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A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI FRONTEIRAS KLUG, Marlise Buchweitz; FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi. Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4 98 o Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI FRONTEIRAS KLUG, Marlise Buchweitz Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas - UFPel Bolsista CAPES [email protected] FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi Professora Associada da Universidade Federal de Pelotas [email protected] RESUMO: O presente trabalho visa a refletir sobre a obra do autor e compositor pelotense Vitor Ramil no sentido de demonstrar que o autor traduz o lugar, fazendo seus personagens literários andarem pelo espaço público e criando uma música que fale dessas coisas e desses espaços. Há em sua trajetória um encontro da música, da poética, da estética e da escrita que busca aproximar e criar zonas de contato, estabelecendo diálogos, entre Argentina, Uruguai e Sul do Brasil. Pode-se entender o que Ramil faz como uma memória latino-americana reconstruída, já que ele retraduz a cidade conferindo-lhe elementos regionais, retraduz a música regional mixando elementos urbanos, fazendo uma música que não se encerra, que fala muito do local e do regional, mas que também pode ser nacional, latino-americana. PALAVRAS-CHAVE: Literatura latino-americana. Memória. Identidade. ABSTRACT: This paper aims to reflect on the work by Vitor Ramil, an author and composer from Pelotas Vitor Ramil. The purpose is to demonstrate that he tries to translate the city, making his literary characters walk beyond public space and creating a song that speaks of this place and its things. There is kind of a meeting among music, poetry, aesthetics and writing that seeks to create contact areas and establish dialogues between Argentina, Uruguay and southern Brazil. One can understand what Ramil does as a Latin American memory rebuilt, since he retranslates the city giving it regional elements, retranslates regional music mixing urban elements, making a song that does not have an end in itself, but which speaks of the place and the regional, but which can also be national, Latin American. KEYWORDS: Latin American Literature. Memory. Identity. INTRODUÇÃO Refletir sobre os modos de fazer Literatura no mundo contemporâneo remete a pensar o lugar comum do sujeito e seu papel na sociedade em que vivemos. Pensar a identidade na contemporaneidade é remeter aos teóricos pós-colonialistas que destacam

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KLUG, Marlise Buchweitz; FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi.

Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de

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o Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de

A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI

FRONTEIRAS

KLUG, Marlise Buchweitz

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da

Universidade Federal de Pelotas - UFPel

Bolsista CAPES [email protected]

FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi Professora Associada da Universidade Federal de Pelotas

[email protected]

RESUMO: O presente trabalho visa a refletir sobre a obra do autor e compositor pelotense Vitor Ramil no sentido de demonstrar que o autor traduz o lugar, fazendo seus personagens literários andarem

pelo espaço público e criando uma música que fale dessas coisas e desses espaços. Há em sua

trajetória um encontro da música, da poética, da estética e da escrita que busca aproximar e criar zonas de contato, estabelecendo diálogos, entre Argentina, Uruguai e Sul do Brasil. Pode-se

entender o que Ramil faz como uma memória latino-americana reconstruída, já que ele retraduz

a cidade conferindo-lhe elementos regionais, retraduz a música regional mixando elementos

urbanos, fazendo uma música que não se encerra, que fala muito do local e do regional, mas que também pode ser nacional, latino-americana.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura latino-americana. Memória. Identidade.

ABSTRACT:

This paper aims to reflect on the work by Vitor Ramil, an author and composer from Pelotas

Vitor Ramil. The purpose is to demonstrate that he tries to translate the city, making his literary characters walk beyond public space and creating a song that speaks of this place and its things.

There is kind of a meeting among music, poetry, aesthetics and writing that seeks to create

contact areas and establish dialogues between Argentina, Uruguay and southern Brazil. One can understand what Ramil does as a Latin American memory rebuilt, since he retranslates the city

giving it regional elements, retranslates regional music mixing urban elements, making a song

that does not have an end in itself, but which speaks of the place and the regional, but which can also be national, Latin American.

KEYWORDS: Latin American Literature. Memory. Identity.

INTRODUÇÃO

Refletir sobre os modos de fazer Literatura no mundo contemporâneo remete a

pensar o lugar comum do sujeito e seu papel na sociedade em que vivemos. Pensar a

identidade na contemporaneidade é remeter aos teóricos pós-colonialistas que destacam

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a importância da questão da enunciação, do lugar de onde se fala. Para Edward Said

(1995), a leitura não pode mais ser focada apenas na representação, mas há que se fazer

uma análise da relação entre narrador e texto, como e a partir de que ‘locus’ este foi

concebido (SAID, 1995, p. 63).

