecidos. Normalização não significa tornar “normal” apessoa portadora de deficiências , prevalecendo o seu direito de ser diferente e de ter suas necessidadesespeciais reconhecidas e atendidas pela sociedade. Esta idéia de normalização traz em seu bojo doisaspectos: o primeiro refere-se ao oferecimento das mesmas oportunidades sociais, educacionais eprofissionais para o portador de deficiência e as demais pessoas; o segundo diz respeito às característicaspessoais. Nesse sentido, normalizar significa aceitar a maneira das pessoas viverem com direitos edeveres eqüitativos.

A prática da normalização deve ser vivenciada pela criança desde cedo, ainda no seu ambientefamiliar, recebendo, precocemente, os estímulos necessários para o desenvolvimento de suaspotencialidades iniciadas na pré-escola. A interação da escola com a família é importante para que seestabeleça um clima de efetiva cooperação, proporcionando um convívio de respeito às diferençascom afetividade e solidariedade.

Não foi por acaso que o movimento de Normalização surgiu na Suécia e Dinamarca, poisjustamente nesses países, observam-se níveis elevados de qualidade de vida e acentuada preocupaçãocom o aspecto social. No Brasil, esse movimento teve impulso com Pérez-Ramos, na década de 70,enfocando teoricamente princípios importantes tais como: similaridade, socialização, continuidade eintegração. Em paralelo à inserção da Normalização no Brasil, devemos considerar também que,ainda na década de 60, ocorre a proliferação de instituições especializadas no atendimento a pessoascom necessidades especiais, a saber: escolas especiais, centros de habilitação e reabilitação, oficinaspedagógicas, associações desportivas especiais, etc.

Os princípios de normalização esbarram em dificuldades que se manifestam através deresistências e preconceitos denominados “barreiras atitudinais”, considerados o maior obstáculo naefetivação desses princípios. Apesar das dificuldades, o movimento ampliou-se, dando subsídiospara Conferências, Congressos e gerou novos enfoques, como o “Movimento Mainstreaming”6 e o“Método SIVUS”7 do psicólogo Walujo, desenvolvido a partir de 1992.

O Movimento Mainstreaming tem como proposta a inserção do deficiente no ensino regular,promovendo a integração da educação especial através de alterações curriculares, formulação detecnologias educativas diversificadas e avaliações contínuas e qualitativas do desempenho escolar.Isso significa a reformulação do ensino em busca de uma convivência saudável e de mútuaaprendizagem.4 Em 1959, na Dinamarca, Bank-Nikkelsen deu início ao movimento de normalização tendo como seguidor, o sueco Nirje. Até esse momento as pessoasconsideradas excepcionais ou portadoras de deficiência viviam isoladas do convívio social, residindo em ambientes segregadores, que os acolhiam com objetivo dedar abrigo, alimentos, medicamentos; e alguns procuravam ocupar o seu tempo ocioso com atividades, configurando-se em muitos casos como verdadeirosdepósitos humanos. Essa acolhida tinha como princípio filosófico a caridade e o assistencialismo dentro de uma visão religiosa. Essas Instituições foram revisandosua prática e se especializando para atender pessoas por tipo de deficiência, provendo todo os serviços possíveis, já que essas não eram aceitas pela sociedade. Nessareformulação, a prática da assistência baseava-se no modelo médico-psicológico enfatizando o tratamento, pois considerava o indivíduo deficiente como doente(SASSAKI, R. K. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1997).5 A terminologia “deficiente” é adotada de acordo com o princípio trabalhado no texto.6 Este movimento deu origem a várias Conferências Internacionais, destacando-se a “Conferência Mundial sobre Necessidades Especiais: Acesso e Qualidade deVida”, patrocinada pela Unesco e pelo MEC da Espanha em 1994, na cidade de Salamanca, onde elaborou-se uma proposta de compromisso que visa a educaçãopara todos, formulando a Declaração de Salamanca, que enfatiza a pedagogia centrada no aluno, respeitando as suas características e necessidades individuais.7 O Método SIVUS, tem sua origem na Indonésia e baseia-se na concepção de que só se alcança a Normalização com a integração social do ser humano,compartilhando espaços comuns. Para isso, é necessário que as pessoas deficientes desenvolvam confiança em si mesmas, atitudes de independência pessoal esentimento de solidariedade.

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O Método SIVUS se estrutura num processo dinâmico através da formação de grupos, comencontros periódicos entre portadores de deficiência e orientadores, para planejamento , realização eavaliação contínua de atividades, desenvolvendo-se gradualmente em três etapas de integração: Física,Funcional e Social.

O segundo movimento apontado foi o de Integração de pessoas com necessidades educativasespeciais aos sistemas regulares de ensino, iniciado em meados dos anos 60, quando existiam apenasduas opções para o atendimento dessas crianças: centros especiais e escolas regulares, com pouca ounenhuma ligação entre ambos.

Reynolds apud Sassaki (1997) afirma que o ensino especializado pode ocorrer em outros locaisalém das instituições especializadas e das escolas regulares, entretanto é importante que haja umvínculo entre ambos. Surge, desta forma, o “Sistema de Cascata”,8 proposto pelo autor como um guiade serviços educativos para a colocação de alunos com deficiências em diferentes situações deeducação especial, de acordo com as necessidades individuais.

O modelo de “cascata” é criticado devido às exigências com a responsabilidade do aluno (comose a mudança de nível dependesse unicamente do aluno e não da relação professor/aluno); os baixosíndices de encaminhamento para as classes regulares (o aluno continua segregado em classes especiaisou instituições especializadas) e as poucas exigências que faz nas respostas da escola (o desempenhodo aluno depende exclusivamente de seu esforço, não importando se foram feitas adequações deacordo a suas necessidades). Nesse modelo, todos os alunos têm o direito de entrar e transitar pelacorrente principal (“Mainstream”), podendo descer ou subir na “cascata” em função de suasnecessidades específicas.

Dessa forma, a integração configura-se num processo dinâmico de participação das pessoasnum contexto relacional, legitimando sua interação nos grupos sociais. Em linhas gerais, integrarsignifica adaptar-se ao outro, participar com o outro, implicando numa reciprocidade, muito além dasimples inserção física do outro.

A integração justifica-se como princípio na medida em que se refere aos valores de igualdadede viver em sociedade tendo direitos iguais, privilégios e deveres como todos os indivíduos;participação ativa; respeito a direitos e deveres socialmente estabelecidos. Estes princípios têm como“idéias forças” a igualdade de valor e o reconhecimento das necessidades de qualquer pessoa. Todossão iguais, porém com peculiaridades que devem ser respeitadas. A integração é um todo. Parte doconceito de crianças especiais para o conceito de situações especiais, criando novas prioridades deformação, de investigação. A integração deve estar atenta às modificações de comportamento, dedesenvolvimento humano, de atitudes dos pais, de atitudes de professores, etc. Assim, faz-se necessáriouma tomada de posição frente à questão da integração, para que a idéia inicial, enquanto práticapresente, evolua do nível do discurso e se efetive como realidade de fato, sem encobrir-se na práticaexcludente.

O terceiro movimento, que culmina na proposta de Inclusão Social, iniciou-se na segundametade dos anos 80 nos países mais desenvolvidos. Tomou impulso na década de 90 em outrospaíses e deverá desenvolver-se nos primeiros dez anos do século XXI.

8 Caracterizam-se por não ser em categorias, uma vez que os alunos não são incluídos num determinado nível ou modalidade educativa, em função do tipo e graude deficiência que possuem, mas de acordo com uma avaliação exaustiva e detalhada de suas necessidades educativas.

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A inclusão tem por objetivo a construção de uma sociedade para todas as pessoas, sob ainspiração de novos princípios, dentre os quais destacam-se: celebração das diferenças, direito depertencer, valorização da diversidade humana, solidariedade humanitária, igual importância dasminorias, cidadania com qualidade de vida. Muito antes de alguns movimentos internacionais enacionais adotarem oficialmente a idéia de uma sociedade inclusiva, profissionais espalhados pelomundo se articulavam em busca de estratégias que dessem às pessoas com necessidades especiaisuma vida mais digna.

O movimento mais importante, no âmbito da educação inclusiva, foi a Declaração de Salamanca,a qual afirma a urgência de ações que transformem em realidade uma educação capaz de reconheceras diferenças, promover a aprendizagem e atender às necessidades especiais de cada criançaindividualmente. A Declaração de Salamanca recomenda que as escolas se ajustem às necessidadesdos alunos, quaisquer que sejam suas condições físicas, sociais e lingüísticas, incluindo aqueles quevivem nas ruas, as que trabalham, as nômades, as de minorias étnicas, culturais e sociais.

O termo inclusão é muito recente, principalmente no Brasil, onde a implementação dessaprática voltada às pessoas com necessidades especiais, na educação geral, tem gerado inúmerasdiscussões sobre o tema. Sassaki conceitua a inclusão social como

o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais,pessoas com necessidades especiais e simultaneamente, estas preparam-se para assumir seus pa-péis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoasainda excluídas e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluçõese efetivar a equiparação de oportunidades para todos (SASSAKI, 1997, p. 13)

Os praticantes da inclusão baseiam-se na perspectiva do modelo social da deficiência, segundoo qual a sociedade deve ser modificada a partir do entendimento de que ela é que precisa ser capaz deatender às necessidades de seus membros, para poder incluir todas as pessoas.

Uma sociedade inclusiva garante seus espaços a todas as pessoas, sem prejudicar aquelas queconseguem ocupá-los só por méritos próprios. Nesse ponto, é oportuno acrescentar que o conceito desociedade inclusiva, introduzido nos meios especializados em deficiência, tornou-se hoje válido tambémem outros meios, ou seja, naqueles em que estão presentes as pessoas com outras condições atípicas.Além disso, uma sociedade inclusiva vai bem além de garantir apenas espaços adequados para todos.Ela fortalece as atitudes de aceitação das diferenças individuais, de valorização da diversidade humanae enfatiza a importância do pertencer, da convivência, da cooperação e da contribuição que todas aspessoas podem dar para as vidas comunitárias mais justas, mais saudáveis e mais satisfatórias.

O processo de inclusão, exatamente por ser diferente da já tradicional prática da integração,desafia um importante sistema social que é a educação a efetuar mudanças fundamentais em seusprocedimentos e estruturas.

O princípio fundamental da escola inclusiva consiste em que todas as pessoas devam aprenderjuntas, onde quer que isto seja possível, não importam quais dificuldades ou diferenças elas possamter. As escolas inclusivas precisam reconhecer e responder às necessidades diversificadas de seusalunos, acomodando os diferentes estilos e ritmos de aprendizagem e assegurando educação dequalidade para todos, mediante currículos apropriados, mudanças organizacionais, estratégias deensino, uso de recursos e parecerias com suas comunidades:

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A meta principal da inclusão é a de não deixar ninguém no exterior do ensino regular, desde ocomeço. As escolas inclusivas propõem um modo de se constituir o sistema educacional queconsidera as necessidades de todos os alunos e que é estruturado em virtude dessas necessidades(MANTOAN, 1997, p. 145).

A inclusão concorre para estimular os alunos em geral (sejam eles normais ou com deficiências)a se comportarem ativamente diante dos desafios do meio escolar, abandonando, na medida dopossível, os estereótipos, os condicionamentos e as dependências que lhes são típicas.

Se o ensino for significativo para todos os alunos, eles encontrarão na escola o espaço detransformação e de enriquecimento a que têm direito como cidadãos. Portanto, inclusão torna-seuma oportunidade e um catalisador para a construção de um sistema democrático melhor e maishumano. Incluir não é favor, mas troca. Conviver com as diferenças é direito de todo cidadão.

COMPREENDENDO AS NECESSIDADES ESPECIAIS NO CONTEXTO EDUCATIVO

A terminologia que designa a pessoa com necessidades especiais vem passando por mudançasao longo dos anos. Na verdade, o primeiro termo adotado foi “excepcional”, depois “pessoa deficiente”,“pessoa portadora de deficiência”, “pessoa portadora de necessidades especiais”; hoje “pessoa comnecessidades educativas especiais”. Tais designações restringem-se muito ao âmbito da Educação. Otermo deficiente implica não ser eficiente: esta conotação é muito forte, principalmente numa sociedadecomo a nossa, onde o modo de produção é o capitalista, em que são muito exigidas a eficiência e aprodutividade. Nesse sentido, podemos constatar que essas mudanças de terminologia nãominimizaram a questão da marginalização social desses indivíduos.

