A noção de habitus e cotidiano - Artigo

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Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – PPGCS/FFCH/UFBA A NOÇÃO DE HABITUS E O COTIDIANO NA PRÁXIS HUMANA: diálogos possíveis entre Bourdieu, Certeau, Lefebvre e Heller. Anderson Carvalho dos Santos Mestrando em Ciências Sociais – FFCH/UFBA RESUMO: o presente artigo tem por objetivo elucidar possíveis interconexões entre os conceitos de habitus e cotidiano da vida humana, ressignificados no âmbito das discussões da teoria social na contemporaneidade, a partir da análise das proximidades e afastamentos das perspectivas de construção desses conceitos pelo sociólogo Pierre Bourdieu e pelos teóricos do cotidiano Michel de Certeau, Henri Lefebvre e Agnes Heller. Acredita-se que a noção de habitus de Bourdieu, na medida em que imputa um caráter ativo aos indivíduos na produção e reprodução da vida social, tenta entender o próprio processo de socialização como a mediação de disposições individuais subjetivas e estruturas sociais objetivas já encontradas historicamente. Inquietações da mesma natureza tiveram os teóricos do cotidiano, cada qual com seu arsenal teórico, em busca de entender como a produção da vida social e as relações indivíduo-sociedade se gestavam na contemporaneidade. Certeau atribui às redes de anti-disciplina, gestadas na apropriação do sistema social pelos indivíduos e sua inevitável resistência a este, a própria possibilidade de invenção do cotidiano. Lefebvre e Heller tentam, utilizando o método crítico, reconstruir a noção de cotidiano da vida humana no mundo capitalista a partir da possibilidade de uma práxis transformadora da realidade sócio-histórica. Acreditamos ser possível que a compreensão das inquietações e saídas teóricas que os autores estudados lançaram mão possa fornecer a possibilidade de apreendermos a problemática da reprodução da vida humana de uma forma mais

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Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – PPGCS/FFCH/UFBA

A NOÇÃO DE HABITUS E O COTIDIANO NA PRÁXIS HUMANA:

diálogos possíveis entre Bourdieu, Certeau, Lefebvre e Heller.

Anderson Carvalho dos Santos

Mestrando em Ciências Sociais – FFCH/UFBA

RESUMO: o presente artigo tem por objetivo elucidar possíveis interconexões entre os conceitos de habitus e cotidiano da vida humana, ressignificados no âmbito das discussões da teoria social na contemporaneidade, a partir da análise das proximidades e afastamentos das perspectivas de construção desses conceitos pelo sociólogo Pierre Bourdieu e pelos teóricos do cotidiano Michel de Certeau, Henri Lefebvre e Agnes Heller. Acredita-se que a noção de habitus de Bourdieu, na medida em que imputa um caráter ativo aos indivíduos na produção e reprodução da vida social, tenta entender o próprio processo de socialização como a mediação de disposições individuais subjetivas e estruturas sociais objetivas já encontradas historicamente. Inquietações da mesma natureza tiveram os teóricos do cotidiano, cada qual com seu arsenal teórico, em busca de entender como a produção da vida social e as relações indivíduo-sociedade se gestavam na contemporaneidade. Certeau atribui às redes de anti-disciplina, gestadas na apropriação do sistema social pelos indivíduos e sua inevitável resistência a este, a própria possibilidade de invenção do cotidiano. Lefebvre e Heller tentam, utilizando o método crítico, reconstruir a noção de cotidiano da vida humana no mundo capitalista a partir da possibilidade de uma práxis transformadora da realidade sócio-histórica. Acreditamos ser possível que a compreensão das inquietações e saídas teóricas que os autores estudados lançaram mão possa fornecer a possibilidade de apreendermos a problemática da reprodução da vida humana de uma forma mais abrangente e menos dependente do olhar disciplinar que os diversos métodos científicos costumam induzir.

PALAVRAS-CHAVE: habitus, cotidiano, vida humana, práxis.

