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93 Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e cognição n o 41, p. 93-113, 2010 A NOÇÃO DE FRAME NO CONTEXTO NEUROLINGUÍSTICO: O QUE ELA É CAPAZ DE EXPLICAR? Edwiges Maria Morato RESUMO Vários são os modelos ou construtos teóricos formulados para dar conta, teórica e empiricamente, da forma pela qual os indivíduos constroem (compartilham, modificam, or- ganizam, regulam, representam, justificam, reconhecem) a experiência de conhecimento de mundo. O objetivo deste texto é pensar a noção de frame – termo polissêmico – em um dos campos produtivos para o estudo sócio-cognitivo da linguagem e do conhecimento, a Neurolinguística. PALAVRAS-CHAVE: frame – cognição – Neurolin- guística FRAME E CONHECIMENTO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS O objetivo deste texto é refletir sobre a noção de frame – termo polissê- mico – em um dos campos produtivos para o estudo sócio-cognitivo da linguagem e da interação, a Neurolinguística. Tal empreendimento demanda que tomemos inicialmente algumas das possibilidades conceituais da noção de frame e seus avatares desde seu ingresso no campo da Linguística, sob influência da Psicologia Experimental e dos trabalhos em Inteligência Artificial, que tomam frame como “a cover term for a data-structure representing a stereotyped situation” (cf. Minsky, 1975:212 1 ). 1 MINSKY, M. “A framework for representing knowledge”. e Psychology of Com- puter Vision, ed. Patrick Henry Winston, 211-277. New York: McGraw-Hill, 1975.

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A NoÇÃo DE FrAmE No CoNTEXTo NEuroLiNGuÍSTiCo: o QuE ELA É CAPAZ DE

EXPLiCAr?

Edwiges Maria Morato

RESUMO

Vários são os modelos ou construtos teóricos formulados para dar conta, teórica e empiricamente, da forma pela qual os indivíduos constroem (compartilham, modificam, or-ganizam, regulam, representam, justificam, reconhecem) a experiência de conhecimento de mundo. O objetivo deste texto é pensar a noção de frame – termo polissêmico – em um dos campos produtivos para o estudo sócio-cognitivo da linguagem e do conhecimento, a Neurolinguística.

PALAVRAS-CHAVE: frame – cognição – Neurolin-guística

FRAME E CONHECIMENTO: CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O objetivo deste texto é refletir sobre a noção de frame – termo polissê-mico – em um dos campos produtivos para o estudo sócio-cognitivo da linguagem e da interação, a Neurolinguística.

Tal empreendimento demanda que tomemos inicialmente algumas das possibilidades conceituais da noção de frame e seus avatares desde seu ingresso no campo da Linguística, sob influência da Psicologia Experimental e dos trabalhos em Inteligência Artificial, que tomam frame como “a cover term for a data-structure representing a stereotyped situation” (cf. Minsky, 1975:2121).

1 MINSKY, M. “A framework for representing knowledge”. The Psychology of Com-puter Vision, ed. Patrick Henry Winston, 211-277. New York: McGraw-Hill, 1975.

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A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?

Na realidade, vários são os modelos ou construtos teóricos que têm sido formulados para dar conta, teórica e empiricamente, da forma pela qual os indivíduos constroem (compartilham, modificam, organizam, regulam, repre-sentam, justificam, reconhecem) a experiência de conhecimento de mundo: contexto, prática, sistemas de referência, enquadre, esquema, conhecimento prévio, situação social, script, moldura comunicativa.