Essa marginalização é visível quando algumas pessoas apresentam respostas muito diferentesdaquelas esperadas, passam a ser estigmatizadas, uma vez que não correspondem às normas e aosvalores estabelecidos. Na verdade, o estigma não está na pessoa, ou melhor, na deficiência que possaapresentar, e sim, nas normas e valores da sociedade que definiu quais pessoas são estigmatizadas,desviantes.

Portanto, entende-se que o estigma “ser diferente do normal” não pode ser determinado apenasem função dos impedimentos de ordem sensorial, física ou mental, e os sentimentos paternalistas,protecionistas e caritativos não podem impedir que esses indivíduos sejam vistos em sua totalidade,tenham valorizado o seu lado eficiente, tenham garantido o direito de exercerem sua cidadania.

São considerados alunos portadores de necessidades educativas especiais aqueles que, porapresentarem necessidades próprias e diferentes dos demais alunos, requerem recursos pedagógicose metodológicos educacionais específicos. Consideram-se integrantes desse grupo pessoas com:deficiência mental, visual, auditiva, física, múltipla, condutas típicas e altas habilidades.

Partindo do ponto de que é uma certa utopia, a “inclusão” torna-se um desafio do futuro a serconstruída gradativamente. A inclusão educativa é uma opção ideológica, uma opção de valores,uma opção de vida e, em definitivo, é um sentimento. O importante é a escola ou o sistema educativopartir do ponto de que a diversidade não é um problema, mas, pelo contrário, é uma oportunidadepara nos enriquecermos pessoal e socialmente, e para enriquecer o processo de ensino-aprendizagem.

A escola para todos, a escola inclusiva tem como princípio fundamental que todas as criançasdevem aprender juntas, sempre que possível, independentemente de quaisquer dificuldades ou

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diferenças que elas possam ter. A escola deve ser aberta, pluralista, democrática e de qualidade.Deve, assim, manter abertas suas portas às pessoas com necessidades educativas especiais.

A escola que desejamos para nossa sociedade deve ter em seu projeto educativo a idéia daunidade na diversidade. Não pode haver democracia e segregação, pois uma nega a outra. O fato deestarem juntos no cotidiano vai ensinando a todos o respeito às diferenças e a aceitação das limitações.Segundo Carvalho,

Há, pois, um novo conceito de escola e de educação especial. Neste último, o especial da educa-ção traduz-se por meios para atender à diversidade, como, por exemplo, propostas curricularesadaptadas, a partir das que são adotadas pela educação comum. Tais meios fazem parte de umconjunto de medidas que se reúnem como respostas educativas da escola, compatíveis com asnecessidades dos alunos. O atendimento dos mesmos exige, ainda, serviços de apoio integradospor docentes e técnicos devidamente qualificados. Uma escola aberta à diversidade, isto é, querespeite e reunifique as diferenças individuais bem como estimule a produção de respostas criati-vas, divergentes, em oposição às estereotipias e à homogeneidade do sócio-culturalmente atendi-do como “normal”. Tal perspectiva implica numa redefinição do papel da Escola, a partir damudança de atitude dos professores e da comunidade (CARVALHO, 1998, p. 59).

Se tomarmos a visão sócio-interacionista de aprendizagem que considera a heterogeneidadecomo uma característica positiva e imprescindível para as interações de sala de aula, presente emqualquer grupo humano, os diferentes ritmos, comportamentos, experiências, trajetórias pessoais,contextos familiares, valores e níveis de conhecimento de cada criança (e do professor) imprimem,no cotidiano escolar, a possibilidade de troca de repertórios, de visão de mundo, confrontos, ajudamútua e conseqüente ampliação das capacidades individuais.

Um projeto curricular emancipador, destinado aos membros de uma sociedade democrática eprogressista, além de especificar os princípios de procedimento que permitem compreender a naturezaconstrutiva do conhecimento e sugerir processos de ensino e aprendizagem em consonância com taisprincípios, deve, necessariamente, propor metas educacionais e blocos de conteúdos culturais quepossam contribuir da melhor maneira possível com uma socialização crítica dos indivíduos.

A busca de uma sociedade que congregue os diferentes aspectos da diversidade humana e, aomesmo tempo, possibilite as inter-relações de maneira ampla, deve ter como suporte a visão holísticado homem e do meio no qual está inserido.

A globalização, que se fortaleceu pela questão econômica e de acesso à informação, agorareformula o conceito de humanidade e direciona para o resgate de aspectos ligados às suas capacidadescriativas, afetivas e subjetivas. A desmaquinalização da visão social permite espaços para a emergênciade aspectos antes banidos ou interditados pela produção em série.

A deficiência nesse contexto, e na sua relação com o ambiente escolar, encontra apoio namultidisplinaridade para sua reformulação, ou melhor, para o reconhecimento do aluno comnecessidades especiais. É a possibilidade de uma visão de sujeito político, cidadão e participante.

A possibilidade de ser reconhecido e de reconhecer o seu meio é sentir-se humano econtextualizado. A desfragmentação concebe um novo ser, a globalização da visão permitida pelainterdisciplinaridade deve rumar para uma concepção maior de transdisciplinaridade, uma visão ondeo respeito, a construção e o saber estão para além das particularidades, buscando a visão mais integradae ecológica do ser e do seu contexto.

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RELAÇÃO ENTRE ENSINO INCLUSIVO E PRÁTICA PEDAGÓGICA: ANECESSIDADE DE AMBIENTES COOPERATIVOS

Além do estudo dos processos de ensino-aprendizagem de todos os sujeitos com necessidadeseducativas especiais, sabemos que as preocupações da educação especial abrangem o processo ensino-aprendizagem, os sujeitos aos quais é dirigida a intervenção educativa, de modo concreto e, os processosde mudança que neles vão ocorrendo. Assim, a educação especial deve abranger todo o conjunto deconhecimentos que fazem parte do sistema de variáveis que incide em sua atuação, contemplandotodos os aspectos que vão condicionar a intervenção educativa em relação aos sujeitos comnecessidades especiais. Uma necessidade educativa seria algo essencial para atingir os objetivos daeducação. Pode-se afirmar que todo aluno é aluno com necessidades educativas especiais, já quepossui características individuais que o diferenciam dos demais e necessita de uma educação condizentecom as mesmas.

Assim, a finalidade das escolas inclusivas está concentrada na criação de sistemas educacionaisque ofereçam respostas às necessidades de todos os alunos. É através das dificuldades educativasque podemos sugerir meios para melhorar a prática docente. As dificuldades de aprendizagem dosalunos não existem apenas por causa de sua própria dificuldade, mas, muitas vezes, como conseqüênciadas medidas organizativas da escola, das decisões dos professores, dos recursos utilizados e do ambienteda aula.

Partindo das diversas concepções oriundas da ciência pedagógica (ZABALA, 1995) destacamosas seguintes correntes que influenciam ou determinam a prática educativa dos professores: asaprendizagens dependem das características singulares de cada aluno; as experiências prévias quecada aluno viveu ao longo de sua vida têm uma grande influência na aprendizagem; a forma e o ritmode aprendizagem variam de acordo com as capacidades, as motivações e os interesses de cada aluno.

Segundo Alcudia (2002), a prática educativa determinada por ambientes de aprendizagemcooperativa facilitará a potencialização de técnicas de pesquisa e indagação, onde o trabalho autônomoajudará os alunos a construírem sua própria aprendizagem e criará um clima de cooperação em salade aula.

Arroyo (2000), chama atenção para a necessidade de reflexão sobre o fato de que o trabalho ea ação educativa que se dá na sala de aula e no convívio entre educadores (as)/educandos (as)trazem ainda as marcas da especificidade da ação educativa.

Arroyo ainda nos lembra de maneira concisa que “a dinâmica pedagógica se cria, ou melhor, seacelera com a tentativa de organizar nosso trabalho visando os educandos e seus ciclos-temporalidadesde desenvolvimento pode significar um reencontro com a teoria pedagógica e com nossa condição deeducadores” (ARROYO, 2000, p. 163).

No que tange à diversidade do contexto educacional, como fator de influência para a práticaeducativa, González (2002) destaca que o enfoque cultural-integrador assume as diferenças,considerando-as num continuum. No entanto, devemos chamar a atenção sobre o perigo que pressupõeo reconhecimento das diferenças, caso seja dada a elas uma excessiva ênfase, já que essereconhecimento pode justificar a criação de currículos diferentes para permitir a adaptação àscaracterísticas, interesses, motivações, aptidões e aos ritmos de cada aluno.

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Para o enfoque cultural-integrador, o eixo central é a resposta educativa para a diversidade,sendo o currículo o instrumento possibilitador da mesma. Nesse sentido, a educação especial nãoenfatiza os sujeitos a que se dirige e com os quais trabalha, mas, prioritariamente, direciona suaatenção na adaptação do ensino, na construção curricular, nos meios, técnicas e recursos específicospara conseguir uma educação que responda à diversidade humana, optando pelo conceito denecessidades educativas como critério para a tomada de decisões que afetem o processo educativode qualquer cidadão. A educação na diversidade pressupõe a inter-relação de uma multidão de variáveisque a tornam complexa.

Assim, há a necessidade da intervenção pedagógica como uma ajuda adaptada ao processo deconstrução do aluno; uma intervenção que vai criando “Zonas de Desenvolvimento Proximal” eque ajuda os alunos a percorrê-las.

Vygotsky, define “Zonas de Desenvolvimento Proximal” como:

[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através dasolução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado atra-vés da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em elaboração com companhei-ros mais capazes (VYGOTSKY, 1998, p. 112).

Fica claro que o processo de interação caracteriza-se pela atividade cooperativa, sendo dirigidaconjuntamente pelos sujeitos envolvidos nesse processo. A base de toda a atividade cooperativa é aação conjunta, a negociação de conflitos, estabelecendo-se uma teia de relações que compõem oprocesso interativo.

Vygotsky (1998) sugere que a interação pode ser vista a partir de duas perspectivas: a primeirapode surgir como um processo suscitador ou modulador, ou seja, como os processos sociais interativos,depois, podem desempenhar um papel formador e construtor da atividade, isto é, os sujeitos, atravésde estímulos auxiliares, criam com a ajuda de instrumentos e signos, novas conexões no cérebro,conferindo significado a sua conduta, ativando suas Zonas de desenvolvimento, num processo dereflexão que se amplia, a partir das trocas cognitivas ocorridas durante esse processo.

A idéia é de que a análise do processo interativo tem sua base alicerçada na reflexão sobre aatividade, o que pressupõe uma constante reestruturação do fazer cotidiano, tendo como referênciaum longo caminho a ser desconstruído, reconstruído e consolidado, a partir do aproveitamento dopotencial cognitivo dos sujeitos deste processo ensinantes/aprendentes.

A necessidade de compreender o processo de construção do conhecimento pedagógicocompartilhado é tão fundamental quanto compreender o aprender a aprender, que equivale a sercapaz de realizar aprendizagens, em diferentes situações e contextos que favoreçam a aquisição deestratégias cognitivas, considerando-se as condições individuais dos alunos na sua interação com ospares. Ambos os processos implicam em trocas cognitivas e socioculturais entre ensinantes/aprendentes durante o processo ensino-aprendizagem.

Percebemos, dessa forma, que a educação escolar precisa se preocupar com a simultaneidadedos papéis de aprendente/ensinante, pois o processo interativo advindo desta relação poderápossibilitar a superação da repetição, da cópia ou da mera execução das atividades propostas, comvistas à criação, à reinvenção, ao conflito e à reconstrução de novos saberes reconhecidos esistematizados.

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Na visão Vygotskiana, a realização de uma atividade coletiva, no presente, poderá levar oindivíduo à realização futura de atividades similares com maior autonomia, devido ao fato de elepoder ter compartilhado inicialmente de ajuda ou participado de uma atividade colaborativa. Essetipo de auxílio contribui para a reorganização de seus esquemas de conhecimento, favorecendo oavanço do indivíduo com relação ao seu desenvolvimento intelectual.

Assim, possibilitar a ajuda através de suporte ou estímulos auxiliares, ajustando o auxílio àaprendizagem, pressupõe a criação de zonas de desenvolvimento proximal e isto significa a produçãode novos sentidos e significados na apropriação das atividades propostas, de forma a colaborar paramaior autonomia do indivíduo bem como fornecer a adaptação de seus esquemas diante de situaçõesde aprendizagem mais complexas e abrangentes.

Portanto, a situação de ensino e aprendizagem também pode ser considerada como um processodirigido a superar desafios que possam ser enfrentados e que façam avançar um pouco mais além doponto de partida. Na disposição para a aprendizagem, intervêm, junto às capacidades cognitivas,fatores vinculados às capacidades de equilíbrio pessoal, de relação interpessoal e de inserção social.Os alunos percebem a si mesmos e às situações de ensino e aprendizagem de uma maneira determinada,e esta percepção influi na maneira de se situar diante dos novos conteúdos e, muito provavelmente,nos resultados que serão obtidos.

