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1 A ontologia neomaterialista de Deleuze e Guattari como fundamento para a nova economia evolucionária Emmanoel de Oliveira Boff (UFF) * 1. Introdução Desde o estouro da crise financeira de 2008 a ciência econômica mainstream vem sendo duramente criticada com relação à capacidade de seus modelos preverem e explicarem empiricamente os movimentos dos mercados financeiros globais. Dentro deste contexto, alguns autores e formuladores de políticas vêm sugerindo uma mudança de abordagem por parte dos grandes bancos centrais do mundo. Esta nova abordagem deveria abandonar o tradicional modelo de equilíbrio geral dinâmico estocástico e adotar uma abordagem com base em agentes (ver a revista The Economist, 22.07.2010). Esta mudança de foco no estudo da economia sublinha a heterogeneidade dos agentes que atuam nos mercados bem como o caráter complexo e instável das economias de mercado modernas. Um livro que já antes da crise propunha esta mudança de foco é “The Origin of Wealth”, de Eric Beinhocker (2006). Nesse livro, o autor critica a abordagem de equilíbrio do mainstream, apontando para a necessidade de se estudar a economia de forma evolucionária e complexa. A ideia de que a economia deve ser estudada como ciência evolucionária não é nova (vide os trabalhos de Marshall, Veblen até Nelson e Winter).No entanto, poucas discussões têm sido realizadas até hoje quanto à compatibilidade desta abordagem evolucionária com as ontologias neomaterialistas desenvolvidas por filósofos continentais europeus do século XX. Tentando preencher esta lacuna, este trabalho tem como objetivo principal verificar se a abordagem da economia evolucionária tal como proposta por Beinhocker pode ser fundamentada na ontologia neomaterialista de Deleuze e Guattari. Como a ontologia social neomaterialista de Deleuze e Guattari se encontra no projeto * O autor é economista (UFRJ), com mestrado em Comunicação e Cultura (UFRJ) e doutorado em economia (UFF). É professor adjunto da área de Pensamento Econômico do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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A ontologia neomaterialista de Deleuze e Guattari como fundamento

para a nova economia evolucionária

Emmanoel de Oliveira Boff (UFF)∗∗∗∗

1. Introdução

Desde o estouro da crise financeira de 2008 a ciência econômica mainstream

vem sendo duramente criticada com relação à capacidade de seus modelos preverem e

explicarem empiricamente os movimentos dos mercados financeiros globais. Dentro

deste contexto, alguns autores e formuladores de políticas vêm sugerindo uma mudança

de abordagem por parte dos grandes bancos centrais do mundo. Esta nova abordagem

deveria abandonar o tradicional modelo de equilíbrio geral dinâmico estocástico e

adotar uma abordagem com base em agentes (ver a revista The Economist, 22.07.2010).

Esta mudança de foco no estudo da economia sublinha a heterogeneidade dos

agentes que atuam nos mercados bem como o caráter complexo e instável das

economias de mercado modernas. Um livro que já antes da crise propunha esta mudança

de foco é “The Origin of Wealth”, de Eric Beinhocker (2006). Nesse livro, o autor

critica a abordagem de equilíbrio do mainstream, apontando para a necessidade de se

estudar a economia de forma evolucionária e complexa.

A ideia de que a economia deve ser estudada como ciência evolucionária não é

nova (vide os trabalhos de Marshall, Veblen até Nelson e Winter).No entanto, poucas

discussões têm sido realizadas até hoje quanto à compatibilidade desta abordagem

evolucionária com as ontologias neomaterialistas desenvolvidas por filósofos

continentais europeus do século XX.

Tentando preencher esta lacuna, este trabalho tem como objetivo principal

verificar se a abordagem da economia evolucionária tal como proposta por Beinhocker

pode ser fundamentada na ontologia neomaterialista de Deleuze e Guattari. Como a

ontologia social neomaterialista de Deleuze e Guattari se encontra no projeto

O autor é economista (UFRJ), com mestrado em Comunicação e Cultura (UFRJ) e doutorado em economia (UFF). É professor adjunto da área de Pensamento Econômico do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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“Capitalismo e Esquizofrenia” (que contempla dois volumes: “O Anti-Édipo” (1972) e

“Mil Platôs” (1980)), nosso trabalho se baseará principalmente nestes dois volumes.

Dado o espaço limitado deste trabalho, delimita-se o objeto deste artigo ao livro

de Beinhocker, pois ele faz um apanhado abrangente e recente de diferentes autores que

trabalham com economia evolucionária. A hipótese de que há compatibilidade da

ontologia de Deleuze e Guattari com a abordagem da economia evolucionária se baseia

na ênfase de ambos em: 1. A heterogeneidade dos entes existentes no mundo; 2. A

importância da história para entender a transformação destes entes; e 3. O compromisso

central com a existência material e concreta dos entes.

Se verificada, esta compatibilidade apontará para a possibilidade de fundamentar

a ciência econômica na heterogeneidade concreta dos agentes e em seu devir na história.

Desta forma, o trabalho está dividido em 5 partes, incluindo esta Introdução e as

Considerações Finais. Na segunda seção, a ontologia neomaterialista de Deleuze e

Guattari é apresentada, ao lado de uma breve discussão sobre o papel da ontologia na

economia. Na terceira seção, apresenta-se a ideia de evolução em economia para

Beinhocker, bem como os agentes são modelados e as implicações em termos de

política econômica desta nova visão de economia. Na quarta seção verifica-se a

compatibilidade entre os conceitos levantados dentro da ontologia deleuzo-guattariana e

os conceitos de agente e evolução da economia evolucionária. A seção cinco conclui o

trabalho.

2. A Ontologia Neomaterialista de Deleuze e Guattari

2.1 Os Princípios Fundamentais do Sistema de Deleuze

Antes de introduzir os princípios fundamentais do sistema de pensamento de

Deleuze, algumas ressalvas devem ser feitas. Primeiramente, deve-se deixar claro que o

estilo de escrita de Deleuze é um empecilho para sua compreensão. O próprio papel da

linguagem dentro de sua filosofia é maior do que descrever uma realidade externa

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objetiva para um sujeito do tipo cartesiano ou kantiano. Desta forma, nossa leitura de

Deleuze (e de Guattari) teve de ser mediada por uma série de intérpretes de sua obra.1

Em segundo lugar, o que apresentaremos aqui é uma versão resumida e parcial

(mas, espera-se, não distorcida) de pontos-chave do sistema filosófico de Deleuze. A

razão para este resumo e parcialidade é centrar fogo nos pontos relevantes da ontologia

de Deleuze para nosso objeto de estudo – a economia evolucionária.

Por fim, além das dificuldades apontadas acima, o trabalho de pesquisa que se

apresenta aqui têm um caráter experimental – não há ainda estudos que se propuseram a

aplicar a ontologia de Deleuze e Guattari à economia em geral, e à economia

evolucionária em particular. Isto implica em dizer que as conclusões que serão tiradas

serão parciais e sujeitas à discussão e revisão.

Para compreender a ontologia social proposta por Deleuze e Guattari no projeto

“Capitalismo e Esquizofrenia”, é necessário antes compreender os dois princípios que

sustentam a ontologia geral de Gilles Deleuze. Estes princípios são o da Univocidade

do Ser e o de Devir (GUALANDI, 2003: 18). Embora esta explicação pareça, em

princípio, muito distante de discussões sobre a ontologia da economia, veremos que, no

correr do artigo, ela será importante.

O primeiro princípio, da Univocidade do Ser, diz respeito à realidade última

daquilo que existe. Em que, afinal, consiste nossa realidade última? Para Deleuze, nossa

realidade última consiste em uma única e mesma substância, e isto é o que caracteriza o

princípio da univocidade do Ser. Embora única, esta substância pode se expressar de

diversas formas: na forma de ideias, de estrelas, de palavras, de homens etc.

O segundo princípio que rege a ontologia de Deleuze diz respeito ao modo de ser

desta substância única multiforme: ela é Devir, ou seja, mudança permanente – daí o

fato de ela se apresentar sempre na forma de entes distintos (como cavalos, homens,

plantas, livros etc). Seria errôneo, todavia, afirmar que a substância única é

simplesmente a composição dos entes particulares dela derivados. Antes disso, a

substância única é a própria força que causa mudanças, composições, recomposições e

1 Foram usados os seguintes livros: Due (2007), Badiou (1999), Zourabichvili (2009), DeLanda (2002,

2006, 2010), Zizek (2003), Hardt (1996), Stivale (2005) e Gualandi (2003).

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decomposições entre os entes particulares. Todas estas mudanças são realizadas com

graus diferentes de intensidade – umas mais rápidas e outras mais lentas que outras.

Duas consequências emergem dos dois princípios que acabamos de apresentar:

A primeira nos diz que, como vimos no parágrafo anterior,esta substância única é

caracterizada por um princípio diferenciador. Este princípio promove a transformação

detudo que existe. Deleuze associa o conceito de força à velocidade com que as formas

desta substância única se diferenciam tanto de si mesmas quanto umas das outras.

Quanto mais intensa a força, mais rápida a transformação da forma.

A segunda consequência é que a filosofia de Deleuze tenta fazer do pensamento

algo que está no mesmo plano de existência de tudo mais que existe – ou seja, sua

filosofia é imanente. Em outras palavras, como consequência da univocidade do Ser,

não há privilégio ontológico entre as diversas formas da substância única: ideias (tanto

as que vêm da arte, como da ciência e da filosofia), objetos, seres vivos – todos têm o

mesmo status ontológico. Seria um equívoco, portanto, pensar a multiplicidade das

formas que existem como subordinadas a ideias platônicas ou essências aristotélicas:

estas teriam um status ontológico superior ao das demais coisas do mundo, já que ou o

mundo concreto é cópia de ideias perfeitas (Platão) ou ele é categorizado segundo

gêneros e espécies que comporiam a essência dos indivíduos concretos (Aristóteles).

Para Deleuze, o próprio pensamento – que faz igualmente parte da substância

única – deveria ser uma atividade diferenciadora e identificadora. Mas diferenciadora e

identificadora de que? Ora, de processos e forças que, por sua vez, caracterizam a

substância única em suas formas múltiplas combinantes. Ou seja, a atividade própria do

pensamento é mais ampla do que a tentativa de um sujeito representar uma realidade

que lhe é externa. Antes, o pensamento é uma prática concreta interna à realidade. Ele

ocorre nos sujeitos, mas é autônomo em relação a eles. Sua principal missão é rastrear

na realidade as forças que operam o Devir do Ser Unívoco. Ou, em termos mais

simples, o pensamento tem como missão rastrear pontos singulares de força onde a

transformação – o Devir – da substância única ocorre.E, já que também faz parte da

substância única, o próprio pensamentose transforma neste rastreamento diferenciador e

identificador de forças. Assim, o pensamento será tanto mais intenso e forte quanto mais

for capaz de rastrear as singularidades que marcam os pontos de mudança (os devires)

das formas através das quais a substância única se apresenta.

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2.2 A Ontologia Social De Deleuze e Guattari

Quais seriam as implicações da visão de mundo brevemente delimitada acima

para o estudo das sociedades humanas?

Para nosso objetivo aqui, será suficiente tomar a ideia atrás da teoria dos

agenciamentos ou das montagens. Deleuze e Guattari já falavam de montagens em “O

Anti Édipo” (1972), mas elaboram com mais rigor uma definição no segundo volume de

“Mil Platôs” (1980).

Como poderíamos analisar as sociedades humanas na forma de montagens ou

agenciamentos? De modo geral, o quadro abaixo pode explicar o que se trata:

Figura 1: A teoria dos agenciamentos (ou montagens)

Como podemos entender a figura acima? Primeiramente, observamos que temos

dois eixos, cada um deles com dois polos. No eixo horizontal, temos montagens

(materiais e de enunciação), e no eixo vertical, temos processos de territorialização e

desterritorialização. Cada um desses eixos se relaciona a um princípio fundamental da

ontologia geral de Deleuze: o eixo horizontal trata da multiplicidade de formas em que

se apresenta o Ser Unívoco e o eixo vertical do Devir da Ser Unívoco.

Vamos tratar primeiro do eixo horizontal. Lembremos que a substância única

que existe – o Ser Unívoco -- se apresenta na forma de vários entes distintos que podem

se combinar e recombinar de diversos modos. Já que são“partes” desta mesma única

Materialidade: montagem de coisas materiais, isto é, de corpos, máquinas, animais, plantas etc.

Expressividade: montagem coletiva de enunciação, onde sons, textos, gestos, olhares etc, expressam a identidade das montagens materiais

Territorialização e reterritorialização

(codificação e recodificação): estratifica as montagens materiais bem como sua identidade, permitindo sua duração no tempo.

Desterritorialização (descodificação): desacopla as peças das montagens materiais, retirando suaidentidade no tempo.

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substância existente, estas formas particulares podem se combinar e recombinar para

formar entes mais complexos. Ao mesmo tempo, cada ente complexo é também

composto por entes mais simples. É exatamente esta combinação de “peças” que

formam os entes materiais que Deleuze e Guattari chamam de montagem (ou

agenciamento) maquínico.

No entanto, o que significaria uma montagem maquínica aplicada à ontologia

social? Em linhas gerais, as “peças” materiais que formam o que entendemos por

sociedade são os seres humanos e suas relações, tanto entre si como com o meio em que

vivem. No entanto, esta base material -- este agenciamento maquínico-- não é o único

que deve ser levando em conta na ontologia social. No reino social há também a esfera

do sentido, e é preciso entender seu papel dentro da montagem maquínica da sociedade.

O pensamento de Deleuze e Guattari não pressupõe que conceitos como “sociedade”,

“sujeito”, “natureza” ou “cultura” tenham um sentido imediato. Isto não significa que

não haja seres humanos concretos no mundo, nem que estes seres humanos concretos

não se relacionem entre si e com o meio que os cerca. Muito pelo contrário: como

vimos acima, estas relações materiais que os homens estabelecem entre si e com o meio

formam, segundo Deleuze e Guattari, um agenciamento ou montagem maquínica social.

Ela está exposta no polo direito do eixo horizontal da figura 1 acima. Estas montagens

maquínicas formam um dos blocos básicos da ontologia social deleuzo-guattariana.

No entanto, para que estas montagens adquiram uma identidade e possam ser

expressas em conceitos como os que usamos – “sociedade”, “sujeito” etc., elas devem

possuir certa estabilidade. Esta estabilidade é garantida por uma determinada estrutura

de poder que codifica os tipos de relações que é permitido aos homens travarem entre si

e com o meio circundante. Esta codificação é realizada através de regimes discursivos:

estes não apenas regularizam e estabilizam o escopo possível de ações das montagens

materiais como também mostram como um sentido coletivo pode ser atribuído a elas. O

conjunto de enunciados (mais do que proposições) de um determinado regime

discursivo forma uma montagem coletiva de enunciação. Esta montagem constitui um

segundo bloco básico da ontologia social deleuzo-guattariana: coladas às montagens

materiais há regimes discursivos concretos que codificam e dão sentido aos gestos,

ações, sons, objetos materiais e relações que os homens engendram entre si e o mundo.

Esta montagem coletiva de enunciação constitui o polo esquerdo do eixo horizontal da

figura 1 acima.

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Temos aí então um primeiro modo como a ontologia geral de Deleuze se

relaciona com a ontologia social de Deleuze e Guattari: a sociedade é um modo

específico de a substância única se apresentar. Neste modo particular de apresentação, a

substância única surge na forma de seres humanos e das relações que eles possuem entre

si e o meio. No mesmo nível da montagem maquínica social, há uma montagem

coletiva de enunciação. Esta última montagem dá sentido à própria existência concreta

dos seres humanos, aos objetos que eles produzem e às relações que eles entretêm entre

si e o meio. Podemos assim compreender o significado do eixo horizontal na figura 1.

Cabe agora explicar o segundo modo como a ontologia geral de Deleuze se

relaciona com a ontologia social de Deleuze e Guattari. Este segundo modo diz respeito

ao Devir do Ser Unívoco, e é representado pelo eixo vertical da figura 1.

Ora, se é verdade que a característica central do Ser Unívoco é a força do Devir,

então deve-se levar em conta também como as montagens maquínicas ou as montagens

coletivas de enunciação se modificam no tempo. Algumas destas montagens possuem

certa estabilidade (por exemplo, o Estado brasileiro, as regras gramaticais da língua

portuguesa, a Cia. Vale etc.). Na terminologia de Deleuze e Guattari, podemos dizer que

estas montagens estáveis estão segmentarizadas. Por estarem segmentarizadas, elas

podem adquirir uma identidade específica, ganhar um sentido social dominante e durar

no tempo em um processo de territorialização. A velocidade de mudança é baixa nestas

montagens e sua identidade se mantém no tempo.

No entanto, outras montagens possuem velocidade de mudança alta. De fato, a

mudança pode ser veloz a ponto de minar a identidade da montagem. O exemplo dado

por Deleuze e Guattari, no Volume 2 de “Mil Platôs” é incidentalmente econômico: no

dia 20.11.1923 o velho reichmark, totalmente desterritorializado pela alta inflação, foi

expulso do corpo monetário da Alemanha e substituído pelo rentenmark. Neste caso,

houve um processo de desterritorializaçãoque vinha durando já cinco anos eque

provocou a decomposição das diversas partes que compunham o sistema monetário

alemão. Na linguagem de Deleuze e Guattari, a segmentaridade que caracterizava o

sistema monetário alemão foi tomada por uma linha de fuga que o desterritorializou. A

partir daí, as “peças” decompostas do sistema – os banqueiros, o Banco Central

Alemão, a população alemã em geral -- puderam ser recompostas de modo distinto para

formar novos entes (no caso, o rentenmarke um novo sistema monetário).

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É importante perceber que os regimes discursivos que formam montagens

coletivas de enunciação estão no mesmo eixo das montagens materiais e, assim como

elas, também são coletivos. Ou seja, a esfera de sentido que atribuímos às coisas

materiais tem o mesmo status ontológico das próprias coisas materiais, embora sejam

entes de qualidades diferentes. Aqui se atesta a importância da doutrina da univocidade

do Ser em Deleuze: a esfera de sentido não se encontra num plano ontológico superior

que serve como formas para as coisas materiais (como na teoria das ideias de Platão). A

esfera de sentido também não comporta gêneros ou espécies universais e imutáveis

capazes de categorizar os entes concretos (como em Aristóteles). Ela tampouco é

similar ao “Verbo Divino” que criou as criaturas, como para os filósofos/padres

medievais. A esfera de sentido faz parte da substância única, e teve um processo de

origem e devir como todas as demais coisas que estão no mundo. Este processo se

origina nas características biológicas e físicas dos seres humanos que os permitem criar

e manipular símbolos através de palavras, signos, gestos etc.

É importante reforçar mais uma vez que a esfera do sentido não é constituída

propriamente de proposições, mas de enunciados. Diferentemente das proposições, os

enunciados não estão em um nível acima do mundo concreto visando representa-lo

adequadamente. Como colocado acima, os enunciados são produtos sociais dos seres

humanos e se mesclam, influenciam e coordenam as demais práticas sociais.

Ou seja, estudar a esfera de sentido não consiste em verificar quão logicamente

corretas são as proposições produzidas dentro de certa sociedade. Também não consiste

em verificar se tal representação é adequada ou não ao mundo externo. Estudar a esfera

de sentido significa antes estudar o processo que permitiu que certos enunciados fossem

usados, em determinada época e lugar, para recortar a realidade material de certa

maneira.

2.3 Desejo e Poder

Esta descrição da ontologia socialdeleuzo-guattariana estaria incompleta se não

mencionássemos ao menos como poder e desejo entram no tecido social. Na verdade,

um dos objetivos de “O Anti-Édipo” é mostrar como desejo e poder entram na

constituição do sujeito edipianoque veio a popular as sociedades industriais avançadas

da Europa Ocidental e dos EUA a partir do fim do século XVIII.

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Até agora, pouco falamos sobre a força que faz as pessoas transformarem o meio

em que vivem, a si mesmas e os relacionamentos em que elas entram. Ora, se os seres

humanos são manifestações particulares da substância única, eles também são

caracterizados pela força do devir que os perpassa. Como podemos explicar a atuação

desta força nos humanos?

Seguindo a tradição de Hume e Spinoza (mas também Adam Smith), Deleuze e

Guattari supõem que a energia que move as pessoas são as paixões.Mais

especificamente, na linguagem psicanalítica dos autores, os seres humanos são movidos

por energias libidinais inconscientes presentes em sua psique. Estas energias perpassam

os seres humanos, mas não pertencem a eles – analogamente a uma corrente elétrica que

produz calor e luz em um fio de tungstênio, mas não pertence a ele. Na infância, estas

energias não tem um objeto específico que as satisfaça. Deste modo, nada indicaria que

as paixões que movem os seres humanos devessem atravessá-los e organiza-los

primariamente na forma social de família nuclear (pai, mãe e filhos): esta seria apenas

uma possibilidade de territorializar socialmente o desejo que é produzido e circula pela

psique dos seres humanos. Deste modo, deve haver uma razão que explique a

predominância desta forma moderna de organização dos seres humanos e daprodução e

circulação sociaissegmentarizadas de suas energias libidinais. Como Deleuze e Guattari

explicam isto?

Seguindo uma linha de pensamento que visava unir as ideias de Freud e Marx2

Deleuze e Guattari explicam que o fluxo livre do desejo presente no bebê é bloqueado

na medida em que a criança se desenvolve. Este bloqueio, contudo, não ocorre hoje

como no passado: por exemplo, nas sociedades absolutistas europeias, havia uma série

de proscrições sobre quais objetos e comportamentos seriam dignos de valor, e era isto

que regulava o desejo (ver HOLLAND, E. (2007)). Ou seja, era possível a um poder

central codificar certos objetos e comportamentos, de modo a regular a produção e

circulação social de desejo. Ora, não é isto que viam Deleuze e Guattari nas sociedades

capitalistas americanas e europeias ocidentais ao fim dos anos 1960. Seguindo Freud,

2 Pode-se dizer que Deleuze e Guattari são herdeiros do Freudo-Marxismo, movimento intelectual surgido

na Alemanha nos anos 1920 e que visava unir a teoria psicológica de Freud à análise da economia política e alienação em Marx. Seus principais representantes foram Wilhelm Reich, Herbert Marcuse e Erich Fromm.

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era necessário que a autoridade repressora fosse internalizada pela criança quando

crescia, gerando, desta forma, o complexo de Édipo. Isto era necessário devido à

especificidade da montagem maquínica capitalista.

Mais precisamente, o que há de especial no capitalismo é que sua instituição

central – o mercado, acompanhado da circulação monetária –produz fluxos

desterritorializados de desejo, mercadorias e pessoas. Estes fluxos

desterritorializadosnão proíbem nem restringem a circulação ou produção deste ou

daquele bem, como nas sociedades absolutistas. Como consequência, a sociedade

capitalista é aquela que, sob o signo abstrato da forma-dinheiro, libera o desejo de uma

repressão externa explícita que antes o impedia de circular livremente. No limite, a

produção de desejo nas sociedades capitalistas não poderia ser codificada, gerando o

que Deleuze e Guattari conceituam como “esquizofrenia”. Em tal situação, a produção e

consumo de mercadorias seria veloz a ponto de desacoplar a própria montagem

maquínica capitalista. Nos termos da figura 1, podemos dizer que é necessário manter a

estabilidade das “peças” que compõem as sociedades capitalistas (no polo direito do

eixo horizontal), embora não tenhamos mais uma autoridade central que possa codificar

e dar sentido a estas “peças” (no polo esquerdo do eixo horizontal).

É para se contrapor ao risco de desmontagem do agenciamento maquínico

capitalista que surge o sujeito edipiano. Através de instituições como a família nuclear,

a escola, a fábrica, o Estado e o mercado, o sujeito internaliza a autoridade bloqueadora

do livre fluxo do desejo. Em outras palavras, estas instituições são exemplos de

instâncias de poder que permitem recodificar os fluxos de desejo, produção e consumo

desterritorializados pelo capital. Isto permite que a montagem capitalista perdure no

tempo, apesar de seu caráter desterritorializante.

Por fim, é deste modo que o desejo humano (que originalmente, como vimos,

não possui um objeto definido), é canalizado para a produção, o consumo e a

manutenção de uma família nuclear. Com a internalização da autoridade pelas

instituições mencionadas acima, não é mais necessária a interdição de um poder central

absoluto: o “sujeito edipiano” impede em si mesmo o livre fluxo do desejo. Atente-se

aqui que o “sujeito edipiano” é fruto de um processo e de uma conjuntura social e

histórica específica – a Europa Ocidental e os EUA a partir do fim do século XVIII.

Deste modo, o estudo da formação deste sujeito é coerente com a ontologia social de

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Deleuze: ele surge dentro de uma montagem maquínica historicamente formada (o

capitalismo) e só pode ganhar sentido dentro de uma determinada montagem coletiva de

enunciação. Nesta montagem coletiva de enunciação a psicanálise cumpre papel central,

pois permitiria a liberação do desejo retido dos sujeitos, ao mesmo tempo em que

visaria adaptá-los à montagem maquínica capitalista. Por fim, devemos lembrar mais

uma vez que os conceitos de “sujeito edipiano” e “sociedade capitalista” não

correspondem a essências ou ideias usadas para compreender ou categorizar

determinados entes do mundo concreto. Antes disso, estes conceitos são também entes

do mundo concreto produzidos historicamente, fazendo parte de uma montagem

coletiva de enunciação específica. Esta última, por sua vez, é igualmente formada

historicamente e é sancionada por certa estrutura de poder.

Em resumo: uma das novidades do trabalho de Deleuze e Guattari em “O Anti-

Édipo” consistiu em mostrar, através de uma teoria das montagens, como subjetividade,

economia e poder político coevoluem no tempo. Seu objetivo era mostrar como os

discursos que dão sentido às montagens maquínicas que compõem a sociedade

capitalista – a economia e a psicanálise – não captam adequadamente o processo em que

poder político, economia e subjetividade se unem para produzir a realidade social. O

estilo de escrita do projeto “Capitalismo e Esquizofrenia” visa igualmente produzir uma

desterritorialização no modo como conceitualizamos a economia, o poder político e a

subjetividade. Esta característica é, ao mesmo tempo, sua dificuldade e sua inovação.

2.4. O Virtual e o Atual

Dado o que vimos na subseção anterior, cabe-nos perguntar: se o desejo não

precisa ser canalizado para o consumo, a produção e a manutenção de uma família

nuclear, como podemos liberar seus fluxos sem desterritorializar as montagens que

compõem nossos corpos físicos e nosso psiquismo? Da mesma forma, como podemos

realizar uma montagem maquínica diferente daquela que caracteriza as sociedades

capitalistas? E como podemos criar sentidos distintos para estes novos desejos e

montagens maquínicas?

Deleuze e Guattari imaginam que há inúmeros modos de fazer fluiro desejo, de

“montar” uma sociedade, de criar sentido. Como pensar nesses modos alternativos de

desejar, produzir, criar sentido? Isto é, como podemos criar, a partir da realidade

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concreta em que nos inserimos, outros modos de fazer circular o desejo, a produção e o

sentido?

Um modo possível para pensar estas alternativas é o materialismo aristotélico:

embora o que exista de fato sejam os entes materiais que povoam o mundo, a

inteligibilidade destes entes materiais depende do conhecimento de sua essência. O

conhecimento da essência é feito descobrindo o que há de comum na multiplicidade dos

entes concretos, podendo assim categorizá-los em gêneros e espécies estáticos que se

encontram em um nível diferente de existência – o nível de inteligibilidade -- que os

entes concretos.

Como vimos, a doutrina da Univocidade do Ser nega que haja um status

ontológico distinto para gêneros e espécies. Para Deleuze, gêneros e espécies não são

estáticos e imutáveis, mas são também parte da substância única – ou seja, como tudo o

mais que existe, eles são também formados historicamente por processos dinâmicos de

diferenciação.

Para dar conta da mulitiplicidade e mudança no tempo dos entes concretos, o

materialismo aristotélico faz uso da ideia de causa final, de um télos. Para explicar as

possibilidades de mudança por que podem passar os entes no mundo, Aristóteles faz uso

de um deus, que, agindo à distância, levaria a mudança aos seres concretos, fazendo

com que eles se aproximassem cada vez mais de sua essência imutável.

Deleuze também tenta se livrar da ideia de que há uma causa final que “puxa” os

entes concretos do mundo rumo à sua essência imutável. Ora, se o Ser Unívoco é

caracterizado pela força do Devir, o que caracteriza sua essência não é o que há de

comum e imutável na diversidade dos entes, mas a própria dinâmica imanente que gera

a diversidade dos entes.

Para manter a coerência da doutrina da Univocidade do Ser, Deleuze precisa

eliminar a ideia de um campo transcendente superior onde estariam as essências dos

entes concretos do mundo. Para isto, Deleuze cria a ideia do plano de imanência.3

3 O plano de imanência ganha vários nomes na obra de Deleuze (e Guattari): quando falam do desejo, ele

é chamado de “Corpo sem Órgãos (CsO)”; no campo da filosofia, é o plano de consistência; na ciência, é chamado de plano de referência; e, finalmente, em se tratando de arte, é o plano de composição. Ver HOLLAND, D. (2005: 60). DeLanda, entretanto, define o plano de referência como aquele composto de entes concretos (2009: 104) ao qual a ciência pode referir. Badiou (1999: 46) aponta que a ciência tem a

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Assim como o campo transcendental (onde podemos encontrar ideias platônicas,

essências aristotélicas, o Deus cristão, o cogito cartesiano, o sujeito transcendental

kantiano etc.) este plano não é empírico. Contudo esta é a única semelhança entre os

dois: a diferença do plano de imanência para o campo transcendental é que o primeiro

não é composto de nenhuma espécie de essência imutável, mas da totalidade variável

de processos dinâmicos que compõem a realidade concreta em que estão os entes

empíricos. Este plano é dito virtual, pois ele carrega em seu bojo o conjunto de

processos de mudança por que podem passar os entes concretos. É importante ressaltar

que este conjunto de processos, embora limitado, não é imutável – se o fosse,

estaríamos lidando apenas com uma versão distinta de um campo transcendental, e este

não é o objetivo de Deleuze.

Ou seja, embora o plano de imanência não nos seja dado empiricamente, ele é –

como seu próprio nome diz --imanente ao mundo concreto. Mas como? Ora, isto é

possível porque os próprios entes concretos são processos dinâmicos de atualização e

de virtualização. Tomemos, por exemplo, um corpo físico humano adulto: pelas marcas

deixadas pelo tempo em seus órgãos é possível compreender os processospassados que

o levaram a assumir, desde sua infância, sua formaatual. Por outro lado, a partir de sua

forma atual, este corpo pode atravessar, no futuro, inúmeros processos de virtualização:

ele pode perder massa até se decompor, ou ganhar massa a ponto de seus órgãos não

mais funcionarem; pode sofrer intervenções cirúrgicas que o modifiquem, ou pode

simplesmente envelhecer e falecer. Logo, os entes concretos são atualizações de

processos dinâmicos específicos entre os inúmeros processos dinâmicos que perfazem o

plano de imanência, assim como x = 1 e y = 2 é uma solução concreta para a equação

indeterminada x + y = 3. Não há, portanto, diferença ontológica entre o plano de

imanência e os entes concretos, e isto é coerente com a doutrina da Univocidade do Ser.

Deste modo, compreende-se porque a ontologia de Deleuze e Guattari é dita

neomaterialista: ao enfatizar a diferença, a multiplicidade e os processos de mudança

que afetam os entes concretos, esta ontologia evita fazer referência a um plano de

inteligibilidade ontologicamente superior ao dos entes concretos. Ao mesmo tempo, ela

funciona como uma crítica aos pressupostos básicos da metafísica ocidental, pois deixa

missão de ordenar os entes segundo funções, o que é compatível com a própria definição que Deleuze dá de ciência em “O Que é a Filosofia?” (1991).

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de valorizar a busca de uma identidade estática para a multiplicidade dos entes

concretos – “o Um nos Muitos, e os Muitos no Um”, como diria o economista inglês

Alfred Marshall. Não há necessidade de ideias ou categorias imutáveis e transcendentais

para compreender os entes concretos. Em vez disso, a ontologia neomaterialista de

Deleuze busca compreender a identidade como fruto da dinâmica imanente das

diferenças que caracterizam a multiplicidade dos entes concretos.

3. A Economia Evolucionária Retratada por Beinhocker (2006)

Com a discussão acima, chegamos ao ponto central deste artigo: seria possível

afirmar que a ontologia neomaterialista de Deleuze serve de fundamento para a

economia evolucionária que hoje se propõe a substituir os modelos de equilíbrio geral?

Os modelos de equilíbrio geral pressupõem uma ontologia bastante diferente da

de Deleuze e Guattari: a economia ideal descrita pelo modelo de Arrow-Debreu parece

se adequar ao mundo das ideias platônico, enquanto os mercados concretos seriam

apenas cópias imperfeitas daquele ideal. Ao mesmo tempo, apenas choques exógenos

estocásticos podem alterar a trajetória de equilíbrio das variáveis que compõem o

modelo. Ou seja, a economia do modelo de equilíbrio geral de Arrow-Debreu se

comporta como um sistema fechado de equilíbrio, ainda que dinâmico.

Em que a economia evolucionária difere desta visão? Primeiramente, segundo

Beinhocker, a economia é um sistema adaptativo complexo, e não um sistema fechado

de equilíbrio (2006: 18). Sistemas adaptativos complexos são caracterizados pela

presença de agentes heterogêneos que processam informação e interagem entre si

gerando um padrão emergente macro distinto do comportamento individual. Em

particular, o sistema econômico é compreendido como um sistema aberto cuja dinâmica

é dada internamente (e não através de choques exógenos, como no modelo de equilíbrio

geral). A “fórmula” interna que guia esta dinâmica é dada pelo algoritmo da evolução:

Primeiro, temos a diferenciação dos entes que compõem o sistema; em seguida, seleção

dos mais aptos para dado ambiente; e, por fim, reprodução destes últimos.

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A discussão sobre a aplicabilidade ou não de um “darwinismo generalizado” às

ciências sociais não nos concerne neste artigo.4 Todavia, dada que a ontologia social de

Deleuze e Guattari é materialista, cabe perguntar em que medida o algoritmo da

evolução se aplica aos entes concretos. Primeiramente, contudo, vamos verificar como

Beinhocker compreende a ideia de evolução e sua aplicação à economia. Faremos esta

verificação de modo a poder, na seção 4, comparar com o que dizem Deleuze e Guattari.

Assim, primeiramente definiremos o algoritmo da evolução para depois aplica-lo à

economia. Em seguida verificaremos como o modelo analisa o agente econômico e

como vê o papel do Estado. Apenas depois dessa compreensão poderemos fazer a

comparação com a ontologia social de Deleuze e Guattari apresentada na seção anterior.

3.1 Os Passos Básicos da Evolução segundo Beinhocker

Logo no começo de seu livro, Beinhocker (2006:12) observa que não se deve

usar a ideia de evolução como se fosse uma “metáfora” aplicada da biologia à

economia. O que ocorre é que “sistemas biológicos e econômicos são subclasses de uma

classe mais geral e universal de sistemas evolucionários”. Logo, haveria leis gerais dos

sistemas evolucionários (o que nos levaria a leis gerais da economia e da biologia), mas

as leis da biologia não necessariamente se aplicariam à economia. Desta forma,

Beinhocker poderia elaborar argumentos para rebater críticas como as de Lawson.

E quais seriam as características dos sistemas evolucionários gerais?

Descrevamos as condições necessárias para que tenhamos sistemas evolucionários

complexos (como, por exemplo, a economia do Brasil, o bioma do cerrado brasileiro, o

sistema imunológico humano): primeiro, podemos imaginar que temos um espaço

abstrato onde todos os planos (designs) possíveis para um dado sistema evolucionário

complexo estão presentes. Podemos chamá-lo de espaço de planos (design space).

Todos os planos que fazem parte deste espaço podem ser codificados em um

sistema que armazena os esquemas para realização dos diversos planos do espaço de

planos. Também deve haver um leitor de esquemas que possa decodificar a informação

dos esquemas nos entes concretos de determinado sistema evolucionário complexo.

4 O artigo de Vromen (2008) esclarece o debate entre a hipótese ontológica de Hodgson e Knudsen e a

hipóteses de continuidade de Ulrich Witt.

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Esta decodificação permite que se montem “interadores” (interactors). Os

interactors possuem a capacidade de se reproduzir no ambiente através de um

mecanismo de replicação. Desta forma, os interactors são então colocados em um

ambiente que impõe restrições a eles. As restrições do ambiente formam a função de

aptidão (fitness function) que os interactors devem enfrentar para se

reproduzir.Devemos também observar que os esquemas sofrem variação no tempo, de

modo que as informações contidas em um esquema podem se misturar às de outro.

Dadas estas condições, temos que a decodificação de um esquema produz uma

população de interactors que, então, sofre a pressão das restrições do ambiente. A partir

desta seleção, os interactors que possuem os replicadores com maior aptidão

reproduzem-se com mais facilidade na população. Deste modo, os interactors que

possuem tais replicadores acabam ganhando espaço frente a outros interactors e

realimentando o ciclo dinâmico do sistema.

3.2 A Aplicação da Evolução à Economia, segundo Beinhocker

O modelo apresentado acima é o modelo geral de evolução. Contudo, se é

verdade que a economia é uma subclasse deste modelo geral, devemos ter

correspondências entre os pontos delineados acima e a economia. Beinhocker faz este

trabalho de correspondências nos capítulos 10, 11 e 12 do livro:

Evolução em Geral Evolução na Economia

Espaço de planos (“Biblioteca de

Borges”)

Espaço de planos de negócios (“Biblioteca

de Smith” – seção da “Biblioteca de

Borges)

Esquemas Informações codificadas sobre os planos

de negóciosda “Biblioteca de Smith”

“Esquematas” Estudos, textos, discussões, ideias

memorandos etc. onde constam os planos

de negócios – dependem do contexto de

implementação

Leitores dos Planos Equipes Administrativas das Empresas

Interactors Negócios (não necessariamente firmas)

Replicadores Módulos, definidos como possíveis

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tecnologias sociais e físicas capazes de

gerar diferenciação nos negócios

Composição dosinteractors Tecnologias Físicas + Tecnologias Sociais

unidos pelo compromisso com uma

estratégia determinada

Ambiente onde ocorre a diferenciação,

seleção e ampliação dos interactors

Mercado

Tabela 1: Analogias entre o algoritmo geral de evolução e a economia.

Como podemos aplicar este modelo à economia concreta? Podemos

compreender a economia concreta como populações de indivíduos e de negócios

heterogêneos que interagem entre si. “Negócios” são definidos por Beinhocker como

“uma pessoa ou grupo organizado de pessoas que transformam matéria, energia e

informação com o objetivo de lucro” (2006: 280). Os negócios possuem equipes

administrativas que atualizam negócios abstratos do espaço do plano de negócios

(chamados de “Biblioteca de Smith” por Beinhocker), os decodificam e implementam.

Observe-se, no entanto, que uma firma pode possuir vários negócios (como ocorre, por

exemplo, com uma firma que possui vários produtos) e, por isso, um negócio não

necessariamente é idêntico a uma firma.

Os negócios, além disso, são compostos de tecnologias físicas (“métodos e

planos para transformar matéria e energia de um estado a outro com um objetivo”) e de

tecnologias sociais (“métodos e planos para organizar pessoas com um objetivo”). Uma

vez escolhida certa tecnologia social e certa tecnologia física, o negócio adota uma

estratégia que vai unir estas duas tecnologias. Com esta estratégia, o negócio tenta

enfrentar o processo de seleção imposto pelo mercado, tentando comandar cada vez

mais recursos frente a outros negócios – o que caracterizaria, no campo da economia, o

processo de amplificação do negócio (processo análogo à reprodução biológica).

Um problema na definição de Beinhocker é com os replicadores no mundo

econômico. Enquanto na biologia os replicadores são identificados aos genes, não há

consenso sobre qual seria sua definição na economia (VROMEN, 2008). Deste modo,

Beinhocker cria o conceito de módulo. Entretanto, seu conceito também não é preciso:

ele módulo ora como “um componente do plano de negócios que pode prover uma base

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para diferenciação para os negócios”, ora como as tecnologias sociais e físicas que

podem comandam mais recursos com o passar do tempo.

Por fim, a adoção de uma estratégia envolve uma decisão irreversível que terá

impactos no desempenho futuro do negócio. Dependendo do desempenho da firma no

tempo, as expectativas e crenças dos agentespodem mudar. Como os agentes são

“peças” básicas da tecnologia social do negócio, esta mudança pode afetar seu

desempenho. Deste modo, cabe entender como podemos modelar os agentes e como

isto impacta no desempenho das firmas em geral.

3.3. Os Agentes Econômicos sob Uma Perspectiva Evolucionária

A Economia Evolucionária não faz uso dos pressupostos de informação e

racionalidade perfeitas, como na Economia Tradicional. No capítulo 6 de seu livro,

Beinhocker aponta que na economia evolucionária as decisões são tomadas

indutivamente por regras práticas (“rules of thumb”). Além disso, os agentes cometem

erros sistemáticos e possuem vieses, mudando e adaptando seu comportamento com o

tempo. Beinhocker faz uso da psicologia evolucionária para tentar entender como os

agentes agem.

Outra característica que diz respeito aos agentes é com relação à sua psicologia.

Fazendo uso dos achados da economia experimental, Beinhocker observa, no capítulo

15, que seres humanos são caracterizados por reciprocidade forte. Isto significa que

humanos possuiriam uma predisposição inata para cooperar com outros humanos e de

punir aqueles que violam regras de cooperação (mesmo que isto acarrete custo pessoal).

Ou seja, a hipótese de que os agentes cooperariam sempre em virtude de seu próprio

auto-interesse não vale sempre.