Disciplina: Teoria Social Contemporânea

Professores: Iara Souza e Paulo César Alves

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Introdução

A análise da produção e reprodução da vida humana em sociedade e as

interconexões entre a perspectiva individual, singular e a estrutura social é o

cerne da preocupação de teóricos das ciências humanas e sociais. De fato,

compreender de que modo os indivíduos agem sobre uma sociedade onde

regras e normas são fatos objetivos e acabam por influenciar escolhas,

julgamentos, gostos e hábitos não é tarefa simples. O ponto de partida de

análise possivelmente reside na seguinte questão: realmente os indivíduos

agem sob um total contingenciamento nas práticas sociais ou suas alternativas

de vida no dia-a-dia ante a um mundo posto e herdado tem mais repercussão e

são constitutivas da própria realidade social? Essas inquietações estão

presentes nas obras de vários autores das ciências sociais e são elemento

formador da compreensão sociológica de várias correntes de pensamento.

Na contemporaneidade, em particular, podemos encontrar alguns autores que

dedicaram boa parte de suas obras a essa temática. Pierre Bourdieu dedicou

boa parte de sua obra a aplicar os conceitos de habitus e campo, onde

procurou delinear sua perspectiva de gestação da vida social a partir da crítica

a noções estruturalistas, por um lado, e fenomenológicas, de outro. Seu

arcabouço teórico procurou tratar das mediações entre os condicionamentos

sociais exteriores ao sujeito e a subjetividade desses próprios sujeitos. A noção

de habitus, desse modo, encerra uma noção de matriz cultural, que predispõe

os indivíduos a fazerem suas escolhas. Ela ajuda a romper com a dualidade do

senso comum do indivíduo e da sociedade ao captar o modo como a própria

sociedade se deposita na ação individual e se ressignifica historicamente.

Também podemos observar como o conceito de cotidiano auxilia na

compreensão dessas disposições, visto que a regularidade das ações, a

aparente banalidade do reproduzir a vida do dia-a-dia, é geradora de toda a

possibilidade de transformação da realidade social. Michel de Certeau

pressupõe o fato de que há um equívoco na compreensão de que o consumo,

as práticas humanas corriqueiras, o enredo das idéias e valores na vida dos

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indivíduos seja apenas um fruto direto do conformismo ante aos poderes

instituídos e à dominação. Ele acredita que existe, na reprodução da vida

individual, transgressões que se configuram como resistências à imposições

sociais externas e que formam uma rede de anti-disciplina, traço da vida social.

A cultura para ele é vista a partir da ação individual, sendo o homem inventor

do próprio cotidiano.

Perspectiva diferente tem os autores marxianos Henri Lefebvre e Agnes Heller.

Partindo de uma crítica severa ao marxismo vulgar (economicismo,

estruturalismo, materialismo abstrato), por um lado, e à perspectiva

fenomenológica por outro, elaboram, a partir da noção luckacsiana de

reificação do ser social, uma noção de cotidiano onde a vida humana é palco

da dialética das relações sociais totalizantes de produção da vida objetiva,

material e das práticas individuais encerradas no singular. A questão política aí

tem centralidade, haja vista que para esses autores, a práxis libertadora é

gerada no seio da própria vida cotidiana, ainda que advoguem que em muitos

momentos históricos a suspensão da vida cotidiana seja necessária para que

haja o encontro entre o ser singular e o ser genérico, num momento de

objetivação social e retorno à vida cotidiana em outro nível de consciência.

A noção de habitus em Bourdieu: gênese e implicações

A origem do termo latim habitus, vem do grego hexis, que Aristóteles entendia

por um estado adquirido que orienta nossa moral e nossa conduta. Na

Escolástica Medieval, Tomás de Aquino traduziu para o latim que determinava

características corpóreas e espirituais adquiridas num processo de intensa

aprendizagem. Ainda poderia ser usada como uma disposição durável que

ficava entre o factível e o premeditado.

Durkheim também faz o uso desse conceito em sua obra “A evolução

pedagógica” para designar o estado geral dos indivíduos, orientador de ações

de forma durável (SETTON, 2002). O termo ainda vai ser utilizado por Marcel

Mauss, em As técnicas do corpo, assim como também em Max Weber. A

fenomenologia também se apropria do conceito e por meio de Edmund Husserl

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designava-o como conduta mental proveniente de experiências passadas em

mediação com ações futuras (WACQUANT, 2002).

Em Bourdieu, o conceito toma corpo na sua crítica ao estruturalismo e a

fenomenologia, atingindo importância fundamental para o escopo de sua teoria.