Por sua vez, estes resultados não têm efeito, por assim dizer, exclusivamente cognitivo. Tambémincidem no autoconceito e na forma de perceber a escola, o professor e os colegas, e portanto, naforma de se relacionar com eles.

É todo um conjunto de interações baseadas na atividade conjunta dos alunos e dos professores,que encontram fundamento na zona de desenvolvimento proximal, que, portanto, vê o ensino comoum processo de construção compartilhada de significados, orientados para a autonomia do aluno.

A pessoa, no processo de aproximação aos objetos da cultura, utiliza sua experiência e osinstrumentos que lhe permitem construir uma interpretação pessoal e subjetiva do que é tratado.Assim, pois, a diversidade é inerente à natureza humana, e qualquer atuação encaminhada paradesenvolvê-la tem de se adaptar a esta característica.

Podemos falar também da diversidade de estratégias que os professores podem utilizar naestruturação das intenções educacionais com seus alunos. Desde uma posição de intermediário entreo aluno e a cultura, à atenção a diversidade dos alunos e das situações, caberá ao professor, às vezesdesafiar, às vezes dirigir, outras vezes propor, comparar.

É evidente que diversificar o tratamento pedagógico dentro de agrupamentos flexíveis,aumentando as opções para cada aluno, de modo que possam expressar nelas a diversidade seria oponto ideal do processo ensino-aprendizagem. Para isso, surge a necessidade da transformação doprofissionalismo docente. Nesse contexto, a tomada de consciência do papel do professor, entendidoaqui como elemento dinamizador do processo de escolarização e, portanto, organizador da intervençãopedagógica a ser implementada, é fundamental, bem como o redimensionamento das práticas escolaresvigentes.

Segundo Schön (1997), o professor reflexivo aprende a partir da análise e da interpretação dasua própria atividade, constrói de forma pessoal o seu conhecimento profissional, o qual incorpora eultrapassa o conhecimento emergente institucionalizado. Ao refletir, ele passa a pensar sobre asituação passada, estabelecendo relações com situações futuras de ensino que virá propor e organizar.

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489Reflexões sobre a educação inclusiva e sua implicação no desenvolvimento da aprendizagem de alunos com necessidades especiais

Esse processo de reflexão crítica pode tornar conscientes os modelos teóricos e epistemológicos quese evidenciam na sua atuação profissional e, ao mesmo tempo, favorecer a comparação dos resultadosde sua proposta de trabalho com as teorias pedagógicas e epistemológicas mais formalizadas.

A reflexão sobre a atividade pedagógica exige do professor a capacidade de individualizar asituação de ensino, ou seja, considerar que, em um grupo, cada indivíduo precisa ser reconhecidocomo autor de suas construções, e o professor precisa compreender as possibilidades e limites decada participante desse processo, ao mesmo tempo em que promove a troca de experiências atravésda interação entre pares.

Assim, o acompanhamento e uma intervenção diferenciada, coerentes com o que desvelam,tornam necessária a observação do que vai acontecendo, uma observação ativa que permita integraros resultados das intervenções que se produzam.

Por que se trabalhar em ambientes cooperativos? O desenvolvimento de uma metodologiacooperativa facilita a criação de um ambiente de pesquisa na classe, dando oportunidades para quetodos os alunos contrastem e exponham seus pontos de vista; impulsiona um conhecimento e umdomínio dos procedimentos de estudo, indagação e síntese nos alunos, de modo que por si só possamabordar situações de trabalho sem a necessidade da supervisão de um adulto; facilita principalmentea produção de conflitos sociocognoscitivos necessários para se obter aprendizagens significativas e;cria um clima de cooperação em sala de aula.

É justamente o ambiente que deve proporcionar as condições para o desenvolvimento de cadaaluno em seu duplo processo de socialização e individualização, para que ele aprenda a se conhecer,a conhecer os outros e a intervir no mundo. Os ambientes que favoreçam o desenvolvimento decomportamentos autônomos, de relações baseadas em princípios de cooperação e solidariedade podemser mais propícios à aprendizagem, uma vez que os alunos são considerados sujeitos de um ambiente,onde a diversidade determina e influencia na atuação do professor. Ao elaborar suas atividades, oprofessor deve atentar para a compreensão dessas situações em que a convivência pode ser baseadaem trocas sociais por reciprocidade, participando ativamente das decisões em sala de aula.

Essas considerações fazem com que, em conjunto, o tratamento possa ser suficientementeflexível para permitir formas de intervenção que levem em conta a diversidade dos alunos. Criarespaços capazes de proporcionar ao aluno com necessidades especiais uma vida satisfatória, significaeducar. Pois, educar não se resolve somente pela via “técnica” e “especializada”, mas também pelavia da solidariedade e da diversidade.

A educação é concebida como intencional e pressupõe uma mudança na pessoa para melhorare se aperfeiçoar, e, nesse sentido, o processo educativo pode alcançar distintos graus, mas é inacabadoem sua pretensão de preparar as pessoas para a vida em sociedade. Isto ocorre devido à especificidadeda prática educativa adotada por cada professor e da diversidade dos sujeitos que compõem o contextoeducacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, a educação na e para a diversidade implica considerar os alunos em sua totalidade e nãosó, os que apresentam problemas. Trata-se de oferecer respostas educativas, democráticas e solidáriaspara todos, em função das necessidades apresentadas.

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Essa problemática representa a necessidade de se criar um estabelecimento de ambientesnorteados por relações baseadas no respeito mútuo e no sentimento de confiança, isto é, de cooperação,que promovam a auto-estima e o autoconceito, para que o professor desenvolva sua prática educativavisando a aprendizagem dos alunos.

Ressaltamos que a formação do profissional de educação é imprescindível para que essesprincípios sejam trabalhados a partir de uma prática não somente reflexiva, mas transformadora.

Assim, as relações entre a qualidade das atuações profissionais e as exigências da prática docenterefletem também a dialética entre, por um lado, as condições e restrições da realidade educativa e,por outro, as formas de viver e desenvolver a profissão enquanto atitudes e destrezas postas em jogopelos membros concretos da profissão.

O professor necessita do resgate de sua autonomia profissional, a qual, no contexto dessasexigências sociais da prática de ensino, deve ser entendida pela definição das qualidades sob as quaisse realizam tais relações sociais, com outros profissionais e colegas, ou com setores e agentes sociaisinteressados e envolvidos.

A análise dessa prática à luz dos princípios educativos, a reformulação destes, a busca denovos modos de atuação, sua experimentação e sua nova análise, constituem dessa maneira, processosde reflexão na ação educativa.

A escola inclusiva requer uma atenção especial da sociedade, bem como dos profissionais daeducação no que tange à sua estruturação, para que os alunos sejam formados e transformados apartir de uma concepção voltada para o bem comum.

SOME REFLEX IONS ON INCLUSIVE EDUCATION AND ITS IMPLICATION FORLEARNING DEVELOPMENT IN STUDENTS WITH LEARNING DIFFICULTIES

ABSTRACTThis paper analyses the evolutionist concepts of inclusive education and the different forms ofeducational space organization which exists as a response to diversity, and seeks the development ofan educational practice that favors learning environment. The paper also focuses on cooperationrelations as the main pivot for inclusive education which favors the apprenticeship development,from a theoretical approach, based on socio-interaction references.KEY-WORDS: Integration. Inclusive education. Normalization. Pedagogic practice.

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VYGOTSKY, INTERACIONISMO SÓCIO-DISCURSIVO EALFABETIZAÇAO DE ADULTOS: INTERFACES TEÓRICAS E

REFLEXÕES SOBRE A AÇÃO PEDAGÓGICA

Licia Rosalee Nascimento Moraes de Santana1

RESUMOTendo como base o interacionismo sócio-histórico de Vygotsky, revisitado pelas pesquisas de Jean-Paul Bronckart sobre o interacionismo sócio-discursivo, aborda-se neste texto a construção da escritaenquanto constituída dentro de formações discursivas que atravessam os sujeitos historicamenteformados. Fruto da ação interacional do sujeito histórico, a aquisição da língua escrita – particularmente,a alfabetização de adultos –, será, então, abordada como veio de discursividade emergente, e a açãopedagógica, assim concebida, como um espaço de fazer reflexivo do aluno e do professor.PALAVRAS-CHAVE: Sócio-interacionismo. Discurso. Alfabetização.

A alfabetização sempre foi um desafio para os educadores. Dificuldades de toda sorte cruzamos caminhos de alunos e professores, provocando as mais diversas reações. Muito se tem, então,discutido e estudado a respeito dos processos sócio-cognitivos que são disparados por ocasião daaquisição da leitura e da escrita.

Quando se fala em alfabetização de jovens e adultos, as questões que emergem são ainda maisdesconcertantes. Descrevendo, por exemplo, as falácias no ensino de adultos, Otero et al. (1991, p.198) chama a atenção para algumas noções perniciosas que ainda co-existem ao lado dos estudoslingüísticos sobre o tema. As autoras citam, entre outros, os equívocos no tratamento da alfabetizaçãode adultos nos mesmos termos em que se trabalha com crianças “a infantilização do adulto”; naperspectiva de considerá-los como seres prontos, acabados, ou, ainda, como um sujeito “universalabstrato, padronizado”. Essas “falácias”, no dizer das autoras, são o retrato de um processo político-educacional que visa à alienação e exclusão, e que, portanto, “não se alinham com uma proposta dealfabetização emancipadora”. E continuam: “superar essas falácias significa considerar o analfabeto

APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 2 p. 93-103 2004

1 Mestranda em Lingüística Aplicada pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Professora Substituta da Universidade Estadual do Sudoesteda Bahia (Uesb).

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na sua condição de cidadão adulto, concebê-lo como um ser em transformação, tratá-lo como umsujeito histórico, revelando e integrando suas circunstâncias ao cotidiano escolar” (OTERO, 1991,p. 198-207).

Esse quadro, rapidamente delineado, já mostra que há inúmeras questões subjacentes aosproblemas propriamente ditos do processo de aquisição da leitura e escrita. A dicotomia entre aquiloque as autoras supracitadas chamam de educação emancipatória e educação alienante é apenas asuperfície das discussões sócio-políticas que calçam, inevitavelmente, as pesquisas em educação.

Para além, entretanto, do viés político da discussão, há, sobretudo, as considerações de cunhoteórico, das quais ciências como lingüística e psicologia têm tentado dar conta para compreender osfatores que influenciam (positiva e negativamente) a aquisição da língua escrita.

O texto que ora se apresenta toma como ponto de partida a construção do sujeito discursivodentro dos seus textos escritos (desde seus primeiros contatos com a língua escrita), o que pressupõeconsiderar o adulto que chega à classe de alfabetização dentro daquela perspectiva emancipatória,vendo-o como um sujeito imbuído de discurso(s) que o faz(em) a representação singular de umatrajetória sócio-histórica. Para as breves reflexões aqui traçadas, o interacionismo sócio-histórico deVygotsky será evocado, mais especificamente na perspectiva do interacionismo sócio-discursivo deJean-Paul Bronckart (2003) e seu trabalho de pesquisa sobre o estatuto das ações de linguagem,discursos materializados em forma de textos. Também se tocará em pontos de relevância para aAnálise do Discurso (AD) de linha francesa, ainda que de modo incidental, visto que o objetivo aquinão é discorrer sobre as propostas teóricas da AD, mas suscitar uma discussão inicial sobre ospressupostos que firmariam as práticas discursivas como inegavelmente imersas em postulados sócio-históricos, particularmente no que diz respeito às práticas de adultos em processo de aquisição delíngua escrita.

VYGOTSKY E O INTERACIONISMO SÓCIO-DISCURSIVO

Pesquisador russo de grande importância, Lev Vygotsky (1896-1934), juntamente com seuscolaboradores mais conhecidos Alexander Luria (1902-1977) e Alexei Leontiev (1904-1979), traçouuma teoria expressiva e contemporânea sobre o desenvolvimento psicológico humano. Vygotskyviveu pouco, mas deixou largo caminho aberto para as pesquisas em psicologia, visando,principalmente, a favorecer a democratização do saber produzido pela sociedade, um objetivoaltamente permeado pelos ideais políticos do contexto pós-Revolução Socialista (1917).