Contudo, esses termos, ainda que assemelhados entre si, não tratam exa-tamente da mesma coisa; tampouco são a mesma coisa. Apenas para dar um exemplo das sutis distinções existentes entre eles, tomemos a conceituação de alguns desses termos. Script (cf. Schank e Abelson 1977)2, por exemplo, tem sido definido como uma “cadeia de inferência pré-organizada de uma situação específica”; o termo moldura (moldura comunicativa), por sua vez, pode ser en-tendido a partir do sentido que Fillmore (1982)3 dá a frame, isto é, esquemas de conhecimento ou padrões prototípicos e estereotípicos, ou ainda hipóteses feitas pelos indivíduos a respeito do mundo ou estados de coisa no mundo (Garcez e Ribeiro, 1987:140). Enquadre, por sua vez, não diz respeito apenas a um conhecimento estruturado em termos linguísticos e conceptuais, e sim ao enquadramento social dos falantes na interação e aos regimes e práticas sociais que a qualificam, de acordo com Goffman (1974)4 ou Tannen e Wallat (1998)5. Tal acepção, a propósito, é semelhante à que é dada à noção de contexto por linguistas e antropólogos, como Gumperz (1982/2002)6 e Hanks (2008)7.

2 SCHANK, R.C.; ABELSON, R. Scripts, Plans, Goals, and Understanding. Hills-dale, NJ: Earlbaum Assoc., 1977.

3 FILLMORE. C. “Frame semantics”. In Linguistics in the Morning Calm, ed. by The Linguistic Society of Korea, 111-137. Soeul: Hanshin, 1982.

4 GOFFMAN, E. Frame analysis. New York: Harper & Row, 1974. 5 TANNEN, D; WALLAT, C. “Enquadres interativos e esquemas de conhecimento em

Interação: Exemplos de um exame/consulta médica”. In RIBEIRO, B. e GARCEZ, P. (org.). Sociolingüística Interacional. Porto Alegre: Age, 120-14, 1998).

6 GUMPERZ, J. “Convenções de contextualização”. In: RIBEIRO, B. T. e GARCEZ, P. M. Sociolinguística Interacional. São Paulo: Loyola, 2002. Neste texto, o autor afir-ma: “é através de constelações de traços presentes na estrutura da superfície das mensagens que os falantes sinalizam e os ouvintes interpretam qual é a atividade que está ocorrendo, como o conteúdo semântico deve ser entendido e como cada oração se relaciona ao que se precede ou sucede. Tais traços são denominados pistas de contextualização” (p. 152).

7 HANKS, W. “O que é contexto”. BENTES, A. et alli (org.) Língua como prática social: das relações entre língua, sociedade e cultura a partir de Bourdieu e Bakhtin. Org. São Paulo, Cortez, 2008.

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No terreno da Linguística Cognitiva, Lakoff (1987)8 chama de Modelos Cognitivos Idealizados (MCIs) as estruturas por meio das quais organizamos nosso conhecimento e criamos categorias com as quais fazemos relações, entre nós e o mundo social e também entre nossas variadas formas de conhecimen-to; os MCIs, em suma, são estruturas conceptuais de ordem sócio-cognitiva que permitem a aquisição e o desenvolvimento do conhecimento humano. Metodologicamente, tais modelos cognitivos, ancorados nas experiências co-tidianas, permitem a organização seletiva e não exaustiva do conhecimento sob a forma de categorias cujos limites são associados em rede (“networks”).

Uma categoria, portanto, pode envolver um complexo de diferentes mo-delos cognitivos. A categoria mãe, por exemplo, remete-nos para os domínios de nascimento, genética, educacional, nutritivo, afetivo, conjugal, genealógi-co (cf. Lakoff 1987: 74-76). Com isso, a mulher que educa e cuida de uma criança, mesmo que não tenha lhe dado à luz, pode ser considerada sua mãe.

Trata-se, assim, de uma noção que, seja qual for a perspectiva teórica que a mobiliza (da Semântica Cognitiva à Sociolingüística Interacional, por exem-plo), terá sempre a ver com estruturas de expectativa, isto é, não se trata de algo concebido a priori e nem de forma independente quanto a nossas experiências sócio-culturais; pelo contrário, dependem dos atos de significação e, portanto, das práticas mediadas largamente por linguagem.

Em sua obra Frame Analysis (1974), Goffman concebe os frames como enquadres, metáfora que funciona para se compreender melhor o que no cam-po da Sociologia é também denominado “contexto”, “conhecimento prévio”, “situação social”. Enquadres, assim, são compreendidos como estruturas so-ciais relacionadas intimamente com a linguagem, reconhecidas e modificadas pelos indivíduos – “agentes de mudanças e de condução do envolvimento interacional” - em contextos e práticas discursivas situadas.