O sujeito contemporâneo é, a partir dessa perspectiva, resultado do fenômeno

moderno de divisão, podendo ser compreendido em múltiplas partes e não apenas como

ser indivisível. Entender a identidade nesse contexto é pensá-la como múltipla, e não

mais única, previsível. O indivíduo da atualidade possui uma identidade multíplice, pois

se insere em diferentes contextos, mas que também pode estar fragmentada, e pode

sugerir uma necessidade de um encontro consigo mesmo. Stuart Hall nos fala de uma

‘homogeneização cultural’ como resultado do consumismo global, em que diferenças e

distinções culturais ficam reduzidas (HALL, 2006, p. 75-76). A fragmentação estaria,

então, na questão da percepção de si mesmo em relação à multiplicidade cultural que

rodeia o indivíduo.

A literatura contemporânea associa-se assim às perspectivas de identidades pós-

coloniais pelas quais se percebe um indivíduo que fala do seu lugar, estando este

geralmente à margem da tradição e do cânone. Para Bakhtin (2011) “[...] a literatura é

parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda a

cultura de uma época” (p. 360), de tal modo que ela também pode ser entendida como

múltipla, pois a Literatura de um lugar não pode mais ser pensada a partir de

características específicas, mas deve ser olhada num todo, buscando-se aproximações

entre autores, temáticas comuns.

É preciso também levar em consideração o fato de que o sujeito contemporâneo

está plenamente ciente da “singular hibridez das experiências históricas e culturais”, de

uma inserção em contextos até contraditórios, da transformação destas para além das

“fronteiras nacionais” (SAID, 1995, p. 46). Para o autor, as culturas não mais podem ser

consideradas unitárias, monolíticas ou autônomas, mas completas perante os elementos

“estrangeiros” que abarcam (SAID, 1995, p. 46).

No Brasil, Renato Franco destaca a presença da alegoria no romance pós-64

como “artifício literário” em meio ao contexto histórico e político e como preponderante

“[...] no romance dos anos 70 graças ao processo de modernização que afetava então o

capitalismo no Brasil” (FRANCO, 1998, p. 149). Além disso, Franco relaciona o

romance moderno com o fluxo histórico como uma “consciência aguda do tempo”

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(FRANCO, 1998, p. 150), em meio a esse tempo volátil no qual estamos inseridos.

Nessa inserção num amontoado de “incessantes transformações”, o sujeito se “desnuda”

ao revelar experiências, modos de proceder e arquitetar as coisas e encontrar nestas um

jeito de expor-se sobre o “momento presente” (FRANCO, 1998, p. 150).

Falar de alegoria remete a Walter Benjamin (1985; 1987; 1997), que pela figura

do flâneur produz sentido para as ruínas da cidade contemporânea. Além disso,

Benjamin descontruía a ideia de uma tradição fértil e apontava para um momento social

em que os indivíduos perderiam a “possibilidade de deixar marcas pessoais” ou

“rastros” num movimento de “perda da individualidade” em meio às massas, multidões,

metrópoles (FRANCO, 1998, p. 151).

Destaca-se, assim, uma complexidade de autor e de narrador no contexto

contemporâneo de sujeitos cada vez mais divisíveis, de culturas ainda mais híbridas do

que antes, de possibilidades múltiplas, e de versões infinitas para a identidade de um

lugar e de um tempo. Nesse contexto, surgem também as manifestações culturais de

diferentes grupos, os quais tomam para si o papel de “historiadores de si mesmos”

(NORA, 1993, p.17), o que se reflete no intenso movimento de busca memorial

identificado por Joel Candau (2011) pelo termo mnemotropismo, dinâmica que

caracteriza as sociedades ocidentais contemporâneas.

A partir de uma perspectiva de sujeitos e culturas híbridas e de um movimento

de resgate e de reflexão das identidades nesse contexto, faz-se um estudo da obra

literária do escritor brasileiro e gaúcho Vitor Ramil – os livros Satolep e Pequod – e da

obra musical – os discos Tango (1987), Ramilonga (1997) e Délibáb (2014).

Consideram-se também o livro A Estética do Frio e o documentário A Linha Fria do

Horizonte, nos quais o artista reflete sobre sua produção artística e permite ao seu leitor

um panorama das questões que englobam sua arte, seu jeito de produzir.

Parte-se da ideia de produção de sentido a partir do lugar teorizada por Walter

Benjamin, autor que destaca uma literatura inquietante sobre a cidade, ou seja, aquela

que considera a multidão em seus textos, em oposição às fisiologias1 (BEJAMIN,

1985). O autor também fala da figura do flâneur, aquele indivíduo que percorre a

cidade, que toma a posição de detetive do lugar, buscando deslocar-se em meio à massa

(BENJAMIN, 1985).

1 O termo ‘fisiologia’ refere-se a um tipo de texto isento de sátira, a qual é responsável por mostrar as

ruínas por detrás da cidade vista, os problemas de uma metrópole urbana (BENJAMIN, 1985).