Partindo de seus estudos em várias áreas de conhecimento (história, filosofia, arte, neurologia,psicologia, entre outras), Vygotsky chegou a uma nova abordagem para a psicologia, escapando dastendências da época que polarizavam as pesquisas, ora no âmbito das ciências naturais (psicologiaexperimental), ora das ciências mentais (descrição subjetiva do homem enquanto mente, consciência,espírito, de dados dificilmente aceitáveis em termos científicos). Assim, o psicólogo russo e seuscolaboradores chegaram aos parâmetros básicos do pensamento que nortearia a abordagemvygotskyana:2

1. As funções psicológicas têm suporte biológico, pois são produtos da atividade cerebral;

2 Cf. OLIVEIRA, 1993, p. 23.

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2. O funcionamento psicológico fundamenta-se nas relações sociais entre o indivíduo e o mundo exterior, as quais se desenvolvem num processo histórico;3. A relação homem/mundo é uma relação mediada por sistemas simbólicos.O ponto basilar da teoria de Vygotsky encontra-se nas relações sócio-históricas que se

estabelecem nas diversas mediações entre homem/mundo exterior.“O funcionamento psicológico,particularmente, no que se refere às funções psicológicas superiores, tipicamente humanas, está baseadofortemente nos modos culturalmente construídos de ordenar o real” (OLIVEIRA, 1993, p. 24). Ohomem transforma-se de biológico em sócio-histórico, num processo em que a cultura é parte essencialda constituição da natureza humana.

Nas suas observações sobre a influência da cultura na construção do homem, Vygotsky investigouos processos de mediação que permitem ao homem relacionar-se com o mundo real de modo muitomais significativo e produtivo do que as outras espécies animais. De todos os elementos mediadores,é a linguagem o sistema simbólico que exerce papel fundamental na comunicação entre indivíduos eno estabelecimento de significados compartilhados que permitem interpretações dos objetos, eventose situações do mundo real, ou, em outros termos, que precipita o homem de um psiquismo elementara um psiquismo consciente. Sob essa perspectiva, é preciso, então,

[...] admitir, primeiramente, que a evolução das espécies dotou o homem de capacidadescomportamentais particulares, permitindo-lhe criar instrumentos mediadores de sua relaçãocomo meio, organizar uma cooperação no trabalho que dá origem às formações sociais edesenvolver formas verbais de comunicação com seu pares. Admitir, a seguir, que é areapropriação, no organismo humano, dessas propriedades instrumentais e discursivas de ummeio, agora sócio-histórico, que é a condição da emergência de capacidades auto-reflexivas ouconscientes que levam a uma estruturação do conjunto do funcionamento psicológico(BRONCKART, 1999, p. 27).

Note-se, portanto, que a “palavra” (forma verbal de comunicação) demarca o salto qualitativodo sensível ao racional; mas esta “palavra” está, segundo Vygotsky, inserida num contexto sócio-histórico, visto que a apropriação, pelo bebê, das unidades significativas da língua que provocarão adiscretização e o desdobramento do funcionamento psíquico (características do pensamentoconsciente) dá-se exclusivamente em meio social humano, possibilitadas pelas intervenções,deliberadas ou não, das pessoas desse meio em que o indivíduo cresce.

Marcada pelo processo de semiotização, a “palavra” representa, “aponta” para o seu referente,remetendo ao mundo físico, social ou subjetivo do sujeito que dela faz uso. Porém, se este sujeito nãopartir de um contrato social em que as relações designativas passem de uma atribuição idiossincráticade valores à representação minimamente compartilhável, comunicável, o uso da palavra perde seusentido, e a linguagem humana terá, para este sujeito, o mesmo caráter que tem para outras espéciesde animais: será um simples acionador de respostas não-negociáveis, não-contestáveis, e, em últimainstância, não passíveis de construir cultura. Com sua dimensão trans-individual, a linguagem humanacoloca-se como constitutiva do social, e as línguas naturais existem em prol de assegurar aintercompreensão entre os membros de uma mesma comunidade, sendo, por isso, uma instituiçãosocial. Tal instituição, embora deva dar conta de realidades sociais globais, não pressupõehomogeneidade; antes, é atravessada por diversas organizações, complexas e hierarquizadas, no quadro

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das quais se manifestam conflitos e relações de força entre grupos de interesses divergentes; umacomunidade verbal, portanto, é constituída de múltiplas formações sociais (cf. BRONCKART, 1999,p. 31-38) que elaboram seus objetivos particulares em modalidades específicas de língua – asformações discursivas, comentadas à frente.

Evidenciados o papel da linguagem para o desenvolvimento humano, notadamente a verbal, eo arcabouço sócio-histórico sobre o qual esta se erige, pode-se dar um passo além da avaliação deVygotsky na direção de um interacionismo sócio-discursivo3 que toma a ação de linguagem por unidadede análise enquanto resultado “da apropriação, pelo organismo humano, das propriedades da atividadesocial mediada pela linguagem”. Imputáveis a um agente e materializadas em entidades empíricas(textos, quer orais, quer escritos), as ações de linguagem transformam o meio em mundos socialmenterepresentados, e a tomada de consciência desses mundos – o conhecimento do “outro” – culminarána consciência do próprio indivíduo – o conhecimento de si como um “outro”, ou seja, “conhecemo-nos a nós mesmos porque conhecemos os outros e pelo mesmo procedimento com o qual conhecemosos outros, pois somos, em relação a nós mesmos, os mesmos que os outros em relação a nós”(VYGOTSKY, 1922, 1994, p. 47 apud BRONCKART, 1999, p. 65).

No jogo dialógico em que se inserem as ações de linguagem, o contexto de produção dos textos(entidades empíricas que materializam as ações) decompõe-se, basicamente, em:

a) Lugar social (formação social) em que o texto é produzido: na escola, na família, namídia, na interação comercial, interação formal, etc.

b) Posição social do enunciador, seu papel social na interação em curso: professor, aluno,pai, patrão, amigo.

c) Posição social do receptor, seu papel social enquanto destinatário.d) Objetivo da interação: qual o efeito que o enunciador pretende produzir no destinatário.As formações discursivas circunscrevem-se, então, neste contexto em que as produções verbais

se colocam como elementos de uma mediação social que demarca papéis sócio-históricos, constitutivosda construção cultural em que se inserem os indivíduos; os textos, portanto, não são apenas merasproduções intelectuais, mas, antes de tudo, produtos da reflexão do sujeito que emerge falando aooutro e a si mesmo, de um “lugar” discursivo que o caracteriza e determina.

O SUJEITO QUE FALA, FALA DAQUILO QUE ELE É...

O sujeito emerge sob as palavras, sob o discurso, definindo-se através da palavra do outro eestando dividido entre o consciente e o inconsciente. O sujeito, portanto, numa perspectiva adotadapela Análise do Discurso de linha francesa,4 é “aquele que ocupa um lugar social e a partir deleenuncia, sempre inserido no processo histórico que lhe permite determinadas inserções e não outras”(MUSSALIM, 2003, p. 110-131). É importante lembrar que este sujeito não tem consciência dessefato e é, por isso, “levado” a ocupar seu lugar social e enunciar o que lhe é possível a partir do lugarque ocupa. Neste chamado interdiscurso, a formação do sentido dobra-se às coerções da formação

3 Cf. BRONCKART, 1999.4 A Análise do Discurso de linha francesa é o ramo da pesquisa lingüística que tem como proposta básica considerar como primordial arelação da linguagem com a exterioridade (condições de produção do discurso), enfocando o sujeito enquanto elemento fundamental paraa compreensão dos textos, cujas significações são amplamente permeadas pelos conceitos e valores das formações sociais.

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ideológica em que está inserida. No dizer da autora supracitada, “as seqüências lingüísticas possíveisde serem enunciadas por um sujeito circulam entre esta ou aquela formação discursiva que compõemo interdiscurso”. Eis por que os sentidos possíveis de um discurso são, inevitavelmente, marcados edemarcados, preestabelecidos pela própria identidade discursiva do sujeito/autor.

O estado de inconsciência do indivíduo de sua incapacidade de “dizer” por si mesmo pode sermais explicitado através das “ilusões” de que falam Pêcheux e Fuchs (1975 apud MUSSALIM, 2003,p.135; ORLANDI, 1999, p. 107): a primeira ilusão deriva do esquecimento de que o discurso nãonasce do sujeito, mas está “assujeitado” pela formação discursiva em que este está inserido ao enunciar(ilusão da autonomia do sujeito); a outra ilusão decorre também de um “esquecimento” – o de queseu discurso é sempre permeado por outros e outros discursos, e nunca único, plenamente objetivo(ilusão da transparência dos sentidos).

Assim iludido, o enunciador se inscreve nos textos de diferentes modos que correspondem adiferentes representações de sua(s) função(ões) discursiva(s). Cabe aqui lembrar que enunciador eautor indicam, para a AD, posições diversas do sujeito em relação aos seus enunciados: o enunciadoré o sujeito que fala do seu lugar (posição discursiva), enquanto “autor é a função que o eu assumeenquanto produtor da linguagem” (ORLANDI, 1999, p. 77). A noção de autoria é importante porquepressupõe a responsabilidade social que o sujeito tem com o processo de construção dos sentidos(função sócio-comunicativa da linguagem). Eni Pulcinelli Orlandi, em “Interpretação: autoria, leiturae efeitos do trabalho simbólico”, diz que o autor se coloca como responsável pelo texto que produz:“o autor responde pelo que diz ou escreve, pois é suposto estar em sua origem” (ORLANDI, 1996, p.69-75). E mais: “o autor se produz pela possibilidade de um gesto de interpretação que lhe correspondee que vem ‘de fora”. Dentro do comprometimento com a autoria nesta intrínseca parceria autor/leitor, as condições em que os sentidos são produzidos também são importantes, pois se ligam a estesnuma relação necessária.

Essas condições abrangem o contexto histórico-social, ideológico, a situação, os interlocutores eo objeto de discurso, de tal forma que aquilo que se diz significa em relação ao que não se diz, aolugar social do qual se diz, para quem se diz, em relação aos outros discursos, etc. (ORLANDI,1999, p. 85).

As condições de produção dos enunciados são importantes porque tudo o que se tem de materialanalisável é a historicidade do processo de construção dos sentidos. Enquanto o sujeito/autor mantém-se enlaçado na sua responsabilidade para com o(s) sentido(s), ele se relaciona com o outro, buscandodizer algo significativo para este interlocutor, seja ele efetivo ou virtual. Esta relação entreinterlocutores será a força motriz da construção dos sentidos, e ela não se dá aleatoriamente: faz-seatravés dos modelos de escrita e leitura ideais, ou das suposições que os interlocutores fazem arespeito desses modelos, com referência ao padrão do que seria o “bem” escrito e a “boa” leitura,paralelos ao “bom” autor e o “bom” leitor (Cf. ORLANDI, 1999, p. 89). A construção do leitor/autor ideal, que é anterior mesmo à aquisição da escrita (nas condições de letramento a que ossujeitos estão expostos, é ingênuo acreditar no contrário), vai se manifestar radicalmente quando dainteriorização da escrita, afinal a produção de texto não apenas reflete o sujeito/autor como tambémrevela suas expectativas do sujeito/leitor para quem ele escreve.

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O cerne da produção de sentido está, por assim dizer, no modo de relação (leitura) entre o ditoe compreendido, ambos inseridos no quadro das relações sociais, nos confrontos ideológico-discursivos.Mesmo sendo aparente a transparência dos sentidos dentro do texto, os sujeitos envolvidos em suaconstrução não podem prescindir de participar deste jogo, utilizando apropriadamente os mecanismosque a língua disponibiliza para que a interlocução seja possível. Como se vê, os mecanismos lingüísticosnão ditam as regras do “jogo”, mas são por ele manipulados: as palavras, expressões, proposições,etc, ganham novos e outros sentidos a depender do lugar de onde são enunciados, ou seja, a dependerdo sujeito que as usa para dar-lhes o sentido que ele quer (ou acha que quer – a ilusão da autonomia).As ações de linguagem, nos termos de Jean Paul Bronckart (2003), mobilizam seu agente-sujeito emintervenções que expressam mais que a elocução de idéias ou conceitos; uma ação de linguagem, umtexto, é transpassada por valores precisos que são atribuídos por seu sujeito-enunciador a cada umdos elementos envolvidos na construção discursiva

O agente constrói uma certa representação sobre a interação comunicativa em que se insere etem, em princípio, um conhecimento exato sobre sua situação no espaço-tempo; baseando-senisso, mobiliza algumas de suas representações declarativas sobre os mundos como conteúdotemático e intervém verbalmente (BRONCKART, 2003, p. 99).

Fica evidente, mais uma vez, que a dimensão discursiva não pode se dissociar da sócio-histórica;construídos nas bases dialógicas das formações sociais, os textos – discursos semiotizados – refletemo sujeito histórico que nele se coloca e por meio dele se mostra ao outro, no jogo simbólico dainteração comunicativa.