Autores como Tannen e Wallat (1987), por exemplo, abordando as es-truturas de expectativas com as quais manipulamos interacionalmente os co-nhecimentos adquiridos, estabelecem uma distinção entre enquadres interati-vos (isto é, conhecimentos compartilhados pelos interactantes que atuam na definição do que está acontecendo na interação) e esquemas de conhecimento

8 LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. The University of Chicago Press, Chicago, 1987.

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(isto é, expectativas dos participantes em relação às pessoas e seus propósitos, aos objetos, aos eventos).

Em uma perspectiva teórica distinta, isto é, mais instanciada no campo da Psicologia Cognitiva e no da Linguística Textual, Van Dijk figura entre os estudiosos da organização do conhecimento que se servem da noção de frame, assim como de outras, como contexto, sistemas de memória, processamento textual etc.

Partindo de pressupostos construtivistas que procuram integrar proces-samento linguístico e processamento mnêmico em torno da explicação de como os indivíduos constroem e interpretam estrategicamente textos de di-versas naturezas, vários modelos de processamento de informação surgem nos anos 1970 a 1990, como os essencialmente mnêmicos: scripts, frames, cená-rios, enquadre etc. (Van Dijk, 1988/1992)9.

O objetivo central de Van Dijk em seus textos sobre processamento tex-tual é a expansão de uma semântica do discurso cuja representação cognitiva é categorizada sob a forma de esquemas ou frames gerais estruturados em vários subesquemas.

Para o autor, vale lembrar, entre as estruturas linguísticas e os processos cognitivos, há a interação social e as práticas comunicacionais. Os modelos contextuais ou de situação diriam respeito a dois tipos de conhecimento (pro-cedimental e declarativo), que estariam relacionados, por sua vez, a dois tipos de memória (episódica e semântica). A noção de modelo, assim, é importante para indicar a forma pela qual as representações textuais (RTs) permitem a categorização do mundo e criam novos modelos de situação, específicos (isto é, relativos à memória episódica) e generalizados (isto é, relativos à memória semântica ou “social”): os frames, os planos e scripts. Esses, por sua vez, atuam na compreensão e no processamento da informação.

A noção de frame inscreve-se nas propostas do autor de análise do pro-cessamento textual, relacionado por sua vez com a representação cognitiva do conhecimento de mundo e com os modelos estratégicos de modelagem, arma-zenamento e ativação seletiva da memória. Essa noção, bem como a de script, aparece vinculada ao conceito de cognição social, a partir do que os efeitos de sistemas de crença e atitudes, entre outros, elaboram estratégias cognitivas

9 VAN DIJK, T. Cognição, Discurso e Interação. São Paulo: Contexto. 1992.

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compartilhadas pelos integrantes de uma determinada comunidade. Os frames diriam respeito aos modelos generalizados socialmente, relacionados com a memória semântica; os modelos de situação, por sua vez, já diriam respeito às experiências concretas e individuais dos indivíduos, relacionando-se, assim, com a memória episódica10.

O interesse inicial do autor pela criação de modelos de processamento tex-tual ou modelos de situação girou em torno do estudo das estratégias de que os indivíduos lançam mão para criar sistemas cognitivos apropriados nos quais se encaixam a informação e o conhecimento de mundo. Esse tipo de interesse caracterizou os trabalhos de Kintsch e Van Dijk na década de 1970 e ilustra bem os estudos do segundo na década de 1990.

Os modelos de processamento da memória e da informação que fun-cionam em termos de esquemas, modelos ou scripts partem da hipótese de que nossas lembranças são adquiridas, memorizadas e ativadas de modo di-nâmico e contextualizadas; não se trata simplesmente de “revivificação” de situações, incidentes ou eventos passados. São, antes, representações textuais que armazenamos e reativamos de forma seletiva e pragmaticamente situada, com ou sem modificações. Os exemplos encontrados na literatura são aqueles com os quais nos deparamos o tempo todo em nossas práticas cotidianas. Ao reativarmos o frame “restaurante”, por exemplo, evocamos os modelos de procedimentos, falas, rituais culturais etc. associados a ele, podendo apresentar características variadas – e mesmo assim o modelo não deixa de ser por nós reconhecido: o restaurante pode ser regional ou internacional, pode ter um funcionamento do tipo self service ou de rodízio, pode ser dançante, pode ser típico etc. Alguns autores, atentos às diferenças procedimentais que podem ser encontradas em qualquer modelo de situação ou frame, as denominam de scripts (Schwartz e Reisberg, 1991)11.

10 Para Van Dijk (1992), a memória episódica difere da semântica na medida em que à primeira caberia a informação derivada da representação textual e à segunda, derivada de um conhecimento “prototípico”, ainda que do tipo declarativo e de-rivado da cognição social (scripts e frames), caberia a organização e a aplicação do conhecimento na compreensão e na produção do discurso. A memória semântica, dita “social” (porque coletiva, isto é, permite o compartilhamento de modelos de situações ou eventos entre os membros da sociedade), atua mediante a episódica (pessoal) na construção de modelos novos e na atualização dos antigos.

11 SCHWARTZ, B; REISBERG, D. Learning and memory. New York: Norton, 1991.

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A partir do panorama conceitual esboçado até aqui, vemos que, em li-nhas gerais, os frames têm sido compreendidos como conjuntos ou “blocos” de conhecimentos inter-relacionáveis que, incorporados por meio de práticas sociais nas quais emergem e por meio das quais se reconstroem, atuam na organização de nossas experiências e são reciprocamente por elas organizados.

Contudo, as distintas abordagens a respeito do frame não estão em con-cordância entre si especialmente quando a questão está em pontuar o elemento chave da noção de frame. Para os que se pautam pelas abordagens tidas como externalistas (como as perspectivas etnográficas e antropológicas), a questão do frame está baseada essencialmente na observação do que ocorre no decurso de uma dada interação (cf. Hymes, 197412); já para as abordagens internalis-tas, ela estaria baseada nos esquemas cognitivos de conhecimento ativados e reconhecidos pelos interlocutores em sua tarefa de tornar compreensíveis seus atos de significação.

COEXISTÊNCIA DE FRAMES SEMÂNTICOS E INTERACIONAIS?

Seja qual for o ponto de vista a partir do qual é tomada, a noção de frame tem a ver efetivamente com a questão do conhecimento. Assim como ela pode questionar o referencialismo em relação à linguagem no campo da Linguísti-ca, questiona também o essencialismo reinante no campo das Neurociências em relação à cognição ou ao cérebro. Em um e em outro campo, não raras vezes encontramos uma concepção platônica de conhecimento na qual se con-funde conhecimento com abstração e conteúdo mental, “crença verdadeira e justificada”. Ao que parece, tivemos que esperar estudos psicolinguísticos e neuropsicológicos de epistemologia sócio-interacional (como os de Bartlett13, Vygotsky14 e Tomasello15, dentre muitos outros), que abriram possibilidades

12 HYMES, D. Foundations in Sociolinguistics. Philadelphia: University of Philadel-phia, 1974.

13 BARTLETT, F. C. Remembering: a study in experimental and social psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 1977 (original de 1932).

14 VYGOTSKY, L.S. Thinking and Speech - The Collected Works Of L.S. Vygotsky (Vol I: Problems Of General Psychology. (Rieber, R. & Carton, A., eds.). New York: Plenun Press. 1987 (original de 1934).

15 TOMASELLO, M. As origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (original de 1999).

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de uma discussão sócio-antropológica a respeito de nossos processos cogniti-vos, para chegarmos a uma concepção mais pragmática de conhecimento, algo que envolve uma relação mais estreita entre reflexão e ação.

Se frame é de fato um termo difícil de ser definido, conhecimento, por sua vez, não fica atrás. Não é por acaso que, de uma maneira ou de outra, Lingua-gem, Cérebro e Cognição têm estado de uma maneira ou de outra entre as respostas para as perguntas sobre o conhecimento.