Para ele, o habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a noção

de senso comum entre indivíduo e sociedade e apreender as relações de

afinidade entre o comportamento dos agentes e as estruturas e

condicionamentos sociais. Segundo ele, o habitus é compreendido por:

“[...] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que,

integrando todas as experiências passadas, funciona a cada

momento como uma matriz de percepções, de apreciações e

ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente

diferenciadas, graças às transferências analógicas de

esquemas [...] (Bourdieu, 1983:65).

A noção de habitus para Bourdieu se torna universal, um instrumento

conceitual poderoso para analisar com coerência características de indivíduos

expostos a uma mesma condição de existência. Para chegar a essa noção o

autor tem de ser valer a critica à outras correntes de pensamento que tentam

apreender essa noção: a fenomenologia e o estruturalismo. Na primeira

corrente de pensamento,

[...] a verdade da experiência primeira do mundo social, isto é,

a relação de familiaridade com o meio familiar, apreensão do

mundo social como mundo natural e evidente, sobre o qual, por

definição, não se pensa, e se exclui a questão de suas próprias

condições de possibilidade. O conhecimento que podemos

chamar de objetivista (de que a hermenêutica estruturalista é

um caso particular) (que) constrói relações objetivas (isto é,

econômicas e lingüísticas), que estruturam as práticas e as

representações práticas ao preço de uma ruptura com esse

conhecimento primeiro e, portanto, com os pressupostos

tacitamente assumidos que conferem ao mundo social seu

caráter de evidencia e natural [...] Enfim, o conhecimento que

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podemos chamar de praxiológico tem como objeto não

somente o sistema de relações objetivas que o modo de

conhecimento objetivista constrói, mas também as relações

dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas

nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las, isto

é, o duplo processo de interiorização da exterioridade e

exteriorização da interioridade. (Bourdieu, 1983:46-47).

Dessa forma, o habitus pressupõe uma relação dialética entre sujeito e

sociedade, uma relação de mão dupla entre habitus e campo, determinado

socialmente. Assim, ações, comportamentos, escolhas individuais não derivam

de cálculos ou planejamentos, mas de respostas a pressões conjunturais. O

habitus, para Bourdieu, tem uma relação estrita com a perspectiva de campo e

suas conjunturas. Ele, dessa forma, “adquire um status de um conjunto de

esquemas de percepção, apropriação e ação que é experimentado e posto em

prática, tendo em vista que as conjunturas de um campo o estimulam”

(SETTON, 2002).

O habitus não se conforma como uma disposição natural, mas sobretudo,

advinda do social com variáveis bem definidas de espaço, tempo e poder. Ele

não é a prática em si, porém se estende para todos os domínios das práticas

humanas, se tornando uma disposição para e em si dentro de uma perspectiva

de um determinado estilo de vida ou de classe.

A noção de habitus não é eterna, ainda que durável , mesmo sendo dotado de

uma inércia incorporada e um defasamento inetivável ante a determinações

passadas em confrontamento com situações atuais (WACQUANT, 2002).

O habitus “é aquilo que confere às práticas a sua relativa autonomia no que diz

respeito às determinações externas do presente imediato. Esta autonomia é a

do passado, ordenado e atuante, que, funcionando como capital acumulado

produz história na base da história e assim assegura que a permanência no

interior da mudança faça do agente individual um mundo no interior do mundo”

(BOURDIEU 1980/1990: 56).

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Não devemos entender, contudo, que o habitus é a ação, ou gera

necessariamente a ação. Ele atua como um catalisador que necessita de um

estímulo externo e não pode ser desvinculado dos campos. Antes de tudo é

uma matriz de esquemas híbridos que tende a ser acionada conforme os

contextos sociais de produção e realização (WACQUANT, 2002).

A noção de habitus está para ser verificada muito mais do que em esquemas

teóricos fechados e abstratos. Ela só pode ser apreendida na análise empírica,

na captação do movimento das práticas tal qual ele se apresenta. A

classificação proposta por Bourdieu, em termos de conceituação nos serve

para reforçar a perspectiva dialética da análise das práticas cotidianas na vida

humana e relacioná-las de modo mais orgânico com a teia social que compõe

cada conjuntura dos grupos sociais.

Em Bourdieu, ainda que a noção de habitus esteja ligada a historicidade dos

grupos sociais e perpetuação de novas tendências e disposições no devir

sociológico, nos parece que sua análise está vinculada com uma noção de

época histórica muito bem definida, que é a modernidade permeada pelas

relações de produção e de dominação entre os diversos segmentos sociais.