INTERACIONISMO SÓCIO-DISCURSIVO E ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS:ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O FAZER PEDAGÓGICO

O acesso do indivíduo analfabeto à realidade dos textos escritos é um marco importante paraapropriação dos modelos sócio-políticos que o cercam numa sociedade eminentemente letrada; parao analfabeto adulto, esse passo social ganha dimensões enormes, e a aquisição da escrita não éapenas uma descoberta fascinante, mas também a consolidação da cidadania, a feitura do sujeitodentro de novas e múltiplas potencialidades.

Em seu livro Cenas de Aquisição da Escrita (Mercado de Letras, 2002), Abaurre et. al.discute a constituição do sujeito a partir das pistas deixadas por ele em seus textos escritos. É nessalinha de pensamento que Mayrink-Sabinson, no capítulo 2, se pergunta sobre o papel do interlocutorna constituição da escrita pela criança. Suas investigações sobre “um evento singular” (a interaçãomãe-criança pré-escolar; cf. ABAURRE, 2002, p. 42) analisam diferentes visões sobre a atuação dosujeito letrado na construção dos sentidos pelo sujeito em processo de aquisição da escrita(especificamente, as posições teóricas de Ferreiro e Vygotsky), e chegam à conclusão de que aquelaconstrução se dá num constante diálogo entre os sujeitos envolvidos: o letrado e “não-letrado”

O SUJEITO/OUTRO está em constante movimento, seja ele um aprendiz da escrita em buscade autonomia, ou um letrado já de muito tempo. E o movimento de um SUJEITO/OUTROafeta o movimento do OUTRO/SUJEITO que, no processo de interlocução com ele se encontra

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e se confronta. Teorias que se pretendem explicativas do processo de aquisição da escrita devem,então, não só atribuir papel constitutivo ao interlocutor/OUTRO como aos OUTROS com osquais a criança interage, mas também permitir explicar esse “movimento de constituição recíproca”(MAYRINK-SABINSON, 2002, p. 48).

Esse processo de interlocução que Mayrink-Sabinson detecta apenas reforça o papel da interaçãona construção dos sentidos no texto escrito, afinal, como já se viu, a escritura pressupõe, antes detudo, o que escrever, para quem e por que – dentro de uma relação sociocomunicativa. Desse modo,

[...] a alfabetização não implica, obviamente, apenas a aprendizagem da escrita de letras, palavrase orações. Nem tampouco envolve apenas uma relação da criança [aluno] com a escrita. A alfa-betização implica, desde a sua gênese, a “constituição do sentido”.[...] Implica, mais profunda-mente, uma “forma de interação com o outro pelo trabalho de escritura” – para quem euescrevo o que escrevo e por quê? [...] [A] escrita precisa ser sempre permeada por um sentido,por um desejo, e implica ou pressupõe, sempre, um interlocutor (SMOLKA, 1989, p. 69).

O interlocutor a quem Smolka se refere não é, contudo, um “interlocutor” qualquer; ele é parteconstituinte do sujeito que fala, que diz, que quer se colocar diante do outro. Também para Bakhtin,esse sujeito que se projeta em seus textos é fruto dos processos de interação social.

A visão bakhtiniana da linguagem como fenômeno social tem uma relação direta com a construçãodo sujeito; para Bakhtin, o sujeito se constitui ouvindo e assimilando as palavras e os discursos dooutro [sua mãe, seu pai, seus colegas, sua comunidade etc.], fazendo com que essas palavras ediscursos sejam processados de forma que se tornem as palavras do sujeito e, em parte, aspalavras do outro. Todo discurso, segundo Bakhtin, se constitui na fronteira entre aquilo que é seue aquilo que é do outro (SOUZA, 2002, p. 21).

Sabendo-se que, conforme o princípio do dialogismo bakhtiniano, “cada enunciado nasce comoresposta a um enunciado anterior, e espera, por sua vez, uma resposta sua” (SOUZA, 2002, p. 21), apergunta que se faz é: o que o analfabeto adulto traz para as suas produções escritas em resposta auma cultura letrada que o exclui e discrimina e, ao mesmo tempo, influencia e força a novas e diferentescondutas frente ao saber da sua comunidade? A escrita não é apenas um adereço cultural de que ofalante quer dispor, antes

[...] [o sujeito] começa a constituir um modo de interação consigo mesmo e com os outros, ummodo de “dizer” as coisas. Nesse dizer, então, não só a emergência de modelos, de padrões e deorganização sociais, mas, também, a constituição do sentido (SMOLKA, 1989, p. 102).

Olhando sob outro prisma, a escrita é também alvo da preocupação pragmática do sujeito queescreve, estando este imbuído daquela intenção sociocomunicativa primaz. Kato (1993, p. 133)lembra que o autor se sabe responsável pelo estabelecimento do sentido e pela manutenção dacomunicação, atento, desse modo, às máximas griceanas de relevância.5 A escolha das palavras,construções, formas dentro de um texto observam o comprometimento do autor com seu atoilocucionário.

5 As máximas de Grice dizem respeito à necessidade premente de que os interlocutores se façam entender para que a comunicação sejaestabelecida: seja informativo (postulado da quantidade); seja sincero (postulado da qualidade); seja relevante (postulado da relação); sejaclaro (postulado do modo). In: KATO, 1993, p. 43.

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Como se vê, as múltiplas facetas do texto escrito se delineiam a partir de múltiplas focalizações.A análise de produções escritas de adultos alfabetizandos requererá a avaliação de como a escrita serevela para o sujeito num âmbito comunicativo-interacional, psicolingüístico e sócio-político. Cadaum desses planos implica numa discussão teórica diferente com uma só finalidade: perceber aconstrução discursiva do sujeito em fase de aquisição da língua escrita.

O viés subjetivo da análise já fica notório, por exemplo, nos relatos de experiência comalfabetização de adultos (COLLARES, In: SILVA, 1991; FUCK, 2000; RIBEIRO et al., 1992), em quea história de vida destes sempre surge como assunto para a sala de aula: ou é ponto de partida paraalguma discussão ou emerge dela, quase que inevitavelmente:

Debater com seu grupo fatos que acontecem consigo e revelam-se pertinentes não apenas à suavida, cria um clima de tensão e alegria. Tensão, como conseqüência natural do confronto de idéiase também pela abordagem de assuntos considerados constrangedores [...]. Alegria, pela possibi-lidade de trocar idéias e ser pessoa que cresce com os outros, que tem opinião e é considerada(COLARES, 1991, p. 233-234).

Os relatos sobre a mudança na vida das pessoas, advinda de saber ler e escrever, bem como ostestemunhos dos motivos que levam homens e mulheres, jovens e adultos a buscar aprender o “ABC”,são evidências do significado que a aquisição da língua escrita tem para esses sujeitos.

Trabalhar com as histórias de vida dos alfabetizandos e propor estratégias que coloquem emxeque seus esquemas de assimilação são aspectos fundamentais no desmascaramento das ideolo-gias dominantes e das representações sociais de exclusão que estão impregnadas na consciênciado analfabeto e que fazem parte do senso comum (OTERO, 1991, p. 210).

As relações efetivas da escritura com o mundo do aprendiz são essenciais porque a escrita nãodeve ser um fim em si mesma, não pode representar para nenhum indivíduo a apropriação do saberconstruído e acabado, mas a apreensão de um meio para a real inserção no mundo sócio-cultural dapalavra escrita.

O sujeito quando descobre a função social da escrita começa a se colocar em seus textos. Oque, então, ele diz a seu respeito? Para além dos caminhos da descoberta do sistema alfabético, daorganização da língua, para além dos pressupostos lingüísticos6 que ele terá que descobrir e apreenderpara alcançar a compreensão da escrita (cf. CAGLIARI, 1999, p. 131), o que mais retratarão as operaçõesde construção e refacção textuais, as análises nas entrelinhas, os ditos e não-ditos que se expressarãonos melindres das palavras de indivíduos maduros e amadurecidos pela vida? Tudo aponta para ofato de que esses indivíduos deixam transparecer, desde o princípio de suas interações com a escrita,a emergência de seu “eu-sujeito” através da construção discursiva de suas proposições.

Onde fica o papel da escola neste panorama? Em outras palavras, a escola tem preparado osujeito para tais relações dialógicas enquanto sujeito/autor? O adulto, que já foi excluído uma vez daescola, pode se encontrar subjetivamente numa classe de alfabetização em que a aquisição da escrita

6 Luiz Carlos Cagliari (1999) cita quase trinta habilidades/conhecimentos básicos de que o alfabetizando precisa ter conhecimento paraconseguir alcançar o domínio da língua escrita. Pode-se destacar, entre outras, a necessidade de se saber a diferença entre escrita e desenho; dese perceber que a fala aparece segmentada em palavras, bem como perceber como se dá tal segmentação; saber o que é uma palavra (relaçãoidéias/sons, letras/ortografia); reconhecer o alfabeto como um conjunto finito de letras e saber o que é uma letra (categorização formal efuncional das letras); conceber a ortografia como forma “congelada” de escrita que determina o valor gráfico e funcional das letras; etc.

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seja vista também como um processo de construção sócio-política e discursiva? Sob a égide deconhecimentos teóricos que auxiliem tanto na concepção lingüística da escrita e leitura quanto nadiscursiva, a aquisição da língua escrita pode ser uma rica experiência, inclusive para a pesquisapedagógica, visto que descortina a possibilidade de uma nova prática, mais emancipadora e construtiva.

Conceber o ensinar como um ato de conhecimento [...] gera também mudanças na concepçãode alfabetização, expandindo-se para além do ser capaz de ler e escrever um bilhete, de uma“alfabetização digestiva” para uma alfabetização construída pelo sujeito, crítica e emancipadora.[...] A educação/alfabetização adquire, então, contornos de uma prática social que não esgotasua vivência nos restritos limites da escola, mas ocorre em todas as dimensões da vida (OTEROet al., 1991, p. 208).

A alfabetização como prática social extrapola o âmbito da sala de aula, bem como da estruturametodológica clássica (o uso das cartilhas, o método sintético de ensino de língua escrita, a organizaçãofragmentada do saber lingüístico, dividido em partes – letras, sílabas, palavras, como se assim o fossea língua...) e vai ao encontro do estabelecimento de um ambiente alfabetizador em que o diferencialnão seja aquilo que falta ao alfabetizando – o que eles não sabem, as coisas com que não estãoacostumados, os hábitos que não possuem. Num ambiente alfabetizador em que se priorize aconstrução discursiva, o sujeito sócio-histórico do processo de ensino-aprendizagem encontra-seimerso, cercado de portadores de leitura (rótulos, revistas, jornais, livros, bulas, receitas, manuais,dicionários, panfletos, convites, etc.) e, mais importante, envolto nas discussões que o colocamcomo sujeito-agente de seu saber. As estratégias pedagógicas deste ambiente de aprendizagemreconhecem como conteúdos alfabetizadores, entre outros conhecimentos, as práticas de leitura não-escolar vivenciadas pelos alunos em sua vida cotidiana fora da escola, que, freqüentemente, nãopassam pelo texto escrito (Cf. ARAÚJO, 2001, p. 150).

Historicamente situado, um ambiente alfabetizador, portanto, não pode se calar diante daconvergência de múltiplas formações discursivas durante a socialização da escrita, cujas funções sociaissaltam aos olhos dos homens e mulheres que buscam, na alfabetização, uma voz para veicular suaspróprias formas de ver e estar no mundo, lutando contra o silenciamento imposto pela sociedade letrada.

A construção de “ambientes alfabetizadores” favoráveis à aprendizagem das crianças [e dosadultos] das classes populares [...] precisa tomar como base a relação – leitura do mundo/leiturada palavra –, procurando garantir que o processo de ensinar a ler e a escrever se torne um espaçoonde os que foram silenciados e não usufruem dos benefícios socioculturais produzidos pelasociedade em seu conjunto, possam “tomar a palavra” (ARAÚJO, 2001, p. 150).

Deixando de lado uma posição totalitária do espaço escolar, a classe de alfabetização, tal comoaqui se discute, deverá desvencilhar-se dos modelos de ensino politicamente comprometidos com amanutenção da ordem atual dos fatos em que distanciamento e exclusão são o mote das práticassociais. A escola pode, ao contrário, tomar como pressupostos as variadas experiências alfabetizadorasque seus alunos trazem consigo, à medida que vão aprendendo a “ler” o mundo ao seu redor.

