A OUTRA FACE COM JOHN MACARTHUR.pdf

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John MacArthur A outra face T homas N elson BRASIL Descubra o lado questionador, crítico, impetuoso e revolucionário de Jesus Cristo

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  • John MacArthur

    A outra face

    T h o m a s N e l s o nB R A S I L

    Descubra o lado questionador, crtico, impetuoso e revolucionrio de Jesus Cristo

  • Ttulo original The Jesus you can't ignore

    Copyright 2008 por John MacArthur Edio original por Thomas Nelson, Inc. Todos os direitos reservados.

    Copyright da traduo Thomas Nelson Brasil, 2010.

    E d i t o r r e s p o n s v e l Julio Silveira

    S u p e r v is o E d i t o r i a l Clarisse de Athayde Costa Cintra

    P r o d u t o r a E d i t o r i a l Fernanda Silveira

    C a p a Douglas Lucas

    T r a d u o Valria Lamim Delgado Fernandes

    C O PI DESQUE Marcelo Barbo

    R e v is o Margarida Seltmann

    Magda de Oliveira Carlos Cascardo Joanna Barro Ferreira

    P r o j e t o g r f i c o e d i a g r a m a o Julio Fado

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    M4290

    MacArthur, John, 1939- A outra face: descubra o lado questionador, crtico, impetuoso e revolucionrio de Jesus

    Cristo / John MacArthur; [traduo Valria Lamim Delgado Fernandes]. - Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2010.

    Traduo de: The Jesus you cant ignore Inclui bibliografia ISBN 978-85-7860-042-6

    1. Jesus Cristo. 2. Verdade - Aspectos religiosos - Cristianismo. 3. Vida crist. 4. Apologtica. I. Ttulo.

    09-2567. CDD: 232.95CDU: 232.9

    Todos os direitos reservados Thomas Nelson Brasil Rua Nova Jerusalm, 345 - Bonsucesso Rio de Janeiro - RJ*- CEP 21402-325

    Tel.: (21) 3882-8200 - Fax: (21) 3882-8212 / 3882-8313 www.thomasnelson.com.br

  • D e d i c a t r i a

    Com gratido a Kent Stainback, um amigo bom e generoso com quem compartilho um profundo amor pela Verdade.

    Digitalizado por :Jogois2006

  • S u m r i o

    Agradecimentos 9

    Prlogo 11

    Introduo 19

    1. Quando errado ser simptico 41

    2. Duas Pscoas 65

    3. Uma entrevista meia-noite 89

    4. Este homem diz blasfmias 115

    5. Violando o sbado 141

    6. Dura pregao 169

    7 .0 pecado imperdovel 207

    8. Ai 225

    Eplogo 243

    Apndice: Josefo acerca das principais seitas judaicas 253

    Notas 257

  • A g r a d e c i m e n t o s

    M i n h a p r o f u n d a g r a t i d o , como sempre, vai para a equipe da Grace to You, que mantm e distribui o arquivo de sermes dos quais extraio todo o material para meus livros. Estudo, prego e passo para a prxima passagem a cada semana. A equipe da Grace to You grava, transcreve e edita meus sermes para transmisso, alm de catalogar tudo o que sempre digo no plpito. Um livro como este, que examina todo o ministrio pblico de Cristo, extrado de centenas de sermes que incluem trs dos evangelhos, represen- tando quarenta anos de pregaes de versculo por versculo. Sem o trabalho de tantas pessoas que se lembram do que digo e gravam minhas palavras, recobrar pensamentos e compilar o material que, inicialmente, elaborei h anos seria difcil para mim. O trabalho de escrever um livro como este do jeito que consome tempo seria totalmente impossvel para mim sem a ajuda de tantas pessoas.

    Agradeo especialmente a Arlene Hampton, que transcreve todos os meus sermes (e j faz isso h anos); a Mike Taylor, que supervisiona a parte editorial, a produo e o arquivamento de tudo o que publicamos por meio da Grace to You; a Garry Knussman, que edita e revisa o material (normalmente em prazo bem curto); e ao restante da equipe talentosa da Grace to You, na qual praticamente todos, em algum momento, j ajudaram a cuidar das gravaes, das transcries e de outros elementos que figuram em um livro deste

  • A G R A D E C I M E N T O S

    teor. Essas pessoas formam um grupo maravilhoso e fiel de colabo- radores um constante apoio para mim de vrias maneiras.

    Minha gratido especial a Phil Johnson, que compilou, reu- niu, resumiu e editou o material deste livro, transformando aquelas centenas de sermes em cerca de 250 pginas de prosa. Quando tentamos captar a paixo e a essncia de tantos sermes em to pou- cas pginas, ter um editor com a mesma opinio que a nossa ajuda muito, e Phil, definitivamente, assim.

    Agradeo tambm, como sempre, a Brian Hampton, Bryan Norman e a toda a equipe da Thomas Nelson por sua assistncia, incentivo e pacincia enquanto este livro estava em andamento. Agradeo tambm a Robert Wolgemuth e sua equipe, cuja assis- tncia e ideias tm sido um apoio indispensvel para mim em meu ministrio como escritor h vrios anos.

    Jo h n M a c A r t h u r

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  • P r l o g o

    A i d e i a d e e s c r e v e r e s t e l i v r o ocorreu-me h alguns anos, enquanto fazia pesquisas para o livro A guerra pela verdade e, ao mesmo tempo, pregava sobre o texto de Lucas. O livro que estava escrevendo era um estudo de Judas 3 (insistindo que batalhassem pela f), que uma ordem direta luta pela verdade que nos foi dada. Eu estava tratando das implicaes daquele texto levando em conta as inconstantes atitudes evanglicas sobre a verdade e a cer- teza. Tambm queria examinar a influncia do ps-modernismo, o minimalismo doutrinrio e as vrias tendncias emergentes dentro do movimento evanglico contemporneo. Assim, antes de comear a escrever, passei alguns meses lendo todas as obras literrias que pude encontrar que representassem pontos de vista ps-evanglicos.

    Um tema comum sobressaiu nos livros que eu estava lendo. De algum modo, todos sugeriam que se os cristos quiserem alcanar os incrdulos em uma cultura ps-moderna, precisam ser menos militantes, menos agressivos, menos pregadores e menos convenci- dos de nossas prprias convices. De acordo com esses autores, os cristos devem encarar outras vises de mundo com a disposio de conversar, e no de entrar em conflito. Todos os escritores, em geral, davam uma nfase excessiva suposta importncia de ser o mais agradvel possvel. Mais ou menos, pressupem que a busca ami- gvel pelo denominador comum e pela boa vontade mtua sempre

  • P r l o g o

    moralmente superior a qualquer tipo de discusso acirrada. s vezes, era como se eles no pudessem imaginar nada mais intil ou mais desprezvel do que cristos envolvendo-se em contendas polmicas sobre nossos artigos de f.

    Esses livros tambm mostravam uma forte tendncia contra qualquer tipo de certeza. Seus autores pareciam todos profunda- mente incomodados com o fato de que, no ambiente cultural atual, os incrdulos normalmente pensem que os cristos parecem arro- gantes e fechados quando declaramos que a Bblia infalivelmente verdadeira e Jesus Senhor sobre todas as coisas. Sentem-se par- ticularmente pouco vontade com a ideia de dizer que as outras religies so falsas. Pelo contrrio, afirmam, deveramos aceitar a mudana nas atitudes seculares para com a verdade e a certeza, e adaptar-nos a ela. Nosso dilogo com pessoas de crenas diferentes e vises de mundo conflitantes agora precisa ser uma troca mtua. Isso significa ouvir de um modo solidrio, sempre ser flexvel com nosso prprio ponto de vista, aceitar o mximo possvel, concordar mais do que discordar, evitar com cuidado aspectos da verdade que possam ofender e sempre procurar o denominador comum.

    Em outras palavras, uma vez que vivemos em uma cultura muito sofisticada, mas epistemolgicamente questionada, a certeza sobre as coisas espirituais automaticamente vista como arrogante ou ingnua. Deveramos, portanto, abordar diferentes perspectivas de f como pacifistas, e no como pregadores. Alguns chegaram ao ponto de sugerir que at nossos cultos de adorao coletiva deve- riam apresentar um dilogo aberto sobre vrios pontos de vista, em vez de um sermo no qual uma pessoa simplesmente expe o que a Bblia ensina. Eles tambm disseram que precisamos estar pre- parados, a princpio, para fazer concesses e arranjos como parte do processo de dilogo. Nas palavras de um autor, importante observar que dilogo no discusso; para que o dilogo seja eficaz, precisamos resistir ao desejo de interromper as pessoas e corrigir o que elas dizem. O dilogo saudvel implica entrar na realidade do

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  • A O U T R A F AC E

    outro No dilogo, voc no tem permisso de permanecer na posio em que est; voc tem de passar para a perspectiva da outra pessoa. Vrios dos livros que li sugeriram que, em vez de uma guer- ra, a dana a melhor metfora para descrever como os cristos devem interagir com outras vises de mundo.

    Vamos dar por concludo Judas 3.O livro sobre o qual eu estava pregando, no entanto, revelou

    praticamente o procedimento contrrio. A interao de Jesus com as autoridades religiosas de sua poca raramente era cordial. Do momento em que Lucas nos apresenta, pela primeira vez, aos fari- seus em Lucas 5:17 at sua meno final aos chefes dos sacerdotes e autoridades, em Lucas 24:20, toda vez que a elite religiosa de Israel aparece como um grupo na narrativa de Lucas, h conflito. Muitas vezes, o prprio Jesus quem, de caso pensado, provoca as hostilidades. Quando ele fala com os lderes religiosos ou sobre eles seja em pblico ou em particular , normalmente para conden-los como tolos e hipcritas (Lucas 11:40; 12:1; 13:15; 18:10-14). Quando sabe que eles esto observando para acus-lo de violar suas restries artificiais acerca do sbado ou os sistemas de lavagem cerimonial criados por eles mesmos, desafia de prop- sito suas regras (Lucas 6:7-11; 11:37-44; 14:1-6). Em certa ocasio, quando foi expressamente informado de que suas acusaes contra os fariseus ofendiam os peritos na lei (os principais estudiosos do Antigo Testamento e os mais importantes acadmicos daquela po- ca), Jesus imediatamente voltou-se para os peritos na lei e rasgou o verbo contra eles tambm (Lucas 11:45-54).

    E v i t e d i s c u s s e s t o l a s e i g n o r a n t e s

    Agora precisamos manter isso na perspectiva correta. No estou sugerindo que toda divergncia seja motivo para uma discusso aberta, nem mesmo para palavras speras. Longe disso. Muitas

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  • P r l o g o

    diferenas de opinio so to insignificantes que de nada adianta- ria procurar briga por causa delas. Conflitos meramente pessoais, debates sobre coisas misteriosas ou vagas e discusses semnticas normalmente entram nessa categoria (2 Timteo 2:14,23; 1 Corn- tios 1:10). Nem todas as questes sobre as quais poderamos ter opinies firmes e discordar so de suma importncia.