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Assim, a partir dessas ideias norteadoras, e do olhar de Benjamin sobre o espaço

urbano, busca-se refletir sobre a produção de sentido a partir do lugar na escrita de Vitor

Ramil. Em Benjamin observa-se um fascínio pela complexidade humana e pela

descontinuidade na movimentação das grandes cidades; “[...] [ele] vai propor caminhos

para a recuperação dos sentidos no espaço urbano” (ABREU, 2012, p. 23-24).

Pensa-se o percurso de composição da obra em Ramil como aquele de um

etnógrafo que sai a campo fazendo três movimentos: andar, ver, escrever (SILVA, 2009,

p. 174), sendo a cidade conhecida a partir do percurso que o indivíduo nela realiza.

“[Esta] se oferece como um quadro no museu, para cuja contemplação adequada ele

busca, com seus passos que tateiam o chão, o lugar ideal, o ângulo perfeito” (SILVA,

2009, p. 174). Ainda,

[...] se o olhar é a captação de instantes, coisas, pessoas e paisagens,

ele não é um registro (como uma fotografia) e sim um travelling, a

melhor palavra para indicar seu sentido porque o recupera no

deslocamento. Travelling, travel. Viajar [...] O olhar vê onde o andar lhe leva [...] (SILVA, 2009, p. 174-175).

Pode-se definir o olhar de Ramil como o descrito por Silva: percorrer, ver,

escrever. A partir desse movimento, o artista cria um jeito de fazer arte que se distancia

do tradicional, que lê a cidade, o lugar, a região e, a partir da leitura, cria uma escrita

que tenta dar conta do que vê, do que sente ao andar, ao contrapor sua identidade

múltipla e contemporânea com coisas já vistas, feitas – às quais se denominam

tradicionais, canônicas. Esse movimento que se entende ser o de Ramil é um

movimento que cria sentido para o lugar, uma arte que se constitui a partir da memória e

que busca diluir fronteiras – locais, regionais, nacionais.

A ESTÉTICA DO FRIO E A OBRA LITERÁRIA

As narrativas em prosa de Ramil data, de 1995 a primeira – Pequod – e 2008 a

segunda – Satolep –, aqui analisadas. Entre estas, um ensaio sobre a obra, escrito no

final dos anos 1990 e início dos 2000, situa o leitor em relação às inquietações que

motivam o autor e compositor a escrever.

Essas inquietações têm relação com o lugar natal de Ramil, situado na Região

Sul do Brasil: paisagem climática diferente do restante do país. Também têm relação

com o deslocamento do autor para o Rio de Janeiro durante um mês de junho, quando

como “normais” as de um carnaval fora de época no Nordeste e como “anormais” as da

chegada de um inverno rigoroso no Sul:

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[...] [viu] o Rio Grande do Sul: campos cobertos de geada na luz branca da manhã, crianças escrevendo com o dedo no gelo depositado

nos vidros dos carros, homens de poncho [...] andando de bicicleta,

águas congeladas, a expectativa de neve na serra, um chimarrão

fumegando [...] (RAMIL, 2004, p. 9-10).

As imagens logo remeteram a um desejo de estar não em Copacabana, mas em

Porto Alegre. E certa inquietação em relação à identidade começa a se fazer perceptível

pelo autor. Ao sentir-se um diferente no Brasil tropical e sentir o Rio Grande do Sul

como o lugar mais íntimo, Ramil busca definir um conceito próprio denominado

“estética do frio”. Essa conceituação compreenderia a paisagem cultural e climática de

um indivíduo que vive no sul do país.

Surge naquele junho em Copacabana um estranhamento por parte do autor em

relação ao seu lugar enquanto indivíduo e artista. Sua ida ao Rio de Janeiro tinha total

ligação com a divulgação da obra, mas a percepção da diferença fez-lhe buscar falar

mais de seu lugar, buscando entendê-lo. Já que seu lugar natal era mesmo diferente do

restante do país, já que todas as coisas relacionadas ao calor há nas outras regiões,

menos o frio:

[...] o frio é um grande diferencial entre nós e os “brasileiros”. E o

tamanho da diferença que ele representa vai além do fato de que em nenhum lugar do Brasil sente-se tanto frio como no Sul. Por ser

emblema de um clima de estações bem definidas – e de nossas

próprias, íntimas estações; por determinar nossa cultura, nossos hábitos, ou movimentar nossa economia; por estar identificado com a

nossa paisagem; por ambientar tanto o gaúcho existência-quase-

romanesca, como também o rio-grandense e tudo o que não lhe é

estranho; por isso tudo que o frio, independente de não ser exclusivamente nosso, nos distingue das outras regiões do Brasil; [...]

simboliza o Rio Grande do Sul e é simbolizado por ele (RAMIL,

2004, p. 13-14).

Ramil define, então, um estética do frio ligada a uma imagem que pudesse

expressar o jeito de ser da gente do Sul, a qual relaciona-se ao Pampa gaúcho: “[...] o

pampa pode ocupar uma área pequena do território do Rio Grande do Sul, pode, a rigor,

nem existir, mas é um vasto fundo na nossa paisagem interior” (RAMIL, 2004, p. 19).