Para nós, ainda que tivesse feito uma tentativa grandiosa de capturar esse

movimento, ao elucidar que o habitus não está sempre de acordo com o mundo

em evolução, ou seja, preparado para analisar situações de crise e mudança

social, Bourdieu não consegue capturar as características mais gerais desse

habitus em mudança constante, relacionado mais intimamente com o processo

histórico em constante mudança com as ações dos homens no cotidiano.

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O cotidiano em Certeau

O francês Michel de Certeau se preocupou em boa parte da sua contribuição

teórica à Filosofia e às Ciências Humanas em compreender as maneiras de

fazer das massas anônimas. Seus estudos sobre os discursos místicos do

século XVII o inspirou a ter uma postura epistemológica que privilegiou a

captura do que não estava dito por completo pela história e pelos discursos

oficiais. Dessa forma, procurou analisar o mundo vivido pelos homens, a partir

de seus gestos, escolhas, hábitos, práticas, falas, encarando-os como parte de

um arcabouço predispositivo por parte desses mesmos homens para uma

perspectiva de desvio de norma, de conduta. Para ele, a atuação humana não

era passiva ante ao estruturado, ao herdado e socializado. Pelo contrário, ela

era subproduto de uma predisposição à sair da norma, a burlar o sistema.

Focando na perspectiva do consumo de bens culturais e materiais, pressupõe

que existe uma tendência a apropriações e ressignificações imprevisíveis, que

fogem do controle e da idealização das coisas (SOUSA FILHO, 2002).

Em seu “A invenção do cotidiano”, se preocupa em demonstrar as artimanhas

do consumidor cultural no esvaziamento do poder normativo e na negação

diária da homogeneização atribuída ao sistema. Podemos ver na asserção de

Levigard e Barbosa (2010) que para Certeau:

“É na vida cotidiana que (ele) vai buscar, igualmente, a

compreensão dos movimentos de resistência ante as forças

hegemônicas de reprodução e de controle social. (...) através

das práticas cotidianas o indivíduo se reapropria do sistema

produzido e fabrica redes de anti-disciplina. Isto é, o indivíduo

cria meios para escapar ou fugir dos modelos de consumo

impostos pela ordem dominante, inventando o cotidiano.

(Levigard & Barbosa, 2010:87).

A dominação, para Certeau, é cravada por microresistências que pressupõem

acordos culturais muitas vezes imperceptíveis e que são a base da

estruturação da vida em sociedade e que contribuem para a perspectiva de

mudança social. Ao analisar os microespaços como lugares sociais onde se

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perpetuam as transgressões ao normativo, Certeau admite que esses

microespaços são mais abertos à criatividade e ação do homem, ainda que

sofrendo a repressão consciente da ordem.

Ainda em “A invenção do cotidiano”, o autor dialoga com Foucault ao afirmar

que a antidisciplina se constitui como uma rede de procedimentos articulados e

acumulados historicamente num enredo social quase que uniformemente

convergente para a perspectiva de enfrentamento à atomização apresentada

pelo advento do poder e não como a violência da ordem se vale de tecnologias

disciplinares e estruturantes da vida social. As artes de fazer não são

facilmente colonizadas, pois conservam poderes de diversas épocas anteriores

(SOUSA FILHO, 2002).

Numa clara oposição a noção de dominação domesticadora, Certeau é um

estrito crente de que as obras humanas, ainda que não claramente

intencionais, são transgressoras e transformadoras em potencial, revelando

sua preferência pela análise que parte do individual, do singular, ainda que

estas predisposições se generalizem na sociedade.

Para ele,

“os mecanismos de resistência são os mesmos, de uma época para outra, de uma ordem para outra, pois continua vigorando a mesma distribuição desigual de forças e os mesmos processos de desvio servem ao fraco como último recurso, como outras tantas escapatórias e astúcias, vindas de ‘imemoriais inteligências, enraizadas no passado da espécie [...]” (Certeau, 2001:19).

Dessa forma, analisa a vida política como um sub-produto da luta cotidiana dos

indivíduos frente ao processo de dominação e opressão, como um processo

ordenado e imemorial localizado historicamente nas experiências passadas de

vivencias humanas.