No capítulo 14 do livro, Beinhocker trata das preferências dos agentes,

compreendendo-as como sendo também formadas por um processo evolucionário

universal. É este processo que seria responsável pelo gosto que humanos, no mundo

inteiro, teriam por gorduras e açúcares, por exemplo, e pela sua predisposição em

cooperar. A razão para a suposta universalidade destas preferências está na

probabilidade maior de seus detentores vencerem o processo evolucionário de seleção –

afinal, gorduras e açúcares são alimentos que possuem maior poder calórico, ao passo

que a cooperação promove o crescimento do excedente, como mostrou Adam Smith.

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As características propostas por Beinhocker mudam, portanto, a maneira de

modelar o agente econômico da Economia Tradicional. Na verdade, pode-se afirmar, de

acordo com a argumentação de Mirowski (2002), que os agentes da economia

evolucionária são como processadores de informações. Dado um conjunto total de

informações sobre planos de negócios, o processo evolucionário opera e seleciona

apenas as informações úteis – que Beinhocker denomina conhecimento. Este

conhecimento é o substrato das crenças que os agentes formam e, a partir das quais, eles

agirão de acordo com suas preferências. É deste modo que equipes administrativas das

empresas escolhem, montam e implementam planos de negócios da “Biblioteca de

Smith”.

Nada assegura, todavia, que o processo de seleção das informações do meio

pelos agentes seja perfeito: como se mencionou, há erros e vieses no processo de

tomada de decisão dos agentes. Beinhocker sugere, então, no capítulo 16, que as firmas

internalizem o processo de evolução que ocorre no mercado, formando uma arquitetura

social que minimize tais erros e vieses. São três os modos de realizar esta

internalização: 1. uso de hierarquia para diminuir o processo de tomada de decisões; 2.

montagem de planos de negócios flexíveis que permitam a realocação de recursos

dentro da organização; e 3. Fomento de uma cultura que adote normas de desempenho,

cooperação e inovação. Desta forma, a coevolução entre o montante de recursos

controlado pelo negócio, as preferências dos agentes e sua estratégia garantirão uma

maior probabilidade de amplificação do negócio.

3.4 O Papel do Estado na Economia Evolucionária de Beinhocker

Dadas todas as diferenças entre a Economia Tradicional e a Economia

Evolucionária, cabe-nos perguntar ainda qual é o papel do Estado neste novo modelo.

Este papel é analisado no capítulo 18 do livro de Beinhocker. Neste capítulo, o autor

critica tanto as concepções de esquerda e direita quanto ao papel do Estado. Da

perspectiva evolucionária, a diferença entre uma economia capitalista e socialista diz

respeito ao último árbitro da aptidão econômica: capitalistas apostariam no mercado

como último árbitro, enquanto socialistas apostariam no poder central do Estado.

Ambas as perspectivas são errôneas, segundo Beinhocker: a esquerda não levaria

em conta o “problema de coordenação da informação” apontado por Hayek. Ou seja, o

Estado não teria como coordenar, processar e julgar a aptidão (fitness) de toda a

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informação usada e espalhada pelo tecido social. Por seu turno, a direita não admite que

os mercados podem ser ineficientes – embora a Economia Evolucionária tenha

mostrado os mercados operam com agentes imperfeitos, em condições imperfeitas e

sempre fora do equilíbrio. Além do mais, a direita não levaria em conta que seres

humanos são caracterizados por reciprocidade forte e que, portanto, deveria haver um

equilíbrio entre a competição e cooperação entre os agentes nos mercados. Para cumprir

estes papeis, a presença do Estado seria necessária na economia.

A postura de Beinhocker é de que o Estado não deveria intervir diretamente no

processo de diferenciação, seleção e amplificação das empresas no mercado. Ou seja, o

mercado competitivo continua sendo o melhor mecanismo para gerar inovações que

aumentem a riqueza das nações.

Entretanto, o Estado teria o papel central de modelador do ambiente de mercado

(environment fitness shaper). Ou seja, caberia ao Estado criar um conjunto de

instituições que permita aos mercados operarem, provendo incentivos para a inovação

nos planos de negócios. Além disso, o Estado deve garantir um equilíbrio entre

competição e cooperação entre os agentes econômicos, garantindo igualdade de

oportunidades a todos e protegendo aqueles que não conseguem se sustentar neste

sistema. Não faria, portanto, sentido em separar, de um lado, Estado, do outro mercado

e, por fim, agentes com suas preferências: o importante seria compreender como as

ações dos três se mesclam nas economias concretas.

4. A Compatibilidade entre a ontologia social de Deleuze e Guattari e a

Economia Evolucionária definida por Beinhocker

Tendo apresentado a ontologia social de Deleuze e Guattari na seção 2 e a

Economia Evolucionária de Beinhocker na seção 3, cabe-nos agora verificar sua

compatibilidade, segundo o objetivo central deste artigo. Dado que a ontologia de

Deleuze e Guattari é materialista, esta compatibilidade poderia fornecer credenciais

materialistas à economia evolucionária.

4.1 Pontos Compatíveis: A analogia entre a “Biblioteca de Borges” e o Plano de

Imanência

O primeiro ponto compatível entre a economia evolucionária e a ontologia de

Deleuze e Guattari diz respeito à analogia entre a “Biblioteca de Borges” e o plano de

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imanência. Da mesma forma que o plano de imanência, a “Biblioteca de Borges” traz

em si possibilidades limitadas e mutáveis de planos (de negócios ou outro qualquer) que

podem ser codificados e depois transformados em entes concretos. Não se trata,

portanto, de algo como um reino das ideias platônico ou essências aristotélicas. Trata-se

de um plano abstrato mas imanente, que fornece um espaço de possíveis atualizações

para os entes concretos.

4.2 A ênfase no caráter processual e mutável da realidade econômica

No projeto “Capitalismo e Esquizofrenia”, Deleuze e Guattari analisam não

apenas a economia como mesclada à política e à subjetividade como fazem (em “O

Anti-Édipo”) uma “história universal” de como os três coevoluem. Desta forma, é

provável que Deleuze e Guattari aprovassem o caráter processual e mutável com que a

economia evolucionária compreende a economia. Particularmente, a ideia de que o

próprio sistema econômico gera diferenciações internas a partir de sua própria dinâmica

é coerente com a ideia de Devir do Ser Unívoco. A coevolução de Estado, mercado e

das preferências dos agentes pode ser também entendida como compatível com a

abordagem de Deleuze e Guattari.

4.3 Pontos Incompatíveis: A esfera do sentido versus a esfera da informação

Um ponto de incompatibilidade entre a abordagem de Deleuze e Guattari e a

economia evolucionária tal como definida por Beinhocker parece estar na diferença

entre o conceito de informação e de sentido. Enquanto o primeiro parece estar

desvinculado do poder político e ter conexão apenas instrumental com outras práticas

sociais, o segundo é abertamente político e tem uma ligação ontológica com outras

práticas sociais. Em outros termos, a informação, segundo Beinhocker,parece ser apenas

um instrumento que possibilita a aplicação do algoritmo da evolução na economia,

gerando conhecimento, crenças e ideias usadas pelos agentes.

