A oração reduzida de particípio em latim e português_ o ablativo absoluto

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20/05/13 A oração reduzida de particípio em latim e português: o ablativo absoluto www.filologia.org.br/vicnlf/anais/caderno09-02.html 1/4 << A ORAÇÃO REDUZIDA DE PARTICÍPIO EM LA TIM E PORTUGUÊS: O A BLA TIVO A BSOLUTO Janaina Vogel Canete (UFF) Márcia Figueiredo de Assis (UFF) Lívia Lindóia Paes Barreto (UFRJ e UFF) Introdução Neste trabalho, teremos como objeto de estudo da oração reduzida de particípio (presente e passado) com enfoque no ablativo absoluto, sempre tentando estabelecer um elo entre o latim e o português, no que tange a função sintática na oração. Muitos afirmam que o latim é uma língua morta. Se pensarmos sob o aspecto de uma língua imutável no tempo e no espaço, então, de fato, o latim não existe mais. Indo mais longe, se a condição para a existência de uma língua consiste na estabilidade de sua estrutura, conclui-se que nenhuma língua tem condições de existir, já que sendo inerente ao homem- ser eternamente mutável - encontra-se em um permanente processo de mudanças. Partindo de conceituações propostas por Ernout, Said Ali, Celso Cunha e Ernesto Faria, direcionaremos nosso estudo para a verificação da permanência ou modificações na sintaxe da oração reduzida de particípio do latim até o português na tentativa de mostrar que o latim não está morto, ele apenas se modificou nas diversas regiões onde era falado resultando, assim, nas línguas latinas. A origem do latim Em seu primeiro momento, o latim era o simples falar de um povo que habitava a região do Lácio, situada ao centro da Itália. Devido a sua privilegiada localização de confluência entre vários povos, passou a exercer sobre estes grande influência. De uma conquista à outra, o inexpressivo Lácio tornou-se um dos maiores impérios do mundo. Destarte, uma nova visão da realidade se irradiou e se concretizou através da língua latina. Como os demais idiomas, o latim sofreu um longo processo de elaboração até se tornar a língua erudita usada pelos escritores latinos do período de Cícero e Augusto. Através de estudos realizados no século XIX pelo filólogo alemão Franz Bopp, afirma-se que o latim, assim como muitas línguas asiáticas e européias pertence ao grupo das línguas ditas indo-européias. O indo-europeu teria dado origem a diversas línguas que com o tempo modificaram-se, porém conservaram semelhanças não só lexicais, mas também morfológicas. Sabendo que termos que se referem a relações de parentesco são um dos mais significativos para a lingüística comparada, usamos, como exemplo, as palavras “pai” e “mãe”, ambas com raízes indo-européia: Línguas provenientes diretamente do Indo-europeu Sânscrito: pitar/matar Grego:pater/meter Latim: pater/mater Línguas latinas Espanhol: padre/madre Italiano: padre/madre Português: pai/mãe Francês: pére/mére Línguas germânicas Inglês: father/ mother Alemão: vater/mutter Segundo Ernesto Faria, (in: Gramática da Língua Latina p. 17), “...não tendo permanecido do indo-europeu nenhum documento escrito, nenhuma inscrição, deve-se observar que o indo-europeu como idioma propriamente dito não existiu. O que há é um sistema de correspondências entre as chamadas línguas indo-européias. São essas correspondências, portanto, que sugerem a preexistência de uma unidade comum que se convencionou chamar de indo-europeu”. Dessa forma, pode se supor a existência de tribos cujos dialetos possuiam alguma relação entre si e que, além disso, tinham características sócio-culturais em comum como: a prática da agricultura, a criação de bovinos e carneiros e o nomadismo pastoril. Pelos mesmos motivos que ocasionaram na disseminação do latim pelos diversos lugares onde havia o domínio romano, o indo-europeu também se ramificou e assumiu diferentes formas em cada região por onde as tribos passaram e/ou se estabeleceram.