Os ambientes em que [os alfabetizandos] vivem [...] e nos quais vão aprendendo a ler o mundosão múltiplos, híbridos, complexos. Assim também deveriam ser os ambientes alfabetizadores na

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sala de aula, trazendo toda a complexidade das experiências vividas pelas crianças [pelos alunos],que, apesar de mergulhadas na oralidade, em suas vivências, especialmente as de trabalho, vãocompreendendo a importância de saber ler a palavra. E se a escola cria ambientes alfabetizadorestão ricos quanto os ambientes alfabetizadores da vida, o exercício da escrita pode gerar umprocesso de tomar a palavra (ARAÚJO, 2001, p. 157).

O sujeito em interação ativa com seu mundo; a escrita como meio sócio-discursivo de construçãointerativa; a sala de aula como ambiente de leituras – das palavras, da vida, dos discursos... A apropriaçãoda escrita dentro de uma perspectiva dialógica, cujos processos educacionais acolham mais vozes doque se pressupunha, torna-se um desafio para professores e pesquisadores que, preocupados comcruzamentos entre teoria e prática, busquem novos horizontes para o fazer pedagógico que, acima detudo, é fazer histórico-social.

VYGOTSKY: DISCURSIVE SOCIAL INTERACTIONISM AND ADULT EDUCATION

ABSTRACTThis paper discusses the writing construction as an important issue within the discursive formationof adult learner as a subject inserted in the social historical structure. The paper is based on Vygotsky’ssocial interactionism theoretical point of reference, reviewed by Jean-Paul Bronckart’s social-discursiveinteractionism. The analysis shows the influences of a reflexive teaching perspective and the classroomas a critical interaction place for the writing learning process.KEY-WORDS: Social interactionism. Discourse. Literacy.

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A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM MOSCOVICIE SUA IMPORTÂNCIA PARA A PESQUISA EM EDUCAÇÃO

Nilma Margarida de Castro Crusoé 1

RESUMOPropomos apresentar, neste artigo, alguns pressupostos da Teoria das Representações Sociais de SergeMoscovici e sua importância para a pesquisa em educação, por entendermos que a conseqüênciaepistemológica da postura moscoviciana pressupõe a impossibilidade de compreender o indivíduo semconsiderá-lo como parte de uma sociedade cultural, econômica, política, enfim, historicamente situada.PALAVRAS-CHAVE: Teoria das representações sociais. Teoria do núcleo central. Pesquisa emeducação.

O primeiro contato com a Teoria das Representações defendida por Serge Moscovici se deu nocurso de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, quando utilizamostal referencial teórico para embasar a nossa pesquisa que trata das representações sociais do professorde matemática sobre interdisciplinaridade.

Durante os estudos acerca dessa teoria pudemos perceber que a mesma nos permitiu modificaro nosso olhar em relação ao conhecimento de senso comum, pois o fato dessa teoria atuar na dinâmicaentre o conhecimento de senso comum e o conhecimento científico nos permite conhecer o que dizo senso comum a respeito de um determinado conhecimento e comparar com o seu conhecimentocientífico. Nesse sentido, ao fazermos essa comparação, percebemos que esse conhecimento nãoapenas nutre o próprio conhecimento científico, como se constitui numa Teoria, que pode interferirnas práticas dos sujeitos envolvidos como nos mostra Abric (1994a) ao estudar a relação entreRepresentação Social e comportamento.

Assim, entendemos que essa perspectiva teórica abre importantes possibilidades de estudos darealidade educacional na medida em que aponta para a interdependência entre o conhecimentocientífico e o conhecimento de senso comum e rompe com a dicotomia entre esses dois tipos de

1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe). Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 2 p. 105-114 2004

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conhecimento. Diante disso, consideramos relevante apresentar alguns pressupostos da Teoria dasRepresentações Sociais de Serge Moscovici, da Teoria do Núcleo Central de Jean-Claude Abric etentar resgatar a sua importância, ainda que de forma breve, para a pesquisa em Educação.

A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE SERGE MOSCOVICI

O primeiro teórico a falar em representações sociais como “representação coletiva” foi ÉmileDurkheim, designando a especificidade do pensamento social em relação ao pensamento individual.Segundo este autor, o pensamento individual seria um fenômeno puramente psíquico, mas que nãose reduziria à atividade cerebral, e o pensamento social não se resumiria à soma dos pensamentosindividuais (MOSCOVICI, 1978, p. 25).

De acordo com Farr (1995, p. 35), Durkheim faz uma distinção entre o estudo das representaçõesindividuais e o estudo das representações coletivas. Para ele o estudo das representações individuaisseria do domínio da psicologia, e o estudo das representações coletivas ficaria a cargo da sociologia.O fundamento de tal distinção estava na crença, por parte desse teórico, de que as leis que explicavamos fenômenos sociais eram diferentes das leis que explicavam os fenômenos individuais.

Assim, as representações coletivas, por serem fruto dos acontecimentos sociais, se constituemem fato social e, como tal é resultado de uma consciência coletiva e não de uma consciência individual.Por essa razão, não podemos, segundo Durkheim, tratar as representações coletivas numa perspectivaindividual.

A discussão inicial de Durkheim sobre representações coletivas foi crucial para que Moscovicibuscasse na sociologia um contraponto para a perspectiva individualista da psicologia social, tãopresente na psicologia social da América do Norte. Entretanto, Moscovici (1978) defende que arepresentação social deve ser encarada “tanto na medida em que ela possui uma contexturapsicológica autônoma como na medida em que é própria de nossa sociedade e de nossa cultura”(MOSCOVICI, 1978, p. 45).

Desse modo, a Teoria das Representações Sociais proposta pelo psicólogo social francês SergeMoscovici e apresentada por ele na obra intitulada A representação social da psicanálise preocupa-se fundamentalmente com a inter-relação entre sujeito e objeto e como se dá o processo de construçãodo conhecimento, ao mesmo tempo individual e coletivo na construção das Representações Sociais,um conhecimento de senso comum.

De acordo com Moscovici (1978, p. 41), as relações sociais que estabelecemos no cotidianosão fruto de representações que são facilmente apreendidas. Portanto, a Representação Social, paraMoscovici, possui uma dupla dimensão, Sujeito e Sociedade, e situa-se no limiar de uma série deconceitos sociológicos e psicológicos.

É importante ressaltar, conforme Alves-Mazzotti (2000, p. 59), que Moscovici parte dapremissa de que

[...] não existe separação entre o universo externo e o universo interno do sujeito: em sua atividaderepresentativa, ele não reproduz passivamente um objeto dado, mas, de certa forma, o reconstróie, ao fazê-lo, se constitui como sujeito, na medida em que, ao apreendê-lo de uma dada maneira,ele próprio se situa no universo social e material.

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107A teoria das representações sociais em Moscovici e sua importância para a pesquisa em educação

Outra diferença apontada por Moscovici entre a Teoria das Representações Sociais elaboradapor ele e a perspectiva individualista da psicologia social da América do Norte é que os conceitosconstruídos pelos indivíduos na perspectiva individualista

[...] não levam em conta o papel das relações e das interações entre as pessoas: os grupos sãoconsiderados a posteriori e de maneira estática, centrando-se a investigação na maneira como elesselecionam e utilizam as informações que circulam na sociedade, e não como as instâncias que ascriam e comunicam. Finalmente, ao contrário do que ocorre nos estudos das representaçõessociais, o contexto, bem como as intenções dos atores sociais não são considerados (ALVES-MAZZOTI, 2000, p. 59).

Nesse sentido, a Teoria das Representações Sociais elaborada por Moscovici é uma teoria quepode ser abordada em termos de produto e em termos de processo, pois a representação é, ao mesmotempo, o produto e o processo de uma atividade mental pela qual um indivíduo ou um grupo reconstituio real, confrontando e atribuindo uma significação específica (ABRIC, 1994, p. 188).

Tal teoria, abordada em termos de produto, volta-se para o conteúdo das representações, parao conhecimento de senso comum, que permite aos sujeitos interpretarem o mundo e orientarem acomunicação entre eles, na medida em que, ao entrarem em contato com um determinado objeto, orepresentam e, em certo sentido, criam uma teoria que vai orientar suas ações e comportamentos.

De acordo com Maia (1997), um dos aspectos advogados por Moscovici é a existência de umconhecimento de senso comum, que permite explicar determinadas práticas. Tal conhecimento évisto por ele como um conhecimento verdadeiro, e não como um disfuncionamento do conhecimentocientífico. A grande questão é que esse conhecimento de senso comum, por ser um conhecimentocircunscrito, se diferencia do conhecimento científico, que busca a generalização e a operacionalização.Assim, a teoria das Representações Sociais é uma proposta científica de leitura do conhecimento desenso comum e, nesse sentido, preocupa-se com o conteúdo das representações.

A Teoria das Representações Sociais abordada em termos de processo consiste em saber comose constroem as representações, como se dá à incorporação do novo, do não familiar, aos universosconsensuais. Nesse sentido, para Moscovici, a construção das representações envolve dois processosformadores: a ancoragem e a objetivação. Assim, conforme Sá, “o processo é responsável peloenraizamento social da representação e de seu objeto” (SÁ, 1995, p. 38).

De acordo com Moscovici, o processo de objetivação “faz com que se torne real um esquemaconceptual, com que se dê a uma imagem uma contrapartida material” (MOSCOVICI, 1978, p. 110).Nesse caso, então, a objetivação consiste em dar concretude a um determinado conceito. No caso doestudo de Moscovici, o conceito utilizado foi o de psicanálise através do qual ele buscava conhecercomo um determinado grupo a representava. Através desse estudo, ele percebeu que, “ao objetivar oconteúdo científico da Psicanálise, a sociedade já não se situa com vistas à Psicanálise ou aospsicanalistas, mas em relação a uma série de fenômenos que ela toma a liberdade de tratar comomuito bem entende” (MOSCOVICI, 1978, p. 112).

Segundo Alves-Mazzotti (2000, p. 60), para Jodelet, a objetivação de um determinado conceitoou objeto, por parte dos sujeitos, depende basicamente dos condicionantes culturais – acessodiferenciado às informações em função da inserção social dos sujeitos – e dos aspectos valorativosdo grupo – sistema de valores do grupo. Dessa forma, as informações recebidas a respeito de um

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conceito ou objeto passam por uma organização, para que estes possam adquirir uma imagem coerente,ou seja, a construção formal de um conhecimento em nível de senso comum.

O processo de ancoragem envolve, para Moscovici, “a integração cognitiva do objetorepresentado no sistema de pensamento preexistente”, ou seja, “sua inserção orgânica em um repertóriode crenças já constituído” (ALVES-MAZZOTI, 2000, p. 60). Nesse sentido, através da ancoragemtornamos familiar o conceito ou objeto representado.

Uma outra questão que Durkheim aponta e que é retomada e ampliada por Moscovici, aoelaborar a Teoria das Representações Sociais, se refere ao peso que a opinião tem no processo dedesenvolvimento da ciência. Para Durkheim,

[...]o valor que atribuímos à ciência, como aliás, nas religiões, depende, em suma, da idéia quefazemos coletivamente da sua natureza e do seu papel na vida; quer dizer, ela exprime um estadode opinião. É que, de fato, tudo na vida social, inclusive a própria ciência, assenta na opinião(MOSCOVICI, 1978, p. 45).

Em que pese ao pensamento durkheimniano, a valorização da opinião no desenvolvimento daciência, Moscovici nos chama a atenção para o fato de que trabalhar no campo da opinião envolveuma escala de valores que pode levar à valorização maior de uma ciência em detrimento de outra, e,por isso, o papel da opinião na estrutura e no desenvolvimento das teorias científicas vem sendo cadavez mais reduzido. Entretanto, não podemos deixar de ver fundamento em sua valorização da opinião.

Nessa linha argumentativa, reflete Moscovici (1978, p. 46): “Como se sabe, a opinião é, porum lado, uma fórmula socialmente valorizada a que um indivíduo adere; e, por outro lado, umatomada de posição sobre um problema controvertido da sociedade”. Entretanto, de acordo comAlves-Mazzotti (2000, p. 59), o que Moscovici procura enfatizar

[...] é que as representações sociais não são apenas “opiniões sobre” ou “imagens de”, mas teoriascoletivas sobre o real, sistemas que têm uma lógica e uma linguagem particular, uma estrutura deimplicações baseada em valores e conceitos que ‘determinam o campo das comunicações possí-veis, dos valores e das idéias compartilhadas pelos grupos e regem, subseqüentemente, as condu-tas desejáveis ou admitidas.

Logo, para Moscovici, a Representação Social é uma construção que o sujeito faz para entendero mundo e para se comunicar, é uma Teoria.