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O giro epistemológico: significados da vida cotidiana em Lefebvre e

Heller

As contribuições de Lefebvre e Heller para a análise do cotidiano são

inegáveis. Herdeiros da visão marxiana de Lukács no combate ao marxismo

vulgar e as tendências economicistas e estruturalistas da análise da sociedade,

mantém a perspectiva desse autor de desmitificar a análise marxiana da

realidade onde á totalidade é composta por aspectos centrais da vida cotidiana.

Durante toda a sua obra, Lukács se preocupou em analisar, a partir da visão

materialista da História, os processos da vida comum, tão possíveis de serem

relegados à metafísica.

Dessa forma, ele descobre na reificação das relações entre os indivíduos o

alicerce da vida cotidiana contemporânea. É na coisificação das relações a

partir da forma mercadoria, imbricadas em atitudes, em rotinas, normas e

substância de valores que está fundada a essência da vida em sociedade em

nossos tempos.

Esses autores, então, procuram atualizar sua obra e discutir as perspectivas de

mudança social a partir da valorização da suspensão do cotidiano a partir da

práxis libertadora, onde os indivíduos supostamente iriam adquirir um novo tipo

de cotidianidade.

Para Lefebvre, o Estado moderno é o grande gestor de toda a vida social.

Apenas escapa ao Estado o insignificante, as minúsculas decisões onde os

indivíduos podem encontram a felicidade. Ainda assim:

“se é verdade que o Estado apenas deixa de fora o

insignificante, também é verdade que o edifício burocrático

sempre tem fissuras, vãos e intervalos (...) o indivíduo procura

alargar essas fissuras e passar pelos vãos” (Lefebvre,

1981:126-127)

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Ele aborda essa perspectiva por duas razões primeiras. Uma é que na vida

contemporânea, as relações sociais de dominação ganharam primazia sobre

as relações de produção, ainda que aquela esteja contida nesta. Em segundo

lugar, é que a própria produção capitalista se ocupa de ter como centro de sua

atenção e atuação, justamente a vida cotidiana, que é o espaço de produção e

reprodução da vida social.

Para o autor, a vida cotidiana é planejada em nossos tempos para ser o espaço

da realização do consumo de bens materiais e culturais, onde aos indivíduos

tendem à homogeneização das relações, dos costumes e dos valores. Para

captar essa realidade então é preciso lançar mão do método crítico, onde a

análise da realidade e das predisposições no campo produtivo são o fio

condutor para a apreensão do movimento da vida cotidiana.

Lefebvre assume que na apreensão da vida cotidiana devemos levar em

consideração três aspectos fundamentais: a noção de que a vida cotidiana é

um dado sensível e prático e o dado abstrato, onde a busca do real deve ser

incessante; a noção de totalidade, onde as partes não são exatamente o todo,

mas se realizam nele, a partir de um processo de estruturação e

desestruturação; e, por último, a noção da vida cotidiana como motor de

transformações globais, dando a possibilidade de suspensão desse cotidiano à

ação transformadora e o encontro com o ser genérico (CARVALHO, 2010).

Para Heller, o cotidiano é a vida de todos os dias, diferenciáveis dadas as

diferenças de grupo ou classe social.

“A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem

participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua

individualidade, de sua personalidade. Nela colocam-se ‘em

funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas

capacidades intelectuais, suas habilidades manipuladoras,

seus sentimentos, paixões, idéias, ideologias. O fato de que

todas as suas capacidades se coloquem em funcionamento

determina também, naturalmente, que nenhuma delas possa

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realizar-se, nem de longe, em toda a sua intensidade.” (Heller,

1972:17)

A vida cotidiana é heterogênea e hierárquica, não sendo rígida nem imutável,

pois se altera de acordo com a mudança histórica. Uma das suas principais

características, para Heller, é sua imediaticidade e pensamento manipulador. A

utilidade das práticas é o critério da verdade, pautada na eficácia dessas

mesmas práticas. Nesse sentido, a vida cotidiana adquire uma tendência à vida

funcional. (CARVALHO, 2010)

A idéia marxiana de homem enquanto ser genérico está presente na obra de

Heller. O homem social é ao mesmo tempo singular e genérico. Na vida

cotidiana o mais evidente é o ser singular.