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A ORAÇÃO REDUZIDA DE PARTICÍPIOEM LATIM E PORTUGUÊS: O ABLATIVO ABSOLUTO

Janaina Vogel Canete (UFF)Márcia Figueiredo de Assis (UFF)

Lívia Lindóia Paes Barreto (UFRJ e UFF)

Introdução

Neste trabalho, teremos como objeto de estudo da oração reduzida de particípio (presente e passado) comenfoque no ablativo absoluto, sempre tentando estabelecer um elo entre o latim e o português, no que tange afunção sintática na oração.

Muitos afirmam que o latim é uma língua morta. Se pensarmos sob o aspecto de uma língua imutável no tempo eno espaço, então, de fato, o latim não existe mais. Indo mais longe, se a condição para a existência de umalíngua consiste na estabilidade de sua estrutura, conclui-se que nenhuma língua tem condições de existir, já quesendo inerente ao homem- ser eternamente mutável - encontra-se em um permanente processo de mudanças.

Partindo de conceituações propostas por Ernout, Said Ali, Celso Cunha e Ernesto Faria, direcionaremos nossoestudo para a verificação da permanência ou modificações na sintaxe da oração reduzida de particípio do latim atéo português na tentativa de mostrar que o latim não está morto, ele apenas se modificou nas diversas regiõesonde era falado resultando, assim, nas línguas latinas.

A origem do latim

Em seu primeiro momento, o latim era o simples falar de um povo que habitava a região do Lácio, situada aocentro da Itália. Devido a sua privilegiada localização de confluência entre vários povos, passou a exercer sobreestes grande influência. De uma conquista à outra, o inexpressivo Lácio tornou-se um dos maiores impérios domundo. Destarte, uma nova visão da realidade se irradiou e se concretizou através da língua latina.

Como os demais idiomas, o latim sofreu um longo processo de elaboração até se tornar a língua erudita usadapelos escritores latinos do período de Cícero e Augusto. Através de estudos realizados no século XIX pelo filólogoalemão Franz Bopp, afirma-se que o latim, assim como muitas línguas asiáticas e européias pertence ao grupodas línguas ditas indo-européias. O indo-europeu teria dado origem a diversas línguas que com o tempomodificaram-se, porém conservaram semelhanças não só lexicais, mas também morfológicas. Sabendo quetermos que se referem a relações de parentesco são um dos mais significativos para a lingüística comparada,usamos, como exemplo, as palavras “pai” e “mãe”, ambas com raízes indo-européia:

Línguas provenientes diretamente do Indo-europeu

Sânscrito:pitar/matar

Grego:pater/meter Latim: pater/mater

Línguas latinas

Espanhol: padre/madre Italiano: padre/madre

Português: pai/mãe Francês: pére/mére

Línguas germânicas

Inglês: father/ mother Alemão: vater/mutter

Segundo Ernesto Faria, (in: Gramática da Língua Latina p. 17), “...não tendo permanecido do indo-europeu nenhumdocumento escrito, nenhuma inscrição, deve-se observar que o indo-europeu como idioma propriamente dito nãoexistiu. O que há é um sistema de correspondências entre as chamadas línguas indo-européias. São essascorrespondências, portanto, que sugerem a preexistência de uma unidade comum que se convencionou chamar deindo-europeu”.

Dessa forma, pode se supor a existência de tribos cujos dialetos possuiam alguma relação entre si e que, alémdisso, tinham características sócio-culturais em comum como: a prática da agricultura, a criação de bovinos ecarneiros e o nomadismo pastoril. Pelos mesmos motivos que ocasionaram na disseminação do latim pelosdiversos lugares onde havia o domínio romano, o indo-europeu também se ramificou e assumiu diferentes formasem cada região por onde as tribos passaram e/ou se estabeleceram.

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Observando o mapa elaborado por pesquisadores da área de estudos clássicos da Universidade Federal doParaná, é possível obtermos uma ilustrada idéia de como isso ocorreu.

As formas nominais do verbo

As Formas nominais do verbo são aquelas que por sua natureza morfológica se aproximam do nome, uma vezque se flexionam em número, caso e algumas vezes em gênero, tendo, assim, o valor aproximado de umsubstantivo ou adjetivo. Dentro da sintaxe latina, exercem um importante papel. São elas: o infinitivo, o particípio,o gerúndio, o gerundivo e o supino. Como o nosso objeto de estudo é a construção de ablativo absoluto,restringir-nos-emos aos particípios.

O Particípio

Assim como o infinitivo e o gerundivo, os particípios são formas verbais que funcionam como adjetivo, e possuemas categorias de gênero e número, concordando sempre com o substantivo. Como parte do verbo, o particípiopossui tempos, voz e regência, sintática.

São três as formações essenciais do particípio latino:

Particípiopresente

-nt/ (-ns) Segue a 3a declinação

Particípiopassado

-to (-tus) Como os adjetivos de 1a.cls

Particípio futuro -urus,-ura,-urum Como os adjetivos de 1a.cls

Nosso enfoque se centralizará no particípio presente e passado, pois que o particípio futuro está ligado a outrocampo sintático.

É importante observar que o particípio presente só tem a forma ativa e o particípio passado, semanticamente,pertence à voz passiva, sendo o principal elemento de sua estrutura frasal. Todavia, ambos funcionam,sintaticamente, como adjetivo ou como orações reduzidas. Na passagem para o português, houve uma redução epermaneceu apenas um tipo de particípio, ele tem origem no particípio passado latino e é utilizado com afinalidade de exprimir o estado resultante de uma ação acabada. Em certos casos, se flexiona em número e emgênero, uma continuação do latim. Vejamos exemplos em que os particípios funcionam como adjetivos em latim eportuguês:

Infelix fatis exterrita Dido mortem orat. (Verg., En.,IV)

Aterrorizada pelos destinos, a infeliz Dido pede a morte.

Neste exemplo, podemos notar o valor do particípio tanto no campo morfolólgico quanto no semântico. Vemos queele (exterrita) concorda com o substantivo Dido em gênero, caso e número. Além disso, o particípio aparece comoconseqüência da ação provocada pelos destinos(os agentes), visto que a noção de paciente de uma ação - Dido - ébastante clara.

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Amata nobis quantum amabitur nulla. (Catulo,O Cancioneiro de Lésbia, VII, 5)

Amada por nós como nenhuma outra será amada.

Mais uma vez, vemos a idéia de passividade do sujeito através do particípio “amada” e também pelo agente daação (nobis = por nós) em ablativo. É possível constatar a idéia de comparação introduzida por “quantum” levandoo verbo para a voz passiva expressa diretamente pela forma verbal “amabitur”. A diferença que podemos registraré o abrandamento da consoante dental surda através do fenômeno da sonorização.

Perturbada pela umidade cheirosa, deitou-se...

(Clarisse Lispector, Laços de Família. 25a ed. p.139)

Nota-se que o particípio passado foi mantido no português, com o mesmo aspecto e com o mesmo valor quepossuía no latim.

***

Ao contrário do particípio passado, o particípio presente trás em si o aspecto de uma ação que está em processo,ou seja, uma ação inacabada. Sintaticamente possui tanto um valor de adjetivo quanto o de uma oraçãosubordinada adjetiva e morfologicamente, segue a 3ª declinação:

Cum suis uiuat ualeatque moechis,

Quos simul complexa tenet trecentos,

Nullum amans uere, sed identidem omnium

Ilia rumpens;

Vltimi flos, praetereunte postquam

Tactus aratro

(Catulo, Cancioneiro de Lésbia, XI)

Que ela viva e passe muito bem com seus amantes,

Os quais, trezentos, abraça ao mesmo tempo,

A nenhum amando de verdade, mas sem parar

Rompendo os rins de todos;

A flor, depois de tocada

Pelo arado que passava

Neste exemplo, encontramos três particípios, com funções distintas, onde os dois primeiros, como adjetivos, têm afunção de adjunto adnominal do sujeito e o terceiro integra uma oração reduzida de particípio.