O estudo das representações sociais traz em seu bojo algumas preocupações importantes. Aprimeira delas refere-se à discussão do senso comum no ambiente acadêmico que, em geral, é vistocom suspeição ou descrédito, mesmo estando no cerne de algumas das mais importantes descobertasda humanidade. Para Moscovici (1978), o senso comum, “com sua inocência, suas técnicas, suasilusões, seus arquétipos e estratagemas”, comporta uma série de informações e impressões significativasquando se procura um referencial acerca de determinado tipo de conhecimento, e ressalta: “o volumeinflacionado de conhecimentos e realidades indiretas sobrepuja de todos os lados o volume cada vezmais limitado dos conhecimentos e realidades diretas” (MOSCOVICI, 1978, p. 20-21).

Assim, o senso comum vem ganhando espaço, tornando-se referencial indispensável. Moscovici,atento, faz questão de deixar claro, ao tratar da ciência, que

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[...] os qualificativos e as idéias que lhe estão associadas deixam escapar o principal do fenômenopróprio de nossa cultura, que é a socialização de uma disciplina em seu todo, e não, como secontinua pretendendo, a vulgarização de algumas de suas partes. Adotando-se esse ponto devista, transfere-se para segundo plano as diferenças entre os modelos científicos e os modelosnão-científicos, o empobrecimento das proposições iniciais e o deslocamento do sentido, dolugar da aplicação. Vê-se, pois, do que se trata: da formação de um outro tipo de conhecimentoadaptado a outras necessidades, obedecendo a outros critérios, num contexto social preciso(MOSCOVICI, 1978, p. 24).

Chegamos ao ponto em que se torna necessário dar contornos mais claros ao conceito darepresentação social e, nesse sentido, Moscovici nos apresenta a seguinte definição: “Em poucaspalavras, a representação social é uma modalidade de conhecimento particular que tem por função aelaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos” (MOSCOVICI, 1978, p. 26). Arepresentação social constitui-se, segundo Moscovici, num novo status epistemológico e, como tal,por um lado, requer mais tempo histórico para se solidificar, e, por outro, ainda tem de arcar com aresistência de diferentes setores da área acadêmica.

Moscovici, ao tratar da representação social, parte de duas premissas: primeiro considera quenão existe um corte entre o universo exterior e o do indivíduo, que o sujeito e o objeto não sãoabsolutamente heterogêneos e que o objeto está inscrito num contexto dinâmico; segundo, vê arepresentação social como uma “preparação para a ação” (MOSCOVICI, 1978, p. 49). Taisrepresentações partem da observação da realidade feita pelo indivíduo e posteriormente relatada. Aobservação não pode, entretanto, acontecer de maneira assistemática, precisa de controle para evitarque o indivíduo “tome seus desejos por realidade” (MOSCOVICI, 1978, p. 52). Os relatos podem serde diferentes tipos, desde os mais acadêmicos até os informais.

Desse conjunto, composto por observação e relatos, surge um tipo de conhecimento. Umconhecimento originário do diálogo, do intercâmbio de idéias e de impressões, da transmissão deinformações. O diálogo permite que determinados conceitos ganhem competência e passem, muitasvezes, a ter um formato enciclopédico. Esse conhecimento exprime algumas das ”idéias que pairamno ar”, que são capazes de revelar o que um determinado grupo pensa sobre alguma situaçãodeterminada. Trata-se muito mais de “manter a coerência” do que propriamente ampliar osconhecimentos, fornecendo informações, palavras e noções que estão, em geral, distantes, encontrando,enfim, nos “sábios amadores” algumas respostas que não poderiam ser encontradas de outra forma.

Ao preocupar-se com a dinâmica das interações sociais, a Teoria das Representações Sociaisnão concebe o sujeito em separado do objeto. Para essa Teoria o objeto se insere num contextoconcebido pelo sujeito como prolongamento do seu comportamento (ABRIC, 1994, p. 12).

A representação, então, funciona como sistema sociocognitivo e como sistema contextualizado.Como sistema sociocognitivo, supõe um sujeito ativo que produz representações acerca de umdeterminado objeto. Tais representações, embora estejam submetidas às regras dos processoscognitivos, são determinadas inicialmente pelas condições sociais nas quais se elabora e se transmiteuma representação (ABRIC, 1994, p. 14).

A representação, como sistema contextualizado, nos remete à questão da significação, um doselementos fundamentais de uma representação, justamente porque tal elemento é determinado pelocontexto, que pode ser discursivo ou social. De acordo com Abric (1994), a significação de umarepresentação deve ser observada primeiramente pela natureza das condições do discurso, pelo

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contexto ideológico e pelo lugar que ocupa o indivíduo ou o grupo no sistema social a partir do qualfoi produzida tal representação (ABRIC, 1994, p. 14-15).

Dentre as funções das representações sociais, podemos citar, conforme Abric (1994), as funçõesde saber, de identidade, de orientação e justificação das condutas. A função de saber das representaçõespermite aos sujeitos compreenderem e explicarem uma determinada realidade, em consonância como funcionamento do seu sistema cognitivo e com seu universo de valores e crenças. A função deidentidade da representação funciona como uma proteção à especificidade dos grupos na medida emque situa os indivíduos ou grupos no campo social (ABRIC, 1994, p. 15-16).

A representação, ao exercer sua função de orientação, atua como guia de comportamentos epráticas. Nesse sentido, a representação funciona como uma antecipação das ações, quando intervémna finalidade da situação, no tipo de atitude cognitiva a ser adotada pelos sujeitos sociais, revelando,assim, sua natureza prescritiva (ABRIC, 1994, p. 16-17).

A função justificadora da representação atua “a posteriori” no sentido de justificar oscomportamentos e tomadas de posição dos grupos e indivíduos numa ação ou com relação aos seusparceiros (ABRIC, 1994, p. 17-18). Dessa forma, a adoção do referencial da Teoria das RepresentaçõesSociais de Serge Moscovici nas pesquisas em educação implica assumirmos uma perspectiva queconsidera que as representações sociais têm um papel fundamental na dinâmica das relações sociaise nas práticas e que o conhecimento do senso comum é um conhecimento legítimo condutor detransformações sociais e que, de certa forma, “direciona” a produção do conhecimento científico.

Sendo assim, o referencial teórico das Representações Sociais, ao atuar na dinâmica entre oconhecimento de senso comum e o conhecimento científico, oferece amplas possibilidades deinvestigação sobre a realidade educacional, numa perspectiva que contempla a compreensão doindividual/social, enquanto elementos que só podem existir em sua inter-relação.

TEORIA DO NÚCLEO CENTRAL

De acordo com Abric (1994, p. 19), “a representação é, pois, constituída por um conjunto deinformações, de crenças, de opiniões e de atitudes sobre um objeto dado”. Contudo, uma das principaispreocupações de Abric consiste no estudo da relação entre Representação Social e comportamento.

Para Abric (1994), os comportamentos dos sujeitos ou dos grupos não são determinados pelascaracterísticas objetivas da situação, mas pela representação dessa situação, daí a importância, paraeste autor, do estudo das Representações Sociais.

Ao perceber tal questão, Abric (1994) começa a se preocupar com o estudo experimental dasrepresentações, o que implica uma nova abordagem da metodologia experimental que leve emconsideração fatores cognitivos e simbólicos. Sendo assim, o estudo experimental das representaçõesse aproxima de uma abordagem que leve em conta tanto os fatores e comportamentos diretamenteobserváveis, quanto a dimensão simbólica que está relacionada à significação, já que se trata deverificar a hipótese de que os comportamentos dos sujeitos não são determinados pelas característicasobjetivas da situação, mas pela representação dessa situação (ABRIC, 1994, p. 188).

A partir de estudos experimentais realizados por Flament (apud ABRIC, p. 189-190) e W. Doise(apud ABRIC, 1994, p. 196), Abric confirma sua hipótese de que há uma relação entre representaçãoe comportamento. Primeiramente, de acordo com Abric, numa pesquisa realizada por Flament,

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verificou-se que uma mesma situação pode dar lugar a diferentes representações. Tal experimentoenvolveu em uma mesma situação de jogo dois tipos de sujeitos: os de cultura anglo-saxônica e os decultura latina.

Essa mesma situação de jogo foi representada de maneira diferenciada pelos sujeitos. Para ossujeitos de cultura anglo-saxônica, a situação de jogo significava competição, e o comportamentodesses sujeitos era competitivo. Já para os sujeitos de cultura latina, significava prazer e interação,gerando um comportamento interativo com os membros do seu grupo. O fato de essas representaçõesestarem ligadas a fatores culturais confirma a representação como sistema contextualizado (ABRIC,1994, p. 189-190).

Conforme dissemos no parágrafo inicial, uma das principais preocupações de Abric é com oestudo da relação entre Representação Social e ação. Para ele, a representação antecede a ação, ouseja, a representação tem uma função antecipatória, o que pode ser um sinal de que a RepresentaçãoSocial é prescritiva.

A esse respeito, Abric (1994, p. 196) nos mostra que Doise, ao analisar as representações deum grupo em situação de interação competitiva com um outro grupo, onde os participantes deveriamconhecer a tarefa proposta, falar de suas motivações e das características que atribuíam a si mesmos,aos integrantes do seu grupo e ao grupo adversário, observou que os sujeitos atribuem motivaçõesmais competitivas em relação ao grupo adversário em função das características que lhe são atribuídas.

Como resultado, essa pesquisa demonstrou que, antes da interação entre os grupos, os sujeitosatribuíam as motivações mais competitivas ao grupo adversário em função das características quelhe foram atribuídas, justificando assim um comportamento competitivo.

Para identificar que elementos das representações são determinantes na efetivação doscomportamentos, Abric preocupa-se, primeiramente, em comprovar, a partir de pesquisasexperimentais, que o comportamento dos sujeitos não é determinado pelas características objetivasda situação, mas pela representação dessa situação. Em seguida, busca compreender como se dá aorganização interna das representações em função de explicar a relação representação e ação, o quese constitui a base da Teoria do Núcleo Central.

Tal teoria, elaborada por Abric (1994), preocupa-se justamente com a estrutura interna e adinâmica das representações, e, para ele, é o núcleo central que determina a significação e a organizaçãoda representação (ABRIC, 1994, p. 197).

A hipótese da organização interna é assim definida por Abric:

A organização de uma representação apresenta uma modalidade particular, específica: não so-mente os elementos hierarquizados, mas toda a representação está organizada em torno de umnúcleo central constituído de um ou de alguns elementos que dão à representação sua significação(ABRIC, 1994, p. 19).

A idéia essencial de Abric (1994) é a de que toda a representação está organizada em torno de umnúcleo central (NC) que determina, ao mesmo tempo, sua significação e sua organização interna.Os outros elementos que entram na composição são chamados elementos periféricos (EP), econstituem a parte operatória da representação, desempenhando um papel essencial no funciona-mento e na dinâmica das representações. Sendo mais sensível às características do contexto ime-diato, o sistema periférico constitui a interface entre a realidade concreta e o NC (ALVES-MAZZOTI, 2000, p. 62).

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A discussão de Abric sobre o núcleo central é uma tentativa de mostrar que a retenção doconteúdo de uma representação não é suficiente para reconhecê-la e especificá-la, como pretendiaMoscovici, mas é preciso analisar como esse conteúdo está organizado, porque é na organização doselementos em torno do núcleo central que podemos encontrar as diferenças e semelhanças entre asrepresentações (ABRIC, 1994, p. 22).

O núcleo central desempenha as seguintes funções: a) geradora; b) organizadora; c)estabilizadora. A função geradora será a responsável pela criação ou transformação de umarepresentação; a função organizadora determinará a natureza das ligações entre os elementos de umarepresentação; e a função estabilizadora conterá os elementos que mais resistem à mudança (ALVES-MAZZOTI, 2000, p. 62-63).

Diz-nos Abric (1994, p. 197) que o núcleo central é composto de um ou vários elementos,cuja ausência desestruturará ou dará um significado radicalmente diferente da representação noseu conjunto. O núcleo central é o elemento que mais resiste à mudança e, dessa forma, qualquermudança no núcleo central modifica completamente a representação. Vale ressaltar que éidentificando o núcleo central que teremos elementos para o estudo comparativo das representaçõese, dessa forma, identificarmos tipos diversos de Representações sobre um dado objeto ou situação(ABRIC, 1994, p. 22).

Por serem os elementos do núcleo central os que mais resistem a mudanças, e por isso mesmodão significado às representações, fica claro que tais elementos ocupam uma posição privilegiada naestrutura da representação. Desse modo, Abric (1994, p. 23) nos diz que os elementos do núcleocentral são determinados “de um lado, pela natureza do objeto representado; de outro, pela relaçãoque a pessoa – ou grupo – mantém com esse objeto; e finalmente, pelos sistemas de valores e denormas sociais que constituem o meio ideológico do momento e do grupo”.