Por outro lado, o sentido em Deleuze e Guattari é desde o início vinculado a

certa estrutura de poder. O sentido, além do mais, é parte da realidade humana tanto

quanto os entes materiais (lembremos que as montagens maquínicas e as montagens

coletivas de enunciação se encontram sobre o mesmo eixo horizontal na figura 1). Ou

seja, o sentido não se resume aum instrumento que agentes usam visando amplificar

negócios ou replicar seu genoma: ele é uma esfera da realidade humana que, embora

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dependente de um substrato material, possui um caráter próprio não redutível a esta

esfera nem ao algoritmo da evolução.

4.4 A subjetividade do agente: desejos, crenças, preferências

Beinhocker menciona Freud apenas incidentalmente quando discorre sobre as

preferências dos indivíduos (2006: 309), descartando uma possível contribuição do

criador da psicanálise à economia evolucionária. Em comparação, hipóteses sobre o

psiquismo sendo constituído por desejos inconscientes de natureza sexual e sua

repressão por internalização de autoridade são centrais em “O Anti-Édipo”. Este ponto

representa uma das maiores incompatibilidades entre a ontologia social de Deleuze e

Guattari e as ideias de Beinhocker. Enquanto as preferências são dadas universalmente

pela evolução, o desejo é inconsciente e não obedece ao mecanismo da evolução (o

desejo humano não se vincula necessariamente à reprodução).

De um ponto de vista evolucionário/informacional, as crenças que um indivíduo

constrói podem ser erradas ou viesadas, ou seja, podem não contribuir para fazer rodar o

algoritmo da evolução. Contudo, isto pode não ocorrer do ponto de vista do sentido:

certas crenças podem ser compatíveis com uma estrutura de poder e uma montagem

maquínica, sem necessariamente serem “erradas” ou “viesadas”.

Por fim, enquanto a subjetividade em Deleuze e Guattari possui um caráter

processual e histórico (o “sujeito edipiano” é formado especificamente dentro do

capitalismo), para Beinhocker o sujeito parece se constituir a partir de uma função de

utilidade universal e da capacidade de processar informações. Como esta capacidade

não é perfeita, Beinhocker sugere, como vimos, que as firmas internalizem o algoritmo

da evolução, criando uma hierarquia e uma cultura empresarial, de forma a formar uma

“sociedade de mentes”.

4.5 Seleção e Amplificação na Economia?

Embora Deleuze e Guattari provavelmente aprovassem a ideia de estudar

economia como um sistema que se autotransforma, não há razões claras para que eles

cressem que há mecanismos de seleção e amplificação atuando de forma imanente e

integral na economia. Por exemplo, há inúmeras comunidades tradicionais em todo

mundo que não promoveram a ampliação de seus “negócios” nos últimos séculos. Por

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outro lado, os seres humanos podem criar um meio que seja hostil ao aumento da

aptidão da sua própria espécie (gerando problemas como a poluição ou a obesidade).

Para explicar estes fatos, Deleuze e Guattari poderiam argumentar que há

montagens maquínicas específicas que, uma vez territorializadas, não permitem a

acumulação de excedente (como nas comunidades tradicionais). Por outro lado, como

seu conceito de “esquizofrenia” deixou claro, é uma tendência do modo de produção

capitalista a desterritorialização constante do desejo, das pessoas e objetos. Como foi

visto, esta tendência desterritorializante tende a desestabilizar a própria montagem

maquínica capitalista.

Desta forma, Deleuze e Guattari não apelam para leis gerais da evolução, nem

leis gerais da economia ou da biologia. O trabalho da ciência, na sua visão, é investigar

padrões imanentes de transformação: em que ponto específico da história de certo

grupo humano começa a haver acumulação de excedente? Qual é o nível de poluição em

uma determinada área e clima a partir do qual pode haver comprometimento da

capacidade respiratória humana? E qual o nível de ingestão calórica diária associada a

qual estilo de vida leva à probabilidade de obesidade?

Desta forma, o último ponto de discordância da ontologia deleuzo-guattariana

com relação à economia evolucionária diz respeito ao caráter geral das leis da evolução.

Certamente há fenômenos econômicos que obedecem aos princípios de seleção,

diferenciação e ampliação. Estes fenômenos, contudo, devem ser estudados sempre de

forma imanente, sem fazer apelo a leis gerais que podem ter caráter transcendental.

5. Considerações Finais

O que podemos afirmar, por fim, sobre a possibilidade de a ontologia

neomaterialista de Deleuze e Guattari servir de base para a economia evolucionária

delineada por Beinhocker?

Pelo que vimos na seção 4, ela poderia servir de base, sim. No entanto, ela pode

servir de base apenas na medida em que a economia evolucionária substitua a idéia de

que há leis gerais da evolução operando integralmente na economia pela idéia de

rastrear padrões imanentes de seleção, diferenciação e amplificação específicos entre os

entes concretos da economia. Estes padrões devem existir, e deve-se compreender os

processos históricos que os levam a operar em certos entes econômicos e não em outros.

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Neste sentido, a vertente de economia evolucionária defendida por Witt (2004) pode ser

de grande valia, pois admite que a evolução cultural não obedece aos princípios da

evolução biológica.

Deste modo, controvérsias na economia evolucionária (como achar a unidade de

replicação na economia) poderiam ser recolocadas de outra forma: quais seriam as

montagens materiais historicamente determinadas que, em conjunto com outras

montagens maiores, são capazes de serem codificadas e durar no tempo? Este seria um

modo de colocar o problema da amplificação de negócios no tempo sem apelar para leis

gerais da evolução.

Por fim, sendo uma ontologia materialista, Deleuze e Guattari provavelmente

insistiriam na investigação empírica dos limites em que os fenômenos econômicos

podem ser explicados pelo algoritmo da evolução. Consoante sua teoria das montagens,

os autores entenderiam que a própria ideia de “evolução” visa dar sentido a uma série de

fenômenos materiais concretos. Como bons materialistas, Deleuze e Guattari

provavelmente apoiariam a economia evolucionária na medida em que ela fosse capaz

de identificar os padrões imanentes de transformação que ocorrem nas relações

econômicas. Ou seja, que ela fosse capaz de identificar como mudam no tempo os

padrões de relação entre os seres humanos e o meio em que vivem quando produzem,

distribuem e consomem objetos que surgem a partir destes padrões de relação.

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Page 27: A ontologia neomaterialista de Deleuze e Guattari …€¦ · 1 A ontologia neomaterialista de Deleuze e Guattari como fundamento para a nova economia evolucionária Emmanoel de Oliveira

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RESUMO:

O artigo tem como objetivo verificar a compatibilidade entre a ontologia social

delineada por Deleuze e Guattari no projeto “Capitalistmo e Esquizofrenia” (1972,

1980) e a economia evolucionária tal como definida por Beinhocker (2006). Verifica-se

que há dois pontos de compatibilidade entre os dois: 1. a noção de plano de imanência

vis-à-vis a “Biblioteca de Borges”; e 2. a visão da economia como sistema que se

autotransforma. Por outro lado, há três pontos de divergência: 1. com relação à

subjetividade do agente; 2. à noção de informação evolucionária vis-à-vis a noção de

sentido de Deleuze e Guattari; e 3. à ênfase nas leis gerais evolucionárias vis-à-vis o

rastreamento de padrões imanentes de transformação.

PALAVRAS-CHAVE: Deleuze e Guattari; economia evolucionária, ontologia social,

Eric Beinhocker.