Além dessa imagem, Ramil define a milonga como a música que caracteriza sua estética

do frio: “[...] assim como o gaúcho e o pampa, a milonga é comum a Rio Grande do Sul,

Uruguai e Argentina, inexistindo no resto do Brasil” (RAMIL, 2004, p. 22).

Assim, com as questões norteadoras de seu pensamento enquanto artista, Vitor

Ramil trabalha a ideia de unidade em sua obra, no sentido de falar de uma identidade

gaúcha, regional e nacional ao mesmo tempo em toda a sua produção artística. Partindo-

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se dessa premissa, busca-se ilustrar os pontos de convergência entre as prosas Pequod e

Satolep e as reflexões de A Estética do Frio.

No livro Pequod, publicado em 1995, a história se passa na época de infância do

personagem principal, um menino sem nome que vive sua infância na cidade de

Satolep. O pai é natural de Montevidéu, cidade para onde viajam quando da morte do

avô. Na ótica do menino, percebe-se a relação com a cidade e com o lugar no qual vive

através do relato de diferentes fatos relevantes em sua vida, e de sua formação como

indivíduo no meio em que se situa. Percebe-se também a relação do eu com outro, nesse

caso o país vizinho Uruguai, os hábitos diferentes, a língua distinta, numa relação

possível de proximidade expressa nas figuras de pai e filho.

Observa-se nesse primeiro texto ficcional de Ramil a relação do indivíduo

menino com o espaço. Além disso, há uma visita a Montevidéu, numa relação de

sentidos que faz parte da obra do autor: a escrita do pampa, a musicalidade latinoa-

americana, a aproximação com os países vizinhos na questão da música e do

pensamento sobre a escritura:

[...] o início da minha atividade de escritor coincide com os primeiros

passos da estética do frio. Minha primeira novela chama-se Pequod, e

seus cenários são Satolep, uma idealização da minha cidade, e

Montevidéu, capital do Uruguai, cidade bastante próxima e ainda mais ao sul da América, onde meu pai nasceu. Trata-se de uma narrativa

longa feita de pequenas narrativas articuladas sob uma suposta forma

da memória. Transitando entre a precisão e a vaguidade, sua elaboração deve muito a esse conjunto de ideias (RAMIL, 2004, p.

27).

As diferenças entre o eu e o outro também são debatidas na prosa Satolep,

através dos lugares geográficos Sul e Norte. A personagem principal Selbor, ao

desembarcar na cidade de Satolep e conversar com alguém local ouve:

[...] ‘Por vezes, os nossos compatriotas distantes perguntam,

envolvendo na indagação uma afirmativa: o Sul!... é estéril... Lá o

minuano cresta a inspiração, resfria a ebulição mental, criadora...

Daqui, de fugazes e ruidosos cenáculos, cujos ecos aparamos, também interrogamos, dizendo: o Norte!... o calor é dissolvente; amolenta e

fatiga... E, nem uns nem outros temos razão bastante; somos

preliminarmente ignorantes das nossas coisas e pejorativamente descuidosos de conhecê-las, para amá-las. Não estabelecemos uma

permuta intelectual, não confraternizamos, em suma’ (RAMIL, 2008,

p. 54).

Ao trazer para o debate dos personagens as questões que o inquietam enquanto

sujeito que pensa sobre o seu lugar, Ramil direciona também para a questão das

diferenças de sentimentos e percepções entre um e outro, para o não estabelecimento de

contatos, o que gera conflitos de identidade, tais quais os descritos em A Estética do

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Frio. Além disso, Selbor viveu em “lugares ao sol” (RAMIL, 2008, p. 10), mas precisou

retornar para sua cidade natal quando do seu aniversário de trinta anos, porque de

alguma forma precisava das estações do Sul, estações estas marcadas pelo frio. Em

Satolep, elas são marcadas pela umidade e pelo frio.

A personagem Selbor, ao se instalar definitivamente na cidade de Satolep,

também está ali movido pelo sentimento de que as estações frias sim é que eram suas

estações, já que abandona o Norte (para onde viajara) movido pelo sentimento

inexplicável de que nada lá era seu. E, ao voltar, procura seguir seu intento: rever as

coisas geometrizadas pelo frio, aquelas todas que ele ainda trazia na lembrança e torná-

las ainda mais presentes, mais vivas em seu corpo.

[...] Já vi um anoitecer límpido de verão na praia do Laranjal. Céu

azul-marinho, lua cheia, branca e luminosa junto à Lagoa dos Patos.

[...] Vi também o anoitecer de outono e o de primavera. Mas é um anoitecer de inverno como o da noite em que iniciei este relato que

simboliza o anoitecer em Satolep. A luminosidade caía à medida que o

bonde avançava. A névoa que eu vira rasteira pelos campos começava a emanar do fundo das ruas, por todos os lados, simultaneamente

(RAMIL, 2008, p. 28).

Ramil inicia o relato em Satolep falando de uma inadequação corpo/lugar por

parte de Selbor quando este não consegue mais permanecer nos lugares perto ao sol e

retorna em busca do reencontro com as estações do Sul, aquelas do frio. E quando

Selbor define o anoitecer de inverno como o anoitecer que simboliza Satolep, ele replica

o que Ramil afirma em seu ensaio: o frio diferencia o Sul do restante e de todo

brasileiro que não mora aqui.

Ao percorrer os caminhos de pedra no percurso por Satolep, Selbor cria um

registro, uma “série documental sobre a cidade, fotos acompanhadas de textos; [...] uma

espécie de diário de viagem [...]” (RAMIL, 2008, p. 214). É, pois, a milonga a música

que intermedia o caminho de Selbor:

[...] melancólica e pura... [...] amiga dos silêncios e dos vazios;

profunda, clara, concisa; [...] Que outra, se não essa música de

nuanças, intensa e extensa, poderia conciliar em uma só expressão a vastidão monocromática e campo e céu e o detalhismo sofisticado da

arquitetura de Satolep?’ (RAMIL, 2008, p. 84).

Assim, Pequod é o olhar de um menino sobre o lugar e a relação deste com o

outro – o país vizinho Uruguai. Satolep é a escolha de um sujeito em viver num lugar

frio em oposição a outros – os lugares ao sol, ao Norte. Há em ambas as narrativas uma

descrição de lugar a partir das memórias e das percepções de seus personagens, sendo

esse lugar sempre o mais próximo possível de um Sul frio.

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OS DISCOS TANGO, RAMILONGA, DÉLIBÁB

Datados dos anos de 1987, 1997 e 2010, respectivamente, foram escolhidos os

discos Tango, Ramilonga e Délibáb para a análise da questão da memória em Vitor

Ramil, numa opção de escolha do terceiro disco a cada três produzidos. Esta escolha, do

terceiro, do sexto e do nono disco, deveu-se ao fato de cada um destes corresponder a

uma década diferente, motivo que promove uma reflexão sobre os diferentes momentos

do artista e uma curiosidade em relação à unidade por ele comentada e vislumbrada em

sua obra. Vale destacar que se busca compreender o sentido das canções enquanto

poesia a ser interpretada, não se fazendo relevante aqui a melodia escolhida para cada

letra, ou a composição musical de acordes.

Composto por sete canções, Tango nos dá a ver uma memória que pode ser

dividida em duas questões principais: memória do lugar em que se vive; memória

relacionada à identidade e à percepção de si em relação ao cotidiano das coisas vividas.

Neste sentido, as canções Sapatos em Copacabana, Joquim e Nino Rota no Sobrado

indicam uma relação do indivíduo com o lugar, enquanto as demais são reflexões do

sujeito a partir da memória das coisas vividas e sua relação identitária com as mesmas,

sem a presença do lugar físico. Mas, ainda que as canções citadas estejam ligadas a um

espaço, o sujeito que caminhará, escreverá e regressará os seus sapatos em Copacabana,

a biografia de Joquim e o percurso de um indivíduo pela Avenida Independência têm

ligação com a busca pessoal destes homens.

A memória do lugar está na descrição das coisas pertencentes a este. Em

Copacabana, o “maxixe”, “o mendigo”, “a história italiana”, “o polícia” (Sapatos em

Copacabana, In: RAMIL, 1987). A biografia de Joquim perpassa pela cidade: “Satolep

/ noite / no meio de uma guerra civil / o luar na janela não deixava a baronesa dormir

[...]” (Joquim, In: RAMIL, 1987). Nino Rota “[percorre] a Avenida Independência / os

travestis na esquina [fazem] sinais [...] / e [seus] sapatos pisam folhas de jornais” (Nino

Rota no Sobrado, In: RAMIL, 1987).

As questões de identidade, tão fortes nas letras das canções desse disco, são

recorrentes: “Sempre acordo com a luz do dia / [...] depois ando tonto pela casa / [...]

mais um dia quem sabe eu saio pra rua / mais um dia quem sabe eu vou pro trabalho

[...]” (Mais um dia, In: RAMIL, 1987); “[com vida escrevemos arte / sem ela ninguém

caminha]” (Virda, In: RAMIL, 1987); “Passos sem direção / eu ando só / [...] eu sou teu

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passageiro / perdido / marginal [...]” (Passageiro, In: RAMIL, 1987); “todo tempo

fiquei pensando como não / tenho nada a ver com isso / eu jogado no meu canto fico

divagando / [...]” (Nada a ver, In: RAMIL, 1987); “[...] se um dia qualquer / tudo pulsar

num imenso vazio / coisas saindo do nada / indo pro nada / [...] é sinal que valeu! [...]”

(Loucos de cara, In: RAMIL, 1987). Há, então, em Tango, um arrolamento claro do

sujeito lírico com seu espaço íntimo e também com o físico/geográfico.

Em Ramilonga é possível pensar novamente na questão da identidade de um eu

que perpassa por dois ambientes físicos: o urbano e o rural – sendo este perceptível pela

figura do Pampa gaúcho. Assim, duas das onze canções, Ramilonga e Milonga de Sete

Cidades, têm relação com o espaço da cidade: a primeira sobre a perspectiva dos

espaços públicos de uma única cidade – Porto Alegre – e suas características – um tarde

fria e chuvosa, um chimarrão na mão e as lembranças dos bairros, da Praça XV e sua

multidão, as ruas molhadas pela chuva e o Guaíba deserto (RAMIL, 1997); a outra

sobre as sensações vividas em sete cidades, as quais também podem representar o

processo de constituição de uma milonga: “[...] Fiz a milonga em sete cidades / Rigor,

Profundidade, Clareza / Em Concisão, Pureza, Leveza / E Melancolia / A voz de um

milongueiro não morre / Não vai embora em nuvem que passa / Sete cidades frias são

sua morada” (Milonga de Sete Cidades, In: RAMIL, 1997).

Dentre as demais canções, oito delas – Indo ao Pampa, Noite de São João,

Causo Farrapo, Gaudério, Deixando o pago, No manantial, Memória dos bardos das

Ramadas, e Último pedido – estão diretamente ligadas às questões que perpassam o

Pampa, o gaúcho do interior, conforme os exemplos que seguem: “a frente fria Pampa

adentro e através”, “a mata nativa” (Indo ao Pampa, In: RAMIL, 1997); a memória e a

tradição oral evocadas na canção Causo Farrapo – “[...] se aprochegue pra escutar / [...]

mais um causo eu vou contar” (RAMIL, 1997); “poncho e laço na garupa [...] dum

zaino negro gordacho” (Gaudério, In: RAMIL, 1997); “o pampa deserto” e “o céu

fincado no chão” (Deixando o pago, In: RAMIL, 1997). Não só as características das

coisas que pertencem ao universo interiorano, pampeano, mas também a linguagem

escolhida pela artista em suas composições destaca esse lugar; exemplos disso é o verbo

“aprochegar-se”, e as expressões “peleia das braba” (Causo Farrapo, In: RAMIL,

1997), “guacho”, “bolicho de campanha” (Gaudério, In: RAMIL, 1997), “baguala” (No

manantial, In: RAMIL, 1997). Ainda, a preocupação com a morte e as vontades que

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perpassam o sujeito pampeano expressas na canção Último pedido: “[...] me enterrem

num campo aberto / que eu sinta o vento pampeiro [...] (RAMIL, 1987).

Destaca-se a aproximação do gaúcho com os vizinhos do Uruguai expresso no

poema de Juca Ruivo, Memória dos Bardos das Ramadas, cuja letra dá conta da

“memória das guitarras castelhanas” e do “fascínio das histórias fronteiriças” (RAMIL,

1987). A diluição de uma fronteira nacional também se revela na canção Milonga, a

qual é um poema do folclore uruguaio, musicado pelo artista pelotense.

A aproximação com os países da Região do Prata também se percebe no disco

Délibáb, no qual Vitor Ramil musica poemas do gaúcho João da Cunha Vargas e

poemas do escritor argentino Jorge Luís Borges. Intercalando um poema de Vargas com

um de Borges, Ramil direciona as canções desse disco para duas temáticas. Uma delas é

a da memória, expressa por Borges, a qual permeia narrativas de sujeitos que viveram

em outras épocas e cujas histórias são lembradas através do tempo: “[...] albornoz pasa

silbando / una milonga entrerriana [...] pienso que le gustaría / saber que hoy anda su

historia / en una milonga, el tiempo / es olvido y es memoria” (Milonga de Albornoz, In:

RAMIL, 2010); “[...] hoy, caballeros, le canto / a la gente de color. / Marfil negro los

llamaban / los ingleses y holandeses / que aqui desembarcaron / al cabo de largos

meses. / [...] los ha llevado el tiempo / el tiempo que es olvido” (Milonga de Los

Morenos, In: RAMIL, 2010); “[...] velay, señores, la historia / de los hermanos iberra, /

hombres de amor y guerra [...]”(Milonga de Dos Hermanos, In: RAMIL, 2010). A outra

temática diz respeito às coisas comuns ao gaúcho pampeano, tais como o chimarrão

feito num “velho porongo crioulo” (Chimarrão, In: RAMIL, 2010), a tapera – “rancho

de barro caído” (Tapera, In: RAMIL, 2010) –, “a boleadeira e o laço cheio de talho e

pontaço” (Mango, In: RAMIL, 2010), o pampa deserto, a companheira do dia-a-dia, o

rincão querido – possível de ser lida nos versos de João da Cunha Vargas.

Desta forma, os discos mencionados perpassam questões caras à obra de Vitor

Ramil: identidade, gaúcho urbano e gaúcho pampeano, questões regionais comuns com

os países vizinhos, memória e esquecimento. A obra musical aqui analisada é uma arte

criada a partir da memória de lugares físicos, mas também da consolidação de uma

identidade híbrida que perpassa esses lugares, sejam eles urbanos ou pampeanos, os

quais compõem o espaço físico maior que é a Região Sul do Brasil.

A OBRA DE VITOR RAMIL COMO UMA ARTE QUE DILUI FRONTEIRAS

KLUG, Marlise Buchweitz; FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi.

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SOBRE A LINHA FRIA DO HORIZONTE

O documentário, produzido a partir das discussões e reflexões de Vitor Ramil,

reúne artistas do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina, buscando explorar

sobre a questão de uma música e de uma literatura que cruza as fronteiras e avança para

uma nova proposta do latino-americano, despido da aura de ativismo político ou

intelectual.

Apresenta, entre outros, impressões de Ramil sobre sua própria obra, além de

outros gaúchos como Marcelo Delacroix e Arthur de Faria, uruguaios, como Daniel

Drexler, Ana Prada e Jorge Drexler, e argentinos, tais como Kevin Johansen, Carlos

Moscardini e Tomi Lebrero. Todos eles destacam as influências de Ramil, além de

analisarem as convergências culturais da Região do Prata. Ana Prada (Uruguai) sugere

que há uma temática variada nesses lugares, mas com pontos em comum, sendo que a

influência da paisagem é algo determinante para o compositor desse local.

Ao ser questionado do porquê de uma produção à margem – no sentido de ser

longe da televisão, das gravadoras, e de ser do interior do Rio Grande do Sul – Ramil

destaca que vê seu Sul como centro de outra história, “o Rio Grande do Sul como

centro, como trânsito das culturas do Prata” (Vitor Ramil, 2014). Outro artista a

comentar sobre a busca dos pontos de encontro, Daniel Drexler (Uruguai, In: A LINHA

FRIA DO HORIZONTE, 2014) destaca que há muito observa Argentina dialogando

com Brasil, Uruguai com Argentina e Brasil, e que uma das vias de fazer esse encontro

de maneira mais rápida é através da cultura.

“O fato de estar no Sul, nos climas não quentes, impõe uma introspecção”

(Carlos Moscardini, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014). De tal modo que

diferentes artistas que produzem e falam a partir desse lugar situado na região do Prata –

quer seja Rio Grande do Sul, ou Argentina, ou Uruguai – possuem um texto entendido

por eles como semelhante devido à paisagem que os une.

Além disso, por mais que seja uma canção produzida no Sul e que fale das

coisas do Sul, não deixa de ser brasileira, nacional. Já que possui um tanto de regional,

mas também interferências urbanas de outros centros do Brasil, tais como do

tropicalismo, do samba, da bossa nova, enfim, a música de Ramil não pode ser

denominada gaúcha ou nativista:

[...] Vitor tem uma complexidade harmônica que não posso explicar

[...]; é um híbrido típico dessa região; uma mistura de coisas anglo-

saxãs com a milonga, com a construção de uma identidade a partir da

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milonga [...] uma harmonia que vem do mundo anglo-saxão e que vem muito do mundo da bossa nova e do samba [...] Vitor é mais brasileiro

do que crê; ao mesmo tempo é muito menos brasileiro do que as

pessoas pensam que é ser brasileiro quando na verdade ser brasileiro é

muito complexo (Jorge Drexler – Uruguai, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014).

Para o próprio autor, há em sua obra uma “[...] busca maior pela platinidade do

que pela brasilidade; busca da correspondência entre cidade e paisagem e o que eu

fazia” (Ramil, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014). Além disso, a temática do

frio está presente, pois para ele “[...] a gente no Sul aprende a descobrir a alegria do

frio” (Ramil, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014).

A escrita do lugar seria em Ramil também, além de uma imagem orientada pela

sensação climática, a tradução do sentimento coletivo experienciado por tantos artistas,

conforme os depoimentos em A Linha Fria do Horizonte. Mas também a tradução das

sensações vividas pelos admiradores da obra desses artistas: “[...] o Vitor de certa forma

redigiu, formulou [...] algo que, [...] como inconsciente coletivo de um lugar e de um

momento, é muito iluminador [...]; de certa forma ele traduziu um sentimento que é de

muita gente” (Arthur de Faria).

Nessa justificativa de que “[...] o clima marca as culturas” (Kevin Johansen –

Argentina, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE, 2014), e de que “[...] por trás de

todas as ideias [desses artistas] está a pergunta: como as coisas são vistas daqui?” (Dany

López – Uruguai), tem-se um texto que exprime as sensações vistas desse lugar, o qual

“[...] [é] mais importante do que a música” (Jorge Drexler, In: A LINHA FRIA DO

HORIZONTE, 2014).