Se deixarmos de lado os becos sem saída dos dualismos vários (biológi-cos, cognitivos, linguísticos), seremos instados a procurar na relação homem-realidade motivações sócio-antropológicas, psico-sociais, sensório-motoras, intersubjetivas. É o que se faz grosso modo na perspectiva sócio-cognitiva, que está longe de ser um bloco monolítico, mas busca reunir campos disciplinares em torno da tese segundo a qual a práxis social é a base da modulação da expe-riência linguístico-cognitiva. Nessa perspectiva, admite-se que a cognição, ao contrário de ser um antecedente, é um resultado de toda a atividade interacio-nal dos indivíduos em seus modos de interação com o mundo16.

Tendo em vista o panorama esboçado anteriormente, podemos de ma-neira algo esquemática destacar pelo menos duas posições fundamentais a res-peito da noção de frame enquanto conhecimento - e vale a pena pensar aqui se podemos, e em que termos, admitir uma relação entre ambas: frame como conhecimento social dos objetos e frame como conhecimento de objetos sociais.

A questão epistêmica que interessa à primeira posição é: como aparecem e se mantêm os frames para o processamento de atividades significativas? A orientação teórica dessa posição procura levar em conta os mecanismos de constituição da noção e das práticas de legitimidade dos frames. Aqui, os fra-mes são entendidos como esquemas cognitivos ou conhecimentos pressupostos, apreendidos pela via da interiorização das experiências sociais, compartilhados (ou não) pelos indivíduos em interação. Como exemplos de temas ou questões de investigação baseada na concepção de frames enquanto esquemas linguísti-co-conceptuais de conhecimento podemos citar, dentre outros: perspectiviza-ção, intersubjetividade, atenção, categorização, inferenciação, decisão lexical,

16 Ao elegermos, com Tomasello e Vygotsky (dentre outros), as interações sociais como uma condição para a representação simbólica do mundo (intersubjetiva e pers-pectivada), estamos frente à importância radical da linguagem e da interação na constituição da cognição humana.

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construções gramaticais, mesclagem conceptual, estereótipos, metaforicidade.Já a questão epistêmica que interessa à segunda posição é: como se dá

o agenciamento dos frames? A orientação teórica dessa posição procura foca-lizar a organização ou a relação social em que os sujeitos estão mergulhados ao produzirem significações, ao “revelarem” pelo habitus a apropriação sócio-cognitiva da linguagem, suas condições de produção e seus efeitos sócio-discursivos. Como exemplos de temas ou questões de investigação baseada na concepção de frames interativos, tomados a partir do enquadramento social dos falantes e do contexto interacional local em que estão imersos, temos, dentre outros: footing17 ou alinhamento (cf. Goffman, 1974), contexto, ati-vidade18 (Gumperz, 1982/1998), operações de referenciação, categorização social dos falantes.

Diferentemente de autores como Tannen e Wallat (1998), acredita-mos que essas duas esferas do conhecimento – interacional (enquadres inte-rativos) e semântico (esquemas de conhecimento) -, inter-relacionadas num continuum dialético, podem ser articuladas em torno de um postulado intera-cionista básico já formulado por Vygotsky (1934/1987), que pode ser assim enunciado de forma sintética: “não há pensamento ou domínios cognitivos integrais fora da linguagem e nem possibilidades integrais de linguagem fora de processos interativos humanos” (Morato, 1996)19.

Nesse sentido, podemos afirmar que foge aos autores que opõem frames semânticos e interacionais o fato de que as ações nas quais se engajam os sujeitos em interação são parte integrante da constituição e da re-significação dos frames semântico-conceptuais (cf. Cienki, 200720). Do mesmo modo, estes são parte integrante da orientação dos atos de significação no decurso das interações.

17 “modo pelo qual os interactantes enquadram e negociam as relações inter-pessoais de um evento” (GOFFMAN, E. Footing. In: RIBEIRO, B. T., GARCEZ, P. M. (orgs.). Sociolingüística Interacional. Porto Alegre: AGE, Pp. 70-97, 1998).

18 “unidade básica de interação socialmente relevante em termos da qual o significado é avalia-do” (Gumperz, 1998:99).

19 MORATO, E.M. Linguagem e Cognição - As reflexões de L.S. Vygotsky sobre a ação reguladora da Linguagem. São Paulo: Plexus, 1996.

20 CIENKI, A. “Frames, idealized cognitive models and domains”. In: GEERAERTS, D.; CUYCKENS, H. The Oxford handbook of cognitive linguistics. OUP, New York. Pp.170-187, 2007.

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Foge, pois, às perspectivas essencialmente internalistas e externalistas, que há um continuum dialético entre distintas “esferas da realidade”21, intera-ção e conceptualização, manifestações linguísticas e estruturas complexas de conhecimento. Foge, em suma, às perspectivas baseadas em dicotomias, que frame é um conceito interacional.

Em uma passagem de um texto já clássico, Mondada e Dubois (1995/2003:25)22 chamam a atenção para o modo de funcionamento desse continuum dialético:

De um ponto de vista linguístico, quando um contexto é reenqua-drado (Goffman, 1974), as categorias podem ser reavaliadas e transformadas, juntando diferentes domínios, como na metáfora, na metonímia e na metalepse.

A noção de frame parece ter a ver, pois, assim como a noção de contexto, com um estado de coisas que em parte está organizado a priori, e em parte está associa-do a uma significação que emerge de sua própria organização (cf. Hanks, 2008).

FRAME E CONHECIMENTO NO CONTEXTO DA NEURO-LINGUÍSTICA

Como se sabe, a Neurolinguística, essa disciplina híbrida, dedica-se às re-lações entre linguagem, cérebro e cognição. Ela o faz assumindo pressupostos e métodos próprios à Linguística e às Neurociências.

Da tradição dos estudos linguísticos, a Neurolinguística mantém o foco e o interesse na descrição e na análise da estrutura, organização e funcionamen-to da linguagem, o que envolve o interesse pelas práticas sócio-culturais, os

21 A expressão é emprestada de Bakhtin, para quem “a atividade mental tende desde a origem para uma expressão externa plenamente realizada (...) Uma vez materializada, a expressão exerce um efeito reversivo sobre a atividade mental: ela põe-se então a estruturar a vida interior, a dar-lhe uma expressão ainda mais definida e mais estável.” (BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Cultrix. p. 118, 1981 (original de 1929).

22 MONDADA, L ; DUBOIS, D. “Construção dos objetos de discurso e categoriza-ção: uma abordagem dos processos de referenciação”. In: CAVALCANTE, M.M. et alli (orgas). Coleção clássicos da lingüistica: Referenciação. São Paulo: Contexto. pp. 17-52, 2003.

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vários elementos que constituem o contexto situacional e o histórico, os mo-dos diferenciados de constituição e de organização das semioses não verbais, os diferentes processos cognitivos com os quais compreendemos e atuamos no mundo, dentre os quais a memória, a atenção, a percepção, a gestualidade etc.

Da tradição de estudo das Neurociências, a Neurolinguística mantém o foco e o interesse em um conjunto de questões às voltas com o velho proble-ma mente-cérebro: como o cérebro reage frente às dificuldades linguísticas e cognitivas que se impõem após o dano neurológico? Como se desenvolve a plasticidade cerebral e como ela atua no desenvolvimento e no declínio cog-nitivo? Como as crianças fazem para aprender e usar a linguagem? Qual é a responsabilidade do cérebro em relação aos processos cognitivos, e qual seria a responsabilidade destes em relação ao cérebro, sua estrutura e funcionamento?

A noção de frame, no campo que imbrica processos linguísticos, cogniti-vos e cerebrais, pode assinalar as vantagens de modelos que integram aspectos biológicos e sociais na compreensão da cognição humana, baseados na análise qualitativa e contextualizada de seu funcionamento e estrutura.

Neste artigo, em especial, buscamos mostrar que a noção de frame (e seus avatares) pode nos ajudar a compreender melhor o que acontece quando a re-lação entre sujeito, cérebro, cognição e vida social é afetada por determinadas circunstâncias, como a Doença de Alzheimer, responsável por lesões cerebrais degenerativas que implicam um declínio cognitivo generalizado.

Para uma abordagem sócio-cognitiva da Doença de Alzheimer, lingua-gem e interação jogam um papel fundamental no entendimento da cognição humana, do funcionamento do cérebro, dos impactos do comprometimento neurológico, das estratégias encontradas pelo portador da doença, seus familia-res e todo o corpo social para lidar com dificuldades de várias ordens colocadas em cena – da constelação sintomatológica da patologia à sua recepção social.

A discussão em torno da noção de frame pode, além disso, ajudar-nos a aprofundar uma perspectiva sócio-cognitiva dos processos ligados ao enve-lhecimento normal, alternativa à visão veiculada por modelos estritamente biomédicos que acabam por promover o que por vezes é chamado de “alzhei-merização da velhice” (cf. Adelman, 1995 apud Debert, 199923).

23 DEBERT, G. G. A Reinvenção da velhice. socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: EDUSP, 1999.

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A INTER-RELAÇÃO DE FRAMEs INTERACIONAIS E SEMÂNTICOS: EXEMPLIFICAÇÃO

Como forma de pontuar uma concepção interacional de frame, esta se-ção será dedicada à análise de processos metadiscursivos e de enquadres intera-tivos observáveis na conversação entre uma senhora, IG, diagnosticada como portadora da Doença de Alzheimer (doravante, DA) em estágio inicial, com uma pesquisadora, EM. Tal situação enunciativa, a ser detalhada mais adiante, se dá em meio à aplicação de um protocolo de estudo sobre a interpretação de provérbios e idiomatismos por pessoas portadoras de DA.

Chamaremos a atenção no fragmento a ser apresentado para a forma pela qual as interactantes procedem ao enquadramento e à negociação não apenas da relação inter-pessoal estabelecida na interação, como também para as implicações das mudanças de footing ou alinhamento (que é negociado, ra-tificado, co-sustentado ou modificado no decorrer da interação, cf. Goffman, 2002:107). Tais aspectos serão observados em meio a uma tarefa de interpre-tação e manipulação enunciativa da expressão “chá de cadeira”. Antes, porém, tratemos de conceituar a DA, ainda que brevemente.

Descrita pelo médico alemão Aloïs Alzheimer em 1906, a Doença de Alzheimer se traduz por alterações cognitivas progressivas, degenerativas (distúrbio de memória, apraxia, agnosia e afasia) e comportamentais que constituem uma síndrome demencial associada à presença de lesões histoló-gicas características (Cf. Défontaines, 2001:37)24. Trata-se do tipo mais co-mum entre as demências, atingindo dois terços das que são diagnosticadas. Entre suas causas ainda não devidamente elucidadas, podemos encontrar fa-tores genéticos, fatores de risco (antecedentes mórbidos como traumatismos cranianos com perda de consciência, arteriosclerose e diabetes) e depressões tardias, não tratadas.

No campo dos estudos neurocognitivos, entende-se em linhas bem ge-rais que a DA evolui em três fases: a forma leve, na qual os problemas mnési-cos são constantes; a forma moderada, na qual os problemas mnésicos passam a ser incapacitantes, seguidos de desorientação têmporo-espacial e linguística (nessa fase, os problemas de linguagem, ainda não presentes na forma anterior,

24 DÉFONTAINES, B. Les démences. Paris: MED-Line Éditions, 2001.

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A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?

passariam a ser frequentes e prontamente perceptíveis. Somados a eles, os pro-blemas práxicos e gnósicos configurariam o que é chamado por muitos autores de síndrome afásico-apráxico-agnósica); a forma severa, na qual a memória encontra-se gravemente alterada e a linguagem apresenta-se sensivelmente comprometida, podendo chegar ao mutismo.

Com relação aos problemas de linguagem na DA, na primeira fase (2 a 10 anos após a incidência), seriam identificados déficits na atividade de no-meação, repetições, circunlóquios, uso expressivo de dêiticos e de estruturas sintáticas consideradas “simples”, sem déficits expressivos no processamento fonológico. A produção da linguagem é geralmente normal no nível da articu-lação sem alterações de linguagem no nível articulatório - ainda que as pausas e as hesitações sejam consideradas recorrentes.