Abric (1994, p. 25), enfatiza que em volta do núcleo central organizam-se os elementosperiféricos. O que significa que sua presença e sua função são determinadas pelo núcleo central. Oselementos periféricos fazem parte do conteúdo das representações e se tornam essenciais na medidaem que estão próximos à situação concreta em que se elabora ou funciona a representação, é adimensão contextualizada da representação.

Sendo assim, Abric (1994, p. 25-26) afirma que os elementos periféricos exercem três funçõesessenciais: a função de concretização, que é diretamente dependente do contexto que produz esseselementos; a função de regulação, que supre o elemento central, na medida em que os elementosperiféricos exercem um papel fundamental na adaptação da representação, quando há uma evoluçãodo contexto em que a representação foi produzida; e a função de defesa, que atua no momento emque a representação precisa de defesa, pois, como já dissemos, o ponto central de uma representaçãoresiste a mudanças de interpretações e à integração de elementos novos. Nesse sentido, é somentenos elementos periféricos que poderão aparecer as contradições.

Como podemos observar através dos fundamentos da Teoria das Representações Sociais,poderemos delimitar o significado atribuído pelos sujeitos a um determinado conhecimento ecompreender a partir da Teoria do Núcleo Central como esses significados se organizam numdeterminado grupo e verificar até que ponto essas representações norteiam a ação dos indivíduos, oque se constitui, no nosso entendimento, uma possibilidade de leitura de questões que envolvem arealidade educacional.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DAS CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DASREPRESENTAÇÕES SOCIAIS PROPOSTA POR SERGE MOSCOVICI À PESQUISA EMEDUCAÇÃO

Considerando a abrangência conceitual da Teoria das Representações Sociais, teceremos brevesconsiderações a respeito das possibilidades de aplicação dessa teoria a pesquisas que visam a melhoriada qualidade de ensino nas escolas.

Primeiramente, ressaltamos que o fato da teoria das representações sociais considerar oconhecimento de senso comum como um conhecimento verdadeiro, permite explicar determinadaspráticas nas escolas, na medida em que, identificar as representações dos professores e alunos emrelação a um determinado objeto, pode nos ajudar a compreender algumas questões de sala de aula.

Como exemplo podemos citar o trabalho de Maia (2001) que, ao discutir a dimensão concretado ensino de matemática, adota o referencial teórico das representações sociais para analisar asrepresentações sociais de professores sobre a matemática, encontrando como resultado que a noçãode concreto na matemática por parte dos professores não se refere ao saber matemático propriamentedito, mas às situações utilizadas pelo professor em sala de aula. Nesse sentido, podemos perceber quea teoria das representações sociais se constitui numa ferramenta importante para entendermos comoum conhecimento, no caso específico a noção do concreto e do abstrato no ensino de matemática, épropagado no meio educacional, a partir de uma dinâmica entre suas dimensões científica e social.

A esse respeito, sabemos que:

[...] Durante um certo tempo, o conhecimento popular foi silenciado na escola. Ora, toda sociedade,segundo Moscovici está permeada por esse conhecimento que ele denominou de representaçãosocial. Será que a escola é um espaço de puro de saber científico? Estamos certos que não. Oprofessor, o aluno como atores de uma sociedade em movimento, carregam consigo um saberque se constrói no dia a dia, tanto social, familiar, quanto profissional. E este conhecimento elestrazem para a escola. Identificar elementos desse conhecimento e estabelecer relações com oconhecimento científico, objeto específico de “transmissão” escolar, nos parece ser um importantepasso para a compreensão de entraves e desvios que observamos no dia a dia escolar (MAIA,2001, p. 85).

Dessa forma, entendemos que a representação social permite ao sujeito interpretar o mundo,facilita a comunicação, orienta as ações e comportamentos e, nesse sentido, temos a idéia de que aprática escolar não está imune a um conhecimento oriundo da interpretação, da comunicação entreos sujeitos. É nesse contexto que concebemos que a identificação das representações que permeiama realidade educacional possa contribuir com a análise dessa realidade.

Um outro aspecto levantado por Maia (2001, p. 84), e que podemos apontar como importantepara adotarmos a Teoria das Representações Sociais como referencial teórico para a pesquisa emeducação, é que o próprio ato de representar um objeto é um ato propriamente humano e, como tal,interessa à psicologia como elemento que permite a explicação do comportamento humano.

Nesse sentido, o problema de indisciplina em sala de aula, por parte do aluno, tão reclamadopelos professores como um elemento dificultador do processo ensino aprendizagem, pode sercompreendido a partir das representações que os professores e alunos têm do conceito deindisciplina, pois, tal teoria nos permitirá conhecer o senso comum dos professores e alunos sobre

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o conceito de indisciplina, acreditando que esse conhecimento interfere na ação dos sujeitos,conforme Abric (1994, p. 188).

Assim, se entendemos que os comportamentos dos sujeitos não são determinados pelascaracterísticas objetivas da situação, mas sim pela representação dessa situação, as pesquisas a partirdessa perspectiva abrem possibilidades de verificação das práticas escolares, tomando como pontode partida o conteúdo das representações.

Compartilhamos também da idéia de que a prática pedagógica é um espaço em que circulamdiferentes representações, que por sua vez, guiam essa prática, e, desconsiderá-las como conhecimentoverdadeiro, seria não reconhecer os sujeitos dessa prática como sujeito social/cognitivo/afetivo.

Apesar dos limites desse artigo, esperamos que ele possa contribuir para maiores reflexões, porparte dos leitores, a respeito da importância da Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovicie da teoria do Núcleo Central de Jean-Claude Abric para a pesquisa em educação.

LA THÉORIE DES REPRÉSENTATIONS SOCIALES CHEZ MOSCOVICIET SON IMPORTANCE POUR LA RECHERCHE EN ÉDUCATION

RÉSUMÉNous nous proposons de présenter, dans cet article, quelques présuppositions de la Théorie des représentationssociales de Serge Moscovici et son importance pour la recherche en éducation car nous entendons que laconséquence épistémologique de la posture moscovicienne présuppose l’impossibilité de comprendre l’individusans le considérer comme partie d’une société culturelle, économique, politique, enfin, historiquement située.MOTS-CLÉS: Théorie des représentations sociales. Théorie du noyau central. Recherche en éducation.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRIC, J-C. Pratiques sociales et représentations. Paris: Presses Universitaires de France, 1994a.

______. L’étude experiméntale des représentations sociales. In: JODELET, D. (Ed.). Les représentationssociales. Paris: Presses Universitaires de France, 1994b.

ALVES-MAZZOTTI, A. J. Representações sociais: desenvolvimentos atuais e aplicações à educação. In:CANDAU, V. M. (Org). Linguagem: espaços e tempo no ensinar e aprender. In: ENCONTRO NACIONALDE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO (ENDIPE), 10., Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: LP&A,2000.

FARR, R. M. Representações sociais: a teoria e sua história. In: GUARESCHI, P. A.; JOVCHELOVITCH, S.(Org.). Textos em representações sociais. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 31-59.

MAIA, L. S. L. Les representations des mathématiques et de leur enseignement: exemple des pourcentages.1997. Tese (Doutorado) – Lille: Presses Universitaires du Septetrion, Lille, 1997.

______. O que há de concreto no ensino de matemática? Revista ZETETIKÉ. Campinas: CEPMPEM –FE/Unicamp, v. 9, n. 15/16, jan./dez. 2001.

MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Tradução de Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

SÁ, C. P. Representações sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, M. J. (Org). O conhecimentodo cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1995.

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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS

O Aprender é uma publicação que pretende divulgar trabalhos sobre o processo educacionalem suas variáveis filosóficas ou psicológicas, ou contribuições de outras áreas de conhecimento, deacordo com o enfoque da publicação.

Dada a abrangência do processo educacional, o Aprender define enfoques temáticos paramelhor orientar o conteúdo dos trabalhos candidatos à publicação:

Filosofia da educação:• A aprendizagem como problema filosófico: como e em que condições se dá a transmissão,

construção ou apropriação do conhecimento;• A Filosofia e a instituição escolar;• Abordagem teórica das diferentes escolas pedagógicas;• Diferentes conceitos e concepções de educação;• Educação e Filosofia: as correntes filosóficas e sua relação com os processos educacionais;• Ética e Educação: a ética como fundamento para a formação e a aprendizagem, a ética

profissional do educador, entre outros.• O papel da Filosofia nas transformações da educação contemporânea.

Psicologia da educação:• Análise psicológica do processo ensino-aprendizagem e suas variáveis;• Desenvolvimento psicológico e educação: aspectos psicomotores, afetivos, cognitivos,

lingüísticos, sociais, culturais e familiares;• Diferentes aspectos psicológicos da educação para portadores de necessidades especiais;• Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos psicopedagógicos;• Psicanálise e educação;• Psicologia e instituição escolar: trabalho docente, cultura escolar, currículos escolares, atuação

do psicólogo na escola, entre outros;• Psicologia social e educação;• Relações humanas na escola;• Trabalho e educação.

(Somente serão aceitos trabalhos que se enquadrem em um ou mais enfoques temáticos citados acima).

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Envio dos trabalhos:Os trabalhos candidatos à publicação deverão ser enviados por e-mail, com o texto anexo,

digitado em Word for Windows, para os seguintes endereços eletrônicos:[email protected] e [email protected] ainda, por correio, contendo uma cópia impressa em papel tamanho A4, e uma cópia em

disquete, para o endereço abaixo:Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb)Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH)APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da EducaçãoEstrada do Bem Querer, Km 445083-900 – Vitória da Conquista – BahiaTanto no envio por endereço eletrônico ou pelo correio, os trabalhos deverão vir acompanhados

por uma página ou folha à parte, contendo os seguintes dados de identificação:• Título do trabalho acompanhado pelo resumo e palavras-chave em português;• Nome completo do(s) autor(es);• Graduação e nome da instituição onde se graduou;• Maior titulação e nome da instituição onde se titulou;• Instituição de origem e função que está exercendo;• Endereço eletrônico e telefone para contatos.

Formatação dos trabalhos:Os trabalhos candidatos à publicação deverão ser digitados da seguinte forma:

1. Título do trabalho em fonte Arial, tamanho 12, em negrito e caixa alta, centralizado no alto dapágina inicial.2. Dois espaços abaixo do título do trabalho, deverá vir o nome do(s) autor(es) em fonte Times NewRoman, tamanho 12, em itálico, alinhado à direita da página, e somente com as primeiras letras emmaiúsculo.3. Dois espaços abaixo da indicação do(s) autor(es) do trabalho, deverá vir o Resumo e as Palavras-Chave em português; uma outra versão do Resumo e das Palavras-Chave em inglês ou francês deverávir no final do trabalho, após as referências bibliográficas.4. Os Resumos deverão ter no mínimo 50 (cinqüenta) palavras e as palavras-chave deverão ser nomáximo 5 (cinco).5. Títulos secundários em fonte Times New Roman, tamanho 12, em negrito, somente com as primeirasletras em maiúsculo, e alinhadas à esquerda da página (não devem ser numeradas).6. A fonte do corpo do texto deverá ser Times New Roman, tamanho 12, com espaçamento de 1,5entre linhas.7. A configuração da página onde será digitado o trabalho deverá ser de 2 (dois) centímetros nasbordas superior, inferior, direita e esquerda, com papel tamanho A4 e orientação tipo retrato.8. Os trabalhos deverão ser digitados em Word for Windows.9. Figuras e fotos deverão vir no corpo do texto, em local desejado pelo autor.10. Gráficos deverão vir no final do trabalho, de maneira legível e com indicações por extenso.11. Os trabalhos deverão conter no máximo 20 (vinte) páginas, incluindo-se a referência bibliográficae o resumo em língua estrangeira.

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EQUIPE TÉCNICA

Coordenação editorialJacinto Braz David Filho

CapaJoaquim Oliveira Santos

Reformulação: Marcelo Costa Lopes

Editoração eletrônica e supervisão gráficaAna Cristina Novais Menezes

DRT-BA 1613

Revisão de linguagem (Português)Marluce de Santana Vieira

Normalização técnicaJacinto Braz David Filho

Revisão das traduções:Diógenes Cândido de Lima (Inglês)

Carlos Alberto Almeida Ferraz e Araújo (Francês)E-mail: [email protected]

Impresso na Empresa Gráfica da BahiaNa tipologia Garamond 12/16/papel offset 90g/m²

Em: agosto/2005

Page 118: A P R E N D E R - uesb.br n. 2.pdf · Prof. Abel Rebouças São José ... Profª Jussara Maria Camilo dos Santos ... o que é a filosofia? – em uma segunda de igual dificuldade: