A Ordem Do Discurso » Fundação Lauro Campos

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19/05/2016 A ordem do di scurso » Fundação Laur o Campos http://laurocampos.or g.br /2009/11/a-ordem-do-discurso/ 1/8 Michel Foucault (1926-1984)  A ordem do discurso • Por Sergio Granja em 14 de novembro de 2009 Tweetar  0  Enviar por e-mail Num ensaio denso, intitulado A Revolução Russa – e que, em vida, ela não se dispôs a publicar -, Rosa Luxemburg (1871-1919) emite opiniões duras sobre certas opções e algumas das concepções de Lenin e de Trotski na condução do processo revolucionário dos bol cheviques. A certa altura do texto, a revolucionária polaco-a lemã expressa-se com todas as letras: “Liberdade é sempre a liberdade daquele que pensa de modo diferente” [Socialismo e Liberdade no 2, p. 89]. A não ser assim, aliás, seria o mesmo que dizer, como o disse claramenre Millor Fernandes durante a ditadura militar, que “livre-pensar é só pensar”. Embora a questão da liv re proliferação dos discursos (ag ora com os recursos da internet) esteja longe de ter sido resolvida, ela é crucial para um partido que se quer do socialismo e da liberdade. Arrisquemo-nos, pois, a verificar em que medida, então, um pensador pós-moderno como Foucault poderia estimular a nossa reflexão sobre a matéria. “À semelhança de Nietzsche, Foucault opta  por u m brilho atordoa nte, que a o leitor deixa a escolha entre sentir-se fascinado ou reconhecer-se um imbecil.”  Luiz Costa Lima Mímesis: Desafio ao Pensamento [Civilização Brasileira; p. 249]  L’ordre du discours – sob esse título, Michel Foucault (1926-1984) 1 pronuncia, em 2 de dezembro de 1970, a sua aula inaugural no Collège de France, ao assumir a cátedra que fora ocupada por Jean Hippolite, a quem rende comovida homenagem. I – Onde, afinal, está o perigo? Foucault começa expondo as hesitações, a inquietação, o mal-estar que não é apenas seu, mas do orador instado a dizer as palavras iniciais de qualquer discurso, a introduzir a discussão, a abrir o debate de não importa qual tema, sobretudo pelo que esse ato possa “ter de singular, de terrível, talvez de maléfico”.[p. 6] A isso, diz ele, “a instituição responde de modo irônico; pois que torna os começos solenes, cerca-os de um círculo de atenção e de silêncio, e lhes impõe formas ritualizadas, como para sinalizá-los à distância”.[p. 7] O desejo do orador é esquivar-se à “ordem arriscada do discurso”, ao que ele “tem de categóric o e decisiv o”; mas em v ão: “o discurso está na ordem das leis”. E mais: “lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma”.[p. 7] Isto é, o discurso não vale por si mesmo, mas pelo poder que a instituição lhe confere – subsunção do discurso à institucionalidade. Foucault aventa a hipótese de que esse desejo de esquiva não seja mais do que a outra face da ação profilática da instituição – desejo e instituição colocados diante de uma mesma “inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas palavras cujo us o há tanto tempo reduziu as asperidades”. E lança o repto: “Mas o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefini damente? Onde, afinal, est á o perigo?” [p. 8] 12 Curtir 

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Michel Foucault (1926-1984)

A ordem do discurso

• Por Sergio Granja em 14 de novembro de 2009

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Num ensaio denso, intitulado A Revolução Russa – e que, em vida, ela não se dispôs a

publicar -, Rosa Luxemburg (1871-1919) emite opiniões duras sobre certas opções e

algumas das concepções de Lenin e de Trotski na condução do processo revolucionário

dos bolcheviques. A certa altura do texto, a revolucionária polaco-a lemã expressa-se com

todas as letras: “Liberdade é sempre a liberdade daquele que pensa de modo diferente”

[Socialismo e Liberdade no 2, p. 89]. A não ser assim, aliás, seria o mesmo que dizer,

como o disse claramenre Millor Fernandes durante a ditadura militar, que “livre-pensar é

só pensar”. Embora a questão da livre proliferação dos discursos (agora com os recursos

da internet) esteja longe de ter sido resolvida, ela é crucial para um partido que se quer do

socialismo e da liberdade. Arrisquemo-nos, pois, a verificar em que medida, então, um

pensador pós-moderno como Foucault poderia estimular a nossa reflexão sobre a matéria.

“À semelhança de Nietzsche, Foucault opta

por um brilho atordoante, que a o leitor

deixa a escolha entre sentir-se fascinado ou

reconhecer-se um imbecil.”

Luiz Costa Lima

Mímesis: Desafio ao Pensamento

[Civilização Brasileira; p. 249]

L’ordre du discours – sob esse título, Michel Foucault

(1926-1984)1 pronuncia, em 2 de dezembro de 1970, a sua

aula inaugural no Collège de France, ao assumir a

cátedra que fora ocupada por Jean Hippolite, a quem

rende comovida homenagem.

I – Onde, afinal, está o perigo?

Foucault começa expondo as hesitações, a inquietação, o

mal-estar que não é apenas seu, mas do orador instado a

dizer as palavras iniciais de qualquer discurso, a

introduzir a discussão, a abrir o debate de não importaqual tema, sobretudo pelo que esse ato possa “ter de

singular, de terrível, talvez de maléfico”.[p. 6] A isso, diz ele, “a instituição responde de

modo irônico; pois que torna os começos solenes, cerca-os de um círculo de atenção e de

silêncio, e lhes impõe formas ritualizadas, como para sinalizá-los à distância”.[p. 7]

O desejo do orador é esquivar-se à “ordem arriscada do discurso”, ao que ele “tem de

categórico e decisivo”; mas em vão: “o discurso está na ordem das leis”. E mais: “lhe foi

preparado um lugar que o honra mas o desarma”.[p. 7] Isto é, o discurso não vale por si

mesmo, mas pelo poder que a instituição lhe confere – subsunção do discurso à

institucionalidade.

Foucault aventa a hipótese de que esse desejo de esquiva não seja mais do que a outra face

da ação profilática da instituição – desejo e instituição colocados diante de uma mesma

“inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas

palavras cujo uso há tanto tempo reduziu as asperidades”. E lança o repto: “Mas o que

há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem

indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” [p. 8]

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II – Os procedimentos de controle do discurso

Foucault examina de que maneira “a produção do discurso é ao mesmo tempo

controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos

que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,

esquivar sua pesada e temível materialidade”.[p. 8-9]

Os primeiros desses procedimentos são os de exclusão, que podem ser de interdição (“não

se tem o direito de dizer tudo”[p. 9]), de separação e rejeição (“a oposição razão e

loucura”[p. 10]) , de vontade de verdade (“oposição do verdadeiro e do falso” [p. 12]).

Os procedimentos de exclusão “se exercem de certo modo do exterior” e “concernem, sem

dúvida, à parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo”.[p. 21]

Formam um segundo grupo os “procedimentos internos”. Estes “funcionam, sobretudo, a

título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição”, e visam “submeter

outra dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso”.[p. 21]

Existe ainda um terceiro grupo de procedimentos de controle dos discursos que não trata

“de dominar os poderes que eles têm, nem de conjurar os acasos de sua aparição”, mas

“de determinar as condições de seu funcionamento”.[p. 36] Foucault precisa: “rarefação,

desta vez, dos sujeitos que falam”.[p. 37]

III – O poder do desejo e o desejo do poder

Foucault indica três tipos de interdições: “tabu do objeto”;[p. 9] “ritual da circunstância”;

[p. 9] “direito privilegiado ou exclusivo do sujeito”[p. 9] . E aponta “as regiões da

sexualidade e da política”[p. 9] como os seus alvos por excelência.

Desse modo, as interdições ao discurso “revelam logo, rapidamente, sua ligação com o

desejo e com o poder”.[p. 10] E não sem razão. De um lado, “o discurso – como a

psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo;

é, também, aquilo que é o objeto do desejo”.[p. 10] De outro, “isto a história não cessa de

nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de

dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”.[p. 10]

IV – A loucura do louco

Foucault observa que “era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco”,

e que, portanto, “elas eram o lugar onde se exercia a separação”.[p. 11] Palavra que,

durante séculos, foi considerada de um modo paradoxal: ou era nula, “não podendo

testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo

nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um

corpo”; [p. 11] ou era investida de “estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida,

o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos

outros não pode perceber”.[p. 11]

Vale sublinhar a ironia do pa radoxo do paradoxo: ao louco não lhe era permitido sequer

“fazer do pão um corpo” – delírios, alucinações…

Segregação: “a palavra só lhe era dada simbolicamente, no teatro onde ele se apresentava,

desarmado e reconciliado, visto que representava aí o papel de verdade mascarada”.[p.

12] Segregação que ainda hoje persiste, “basta pensar em todo o aparato de saber

mediante o qual deciframos essa palavra”[p. 12] – médico, psicanalista… “E mesmo que o

papel do médico não fosse senão prestar ouvido a uma palavra enfim livre, é sempre na

manutenção da cesura que a escuta se exerce.”[p. 13]

V – A vontade de verdade

Foulcaut sinaliza que, “ainda nos poetas gregos do século VI”,[p. 14] verdadeiro “era o

discurso que pronunciava a justiça e atribuia a cada qual a sua parte; era o discurso que,

profetizando o futuro, não somente anunciava o que ia se passar, mas contribuia para a

sua realização, suscitava a adesão dos homens e se tramava assim com o destino”.[p. 15]

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Mas que, “entre Hesíodo e Platão”, decorrido um século, a verdade se deslocara da

enunciação para o enunciado, desvinculando-se do exercício do poder: “o sofista é

enxotado”.[p. 15] “Essa divisão histórica deu sem dúvida sua forma geral à nossa vontade

de saber.”[p. 16]

Foucault nos remete à história da ciência (o empirismo dos séc. XVI e XVII na Inglaterra)

e diz que a vontade de verdade (como vontade de saber) apoia-se em instituições e

práticas como a pedagogia, os sistemas de livros, de edição, de bibliotecas, “as sociedades

de sábios outrora, os laboratórios hoje”, mas “é também reconduzida, mais

profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, comoé valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído”.[p. 17]

Essa vontade de verdade exerce sobre os outros discursos “uma espécie de pressão” e “um

poder de coerção”[p. 18] que se manifesta: “na maneira como a literatura ocidental teve

que buscar apoio, durante séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência

também – em suma, no discurso verdadeiro”;[p. 18] “na maneira como as práticas

econômicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente como moral,

procuraram, desde o século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se a partir

de uma teoria das riquezas e da produção”;[p. 18] “na maneira como um conjunto tão

prescritivo quanto o sistema penal procurou seus suportes ou sua justificação, primeiro, é

certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociológico,

psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não pudesse mais ser

autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade”.[p. 18-19]

A vontade de verdade assujeita os outros dois sistemas de exclusão que atingem o

discurso, a saber: a palavra proibida e a segregação da loucura. Estas buscam sua

legitimação naquela. E, chamando a atenção para esse ponto, Foucault sublinha a

vontade de verdade “como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que,

ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade, lá

justamente onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdição e definir a loucura”.

[p. 20]

VI – Os princípios de rarefação do discurso

Há que considerar também, como procedimentos internos de controle e delimitação do

discurso, os “princípios de classificação, de ordenação, de distribuição”.[p. 21]

Relacionados a esses estão o que Foucault chama de princípios de rarefação do discurso:

o comentário, o autor, a disciplina.

VII – O comentário

Foucault distingue dois tipos de discursos: “os discursos que ‘se dizem’ no correr dos dias e

das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou”;[p. 22] “os discursos que,

indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda

por dizer”[p. 22] Do segundo tipo são os “discursos fundamentais ou criadores”; do

primeiro, os que “repetem, glosam e comentam”.[p. 23] Pode ocorrer, no entanto, um

deslocamento: “por vezes, comentários vêm ocupar o primeiro lugar”.[p. 23] Nessesentido, vale notar que “uma mesma obra literária pode dar lugar, simultaneamente, a

tipos de discurso bem distintos: a Odisseia como texto primeiro é repetida, na mesma

época, na tradução de Bérard, em infindáveis explicações de texto, no Ulysses de Joyce”.

[p. 24]

“O desnível entre texto primeiro e texto segundo”,[p. 24] permite: “construir (e

indefinidamente) novos discursos”;[p. 25] “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto,

já havia sido dito”;[p. 25] “e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não h avia

jamais sido dito”.[p. 25] Desse modo, o comentário permite dizer “algo a lém do texto

mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado”.

[p. 26]

VIII – O autor

O autor como foco de coerência do discurso não voga nas conversas cotidianas (logo

apagadas), nem nos decretos ou contratos (têm signatários, não autores), nem nas

receitas domésticas ou técnicas (anônimas) etc. Mas vige nos discursos de autoria:

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“literatura, filosofia, ciência”.[p. 27]

Na Idade Média, a autoria era indispensável como indicador de verdade no discurso

científico, enquanto as obras literárias podiam circular anonimamente. Em contrapartida,

desde o séc. XVII, a função do autor vem se enfraquecendo no discurso científico, ao

passo que foi se tornando indispensável no literário: “o autor é aquele que dá à inquietante

linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real”.[p. 28]

IX – A disciplina

“O comentário limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma

da repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma

identidade que tem a forma da individualidade e do eu.”[p. 29] Para Foucault, “a

organização das disciplinas se opõe tanto ao princípio do comentário como ao do autor”.

[p. 30] Uma disciplina se define por: “um domínio de objetos”;[p. 30] “um conjunto de

métodos”;[p. 30] “um corpus de proposições consideradas verdadeiras”; [p.30] “um jogo

de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos”.[p. 30] A disciplina se opõe ao

princípio do autor, pois “constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem

quer ou pode servir-se dele”.[p. 30] E se opõe ao princípio do comentário: neste, “é um

sentido que precisa ser redescoberto” ou “uma identidade que deve ser repetida”;

enquanto, na disciplina, o ponto de partida “é aquilo que é requerido para a construção

de novos enunciados”, posto que ela pressupõe “a possibilidade de formular, e de formular

indefinidamente, proposições novas”.[p. 30]

Advirta-se, no entanto, que “uma disciplina não é tudo o que pode ser dito de verdadeiro

sobre alguma coisa”.[p. 31] E isso por duas razões: as disciplinas “são feitas tanto de erros

como de verdades”;[p. 31] uma proposição, “antes de poder ser declarada verdadeira ou

falsa, deve encontrar-se, como diria M.Canguilhem, ‘no verdadeiro'”.[p. 34]

Foucault alinha diversos exemplos: até o séc. XVI, a botânica preservara “os valores

simbólicos” que as plantas traziam da antigüidade; a partir do fim do séc. XVII, só era

botânica o que “dissesse respeito à estrutura visível da planta, ao sistema de suas

semelhanças próximas ou longínquas ou à mecânica de seus fluidos”;[p. 32] a partir do

séc. XIX, a proposição médica não podia usar mais metáforas “como as de engasgo, de

líquidos esquentados ou de sólidos ressecados”; mas podia usar as noções igualmente

metafóricas de outro modelo funcional e fisiológico: “era a irritação, a inflamação ou a

degenerescência dos tecidos”;[p. 32-33] até o séc. XVIII, “a busca da língua primitiva”[p.

33] era um tema perfeitamente legítimo da lingüística; na segunda métade do séc. XIX, já

se tornara inadmissível; quando Schleiden nega a sexualida de vegetal em pleno séc. XIX,

“mas conforme as regras do discurso biológico, não formula senão um erro disciplinado”;

[p. 35] do mesmo modo, quando Naudin “sustentara a tese de que os traços hereditários

eram descontínuos”,[p. 34] embora parecesse estranho, situava-se como um enigma no

interior do discurso biológico; mas, quando Mendel (1865) destacou os traços hereditários

da espécie e do sexo que os transmite, e os observou no domínio de uma série

indefinidamente aberta de gerações, segundo regularidades estatísticas, “dizia a verdade,

mas não estava ‘no verdadeiro’ do discurso biológico de seu tempo”.[p. 35] E conclui que

“a disciplina é um princípio de controle do discurso”; acrescentando: “ela lhe fixa os

limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente

das regras”.[p. 36]

X – A rarefação dos sujeitos

Foucault observa que o acesso a algumas regiões do discurso é relativamente livre,

enquanto a outras é muito restringido. Nestas últimas, “ninguém entrará na ordem do

discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-

lo”.[p. 37]

O filtro de acesso dos sujeitos às regiões mais ou menos fechadas do discurso se faz através

do que Foucault chama de “os grandes procedimentos de sujeição do discurso”, quaissejam: “os rituais da palavra, as sociedades do discurso, os grupos doutrinários e as

apropriações sociais”.[p. 44]

XI – O ritual

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O ritual define: “a qualificaçã o que devem possuir os indivíduos que falam (e que no jogo

de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e

formular determinado tipo de enunciados)”;[p. 39] “os gestos, os comportamentos, as

circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso”;[p. 39] “a

eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os

limites de seu valor de coerção”.[p. 39] Para Foucault, “os discursos religiosos, judiciários,

terapêuticos e, em parte, também os políticos não podem ser dissociados dessa prática”.[p.

39]

XII – A sociedade do discurso

Foucault decalca a noção de sociedade do discurso do modelo arcaico dos grupos de

rapsodos. Eles “possuiam o conhecimento dos poemas a recitar ou eventualmente a fazer

variar e a transformar”. A memorização desses poemas “fazia estar ao mesmo tempo em

um grupo e em um segredo”. E o que é significativo: “entre a palavra e a escuta os papéis

não podiam ser trocados”.[p. 40]

Modernamente, Foucault vê na instituição do escritor “uma ‘sociedade do discurso’ difusa,

talvez, mas certamente coercitiva”,[p. 40-41] cujos traços são:’ “a diferença do escritor,

sem cessar oposta por ele mesmo à atividade de qualquer outro sujeito que fala ou

escreve”;[p. 41] “o caráter intransitivo que empresta a seu discurso”;[p. 41] “a

singularidade fundamental que atribui há muito tempo à ‘escritura'”;[p. 41] “a

dissemetria afirmada entre a ‘criação’ e qualquer outra prática do sistema linguístico”.[p.

41]

Há muitas outras formas atuais de sociedade do discurso: “lembremos o segredo técnico

ou científico, as formas de difusão e de circulação do discurso médico, os que se

apropriam do discurso econômico ou político”.[p. 41]

XIII – O grupo doutrinário

Contrariando o hermetismo da sociedade do discurso, o grupo doutrinário (religioso,

político, filosófico) tende à expansão pela difusão da doutrina.

Foucault assinala que “a pertença doutrinária questiona ao mesmo tempo o enunciado e osujeito que fala, e um através do outro”[p. 42]: “questiona o sujeito que fala através e a

partir do enunciado, como provam os procedimentos de exclusão e os mecanismos de

rejeição que entram em jogo quando um sujeito que fala formula um ou vários enunciados

inassimiláveis”; [p. 42] “questiona os enunciados a partir dos sujeitos que falam, na

medida em que a doutrina vale sempre como o sinal, a manifestação e o instrumento de

uma pertença”.[p. 43]

Desse duplo questionamento tira-se uma dupla lição: “a heresia e a ortodoxia não

derivam de um exagero fanático dos mecanismos doutrinários, elas lhes pertencem

fundamentalmente”;[p. 42] há sempre “uma pertença prévia – pertença de classe, de

status social ou de raça, de nacionalidade ou de interesse, de luta, de revolta, de

resistência ou de aceitação”.[p. 43]

Assim, “a doutrina realiza uma dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos

discursos ao grupo, ao menos virtual, dos indivíduos que falam”.[p. 43]

XIV – A apropriação social

Em escala muito mais ampla, Foucault reconhece os grandes planos em que se dá “a

apropriação social do discurso”.[p. 43] Nessa questão, ele enfatiza o sistema educacional:

a educação “segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que

estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais”.[p. 43-44] Para ele, “todo

sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos

discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”.[p. 44] Foucault,

finalmente, identifica todos os grandes procedimentos de sujeição do discurso no sistema

de ensino como um grande edifício que é: “uma ritualização da palavra”;[p. 44] “uma

qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam”;[p. 44] “a constituição

de um grupo doutrinário ao menos difuso”;[p. 44] “uma distribuição e uma apropriação

do discurso com seus poderes e seus saberes”.[p. 44-45]

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XV – A filosofia

Foucault questiona se certos temas da filosofia não respondem e reforçam “esses jogos de

limitações e exclusões”.[p. 45] A resposta da filosofia se daria: “propondo uma verdade

ideal como lei do discurso e uma racionalidade imanente como princípio de seu

desenvolvimento”; e “recondu zindo uma ética do conhecimento que só promete a verdade

ao próprio desejo de verdade e somente ao poder de pensá-la”.[p. 45] E, o reforço, “por

uma denegação que recai desta vez sobre a realidade específica do discurso em geral”‘.[p.

46]

Foucault considera que “desde que foram excluídos os jogos e o comércio dos sofistas,

desde que seus paradoxos foram amordaçados”, deu-se uma “elisão da realidade do

discurso no pensamento filosófico”.[p. 46] E, não obstante, “o discurso nada mais é do que

um jogo”: “de escritura”, “de leitura”, “de troca”. Um jogo de escritura, “em uma filosofia

do sujeito fundante”. Um jogo de leitura, “em uma filosofia da experiência originária”.

Um jogo de troca, “em uma filosofia da mediação universal”.[p. 49]

Foucault diz que “essa troca, essa leitura e essa escritura jamais põem em jogo senão os

signos”; concluindo que “o discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se na

ordem do significante”.[p. 49] E seria desse modo porque, sob uma “aparente veneração

do discurso, sob essa aparente logofilia”, vicejaria “uma profunda logofobia, uma espécie

de temor surdo”.[p. 50]

Para analisar essa questão, Foucault propõe: “questionar nossa vontade de verdade”;

“restituir ao discurso seu caráter de acontecimento”; “suspender, enfim, a soberania do

significante”.[p. 51]

XVI – O método

Foucault formula um método de análise que exige quatro regras: inversão,

descontinuidade, especificidade, exterioridade. “Inversão”: “nessas figuras que parecem

desempenhar um papel positivo como a do autor, da disciplina, da vontade de verdade, é

preciso reconhecer, ao contrário, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do

discurso”.[p. 51-52] “Descontinuida de”: “os discursos devem ser tratados como práticas

descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem”.[p. 52-53]

“Especificidade”: “não imaginar que o mundo nos apresenta uma face legível que

teríamos de decifrar apenas”; “deve-se conceber o discurso como uma violência que

fazemos às coisas, como uma prática que lhe impomos”; “e é nesta prática que os

acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade”.[p. 53]

“Exterioridade”: “a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade,

passar às suas condições externas de possibilidade”;'”àquilo que dá lugar à série aleatória

desses acontecimentos e fixa suas fronteiras”.[p. 53]

Dessas regras deduzem-se as quatro noções que servem de princípio regulador da análise:

“a noção de acontecimento”; “a de série”; “a de regularidade”; e “a de condição de

possibilidade”. E os quatro pares opositivos: “o acontecimento” se opõe “à criação”; “a

série” se opõe “à unidade”; “a regularidade” se opõe “à originalidade”; “a condição depossibilidade” se opõe “à significação”.[p. 54]

Foucault considera que “estas quatro últimas noções (significação, originalidade, unidade,

criação) de modo geral dominaram a história tradicional das idéias onde, de comum

acordo, se procurava”: “o ponto da criação”; “a unidade de uma obra, de uma época ou

de um tema”; “a marca da originalidade individual”; “e o tesouro indefinido das

significações ocultas”.[p. 54]

XVII – A concepção da história

Foucault propõe articular a análise do discurso ao seu contexto, o que pressupõe uma

concepção da História, na qual ele explicita o que talvez seja o seu traço pós-modernomais marcante: abandona os conceitos fundamentais de sujeito e continuidade, com seus

correlatos de liberdade e causalida de; não se quer estruturalista, descartando o signo e a

estrutura; diz que o acontecimento e a série é que são as noções que permitem a

abordagem histórica. O acontecimento singular é o elemento constitutivo da série

histórica – “das variações cotidianas de preço chega-se às inflações seculares”[p. 55] -, a