    Alm disso, ningum que seja mental e espiritualmente sau- dvel gosta de entrar em conflito s por entrar. Ningum que pense de um modo bblico gostaria de brigar ou se daria conscientemente ao gosto de discutir assuntos controvertidos (Romanos 14:1). A maioria de ns conhece pessoas que so totalmente propensas a bri- gas ou incorrigivelmente inclinadas a discusses sobre quase tudo. De modo algum Jesus era assim. E as Escrituras no nos do licena para sermos dessa forma. Divergncias mesquinhas ou insignificantes normalmente devem ser deixadas de lado de um modo gentil ou resolvidas por meio de um dilogo amigvel. Qualquer pessoa que esteja preparada para procurar briga por causa de toda diferena sem importncia espiritualmente imatura, pecaminosamente hos- til ou pior. As Escrituras incluem esta ordem clara: Faam todo o possvel para viver em paz com todos (Romanos 12:18).

    Mas, s vezes especialmente quando uma verdade bblica de vital importncia est sendo atacada, quando a alma das pessoas est em jogo ou (sobretudo) quando a mensagem do evangelho est sendo deturpada por falsos mestres , simplesmente errado dei- xar que uma opinio contrria seja exposta sem nenhuma contes- tao ou correo. Uma das piores coisas que um cristo pode fazer demonstrar um tipo de respeito acadmico fingido ou de cordia- lidade artificial a quem incita a um erro srio, o qual destri a alma (Salmo 129:4-8; 1 Corintios 16:22). A ideia de que uma conversa agradvel sempre superior ao conflito aberto muito contrria ao exemplo que o prprio Cristo nos deu.

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  • A O U T R A FACE

    C o m b a t a o b o m c o m b a t e

    Nem sempre pode ser fcil saber se uma divergncia meramente insignificante ou realmente importante, mas uma aplicao cui- dadosa e atenciosa da sabedoria bblica normalmente esclarecer quaisquer dvidas que possamos ter sobre a importncia relativa de qualquer verdade admitida. As Escrituras deixam claro, por exem- pio, que devemos adotar a postura de tolerncia zero com algum que adultera ou altera a mensagem do evangelho (Glatas 1:8,9). E aquele que nega a deidade de Cristo ou se afasta essencialmente de seu ensino no deve ser aceito em nossa comunho nem receber algum tipo de bno (2 Joo 7-11).

    O princpio claro: quanto mais qualquer doutrina admitida se aproxima da essncia do evangelho, do mago da s cristologia ou dos ensinamentos fundamentais de Cristo, com mais diligncia devemos evitar as distores da verdade e com mais agressivida- de precisamos combater o erro e defender a s doutrina.

    Para fazer a distino entre verdades espirituais realmente essenciais e meramente perifricas, preciso muito cuidado e discernimento. A distino nem sempre imediatamente bvia. Mas no to difcil traar essa linha como algumas pessoas, hoje, alegam. Mesmo que a linha parea um pouco vaga aqui e ali, no h motivo para eliminar completamente a distino, como alguns ps-evanglicos parecem estar decididos a fazer.

    Muitos, atualmente, defendem uma abordagem ultraminima- lista, reduzindo a lista de doutrinas essenciais quilo que tratado pelo credo apostlico (ou, em alguns casos, uma lista ainda menor de princpios gerais mais amplos). Isso realmente no promove har- monia; simplesmente turva toda a doutrina. Afinal, muitos hereges extremos, de unitaristas, passando por socinianos, a testemunhas de Jeov, formalmente aceitaro o credo apostlico. O problema que eles no concordam com o significado do credo. At os segmentos maiores da f crist catlicos, cristos ortodoxos e protestantes

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  • P r l o g o

    no concordam entre si sobre o significado de expresses funda- mentais no credo. Ele intil como parmetro para se avaliar quais verdades so primrias e quais so secundrias.

    Mas as Escrituras sugerem que o evangelho, no um credo do sculo III, a melhor forma de determinar os verdadeiros princ- pios essenciais do Cristianismo. Se voc, de fato, entender e aceitar o evangelho, automaticamente ter vises sadias sobre a justificao pela f, a expiao substitutiva, a deidade de Cristo, a historicidade da ressurreio, a veracidade e a autoridade das Escrituras, e todas as outras doutrinas que so primeiramente importantes (1 Corn- tios 15:3). Por outro lado, se voc se desviar ainda que de modo sutil quanto a qualquer princpio vital da verdade do evangelho, toda a sua viso de mundo ser adversamente influenciada. Inter- prete-o mal ou adapte-o para que seja conveniente a determinadas preferncias da subcultura e, inevitavelmente, ter uma religio que consiste em obras e um sistema que gera uma falsa superioridade.

    Era exatamente nisso que consistia o conflito de Jesus com os fariseus. Eles representavam um estilo de religio e um sistema de crenas que contradiziam diretamente a essncia do evangelho que ele proclamava. Jesus oferecia perdo e justificao imediata aos pecadores que cressem. Os lderes religiosos de Israel criavam fortes sistemas de obras e cerimnias que, na realidade, transformavam a prpria justificao em uma obra humana. Nas palavras do apstolo Paulo, ignorando a justia que vem de Deus e procurando esta- belecer a sua prpria, [eles] no se submeteram justia de Deus (Romanos 10:3).

    Simplesmente no havia como Cristo evitar o conflito. Assim, ele aproveitou a situao ao mximo. Usou a falsa religio deles como um contraste para a verdade que ensinava. Deixou que a hipocrisia deles servisse como pano de fundo contra o qual a joia de sua santidade brilhava mais ainda. E ps sua graa contra o falso moralismo deles de um modo que foi impossvel no ver a distino entre justificao pela f e religio baseada em obras.

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  • A O U T R A FACE

    H O R A DE N O A C E IT A R

    Essa era a viso coerente de Jesus tambm. Em resumo, ele nun- ca usou a abordagem pacifista com herticos nem com hipcritas ignorantes. Nunca fez o tipo de apelo particular gentil que os evan- glicos contemporneos normalmente insistem ser necessrio antes de advertir os outros sobre os perigos do engano de um falso mestre. Mesmo quando lidava com as figuras religiosas mais respeitadas da regio, ele enfrentava os enganos delas de um modo ousado e dire- to, s vezes at expondo-as ao ridculo. Ele no era simptico com elas de acordo com nenhum padro ps-moderno. No lhes esten- dia a falsa cortesia acadmica. No as convidava para uma conversa particular sobre seus diferentes pontos de vista. No exprimia com cuidado suas crticas em termos vagos e totalmente impessoais para evitar que os sentimentos dos outros fossem feridos. No fazia nada para amenizar o carter repreensivo de suas crticas nem minimi- zar o constrangimento pblico dos fariseus. Deixava o mais claro e notrio possvel que desaprovava a religio deles toda vez que os mencionava. Parecia totalmente insensvel frustrao deles diante de sua sinceridade. Sabendo que estavam procurando razes para serem insultados, Jesus muitas vezes fazia e dizia as mesmas coisas que sabia que os deixariam mais ofendidos.

    Sem dvida, significativo que a abordagem que Jesus usava para lidar com o engano religioso nitidamente diferente dos mto- dos preferidos pela maioria na igreja, hoje. muito difcil imaginar o tratamento dado por Jesus aos fariseus recebendo um comentrio positivo nas pginas da revista Christianity Today. E ser que algum realmente acredita que seu estilo polmico ganharia a admirao do acadmico evanglico comum?

    O modo como Jesus tratava seus adversrios , na verdade, uma repreenso sria igreja de nossa gerao. Precisamos dar uma ateno mais cuidadosa ao modo como ele lidava com os falsos mestres, ao que pensava sobre o engano religioso, ao modo como

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  • P r l o g o

    defendia a verdade, a quern elogiava e a quern condenava e a como ele, na verdade, encaixava-se pouco no esteretipo meigo que, hoje, to frequentemente lhe impomos.

    Alm disso, tambm deveramos ter a atitude de Jesus para com a falsa doutrina. No podemos agradar aos homens e ser ser- vos de Cristo ao mesmo tempo.

    essa a tese deste livro. Vamos passar cronologicamente pelas histrias do evangelho que contam como Jesus lidou com a elite religiosa de Israel. Observaremos como ele falou com indivduos, como respondeu oposio organizada, como pregou s multides e o que ensinou aos seus prprios discpulos. A lio prtica sobre como devemos nos comportar diante da falsa religio consisten- te do comeo ao fim: as deturpaes da verdade bblica vital no devem ser subestimadas, e quem apresenta evangelhos diferentes no deve ser tratado com generosidade pelo povo de Deus. Pelo contrrio, devemos usar a mesma abordagem para a falsa doutrina usada por Jesus, refutando o erro, opondo-nos queles que o propa- gam e lutando com afinco em defesa da f.

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  • I n t r o d u o

    a c a d m i c o a d j . 1. a b s t r a t o , esp ecu la tiv o o u fu n d a d o em c o n - jecturas c o m sig n ifica d o prtico m u ito p eq u en o . 2 . q u e p erten ce

    a e stu d io so s e in stitu i es d e e stu d o s su p eriores e n o a le ig o s ou

    crianas. 3 . d e in teresse c o m o u m a cu r io sid a d e in te lectu a l, m as n o

    p articu larm en te til em a p licaes reais. 4 . q u e p rovoca cu rio sid a -

    d e e anlise , em v ez d e p a ixo o u d evoo . 5 . p ed an te , casu stico ; b o m para fazer u m a ex ib io d e co n h e c im e n to , m as, p or ou tro lado,

    trivial. 6 . q u e p erten ce quele ca m p o da teoria esco l stica e in vesti-

    gao in te lectu a l em q u e a certeza sem p re in ad eq u ad a . 7 . p e lo que

    n o vale a p en a estar agitado.

    A verdade espiritual no acadmica segundo nenhuma das definies anteriores. Aquilo em que voc acredita a respeito de Deus o elemento mais importante de toda a sua viso de mundo.

    Observe por este ngulo: de todas as coisas que voc poderia estudar ou nas quais poderia refletir, nada poderia ser maior do que Deus. Por isso, sua viso sobre ele automaticamente tem ramificaes de maior projeo do que qualquer outra coisa em seu sistema de crenas. O que voc pensa sobre Deus ir automaticamente dar cor ao modo como pensa em todas as demais coisas especialmente ao seu modo de priorizar valores; seu modo de decidir o que certo e o que errado, e ao que voc pensa sobre seu lugar no universo. Isso, por sua vez, sem dvida, determinar seu modo de agir.

  • I n t r o d u o

    O mesmo princpio to verdadeiro para o ateu extremo quanto para o cristo mais fiel em Cristo. Os efeitos prticos e ideo- lgicos do ceticismo so to convincentes quanto os da devoo sincera s que no sentido oposto. Quem rejeita Deus nega o ni- co fundamento razovel para a moralidade, a responsabilidade, a verdadeira espiritualidade e a distino necessria entre bem e mal. Assim, a vida particular do ateu, inevitavelmente, se tornar uma demonstrao realista dos males da incredulidade. De certo modo, mesmo quando alguns ateus procuram manter uma aparncia pblica de virtude e respeitabilidade assim como tambm quan- do fazem julgamentos morais sobre os outros , so contradies ambulantes. Que virtude poderia haver em um universo casual sem nenhum Legislador e nenhum Juiz?

    Pessoas que professam a f no Todo-poderoso, mas se negam a pensar seriamente nele, tambm so ilustraes vivas desse mes- mo princpio. A hipocrisia do superficialmente religioso tem um impacto prtico e ideolgico com consequncias to profundas quanto a f do cristo ou a descrena do ateu. Na verdade, a hipo- crisia pode ter implicaes ainda mais desastrosas do que o atesmo puro e simples, por causa de seu carter enganoso.

    o cmulo da irracionalidade e da arrogncia invocar Cristo com os lbios e, ao mesmo tempo, afront-lo completamente com a prpria vida. Contudo, exatamente assim que as multides vivem (Lucas 6:46). Essas pessoas so exemplos ainda mais descabidos de autocontradio do que o ateu que imagina poder negar a Fonte de tudo o que bom e, no obstante, de algum modo, ele mesmo ser bom. Mas o hipcrita no somente mais irracional; ele tambm mais desprezvel do que o completo ateu, porque est, na verdade, prejudicando terrivelmente a verdade enquanto finge acreditar nela. Nada mais diablico. Satans mestre em se disfarar para parecer bom, e no mau. Ele se disfara de anjo de luz. Portanto, no surpresa que os seus servos finjam que so servos da justia. O fim deles ser o que as suas aes merecem (2 Corintios 11:14,15).

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  • A O U T R A F ACE

    No por acaso, ento, que as palavras mais duras de Jesus estivessem reservadas para a hipocrisia religiosa institucionalizada. Ele fomentou uma controvrsia pblica muito agressiva contra os principais hipcritas de sua poca. Esse conflito comeou assim que ele abraou o ministrio pblico e continuou implacavelmente at o dia em que foi crucificado. Na verdade, foi a principal razo por que eles conspiraram para crucific-lo. Assim, a campanha de Jesus contra a hipocrisia enfatizada de forma notvel, se no dominante, em todos os quatro evangelhos. o tema que estaremos examinan- do neste livro.

    Mas nosso ponto de partida a verdade que deveria ser bvia: o fato que realmente importa se acreditamos que a Bblia verda- deira ou no; e, de igual modo, importa se nossa f sria ou no.

    O Q U E A H IS T R IA E AS ES C R ITU R A S D IZ EM SOBRE A IM P O R T N C IA DE BOAS C REN AS?

    Para qualquer pessoa sria, a importncia de se pensar correta e seriamente em Deus bvia. Sem dvida, nenhuma mente inteli- gente nas geraes passadas jamais teria sugerido que aquilo em que acreditamos sobre Deus, fundamentalmente, no tem muita importncia. Examine a histria da filosofia, e um dos temas que sobressair de forma mais notvel esse. Os filsofos sempre tive- ram obsesso por Deus. Se admitissem, questionassem, negassem ou procurassem argumentos racionais para provar ou refutar a existncia de Deus, eles, universalmente, entendiam que aquilo em que uma pessoa acredita sobre Deus fundamental para todas as demais coisas.

    Sem dvida, um dos temas centrais da Bblia a importncia de se crer na verdade sobre Deus. Esse no um tema que a Bblia simplesmente deixa implcito ou trata superficialmente. Afirmaes e mais afirmaes nas Escrituras enfaticamente declaram que nossa

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  • I n t r o d u o

    viso de Deus a questo espiritual mais fundamental de todas: Sem f impossvel agradar a Deus, pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam (Hebreus 11:6). Quem no cr j est condenado, por no crer no nome do Filho Unignito de Deus (Joo 3:18). Ns viemos de Deus, e todo aquele que conhece a Deus nos ouve; mas quem no vem de Deus no nos ouve. Dessa forma reconhecemos o Esprito da verdade e o esprito do erro (1 Joo 4:6).

    Em termos bblicos, a diferena entre f verdadeira e falsa crena (ou descrena) a diferena entre vida e morte, cu e infer- no. Meus irmos, se algum de vocs se desviar da verdade e algum o trouxer de volta, lembrem-se disto: Quem converte um pecador do erro do seu caminho, salvar a vida dessa pessoa e far que mui- tssimos pecados sejam perdoados (Tiago 5:19,20; cf. 2 Timteo 2:15-26). Paulo disse aos tessalonicenses que agradecia a Deus por eles, porque desde o princpio Deus os escolheu para serem salvos mediante a obra santificadora do Esprito e a f na verdade. Ele os chamou para isso por meio de nosso evangelho, a fim de tomarem posse da glria de nosso Senhor Jesus Cristo (2 Tessalonicenses 2:13,14, nfase do autor). E o prprio Jesus disse: Se vocs per- manecerem firmes na minha palavra, verdadeiramente sero meus discpulos. E conhecero a verdade, e a verdade os libertar (Joo 8:31,32). O apstolo Joo escreveu: Vocs tm uma uno que pro- cede do Santo, e todos vocs tm conhecimento. No lhes escrevo porque no conhecem a verdade, mas porque vocs a conhecem e porque nenhuma mentira procede da verdade (1 Joo 2:20,21).

    At pouco tempo nenhum cristo que declarasse crer na Bblia teria a menor dvida sobre a importncia de uma viso correta de Deus. Mas, nestes dias, parece que a igreja visvel est dominada por pessoas que simplesmente no se interessam em fazer qualquer dis- tino cuidadosa entre fato e mentira, s doutrina e heresia, verdade bblica e opinio meramente humana. At algumas das principais

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  • A O U T R A F ACE

    vozes entre os evanglicos parecem decididas a subestimar o valor da verdade objetiva.

    Sem dvida, exatamente esse o caminho que a maior parte do mundo intelectual ocidental tem tomado nestes tempos ps- modernos. Certeza e convico esto completamente fora de moda especialmente na esfera das coisas espirituais. O dogmatismo a nova heresia, e todas as velhas heresias agora so, portanto, bem aceitas novamente na fogueira evanglica. A liberdade acadmica estende-se a todas elas (contanto que no sejam consideradas social- mente inaceitveis ou politicamente incorretas pelos que lanam modas na sociedade secular). A palavra f aparece no sentido de uma abordagem terica para coisas espirituais na qual toda crena religiosa colocada ao lado de opinies contrrias, admirada, anali- sada e apreciada, mas no, de fato, tida como uma crena com algo semelhante a uma convico sria.

    Nesta atmosfera ps-moderna em que nenhuma verdade tida como bvia, nada mais dissonante nem parece mais estriden- te do que a pessoa que genuinamente acredita que Deus falou, que conseguiu deixar claro sua Palavra e que exigir de ns explicaes quanto a se cremos nele ou no. A epistemologa ps-moderna afirma, em vez disso, que nada , em ltima anlise, claro ou incon- testvel muito menos as questes espirituais, morais ou bblicas.

    Em q u e d i r e o o s e v a n g l i c o sDE H O JE ESTO SEG U IN D O ?

    O movimento evanglico era conhecido por duas convices teol- gicas inegociveis. Uma era o compromisso com a exatido absoluta e a autoridade das Escrituras como a Palavra revelada de Deus, e no como fruto da imaginao, experincia, intuio ou ingenuida- de humana (2 Pedro 1:21). A outra era uma forte crena de que o evangelho apresenta o nico meio possvel de salvao do pecado e do juzo pela graa por meio da f no Senhor Jesus Cristo.

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  • I n t r o d u o

    Nos ltimos anos, no entanto, os evanglicos vm assimilan- do espontaneamente o espirito dos tempos. Multides incluindo muitos que atuam como lderes espirituais discretamente aban- donaram essas duas convices (ou simplesmente deixaram de falar e pensar nelas). O evangelicalismo agora deixou de ser algo semelhante a um movimento coerente.1 Em vez disso, tornou-se uma monstruosidade amorfa em que praticamente toda ideia e toda opinio exigem ser levadas mesa para discusso, aceitas educada- mente por todos e consideradas com igual respeito e estima.

    Consequentemente, parece que os evanglicos atuais so inca- pazes de apontar a causa de algo que os torna realmente diferentes. Quando tentam definir sua prpria posio ou explicar para os no evanglicos quem so, eles s vezes confessam, sem perceber, que a conformidade com este mundo e seu modo de pensar tornou-se aquilo que os define.2

    Isso no significa sugerir que os evanglicos contemporneos conseguiram enviar algo como uma mensagem clara, coerente ou uniforme. As declaraes formais da posio evanglica tornaram- se to vagas e desprovidas de verdadeira convico que ningum parece saber ao certo se elas realmente significam mais alguma coisa. Parece que valores sofisticados como diversidade, tolerncia, coleguismo, amabilidade e liberdade acadmica ofuscaram a ver- dade bblica na hierarquia evanglica das virtudes. Os evanglicos mundanos de hoje so claramente arrastados pela forte mar da opinio ps-moderna popular.

    Em maio de 2008, foi publicado com grande alarde um novo Manifesto Evanglico para a imprensa secular e religiosa. Ele foi redigido e assinado por um grupo dspar de estudiosos evanglicos e ps-evanglicos, os quais se distinguiram por vrios meios. Alguns so conhecidos principalmente como defensores de praticamente toda causa poltica de esquerda; outros so mais conhecidos por seus textos de apologia filosfica em defesa de uma viso de mundo

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    mais conservadora. Alguns eram evanglicos somente no sentido de terem tentado casar a doutrina neo-ortodoxa com o novo estilo evanglico.

    O Manifesto de 2008 caiu como uma bomba e foi muito censu- rado por crticos na mdia (e merecidamente) por causa de sua falta de clareza do comeo ao fim especialmente por no expressar seu prprio objetivo em uma linguagem clara. Contudo, a nica palavra que parecia ser a chave do documento era civilidade. Esse termo foi usado diversas vezes na coletiva imprensa em que o Manifesto foi apresentado. Considerando o modo como aqueles que redigiram e assinaram o documento usavam o termo, a suposio implcita era, simplesmente, de que a civilidade nos obriga a discordar de forma agradvel e evitar a todo custo qualquer aluso hosti- lidade ou discusso sria. Na verdade, parece justo sugerir que um dos principais objetivos do documento se no a ideia geral era distanciar o movimento evanglico de hoje de qualquer sinal de militncia ou fundamentalismo no modo como interagimos com ideias no evanglicas ou anticrists.3

    Parece que o zelo pelas doutrinas essenciais do Cristianismo bblico tornou-se praticamente to inaceitvel entre evanglicos e ps-evanglicos como sempre foi no mundo de um modo geral. As novas regras exigem um dilogo permanentemente amigvel, benesse ideolgica, transparncia imparcial e paz ecumnica.4 Em particular, quando a discusso se volta para a doutrina, o tpico evanglico de hoje invariavelmente age como se um dcil dilogo fosse moralmente prefervel a qualquer tipo de conflito. Afinal, nun- ca devemos ser to veementes com relao ao que cremos a ponto de expressar algum desdm srio por ideias alternativas.

    Nesse cenrio, parece que o dilogo evanglico sobre doutrina tornou-se uma razo principalmente despropositada para conver- sar s por conversar. O objetivo no chegar a algum entendimento comum ou firme convico sobre o que verdadeiro e o que falso.

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    Pelo contrrio, parece que a ideia geral juntar discusso o maior nmero possvel de opinies e, ento, prolongar a cordialidade generosa e despreocupada da discusso por tempo indefinido.

    C o m o , e n t o , d e v e m o s d e f e n d e r a f ?

    Recapitulando, aqui esto as novas regras do engajamento ps- evanglico: todas as nossas diferenas sobre questes bblicas e teolgicas devem permanecer despreocupadamente simpticas e complacentemente isentas de qualquer tipo de paixo em uma troca de ideias e opinies em um estilo puramente acadmico. A verdade no nosso principal objetivo. (Como isso seria ingnuo!) Nem precisamos procurar consenso, muito menos ortodoxia bblica. Afinal, a diversidade uma das poucas virtudes que a cultura ps- moderna conseguiu, e devemos respeitar isso. As mesmas opinies e confisses formais de f so vistas pela sociedade secular como instrumentos de tirania e represso. Elas geram certeza, julgamen- tos morais e denncias de heresia, e essas coisas so inoportunas em nossa cultura. No final do dia, ento, se pudermos nos parabenizar por nossa prpria civilidade, devemos estar satisfeitos com isso.

    Entenda o ponto fundamental: no h problema algum em discordar. (Afinal, contradio, dissenso, debates sobre palavras e, especialmente, o desconstrucionismo so os principais instrumentos da dialtica ps-moderna.) at aceitvel expressar suas diferenas de opinio desde que voc intercale cada crtica com comentrios positivos sobre aquilo que esteja criticando. Mas ningum, de fato, tem a obrigao de levar a srio suas prprias convices teolgicas a ponto de considerar qualquer coisa como verdade absoluta.

    Sobretudo, no devemos alimentar nenhuma objeo sria s opinies religiosas de outra pessoa. E por falar em quebrar grosseiramente a etiqueta, somente o tipo mais ignorante de filisteu anti-intelectual ousaria levantar a voz nestes tempos ps-

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    evanglicos e sugerir que alguma coisa que outra pessoa diz sobre Deus heresia.

    Assim, parece que o nico teste da autenticidade de algum no novo cenrio evanglico ver se essa pessoa consegue aceitar as velhas heterodoxias e, no obstante, manter um tom inquestiona- velmente agradvel sem marginalizar, desconsiderar ou repudiar totalmente a opinio de outra pessoa. Esta postura considerada o cmulo da humildade segundo o novo padro ps-moderno; enquanto a discusso sria de qualquer ponto de vista particular automaticamente ignorada como sendo arrogante, intolerante e at cruel principalmente se o ponto de vista pelo qual voc luta envolver principios evanglicos histricos.

    Eu disse lutar? Nenhuma ideia mais politicamente incor- reta entre o novo estilo de evanglicos de hoje do que a velha noo fundamentalista de que vale a pena lutar pela verdade incluindo as proposies essenciais da doutrina crist. Na verdade, muitos acreditam que as discusses sobre crenas religiosas so o mais in- til e arrogante de todos os conflitos. Pode ser verdade t verdade em casos em que a nica coisa que est em jogo so opinies huma- nas. Mas nas passagens em que a Palavra de Deus fala claramente, temos o dever de obedecer verdade que ele nos deu, defend-la e proclam-la, e devemos fazer isso com uma autoridade que reflete nossa convico de que Deus falou com clareza e determinao. Isso especialmente essencial em contextos nos quais as doutrinas fundamentais do Cristianismo bblico esto sendo atacadas.

    Incidentalmente, as verdades centrais das Escrituras sempre esto sendo atacadas. Elas claramente ensinam que o principal campo de batalha onde Satans trava sua luta csmica contra Deus ideolgico. Em outras palavras, a guerra espiritual na qual todo cristo est engajado , em primeiro lugar, um conflito entre verdade e erro, no simplesmente uma competio entre boas e ms obras. O principal objetivo da estratgia de Satans confun-

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    dir, negar e corromper a verdade com a maior falcia possvel, e isso significa que a batalha pela verdade muito sria. Ser capaz de distinguir entre s doutrina e erro deveria ser uma das maiores prioridades para todo cristo assim como deveria ser defender a verdade contra falsos ensinamentos.

    No entanto, tome esta deciso hoje, e voc ser repreendido por uma cacofonia de vozes dizendo que incoerente e precisa fechar a boca. A metfora da guerra simplesmente no funciona em uma cultura ps-moderna, eles insistem. As epistemologas ps-modernas comeam e terminam com a pressuposio de que qualquer questo sobre o que verdadeiro ou falso simplesmen- te acadmica. Nossas diferenas so, em ltima anlise, triviais. Somente o tom de nossa discusso no trivial. Toda aluso mili- tncia inadequada nestes tempos sofisticados. Afinal, todos somos criaturas cadas e limitadas em nossa capacidade de compreender as grandes verdades sobre Deus, por isso nossa resposta rspida s pessoas que tm vises diferentes nunca justificada.

    O q u e Je s u s f a r i a ?

    Parece que at algumas das mentes mais brilhantes no movimento evanglico se renderam ideia de que a teologia acadmica e, por- tanto, a nica maneira adequada de avaliar as opinies teolgicas dos outros com um desprendimento escolstico indiferente. Eles concordam ou, pelo menos, agem como se concordassem com aqueles que dizem que sempre melhor ter uma conversa amigvel do que um conflito por causa de diferenas doutrinrias.

    Um erudito escreveu um ensaio nesse sentido e um annimo enviou-me uma cpia do texto. O remetente incluiu um bilhete sem assinar dizendo que estava decepcionado e completamente pertur- bado com o ttulo de meu livro A guerra pela verdade. Ele mesmo, na verdade, no havia lido o livro (e nem tinha a inteno de ler)

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  • A O U T R A F ACE

    pois disse que j poderia dizer o quanto sou irremediavelmente intolerante. Mas queria expressar sua indignao e descrena de que um ministro de minha categoria, nesses tempos esclarecidos, comparava crenas religiosas com verdade e ainda tratava a bus- ca pela verdade como uma guerra. Ele tinha certeza de que Jesus jamais teria uma postura militante como essa.

    O ensaio que inclua o bilhete foi escrito por outra pessoa, e esse autor, de igual modo, expressava grandes dvidas sobre a uti- lidade da metfora de guerra no Cristianismo. O que Jesus faria?, o escritor queria saber. Bondade e pacifismo, em vez de combate e contenda, no eram caractersticas do prprio ministrio de Jesus? Ele no pediu aos seus verdadeiros seguidores que buscassem o amor e a unidade, e no realizassem cruzadas? Ele no disse: Bem-aventurados os pacificadores? Todo o esprito de militncia (especialmente a agresso ideolgica contra as crenas de outros) no parece completamente inoportuno nesta era ps-moderna? Bom senso e sensibilidade cultural no sugerem que devemos pr totalmente de lado o vocabulrio de combate e nos concentrar prin- cipalmente no tema de reconciliao?

    O autor desse ensaio esforou-se para subestimar a importn- cia da linguagem militante empregada em diversas passagens por todo o Novo Testamento. Ele parecia imaginar que, se os evang- licos de hoje fossem encorajados a pensar na luta entre verdade e erro como algo mais srio do que uma corrida de sacos no gramado em um acampamento de vero, a igreja logo seria inundada de jihadistas cristos usando bandoleiras, agitando armas verdadeiras e iniciando um ataque literalmente encarniado contra mestres de falsas religies.

    Sem dvida, nenhum cristo digno de confiana, que esteja comprometido com as Escrituras como nossa autoridade suprema, props literalmente uma guerra santa neste mundo. A

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    guerra espiritual no tem nada a ver com isso e as Escrituras so claras nesse sentido: A nossa luta no contra seres hum anos (Efsios 6:12). E as armas com as quais lutamos no so huma- nas (2 Corintios 10:4).

    No obstante, a mente ps-moderna s vezes parece incapaz de fazer qualquer distino significativa entre o combate fsico com armas destinadas a matar pessoas e o combate espiritual com a ver- dade destinado a salv-las da morte espiritual.

    t

    A CNN, por exemplo, levou ao ar uma srie especial em 2007 intitulada Guerreiros de Deus, com um segmento principal com o subttulo Os guerreiros cristos de Deus. O programa estava longe de ser objetivo e o segmento que se concentrou no Cristianismo parecia ter pouco sentido a no ser tentar sugerir que h um tipo de paridade moral entre jihadistas muulmanos, que explodem pessoas inocentes e cristos que creem que Jesus Cristo o ni- co e verdadeiro Salvador do mundo. A batalha deles para salvar o mundo causou raiva, diviso e medo, enfatizou solenemente a reprter Christiane Amanpour em sua introduo ao segmento sobre evanglicos.5 A srie colocou fundamentalistas cristos na mesma categoria dos jihadistas islmicos. Naturalmente, isso gerou uma discusso animada em vrios fruns online. Alguns cristos que fizeram comentrios sobre o especial da CNN pareceram per- turbadamente ambivalentes na questo que discutia se os cristos merecem ou no fazer parte dos grupos de terroristas e homens- bomba. Os cristos, na verdade, ganharam fama por serem muito polmicos com relao s suas crenas? hora de repudiarmos toda aluso luta e conflito, eliminar a linguagem de guerra de nosso lxico, deixar de confrontar opinies mundanas e ideias religiosas antibblicas, e buscar paz e harmonia, em vez de controvrsia, com outras vises de mundo? Vrios deles tambm consideraram a per- gunta: que Jesus faria? Uma pessoa escreveu:

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    Usamos e enfatizamos excessivamente a metfora de guerra no Cristianismo. uma metfora desgastada que traz tona muitas imagens do mundo moderno quando vivemos em um mundo ps-cristo e ps-moderno. No tenho certeza de que o Prncipe da Paz teria sido um entusiasta dos Sol- dados Cristos ou mesmo cantado com eles.6

    Em outro frum da internet, algumas semanas depois, algum escreveu:

    No acho que Jesus jamais realizou uma guerra pela verdade. Ele no saiu por a defendendo com iniciativa sua teologia e opondo-se de todos os outros. No estou dizendo que ele no reconhecia que as outras religies eram falsas. Mas no acho que teria comeado uma Guerra pela Verdade na terra. Jesus viveu ativamente sua verdade na prtica (uma vez que ele mesmo era a verdade) e teve conversas intensas sobre a verdade baseando-se apenas na necessidade de faz-lo. E nem eram cartas enviadas a todos os lugares do pas eram conversas particulares com os prprios homens. As pessoas eram atradas verdade que Jesus vivia na prtica, no por- que eram vencidas em uma batalha de doutrinas.7

    Todas essas opinies esto erradas, e perigosamente erradas. Mas antes de analisarmos o erro, reconheamos que a resposta cor- reta no correr para o outro extremo. Os cristos no devem ser beligerantes. O amor ao conflito no menos pecaminoso que a terrvel covardia.

    A guerra espiritual necessria por causa do pecado e da mal- dio no porque haja algo inerentemente glorioso ou virtuoso no combate. Zelo sem conhecimento algo espiritualmente fatal (Romanos 10:2) e at a paixo mais sincera pela verdade precisa

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    sempre ser moderada com mansido e graa (Efsios 4:29; Colos- senses 4:6). O entusiasmo impetuoso para pedir que desa fogo do cu contra blasfemadores e hereges est longe do esprito de Cristo (Lucas 9:54,55).

    Reconhecer que a igreja, muitas vezes, precisa lutar pela verdade no sugerir que o evangelho nossa nica mensagem para um mundo perdido , de algum modo, uma declarao de guerra. Sem dvida alguma no ; trata-se de um manifesto de paz e um pedido de reconciliao com Deus (2 Corintios 5:18-20). Por outro lado, aqueles que no se reconciliam com Deus esto sempre em guerra com ele, e o evangelho uma mensagem sobre a nica maneira de acabar com essa guerra. Assim, ironicamente, a guerra para defender a verdade a nica esperana de paz para os inimigos de Deus.

    Concordo que normalmente muito melhor ser gentil do que spero. O pacifismo uma qualidade bendita (Mateus 5:9); a agres- sividade uma falha de carter que acaba incapacitante (Tito 1:7). A pacincia , na verdade, uma maravilhosa virtude, mesmo diante da descrena e da perseguio (Lucas 21:19). Sempre devemos ouvir bastante antes de reagirmos (Provrbios 18:13). Uma palavra mansa normalmente pode fazer muito mais bem do que uma reao seca, porque a resposta calma desvia a fria, mas a palavra rspida des- perta a ira (Provrbios 15:1) e a pessoa que gosta de provocar discusso tola (v. 18).

    Alm disso, o fruto do Esprito uma lista de coisas contr- rias a uma atitude litigiosa, agressiva e inclinada guerra: amor, alegria, paz, pacincia, amabilidade, bondade, fidelidade, mansido e domnio prprio (Glatas 5:22,23). Assim, nossa primeira atitude quando encontramos algum no erro deve ser o mesmo tipo de man- sido prescrito em Glatas 6:1 para qualquer pessoa em algum tipo de pecado: Se algum for surpreendido em algum pecado, vocs, que so espirituais, devero restaur-lo com mansido. Cuide-se, porm, cada um para que tambm no seja tentado. Compete a

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  • A O U T R A F ACE

    todo cristo o seguinte: No caluniem ningum, sejam pacficos, amveis e mostrem sempre verdadeira mansido para com todos os homens. Houve tempo em que ns tambm ramos insensatos e desobedientes, vivamos enganados e escravizados por toda esp- cie de paixes e prazeres. Vivamos na maldade e na inveja, sendo detestveis e odiando uns aos outros (Tito 3:2,3). E essa atitude um dever particular daqueles que so lderes espirituais. Pessoas dadas a brigas no esto qualificadas para servir como presbteros na igreja (1 Timteo 3:3), pois ao servo do Senhor no convm brigar mas, sim, ser amvel para com todos, apto para ensinar, paciente. Deve corrigir com mansido os que se lhe opem, na esperana de que Deus lhes conceda o arrependimento, levando-os ao conheci- mento da verdade (2 Timteo 2:24,25).

    Todos esses princpios devem, de fato, dominar nosso modo de proceder com os outros e nosso modo de lidar com diferenas. E se esses fossem os nicos versculos nas Escrituras que nos dis- sessem como lidar com o erro, talvez tivssemos justificativa para pensar que esses princpios so absolutos, inviolveis e aplicveis a todo tipo de oposio ou descrena que encontramos.

    Mas no o que acontece. Somos instrudos a lutar seriamen- te pela f (Judas 3). Logo aps recomendar a Timteo que busque a justia, a piedade, a f, o amor, a perseverana e a mansido (1 Timteo 6:11), o apstolo Paulo exorta-o para que combata o bom combate da f (v. 12) e guarde o que lhe foi confiado (v. 20).

    Um e x a m e m i n u c i o s o d a g u e r r a e s p i r i t u a l

    vital que entendamos por que as Escrituras empregam com tanta frequncia a linguagem de guerra com relao ao conflito espiritual csmico das eras especialmente em referncia luta pela verdade. Esta uma ideia que permeia as Escrituras. No se trata de algum conceito incivilizado, inventado por cristos per

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    seguidos no sculo I que agora deixou de ser til nesta era mais sofisticada. No se trata de uma descrio infantil que, finalmente, abandonamos. No se trata de uma adaptao dos preconceitos tolos do sculo I. Na verdade, aqueles que simplesmente rejeitam o conceito como sendo inerentemente incivilizado, grosseiro e, portanto, intil em urna cultura ps-moderna esto colocando a prpria vida em grande perigo.

    Queiramos ou no, como cristos, estamos em um conflito de vida ou morte contra as foras do mal e suas mentiras. uma guerra espiritual. No um conflito literalmente fsico com armas mortais. No uma campanha para aumentarmos as riquezas de algum ou confiscarmos seus bens. No uma guerra por territrio ou por domnio geopoltico. E, sem dvida alguma, no um jihad violento pela expanso da influncia da cristandade no mundo. No algum tipo de guerra mgica com seres invisveis das esferas inferiores. No uma batalha pela ascendncia entre indivduos ou seitas religiosas, e, sem dvida, no uma campanha realizada pela igreja para assumir o Estado. Mas , contudo, uma guerra sria com consequncias eternas.

    Uma vez que esse conflito espiritual , em primeiro lugar, um conflito teolgico uma guerra na qual a verdade divina se ope ao erro demonaco , precisamos ter sempre em mente que nosso objetivo destruir mentiras, no pessoas. Na verdade, se formos fiis, o resultado ser pessoas sendo libertadas de fortalezas de men- tiras, de falsas doutrinas e de ideologias malignas que as mantm cativas. Foi exatamente assim que Paulo descreveu nosso plano de batalha no conflito csmico em 2 Corintios 10:3-5: Pois, embora vivamos como homens, no lutamos segundo os padres humanos. As armas com as quais lutamos no so humanas; ao contrrio, so poderosas em Deus para destruir fortalezas. Destrumos argu- mentos e toda pretenso que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos cativo todo pensamento, para torn-lo obediente a

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    Cristo. Assim, Paulo diz que devemos declarar guerra contra toda ideia que se levanta contra a verdade divina.

    A despeito de tanta linguagem de cunho militante, no h nenhuma crueldade na postura que Paulo estava descrevendo (nem quando ele continua no versculo seguinte a dizer aos corintios que, pessoalmente, estava [pronto] para punir todo ato de deso- bedincia, uma vez estando completa a obedincia de vocs). Ele estava pronto no s para a defesa da verdade, mas tambm para uma incurso ofensiva contra falsos sistemas de crenas. A estra- tgia de Paulo, em suas prprias palavras, inclua destruir aquelas falsas ideologias, desmontando sistematicamente suas doutrinas equivocadas, subjugando seus argumentos enganosos e expondo suas mentiras com a verdade.

    Em outras palavras, a verdade era a nica arma de Paulo. Ele no atacou os falsos mestres em Corinto como eles o haviam ata- cado com insinuaes, distores de seu ensino, insultos pura- mente pessoais e redes de mentiras. Respondeu ao engano deles com a verdade desatando o n grdio de suas mentiras com a espada do Esprito, que a palavra de Deus (Efsios 6:17). Lutou pela verdade e contra o erro com total seriedade. Mas, em todas as vezes que Paulo lidou com falsos mestres, seu objetivo foi aniquilar a falsa doutrina deles, e no os falsos mestres em si. A guerra no era uma disputa meramente pessoal entre Paulo e seus adversrios para ver quem conseguiria ganhar a lealdade do rebanho em Corinto; era uma batalha em favor de princpios infinitamente superiores a isso e o que estava em jogo era algo muito mais significativo do que a reputao de uma pessoa.

    Paulo nem sempre foi simptico e gentil com quem propagava falsos ensinamentos da mesma forma que foi como um pai para cristos que simplesmente ficavam perplexos com a confuso de vozes. Na verdade, no consigo imaginar um exemplo nas epstolas em que a interao de Paulo com falsos mestres foi dominada pela

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    mansido daquele esprito paternal. Muitas vezes, ele mostrou uma raiva justificada contra eles; escreveu com total desprezo por tudo o que representavam e at os amaldioou (Glatas 1:7,8).

    Em sua primeira viagem missionria, logo depois de sair de Antioquia com Barnab, Paulo fez a primeira parada em sua aventura missionria na Selucia, em Chipre. Chegando cidade de Pafos, ele teve seu primeiro encontro registrado com um falso mestre religioso, cujo nome era Elimas Barjesus. Foi assim que Paulo se dirigiu a ele: Filho do Diabo e inimigo de tudo o que justo! Voc est cheio de toda espcie de engano e maldade. Quan- do que vai parar de perverter os retos caminhos do Senhor? Saiba agora que a mo do Senhor est contra voc, e voc ficar cego e incapaz de ver a luz do sol durante algum tempo (Atos 13:10,11). Deus confirmou a postura agressiva de Paulo por meio de um juzo milagroso contra Elimas. Imediatamente vieram sobre ele nvoa e escurido, e ele, tateando, procurava quem o guiasse pela mo (v. 11). O que provocou essa confrontao agressiva? Os riscos eram muito grandes, porque Sergius Paulus estava ouvindo o evangelho e sua alma estava em jogo. Em qualquer caso como esse, a estra- tgia direta e severa de lidar com um mestre visivelmente falso , na verdade, prefervel a uma demonstrao fingida de aprovao e fraternidade (2 Joo 10,11; cf. Salmo 129:5-8; 2 Timteo 3:5).

    Paulo, sem dvida, foi justo com seus adversrios no sentido de nunca deturpar o que eles ensinavam nem dizer mentiras sobre eles. Mas Paulo claramente reconheceu os erros deles por causa do que eram e deu-lhes nomes apropriados. Ele falou a verdade. Em seu estilo de ensino dirio, Paulo falava a verdade com mansido e com a pacincia de um pai amoroso. Mas quando as circunstncias justificavam um estilo mais forte de franqueza, Paulo conseguia falar de um modo muito direto s vezes, at com um sarcasmo spero (1 Corintios 4:8-10). Como Elias (1 Reis 18:27), Joo Batista (Mateus 3:7-10) e at Jesus (Mateus 23:24), ele tambm era capaz de

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    fazer uso de escrnios de modo convincente e apropriado para res- saltar o carter de ridculo do erro srio (Glatas 5:12). maneira de Moiss e Neemias, ele apontava coisas que os outros tomavam como vacas sagradas.

    Paulo no parecia sofrer da mesma ansiedade excessivamente escrupulosa que leva tantas pessoas, hoje, a encobrir todo erro at onde a linguagem permitir, supor que at o mais repulsivo dos falsos mestres esteja dizendo a verdade e atribuir as melhores intenes possveis at ao mais grosseiro dos hereges. A ideia de mansido do apstolo no era o tipo de falsa benevolncia e distino artificial que as pessoas, hoje, s vezes acreditam ser a verdadeira essncia dos atos de caridade. Nunca o vimos chamando para o dilogo os falsos mestres ou os que casualmente se metiam a induzir ao erro religioso, nem ele aprovava essa estratgia quando algum da esta- tura de Pedro sucumbia ao medo do que os outros poderiam pensar e demonstrava uma considerao exagerada pelos falsos mestres (Glatas 2:11-14). Paulo definiu os limites da amabilidade santa e da hospitalidade crist de um modo muito parecido com o do apstolo Joo. Quando falsos mestres pedirem refgio sob o guarda-chuva da comunho de vocs, Joo disse, no deem a mnima ateno: Todo aquele que no permanece no ensino de Cristo, mas vai alm dele, no tem Deus; quem permanece no ensino tem o Pai e tam- bm o Filho. Se algum chegar a vocs e no trouxer esse ensino, no o recebam em casa nem o sadem. Pois quem o sada torna-se participante das suas obras malignas (2 Joo 9-11).

    O q u e Je s u s f e z ?

    Sejamos sinceros: rejeitar o carter gentil de uma saudao pare- ce extremamente rude nesta era de diplomacia e dtente, no mesmo? O que devemos concluir com essa passagem de Joo, o apstolo do amor?