Nesse contexto, a música escolhida para transmitir a mensagem que vem do frio

é a milonga, ritmo comum aos artistas integrantes do documentário produzido. A

identidade do Prata construída por diferentes artistas transita por temas comuns no texto

cantado e escrito:

[...] Do mundo inteiro, é no Brasil, no Sul, onde o mate é levado mais

a sério, porque é uma afirmação, é uma reafirmação de identidade. No

Uruguai, o mate tem estado em cima da mesa a vida toda. No Rio Grande do Sul também, mas todos os uruguaios tomam o mate, mas só

o tomam os brasileiros do Sul. É curioso como se constrói a

identidade, e como é defendida [...] Difícil pensar no rock primigênio

sem álcool, ou no reggae sem cannabis, e na milonga sem o churrasco e o mate. Tudo tem o seu próprio psicotrópico associado. E não é por

acaso uma paisagem coincidir com o território da milonga, como o

território ilex paraguariensis... Com o mate, uma paisagem, um tipo de clima [...] (Jorge Drexler, In: A LINHA FRIA DO HORIZONTE,

2014).

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Assim, tem-se uma paisagem, uma sensação climática, um estilo musical, zonas

de contato que permitem pensar uma estética do frio, que ao mesmo tempo situa o Rio

Grande do Sul na Região do Prata, e dentro do Brasil: “O Vitor nos aproxima do Brasil

com a milonga dele, pois não é um ritmo folclórico, mas soa como algo universal, com

caráter do Sul, mas não fechado” (Marcelo Delacroix, In: A LINHA FRIA DO

HORIZONTE, 2014).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destaca-se que o texto A Estética do Frio e o documentário A Linha Fria do

Horizonte são reflexões do autor sobre a obra no sentido de elucidar seu leitor em

relação àquilo que produz, e ao seu modo de fazer arte. Uma sensação de não

pertencimento sentida por Ramil quando foi morar no Rio de Janeiro fez-lhe necessitar

criar uma estética que pudesse defini-lo enquanto indivíduo que vinha de um lugar frio,

mas que ainda assim era brasileiro e era diferente do estereótipo conhecido.

As sensações sobre o lugar são, então, temática constante em sua obra, tanto

literária quanto musical. As narrativas ficcionais de Pequod e de Satolep situam os

personagens numa cidade chamada Satolep, onde eles vivem diferentes situações. O

personagem do primeiro livro é um menino que tem contato com a cidade natal e

também com a cidade de Buenos Aires, para onde viaja com o pai, sendo a imagem da

chuva e da praia características desses lugares. Já em Satolep, o personagem principal é

um fotógrafo que vive diferentes sensações na cidade, mas as descrições da umidade, do

frio e do inverno, marcadas pela conversa com amigos em volta de um violão, são bem

presentes na narrativa.

Os discos Tango, Ramilonga e Délibáb apresentam um percurso artístico que vai

consolidando uma memória local, regional, nacional, latino-americana, perpassando por

questões do indivíduo que se situa no Sul e que busca encontrar sua identidade; pelo

sujeito que se percebe híbrido, que é parte de um lugar múltiplo no qual estão

congregados o gaúcho urbano, citadino, mas também o gaúcho pampeano, cujo modo

de viver se assemelha ao de seus irmãos fronteiriços.

E, o documentário A Linha Fria do Horizonte foi produzido a partir das

discussões e reflexões de Vitor Ramil sobre sua obra e reúne artistas do Rio Grande do

Sul, do Uruguai e da Argentina, buscando explorar sobre a questão de uma música e de

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uma literatura que cruza as fronteiras e avança para uma nova proposta do latino-

americano, despido da aura de ativismo político ou intelectual.

A ideia de unidade expressa por Ramil, em A Estética do Frio, é recorrente em

seu trabalho. Unidade não só no sentido de procurar defini-la dentro de cada uma de

suas obras, unidade entre ser e objeto, interferindo mutuamente na construção e

formação do outro, mas também unidade entre sua obra num todo, com ideias que se

vão costurando umas às outras, sendo elas aprimoradas com o passar do tempo,

buscando sempre o mais próximo possível da exatidão, palavra que define um jeito de

fazer arte próprio de um artista que pretende falar de si a partir do seu lugar.

Destaca-se uma forma de escrita e de fazer arte por parte de Vitor Ramil que

busca diluir fronteiras, buscando dialogar e criar zonas de contato. Sua obra busca

contemplar indivíduos que estão no Sul do Brasil, mas que são também brasileiros,

também platinos, além de gaúchos. Sua forma de pensar o lugar está desligada de

qualquer ideologia militante e pretende falar do seu lugar marginal, através de uma

escrita, uma arte não tradicional e não canônica.

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