8/16/2019 A Ordem Do Discurso » Fundação Lauro Campos

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19/05/2016 A ordem do discurso » Fundação Lauro Campos

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qual apresenta os traços de “regularidade, casualidade, descontinuidade, dependência,

transformação”.[p. 57]

XVIII – O acontecimento discursivo

Foucault diz que “os acontecimentos discursivos devem ser tratados como séries

homogêneas, mas descontínuas umas em relação às outras”.[p. 58] E que a análise do

discurso focada no acontecimento discursivo “consiste em tratar não das representações

que pode haver por trás dos discursos, mas dos discursos como séries regulares e distintas

de acontecimentos”, implicando “o acaso, o descontínuo e a materialidade”.[p. 59]

IXX – O conjunto crítico e o conjunto genealógico

A análise do discurso, pa ra Foucault, se dispõe em dois conjuntos: conjunto crítico

(princípio de inversão) e conjunto genealógico (princípios de descontinuidade,

especificidade, exterioridade). O conjunto crítico faz “a análise das instâncias de controle

discursivo”. O conjunto genealógico analisa a “formação efetiva dos discursos”. “A crítica

analisa os processos de rarefação, mas também de reagrupamento e de unificação dos

discursos; a genealogia estuda sua formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e

regular.”[p. 65-66] Mas Foucault adverte que a distinção é apenas metodológica: “não há,

de um lado, as formas da rejeição, da exclusão, do reagrupamento ou da atribuição; e, de

outro, em nível mais profundo, o surgimento espontâneo dos discursos que, logo antes ou

depois de sua manifestação, são submetidos à seleção e ao controle”.[p. 66] “Entre o

empreendimento crítico e o empreendimento genealógico, a diferença não é tanto de

objeto ou de domínio mas, sim, de ponto de ataque, de perspectiva e de delimitação.”[p.

66-67] “Assim, as descrições críticas e as descrições genealógicas devem alternar-se,

apoiar-se umas nas outras e se complementarem.”[p. 69]

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 10. e., São Paulo: Loyola, 2004

Nota:

1 O filósofo francês Michel Foucault nasceu em Poitiers, em 15 de outubro de 1926.

Estudou na Escola Normal Superior de Paris, diplomando-se em psicologia e

psicopatologia.

Filiou-se ao Partido Comunista Francês, junto com Louis Althusser (1918-1990), em 1950,

mas logo em seguida tornou-se um dissidente.

Na década de 60, lecionou na Universidade de Clermont-Ferrand e em instituições de

ensino superior da Alemanha e da Suécia. Em 1970, assumiu uma cátedra no Collège de

France.

Pensador polêmico, fascinado por Nietzsche (1844-1900), procurou mostrar –

reinterpretando criticamente teses de Karl Marx (1818-1883), de Sigmund Freud (1856-

1939) e de outros grandes teóricos modernos – como as verdades sobre a natureza

humana e a sociedade, tidas como permanentes, constroem-se historicamente.

Em História da Loucura na Idade Clássica (1961), observa como o pensamento é

moldado pela hegemonia de um discurso e uma prática social determinados.

Em Vigiar e Punir (1975), um de seus principais livros, analisa como o poder e as

condições políticas específicas afetam a produção do conhecimento.

De 1976 a 1984 trabalhou na redação da História da Sexualidade, da qual publicou

apenas os três primeiros volumes.

Foi o filósofo do século XX que alcançou uma audiência e um prestígio tão

extraordinários que só têm paralelo em Jean Paul Sartre (1905-1980).

Visitou o Brasil várias vezes e exerceu notável influência em nossos meios intelectuais.

Transgressor, homossexual assumido, morreu com AIDS em 25 de junho de 1984.

Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos

8/16/2019 A Ordem Do Discurso » Fundação Lauro Campos

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19/05/2016 A ordem do discurso » Fundação Lauro Campos

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