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  • I n t r o d u o

    Em primeiro lugar, na cultura do mundo hebraico do sculo I, uma saudao era uma bno pblica cerimonial (Lucas 10:5; cf. Mateus 10:12), combinada com uma demonstrao impres- sionante de hospitalidade que inclua muitos favores e cortesias rituais (cf. Lucas 7:44-46). O que deveria ser recusado de qualquer falso mestre itinerante no eram palavras aleatrias e comuns de uma cortesia momentnea, mas uma declarao solene de bno semelhante saudao feita senhora com a qual Joo iniciou sua epstola A graa, a misericrdia e a paz da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, seu Filho, estaro conosco em verdade e em amor (2 Joo 1:3). Quando Joo disse mulher para rejeitar qualquer pessoa cujo ensino era contrrio s doutrinas apostlicas, ele no a estava instruindo a fazer algo indigno de uma senhora ou inde- licado; estava advertindo contra a considerao exagerada dada a quem s espalha mentiras.

    No h nada de errado em perguntar: O que Jesus faria? Essa uma boa pergunta. Como o prprio Cristo responderia ao misto ps-moderno de opinies representada na Christianity Today, na blogosfera dos emergentes e nas modernas megaigrejas evanglicas que mantiveram o movimento evanglico sob sua influncia nas ltimas dcadas? Ele confirmaria a apatia evanglica atual da maio- ria com relao verdade e unidade bblica autntica? Aprovaria aqueles que, confrontados com um grande nmero de contradies e novidades doutrinrias, simplesmente celebram a diversidade de seu movimento enquanto tentam evitar toda controvrsia, aceitam todos os renegados teolgicos e colocam a ortopraxia acima da ortodoxia? A mansido e meiguice de Jesus eram desse tipo?

    Estou convencido de que podemos responder a essas pergun- tas com confiana se, primeiro, fizermos uma pergunta um pouco diferente: O que Jesus fez7. Como ele lidou com os falsos mestres, hipcritas religiosos e telogos hereges de sua poca? Ele era a favor da estratgia do dilogo amigvel e das diferenas entre colegas ou,

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  • A O U T R A F ACE

    na verdade, adotava uma postura militante contra toda forma de falsa religio?

    Qualquer pessoa que conhea, ainda que superficialmente, as histrias do evangelho deveria saber a resposta para essa pergunta, porque o que no faltam so dados sobre a questo. Como obser- vamos anteriormente nesta introduo, a interao de Jesus com os escribas, fariseus e hipcritas de sua cultura foi cheia de conflito do comeo ao fim de seu ministrio terreno. s vezes, os fariseus provocavam o conflito; na maioria das vezes, era Jesus. Hostil no uma palavra muito forte para descrever a atitude de Jesus com rela- o ao sistema religioso que eles representavam, e isso era evidente no trato com eles.

    Vamos examinar este tema neste livro. Veremos que Jesus nunca tolerou de bom grado hipcritas profissionais nem falsos mestres. Ele nunca evitou o conflito. Nunca amenizou sua mensa- gem para agradar aos mais finos nem aos escrpulos moralistas. Nunca omitiu qualquer verdade a fim de satisfazer a ideia artificial de dignidade que algum fazia. Nunca curvou-se diante da intimi- dao de estudiosos nem prestou homenagem s suas instituies.

    E ele nunca, nunca, nunca tratou a distino vital entre verda- de e erro como uma questo meramente acadmica.

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  • Eu nunca pude acreditar no Jesus Cristo de algumas pessoas, pois 0 Cristo em quem elas creem simplesmente cheio de afe- tuosidade e mansido, enquanto acredito que nunca houve um modelo mais admirvel de ser humano, mesmo em sua auste- ridade, do que 0 Salvador; e os mesmos lbios que declararam que ele no esmagaria a cana quebrada proferiram os antemas mais terrveis contra os fariseus.

    C h a r l e s H . S p u r g e o n

  • C A P T U L O 1

    Q u a n d o e r r a d o s e r s i m p t i c o

    Estando todo o povo a ouvi-lo, ]esus disse aos

    seus discpulos: Cuidado com os mestres da lei [...]

    L u c a s 20:45,46

    O m o d o c o m o Jesus l i d a v a com pecadores normalmente ra mar- cado por urna ternura to grande que ele chegou a ganhar um apeli- do desdenhoso de seus crticos: amigo de pecadores (Mateus 11:19). Quando encontrava os casos mais graves de leprosos morais (desde uma mulher que vivia em adultrio, em Joo 4:7-29, a um homem infestado de uma legio inteira de demnios, em Lucas 8:27-39), Jesus sempre ministrava na vida deles com notvel benevolncia sem fazer nenhum sermo ou duras repreenses. Invariavelmente, quando se aproximavam dele, essas pessoas j estavam destrudas, humilhadas e cheias da vida de pecado. Ansioso, ele lhes concedia perdo, cura e plena comunho com ele com base na f que elas possuam, e nada mais (cf. Lucas 7:50; 17:19).

    A nica classe de pecadores com a qual Jesus sempre lidava com rigor eram os hipcritas profissionais, falsos religiosos, falsos mestres e os moralistas que promoviam a espiritualidade plstica os escribas, peritos na lei, saduceus e fariseus. Esses eram os lderes

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    religiosos em Israel as autoridades (usando um termo que as Escrituras muitas vezes usam para se referir a eles) religiosas. Eram os guardies dspotas da tradio religiosa. Preocupavam-se mais com costumes e convenes do que com a verdade. Quase todas as vezes que aparecem nas histrias do evangelho, a preocupao deles , principalmente, manter as aparncias e agarrar-se ao seu poder. Qualquer pensamento que pudessem ter tido com relao autntica piedade sempre vinha depois de outras questes acad- micas, pragmticas ou de interesse prprio. Eles eram os hipcritas religiosos por excelncia.

    O S IN D R IO E OS SAD U CEU S

    O poder de controle que esses homens tinham provinha de um gran- de conclio com base em Jerusalm, composto de 71 autoridades religiosas importantes, conhecidas coletivamente como Sindrio. Entre os membros do conclio estavam o Sumo Sacerdote e setenta principais sacerdotes e estudiosos religiosos. (O nmero provinha dos setenta conselheiros designados por Moiss em Nmeros 11:16 para ajud-lo.)

    O Sindrio tinha autoridade mxima sobre Israel em todas as questes religiosas e espirituais (e at em alguns assuntos civis). A autoridade do conclio era formalmente reconhecida at por Csar (embora nem sempre fosse respeitada pelos representantes oficiais de Csar nem por suas tropas no territrio de Jerusalm). O conc- lio era uma presena constante na Jerusalm do sculo I e constituiu o grupo mais importante de autoridades em todo o Judasmo, at a destruio do templo em 70 d.C. (O Sindrio continuou na ativa no exlio depois disso por mais de 250 anos embora, por razes bvias, seu poder tenha diminudo consideravelmente. A frequente perseguio romana, finalmente, silenciou e dissolveu o conclio em algum momento no sculo IV.)

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  • Q u a n d o e r r a d o s e r s i m p t i c o

    As histrias do evangelho sobre a crucificao de Cristo referem-se mais de dez vezes ao Sindrio como os chefes dos sacerdotes, os mestres da lei e os lderes religiosos (p. ex., Mateus 26:3; Lucas 20:1). claro que o sumo sacerdote presidia todo o conclio. Os chefes dos sacerdotes eram a aristocracia superior da linhagem de sumos sacerdotes. (Alguns deles eram homens que j haviam sido sumo sacerdote em algum momento; outros estavam aguardando para ocupar esse ofcio por um tempo.) Praticamente todos os chefes dos sacerdotes tambm eram saduceus. Os lderes religiosos eram os principais dirigentes e membros influentes de famlias importantes fora da linhagem de sumos sacerdotes e eram, em sua maioria, saduceus tambm. Os mestres da lei eram os estudiosos, no necessariamente de origem nobre como os chefes dos sacerdotes e lderes religiosos, mas homens que se distinguiam principalmente por causa de sua competncia acadmica e seus conhecimentos enciclopdicos sobre a lei e a tradio judaicas. Esse grupo era dominado por fariseus.

    Assim, o conclio era formado por uma mistura de fariseus e saduceus, e ambos eram grupos rivais. Embora o nmero de fari- seus fosse muito maior que o de saduceus na cultura de um modo geral, os saduceus, contudo, mantinham uma maioria significativa no Sindrio e tinham firmemente nas mos o controle do poder. O status de sacerdote que tinham como direito nato, na realidade, era mais importante que a atoridade erudita dos fariseus, uma vez que, sendo tradicionalistas to devotos, os fariseus chegavam a se curvar diante da autoridade da linhagem de sumos sacerdotes mesmo divergindo contundentemente de quase tudo o que tornava distinto o sistema de crenas dos saduceus.

    Por exemplo, os saduceus questionavam a imortalidade da alma humana negando a ressurreio do corpo (Mateus 22:23) e a existncia do mundo dos espritos (Atos 23:8). O grupo de saduceus tambm rejeitava a nfase que os fariseus davam a tra-

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    dies orais indo o mximo possvel na direo contrria. Na verdade, os saduceus enfatizavam o Pentateuco (os cinco livros de Moiss) quase deixando de fora o restante do Antigo Testamento. Consequentemente, a forte expectativa messinica que permeava o ensino dos fariseus desaparecia quase completamente da viso de mundo dos saduceus.

    Os dois grupos tambm tinham opinies contrrias com relao ao modo como os costumes cerimoniais deveriam ser obser- vados. Tanto saduceus como fariseus costumavam dar mais aten- o lei cerimonial do que s ramificaes morais da lei. Mas os fariseus geralmente faziam cerimnias o mais possvel elaboradas, e os saduceus faziam 0 contrrio. Em geral, os saduceus no eram to rgidos como os fariseus na maioria das coisas exceto em se tratando da questo de fazer cumprir a lei e a ordem. Uma vez que desfrutavam de certo poder reconhecido por Roma, os saduceus eram extremamente conservadores (e muitas vezes severos) em se tratando da implementao da lei civil e da imposio de castigos e penalidades.

    Mas, em muitos sentidos, os saduceus eram liberais clssicos da teologia. Seu ceticismo com relao ao cu, aos anjos e vida aps a morte automaticamente fazia com que fossem apegados s coisas mundanas e tivessem fome de poder. Eles eram muito mais interessados (e experientes) na poltica do Judasmo do que dedica- dos prpria religio.

    E n t r a m o s f a r i s e u s

    Contudo, foram os fariseus, e no os saduceus que se afastaram mais das doutrinas, que se tornaram as principais figuras de oposio pblica a Jesus nas histrias de todos os quatro evangelhos do Novo Testamento. Seus ensinamentos dominavam e resumiam o sistema religioso de Israel no sculo I. Eles eram os descendentes espirituais

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  • Q u a n d o e r r a d o s e r s i m p t i c o

    de um grupo conhecido como os chassidianos nos sculos II e III a.C. Os chassidianos eram ascetas, dedicavam-se lei judaica e se opunham a todo tipo de idolatria. Em meados do sculo II a.C., os chassidianos foram arrastados para a famosa revolta liderada por Judas Macabeus contra Antoco Epfanes e, subsequentemente, seus ensinamentos tiveram um impacto profundo e permanente na cul- tura religiosa judaica popular. Hasid vem de uma palavra hebraica que significa devoo. (A seita chassdica moderna, fundada no sculo XVIII, no tem nenhuma linhagem direta dos chassidianos, mas suas crenas e prticas seguem a mesma trajetria.)

    O mais provvel que o termo fariseu esteja baseado em uma raiz hebraica que significa separado por isso, o nome provvel- mente enfatiza o separatismo deles. Na verdade, os fariseus tinham um modo ostentoso para tentar manter-se separado de tudo o que tivesse qualquer conotao de profanao cerimonial. A obsesso pelos sinais externos de religiosidade era a caracterstica mais not- vel, e eles a usavam nas mangas literalmente. Usavam as tiras de couro mais largas possveis para amarrar filactrios nos braos e na testa. (Filactrios eram caixas de couro contendo pedaos de per- gaminhos com versculos das Escrituras hebraicas inscritos neles.) - Tambm alongavam as borlas em suas vestes (veja Deuteronmio 22:12) para tornar sua exibio pblica de devoo religiosa o mais visvel possvel. Assim, tomaram um smbolo que deveria ser um lembrete para si mesmos (Nmeros 15:38,39) e transformaram-no em um meio de divulgar seu moralismo a fim de ganhar a ateno dos outros.

    O historiador Josefo foi o primeiro escritor secular a descrever a seita dos fariseus. Nascido quatro ou cinco anos depois da cruci- ficao de Jesus, Josefo registra que ele era filho de um sacerdote (um saduceu) proeminente de Jerusalm chamado Matias.1 Come- ando por volta dos dezesseis anos, Josefo estudou cada uma das trs principais seitas do Judasmo os fariseus, os saduceus e os

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    essnios. No plenamente satisfeito com nenhuma delas, viveu no deserto por trs anos e seguiu um mestre asceta (cujo estilo de vida espartano e difcil, em alguns sentidos, sugeria o de Joo Batista e, sem dvida, era muito parecido com o dos essnios estabelecidos no deserto que, a princpio, esconderam os Pergaminhos do Mar Morto). Entretanto, depois de viver no deserto, Josefo voltou para Jerusalm e adotou a vida de um fariseu.2

    Sua vida foi seriamente perturbada, sem dvida, pela queda de Jerusalm, em 70 d.C. Josefo, posteriormente, tornou-se um legalista romano e escreveu sua histria por ordem do imprio. A maioria dos estudiosos, portanto, acredita que ele, conscientemente, modi- ficou partes dessa histria de vrias maneiras a agradar os romanos. Mas ele, no obstante, escreveu como algum com conhecimento particular dos fariseus, e no h razo para duvidar de nenhum dos detalhes que deu nas descries que fez deles.

    Josefo observa que os fariseus eram a maior e mais rgida das principais seitas judaicas. Na verdade, ele diz que a influncia dos fariseus era to grande na vida judaica do incio do sculo I que at os saduceus, adversrios teolgicos dos fariseus, tinham de se con- formar ao estilo de orao dos fariseus, observncia do sbado e ao cerimonialismo em sua conduta pblica, seno a opinio pblica no os teria tolerado.3

    Assim, a influncia dos fariseus era palpvel na vida diria de Israel durante a poca de Jesus especialmente com relao s questes de devoo pblica como regras referentes ao sbado, lavagens rituais, restries quanto dieta e outras questes sobre a pureza cerimonial. Essas coisas tornaram-se os emblemas da influncia dos fariseus e eles se propuseram a tentar impor seus costumes a todos na cultura ainda que muitas de suas tradies no tivessem base alguma nas Escrituras. Grande parte de seus conflitos com Jesus concentrava-se precisamente nessas questes

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    e, desde o incio do ministrio pblico de Jesus, os fariseus se opu- seram a ele com a mais violenta oposio.

    Sem dvida, houve alguns fariseus excepcionais. Nicodemos era uma importante autoridade entre os judeus (Joo 3:1). bvio que ele era um membro do Sindrio, o conclio religioso que impe- rava em Jerusalm (cf. Joo 7:50). Ele veio a Jesus, noite (Joo 3:2), obviamente com medo do que seus companheiros fariseus pen- sariam se soubessem de seu sincero interesse por Jesus. Em um forte contraste com a maioria dos fariseus que se aproximavam de Jesus, Nicodemos fazia uma genuna investigao, e no colocava pura e simplesmente Jesus prova. Por essa razo, Cristo falou com ele de modo franco e direto, mas sem o tipo de rigor que tingia grande parte do modo de Jesus lidar com os fariseus. (Examinaremos mais de perto o dilogo de Jesus com Nicodemos no captulo 3.)

    Os quatro evangelhos tambm mencionam um membro rico e influente do conclio chamado Jos de Arimateia, que se tornou um discpulo de Cristo (mas o era secretamente, porque tinha medo dos judeus Joo 19:38). Marcos 15:43 e Lucas 23:50 expressamente identificam Jos como um membro do Sindrio, e Lucas diz que Jos no tinha consentido na deciso e no proce- dimento dos outros quando conspiraram assassinar Jesus. Sem dvida, foi Jos que obteve a permisso de Pilatos para remover o corpo de Jesus da cruz, e, juntamente com Nicodemos, s pressas, prepararam o corpo para o sepultamento e o depositaram em um sepulcro fechado (Joo 19:39). No h registro no Novo Testa- mento de qualquer encontro direto entre Jesus e Jos de Arimateia durante o ministrio terreno de Cristo.

    Ao que parece, Jos mantinha-se distante, nem sequer se aproximando de Jesus noite, como havia feito Nicodemos. No era porque tivesse algum medo de Jesus, mas temia o que os outros lderes judeus poderiam dizer, fazer ou pensar a seu respeito se sou- bessem que era, secretamente, um discpulo de Jesus.

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    Por via de regra, as interaes de Jesus com os fariseus, sadu- ceus, escribas e principais sacerdotes eram marcadas por aspereza, e no ternura. Eles os repreendia em pblico e abertamente. Repetia coisas duras sobre eles em seus sermes e discursos pblicos. Adver- tia seus seguidores para que tivessem cuidado com a influncia fatal deles. Sempre usava uma linguagem mais forte quando denunciava os fariseus do que a usada contra as autoridades romanas pags ou seus exrcitos de ocupao.

    Esse fato, naturalmente, enfurecia os fariseus. Eles teriam aceitado com alegria qualquer messias que se opusesse ocupao romana de Israel e reconhecesse suas tradies farisaicas. Jesus, no entanto, no disse uma palavra contra Csar enquanto considerava a aristocracia religiosa de Israel como tiranos mais perigosos do que o prprio Csar.

    Na verdade, eles eram. Seus falsos ensinamentos eram muito mais destrutivos para o bem-estar de Israel do que a opresso poli- tica de Roma. Em termos espirituais, o falso moralismo e o tradicio- nalismo religioso dos fariseus representavam um perigo mais bvio e presente para a sade vital da nao do que o torno poltico tenso com o qual Csar e seus exrcitos de ocupao j pressionavam Israel. Muito j se disse sobre isso, considerando o fato de que, em menos de meio sculo, os exrcitos romanos devastariam completa- mente Israel e levariam a populao a um extenso exlio (a dispora) do qual o povo judeu, ainda hoje, no saiu completamente.

    Mas to srio e de grande repercusso como foi o holocausto de 70 a.C. para a nao judaica, uma calamidade muito maior sur- gia no falso moralismo institucionalizado da marca religiosa dos fariseus especialmente sua preferncia por tradies humanas Palavra de Deus. Isso levou a um desastre espiritual de propores eternas e infinitas, porque a maioria dos israelitas naquela gerao rejeitou seu verdadeiro Messias e multides de seus descendentes

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    insistiram implacavelmente na tradio religiosa por quase dois milnios inteiros, muitos negando-se a dar uma ateno mais sria s afirmaes de Cristo como Messias de Deus.

    O sistema legalista dos fariseus era, na verdade, um rolo com- pressor pavimentando o caminho para aquela tragdia. O apstolo Paulo (ele mesmo um fariseu convertido) estava descrevendo per- feitamente a religio farisaica em Romanos 10:2,3 quando lamentou a descrena de Israel: Posso testemunhar que eles tm zelo por Deus, mas o seu zelo no se baseia no conhecimento. Porquanto, ignorando a justia que vem de Deus e procurando estabelecer a sua prpria, no se submeteram justia de Deus.

    Os fariseus, de fato, tinham um tipo de zelo por Deus. Superficialmente, eles, sem dvida, no pareciam representar uma ameaa to grande quanto os exrcitos romanos. Na verdade, os fariseus eram verdadeiros especialistas em se tratando de conhecer as palavras das Escrituras. Eles tambm eram meticulosos quando observavam os detalhes externos da lei. Se comprassem sementes para suas hortas, por exemplo, contariam meticulosamente os gros em cada pacote e separariam o dzimo (Mateus 23:23).

    Aos olhos de um observador superficial, a cultura religiosa que os fariseus cultivavam em Israel, no sculo I, ao que parecia, poderia representar um tipo de era dourada para a lei judaica. Sem dvida, no era diversificada como a religio claramente falsa sobre a qual lemos com tanta frequncia no Antigo Testamento aquelas pocas frequentes de apostasia e idolatria com bezerros de ouro, adorao a Aser e coisas piores.

    Ningum poderia acusar um fariseu de ser excessivamente tolerante com as crenas pags, certo? Eles eram, afinal, extrema- mente contrrios a toda expresso de idolatria e totalmente com- prometidos com as mincias incidentais da lei judaica. Alm disso, por questo de segurana, acrescentaram muitos rituais suprfluos que eles mesmos inventaram como uma forma de se proteger mais

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    contra a profanao acidental. Se a lei bblica exigia lavagens ceri- moniais para os sacerdotes que ofereciam sacrifcios, por que no acrescentar outras lavagens a todos e torn-las uma parte essencial das rotinas dirias comuns? Foi exatamente isso que fizeram.

    De uma perspectiva humana, todas essas coisas tinham a aparncia de profunda devoo a Deus. Vistos por esse ngulo, os fariseus talvez fossem considerados os homens de sua gerao que menos tinham chance de se tornar os piores inimigos do Messias. Eles eram profundamente religiosos, no eram descuidados nem profanos. Sem dvida, no eram ateus declarados que atacavam abertamente a f do povo na Palavra de Deus. Estimulavam a espi- ritualidade, e no a licenciosidade. Defendiam o zelo, o rigor e a abstinncia e no o interesse pelas coisas mundanas e a indi- ferena s coisas espirituais. Promoviam o Judasmo, e no o tipo de sincretismo pago pelo qual seus vizinhos samaritanos e tantas geraes anteriores de israelitas haviam se interessado. Sua religio era tudo para eles.

    Ela vinha primeiro at que o prprio Deus.E a que est o problema. Os fariseus inventaram um belo

    disfarce, escondendo seu falso moralismo e sua hipocrisia debaixo de um verniz de zelo religioso. Tinham o cuidado de manter a aparncia mas no a realidade da sincera devoo a Deus. Mais do que isso, misturaram tanto as tradies religiosas fabri- cadas por eles com a verdade revelada de Deus, que eles mesmos j no conseguiam mais saber qual era a diferena entre uma e outra. A despeito de toda a sua competncia erudita na variedade peculiar de conhecimentos do Antigo Testamento que promoviam, eles insistiam em ver as Escrituras pelas lentes da tradio huma- na. A tradio, portanto, tornou-se sua principal autoridade e o princpio diretivo em suas interpretaes das Escrituras. Sob essas circunstncias, no havia como estas corrigirem suas tradies deficientes. Os fariseus, dessa forma, tornaram-se os principais

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    arquitetos de um tipo corrompido de Judasmo cultural e tradi- cional (mas no, de fato, bblico). Na poca de Jesus, j era um sis- tema terrvel e opressivo de observncia da lei, ritual, superstio, costumes humanos, legalismo sabtico e falso moralismo tudo acompanhado de perto pelo olhr crtico dos fariseus.