É possível encontrarmos o particípio presente declinado em outros casos, não estando preso apenas ao casonominativo:

“...sed mulier cupido quod dicit amanti

In uento et rapida scribere oportet aqua.

(Catulo, Cancioneiro de Lésbia, LXX)

...mas o que a mulher diz ao amante apaixonado,

Convém escrever no vento e na rápida água.

É importante ressaltar que, na passagem para o português, embora, aparentemente tenha desaparecido, elepassa para o gerúndio ( em virtude de sua idéia de ação contínua) ou então permanece em diversos nomes deagentes, por exemplo: comandante (do verbo comandeo), gerente ( do verbo gero). Em alguns casos, tornou-seum adjetivo: comovente (do verbo comoveo), eloqüente (do verbo eloquor).

Ablativo Absoluto

Até o presente momento, constatamos determinadas funções que os particípios podem exercer em diversassituações dentro de uma sentença. Contudo, atestaremos seu uso em uma construção típica da língua latina: oablativo absoluto. Essa oração é constituída basicamente de sujeito em ablativo e de um particípio presente oupassado também em ablativo. Tal oração é uma oração adverbial reduzida de partícipio. Veremos explícita, namaior parte da vezes, a idéia de tempo:

“His rebus cognitis, Caesar Gallorum animos uerbis confirmauit

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(Cés., B.Gal., VII, 29, 1)

Conhecidas estas coisas, César motivou os animos dos Gauleses com palavras.

“Cognito a Caesaris aduentu, Ariovistus legatos ad eum mittit.”

(Cés.,B.Gal.,I, 42, 1)

Sabida a chegada de César, Ariovisto enviou-lhe legados.

“ Interim puer Alexandrinus...luscinias coepit imitari clamante Trimalchione subinde: “Muta”

(Petr., O Satíricon)

Nesse meio-tempo, um escravo alexandrino começou a imitar os rouxinóis enquantoTrimalcião clamando: “Muta”

“Haec dicente eo gallus gallinaceus cantauit.”

(Petr., O Satíricon)

Dizendo estas coisas, um galo cantou naquele lugar.

Tendo dito estas coisas, um galo cantou naquele lugar.

Conclusão

A partir desse trabalho, vimos que a língua portuguesa carrega em sua estrutura construções que nada mais sãodo que uma continuação de construções latinas que nos passam despercebidas. Muitos alunos de ensinofundamental e ensino médio encontram dificuldades no aprendizado do português no que diz respeito à funçãosintática, classe gramatical, concordância nominal e verbal. Conclui-se, portanto, ser importante a difusão do latimnos cursos de letras, pois como podemos ver, fatos gramaticais do português contemporâneo podem serexplicados através da língua latina. Desse modo, o aluno tem a possibilidade de perceber a razão dedeterminados fatos lingüísticos, que a princípio lhe parecem de grande dificuldade, ao serem explicados de formacientífica.

Bibliografia

ALI SAID,M. Gramática histórica da língua portuguesa. Rio de Janeiro: UNB, 2001.

CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. 6a.ed. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1976.

ERNOUT, A.,Thomas, F. Syntaxe latine. 2ª ed. Paris: C. Klincksieck, 1953. (Nouvelle Collection a l`Usage desClasses; 38)

FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino português. 6a ed. rev. de Ruth Junqueira de Faria. Rio de Janeiro: FAE, 1985.

------. Gramática da língua latina. 2a ed. rev. de Ruth Junqueira de Faria. Brasília: FAE, 1995.

HAUY, Amini. História da lingua portuguesa I. São Paulo: Ática, 1989.