“O indivíduo contém tanto a particularidade quanto o homem

genérico que funciona consciente e inconscientemente no

homem (...) A explicitação dessas possibilidades de liberdade

origina, em maior ou menos medida, a unidade do indivíduo, a

‘aliança’ de particularidade e genericidade para produzir uma

individualidade unitária” (Heller, 1972:23)

Em Heller podemos verificar a defesa da necessidade do encontro do homem

com o seu gênero, nas situações históricas promotoras de mudanças radicais.

Há, nesses momentos, uma necessidade de suspensão da cotidianidade (e

não sua negação), para que a heterogeneidade dê espaço à homogeneidade

como mediação necessária para essa mesma suspensão. Os domínios onde o

ser humano pode suspender ao ser genérico, são o trabalho, a arte, a ciência e

a moral. Para ela, a vida cotidiana “a vida cotidiana não está fora da história,

mas no centro do acontecer histórico” (HELLER, 1972).

Para esses autores, a alienação, no sentido social do termo marxiano, joga um

papel fundamental na sociedade capitalista e na influencia na vida cotidiana.

Diferente de Certeau, “alguns valores presentes no mundo moderno capitalista

– individualismo, neutralidade, competição – reforçam a mediocridade,

deixando as decisões políticas, econômicas, culturais, espirituais aos sabor dos

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agentes mandantes” (CARVALHO, 2010). A insatisfação (manifesta na

contestação ou mesmo na passividade), ao mesmo tempo que mascara a

mediocridade, germina o desejo de ruptura e a procura por autenticidade nas

relações. Esta aqui expressa a lógica dialética hegeliana, revisitada por Marx,

onde os contraditórios são possíveis e fundadores da vida humana.

A utilização da noção de práxis, dessa forma, é o processo metodológico mais

coerente na análise da vida cotidiana, pois apreende o movimento da

cotidianidade como um movimento histórico e não inseparável das perspectivas

conscientes e inconscientes na sociedade. Há um processo claro de negação

da apreensão direta do fenômeno sem relacioná-lo com a realidade, com a

totalidade inscrita no movimento histórico. O rompimento com a faticidade

costumeira das abordagens fenomenológicas e descritivas imprime um senso

de negatividade do empírico, não no sentido de o menosprezar, mas na

tentativa de apanhá-lo na sua tendencialidade, no seu movimento. Nesse

sentido, a primazia da história pode preservar a especificidade dos fenômenos

apresentados (NETTO, 2010).

Conclusão

Pudemos observar nessa breve exposição do pensamento dos referidos

autores quanto a construção de seus conceitos para apreender a vida humana,

que existem aproximações e afastamentos importantes no escopo de suas

teorias. Para nada isso quer dizer que é impossível fazermos um diálogo

consciente com a construção dessas noções no campo da Sociologia e que

podemos extrair, no campo epistemológico, perspectivas mais totalizantes no

método de apreensão da realidade.

Podemos afirmar que as noções de Bourdieu e Certeau se aproximam no

sentido de dar primazia a ação individual no contexto social e de como elas

podem imprimir certo tipo de regularidade e estrutura a um determinado

sistema num contexto histórico. Ainda que as abordagens não partam dos

mesmos pressupostos teórico-metodológicos, é notório que estes autores dão

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importância fundamental a estruturas do pensamento herdadas de outras

épocas históricas, dando uma noção de sobreposição de valores, crenças e

idéias, ainda que significadas.

Por outro lado, os marxianos Lefebvre e Heller, fazem a análise do cotidiano a

partir do advento da época histórica que vivemos – o capitalismo – imprimindo

a idéia de que a forma mercadoria imputa regularidades na ação humana

cotidiana, ainda que de forma heterogênea e admitindo resistências. Ambos

dão ênfase aos processos calcados na dialética das relações sociais de

produção e nos desdobramentos práticos da ação humana sobre a rotina,

modos de fazer e refazer a vida em sociedade. A centralidade da perspectiva

praxiológica para eles é fundamental, haja vista que é na práxis transformadora

que os indivíduos transcendem do ser singular para o ser genérico e se

encontram com sua verdadeira essência.

Advogamos assim, que é perfeitamente possível, para uma postura

metodológica conseqüente com as inquietações nas ciências humanas e

sociais, um diálogo entre esses autores, na perspectiva de construção de uma

análise coerente e mais próxima da totalidade.

Referências

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