    Os fariseus que cegamente seguiam a filosofia do grupo em nome da tradio eram falsos mestres, por mais devotos ou nobres que pudessem parecer ao olhar superficial. Eram a pior espcie de lobos vestidos de ovelhas rabinos corruptos usando os mantos de l de um profeta e, por debaixo desse disfarce, devorando as ove- lhas do rebanho do Senhor. Eram, na verdade, rebeldes obstinados contra Deus e seu Ungido, mesmo escondendo-se sob uma exibio pretensiosa e enfastiante de devoo externa. Mesmo quando con- frontados com a verdade bblica libertadora, eles, obstinadamente, continuavam a apostar no legalismo.

    No de admirar que Jesus os tratasse de modo to severo.

    O M A L DA FALSA R E LIG I O

    Homens e mulheres que no tm a viso de mundo bblica, em geral, pensam em religio como a expresso mais nobre do carter humano. A opinio popular no mundo como um todo, de um modo geral, considera a religio como algo inerentemente admi- rvel, honroso e benfico.

    Na realidade, nenhum outro campo das humanidades filo- sofia, literatura, artes ou seja l o que for tem a mesma probabi- lidade de causar mal quanto a religio. Nada mais capaz de causar tanto mal do que a falsa religio, e quanto mais os falsos mestres tentam esconder-se por trs dos mantos da verdade bblica, mais eles so, de fato, diablicos.

    No entanto, emissrios de Satans que aparentam ser benig- nos e amavelmente religiosos so comuns. A histria de redeno

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    est repleta deles, e a Bblia sempre adverte sobre esses falsos mes- tres lobos ferozes que se vestem de ovelhas, falsos apstolos, obreiros enganosos, fingindo-se apstolos de Cristo. Isto no de admirar, pois o prprio Satans se disfara de anjo de luz. Portanto, no surpresa que os seus servos finjam que so servos da justia (2 Corintios 11:13-15).

    Fazendo seu discurso de despedida em feso, o apstolo Paulo disse aos presbteros daquela jovem, mas j assediada, igre- ja: Sei que, depois da minha partida, lobos ferozes penetraro no meio de vocs e no pouparo o rebanho. E dentre vocs mesmos se levantaro homens que torcero a verdade, a fim de atrair os discpulos (Atos 20:29,30, nfase do autor). Ele os estava adver- tindo de que falsos mestres se levantariam no s dentro da igreja, mas que tambm chegariam despercebidos na liderana da igreja (cf. Judas 4). Isso, sem dvida, aconteceu em feso, e aconteceu repetidas vezes em cada etapa da histria da igreja. Falsos mestres cobrem-se com vestes de Deus. Eles querem que as pessoas acre- ditem que representam Deus, que o conhecem, que tm discerni- mento especial da verdade e da sabedoria divinas, mesmo sendo emissrios do prprio inferno.

    Em 1 Timteo 4:1-3, Paulo profetizou que a igreja dos ltimos dias seria atacada por falsos mestres com uma viso farisaica do ascetismo, a qual usariam como um disfarce para a licenciosidade: O Esprito diz claramente que nos ltimos tempos alguns abando- naro a f e seguiro espritos enganadores e doutrinas de demnios. Tais ensinamentos vm de homens hipcritas e mentirosos, que tm a conscincia cauterizada e probem o casamento e o consumo de alimentos que Deus criou para serem recebidos com ao de graas pelos que creem e conhecem a verdade.

    Observe como as Escrituras dizem enfaticamente que os falsos mestres que gostam de usar o disfarce do falso moralismo e esconder-se sob o pretexto da ortodoxia so maus, mensageiros do diabo, mestres de doutrinas diablicas. Mais uma vez, nada mais

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    terrivelmente diablico do que a falsa religio, e somos advertidos, repetida e explicitamente, a no fazermos pouco caso de falsos ensi- namentos, uma vez que eles se parecem muito com a verdade.

    Nunca os falsos mestres foram mais agressivos do que duran- te o ministrio terreno do Senhor Jesus Cristo. Foi como se todo o inferno investisse com fora total contra ele durante aqueles trs anos. E, sem dvida, podemos entender isso. Ao opor-se ao evan- gelho e tentar frustrar o plano de Deus, Satans liberou tudo o que tinha contra Jesus Cristo, desde seus esforos diretos para tentar Jesus (Mateus 4:1-11; Lucas 22:40-46) a demnios que o confron- taram enquanto fingiam reverenci-lo (Marcos 5:1-13) e tudo o que estivesse entre ambas as coisas, incluindo a infiltrao de Judas, o falso discpulo, a quem o prprio Satans influenciou, possuiu e capacitou para cometer o pior ato de traio (Lucas 22:3).

    Mas a investida mais sria e prolongada contra Jesus e a principal campanha de clara oposio que, finalmente, o perseguiu at a cruz foi o incessante antagonismo dos fariseus, instigado pelo Sindrio.

    Eles, por sua vez, estavam sendo controlados por Satans. Sem dvida, estavam cegos para esse fato, mas Satans os usava como fantoches em sua implacvel campanha contra a verdade.

    Parece quase impensvel que a oposio mais ferrenha a Cristo viesse dos lderes mais respeitados do segmento religioso da sociedade. Mas verdade. Observe o amplo alcance do ministrio terreno de Jesus conforme registrado pelos escritores do evange- lho e pergunte: Quem foram os principais agentes de Satans que tentaram frustrar a obra de Jesus e opor-se aos seus ensinamentos? De onde veio a principal resistncia a Cristo? A resposta bvia. No foi do submundo criminoso da cultura nem de sua baixa classe secular. No foi de excludos da sociedade coletores de impostos, pessoas desprezveis, marginais, prostitutas e ladres. Pelo contrrio, os principais emissrios e agentes de Satans foram

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    os mais devotos, os mais santos, os mais respeitados lderes reli- giosos em todo o Israel liderados pela mais rgida de todas as suas seitas, os fariseus.

    Toda essa estratgia foi, sem dvida alguma, armada e iniciada pelo prprio Satans. Na verdade, tudo o que Paulo quer dizer em 2 Corintios 11:14,15 que o subterfgio secreto e sempre foi a principal ttica do diabo. Portanto, no deveria nos surpreender o fato de que os inimigos do evangelho sempre foram (e ainda so) mais terrveis quando religiosos. Quanto mais conseguirem con- vencer as pessoas de que eles fazem parte do crculo da ortodoxia, mais eficientes sero no sentido de corroer a verdade. Quanto mais fundo puderem infiltrar-se na comunidade de verdadeiros cristos, mais danos podero causar com suas mentiras. Quanto mais perto conseguirem chegar das ovelhas e ganhar a confiana delas, mais facilidade podero ter para devorar o rebanho.

    D a n a s c o m l o b o s

    Qualquer pastor, no sentido literal da palavra, incumbido de ali- mentar e conduzir um rebanho de ovelhas, seria tido como louco se achasse que lobos poderiam ser animais de estimao domesticados e trazidos para o curral. Suponhamos que ele, efetivamente, procu- rasse e tentasse fazer amizade com filhotes de lobos, presumindo que conseguiria ensin-los a se relacionar com seu rebanho insistindo contra todos os conselhos sbios de que sua experincia poderia dar certo, e, se desse, os lobos teriam a mansido das ovelhas e as ovelhas aprenderiam coisas com os lobos tambm. Esse pastor seria mais do que intil; ele mesmo representaria um grande perigo para o rebanho.

    Quase to ruim seria um pastor com viso mope. Ele nunca viu claramente um lobo com seus prprios olhos. Assim, acredita que a ameaa dos lobos um grande exagero. Mesmo com suas

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    ovelhas desaparecendo ou sendo dilaceradas por alguma coisa, ele se recusa a acreditar que so os lobos que esto fazendo mal ao seu rebanho. Afirma estar cansado de ouvir os outros com suas advertncias estridentes contra os lobos. Comea a contar a hist- ria de O menino que gritava lobo para todos que vo ouvir. Por fim, concluindo que a negatividade das outras pessoas em relao aos lobos representa um perigo maior para seu rebanho do que os prprios lobos, pega seu instrumento de sopro e toca uma msica suave para fazer os cordeiros adormecerem.

    Ento, claro, temos o assalariado [que] no o pastor a quem as ovelhas pertencem. Ele v que o lobo vem, abandona as ovelhas e foge. Ento o lobo ataca o rebanho e o dispersa. Ele foge porque assalariado e no se importa com as ovelhas (Joo 10:12,13).

    Assalariados egostas, pastores mopes e pessoas que agem como domadores de lobos predominam na igreja, hoje. O mesmo acontece com os lobos vestidos de ovelhas. Francamente, algumas roupas ps-modernas feitas de l de ovelha no so nem um pouco convincentes. Mas parece que alguns pastores no ficam indecisos quando o assunto soltar esses lobos sedentos entre seus rebanhos. Muitos so como o pastor mope de minha parbola convencido de que as advertncias sobre a ameaa de lobos pode ser mais peri- gosa do que os verdadeiros lobos.

    Parece que o evangelicalismo contemporneo, em geral, no aprecia em absoluto nenhum tipo de atrito doutrinrio muito menos o conflito manifesto com lobos espirituais. O Manifesto Evanglico que citei na introduo deste livro claramente reflete esse ponto de vista, expressando muito mais palavras de preocu- pao com as relaes pblicas evanglicas do que com a solidez das doutrinas. O documento confidencialmente afirma que a men- sagem evanglica, as boas novas por definio, impressionante- mente positiva, e sempre positiva antes de ser negativa.4 Isso um

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    grande exagero especialmente quando consideramos o fato de que o esboo sistemtico do evangelho feito por Paulo em Romanos comea com as palavras: Portanto, a ira de Deus revelada dos cus (Romanos 1:18), e depois continua por quase trs captulos inteiros explicando a profundidade e universalidade da impiedade e injustia dos homens, que o que provocou, em primeiro lugar, a ira de Deus. S depois que deixa claro que no se pode escapar da m notcia que Paulo apresenta as boas novas do evangelho. Ele segue o mesmo padro na forma abreviada de Efsios 2:1-10.

    Como veremos, o prprio Jesus nem sempre foi positivo antes de ser negativo. Alguns de seus discursos mais longos, incluindo toda a passagem de Mateus 23, foram completamente negativos.

    O recente Manifesto Evanglico faz uma meno favorvel queles no passado por seu digno desejo de serem fiis aos funda- mentos da f, mas, por outro lado, parece sugerir que a militncia em defesa das verdades centrais do Cristianismo sempre deve ser evitada. Na verdade, a principal razo que o manifesto oferece para listar o fundamentalismo conservador como uma das duas adulte- raes contrrias do verdadeiro esprito protestante (sendo a outra o revisionismo liberal) que determinados fundamentalistas resistiram tendncia liberalizante com estilos de reao que so pessoal e publicamente militantes a ponto de serem subcristos.5

    O que se reconhece que supostos fundamentalistas, muitas vezes, comportam-se de maneira vergonhosa. certo que a riva- lidade ciumenta entre determinadas personalidades fundamen- talistas de envergadura com frequncia foi muito pblica e muito pessoal e, decididamente, subcrist. Na realidade, a agressividade de alguns lderes fundamentalistas rompeu seu movimento e dei- xou o fundamentalismo clssico, hoje, sem muitas vozes influentes. Mas, para ser claro,