Segundo Huff et alli. (1988)25, a segunda fase seria caracterizada pela de-terioração expressiva tanto do processamento semântico quanto do sintático. Nesta fase, as pessoas com DA apresentam tendência a parafasias semânticas (mesa por cadeira). Com relação ao processamento sintático, haveria uma pro-gressão na dificuldade de compreender orações simples e complexas. Observa-se nesta fase também uma crescente tendência para a produção de parafasias fonológicas, além de um maior comprometimento da escrita.

A propósito da reflexão que desenvolvemos neste artigo, veremos, a se-guir, um exemplo extraído de uma interação da pesquisadora com uma senho-ra (IG), professora de primeiro grau aposentada, portadora de provável DA de grau leve a moderado. Nesse episódio, a pesquisadora EM, após a concor-dância de IG, propõe a ela, no contexto de um estudo sobre metaforicidade na DA, desenvolvido a partir de um protocolo do qual constam 10 provérbios e 10 idiomatismos, que interprete o idiomatismo “chá de cadeira”. Essa ex-pressão configura um sintagma nominal e exerce a função de objeto direto, veiculando a ideia de enfado ou cansaço causado pela impontualidade, pela expectativa ou espera excessiva, inútil ou vã, como em “O dentista me deu um chá de cadeira” ou “Fui ao baile e tomei um chá de cadeira”.

Como têm apontado os dados que vimos obtendo a partir desse proto-colo de estudo, no caso das DAs, em que as atividades epilinguísticas estariam

25 HUFF, F. J. CORKIN, S., GROWDON, J. H. “Semantic impairment an anomia in Alzheimer’s disease.” Brain and Langage, 28, 1988.

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mais ou menos severamente alteradas (cf. Damasceno, 200026), observa-se o aprofundamento da importância do papel do interlocutor na qualidade da autonomia enunciativa do portador de DA e na relevância de seus processos e atos de significação, bem como na estruturação (textual, conversacional, prag-mática) da interação. Em outras palavras, o caráter regulador da linguagem e da interação frente aos processos cognitivos passa – na DA – a depender acen-tuadamente do papel do interlocutor e dos contextos situados.

No exemplo aqui evocado, podemos ver, além dos frames semânticos relativos à expressão “chá de cadeira” acionados por IG e EM, a dinâmica dos frames interacionais acionados no decurso da interação entre as duas (mudan-ças de footing, dinâmica de turno, o caráter dirigido da entrevista e a questão da assimetria entre as interlocutoras, a evocação de diferentes cenas enunciati-vas nos gestos interpretativos, como a sala de espera de consultório, um salão de baile). Chamaríamos a atenção para a presença de processos linguístico-textuais e interacionais implicados na intervenção da metadiscursividade na tarefa interpretativa de IG e EM.

Segundo Jubran, as “referências metadiscursivas têm a propriedade de auto-referenciação discursiva, indiciando a introjeção da instância e das circunstâncias de enunciação na materialidade textual” (2005)27, como as referências à formulação linguística do texto (indicativas da função mais linguístico-textual da metadis-cursividade) e as instâncias co-produtoras do texto (indicativas da função mais interacional da metadiscursividade). Ambas mantêm entre si uma distinção em termos de predominância, porém se reúnem no decurso da atividade discursiva.

A metadiscursividade de fato engloba vários processos, linguísticos e cognitivos, e sua ênfase em relação à objetivação do sentido recai ora sobre o enunciado, ora sobre a enunciação, ora sobre os recursos linguísticos, ora sobre o contexto interacional, ora sobre outros processos cognitivos cuja re-alidade semiológica vincula-se à linguagem, mas não se manifesta de forma necessariamente verbal.

26 DAMASCENO, B. P. “Avaliação da linguagem no sujeito idoso”. In: O. V. For-lenza; P. Caramelli (Org.). Neuropsiquiatria Geriátrica. V. 1. São Paulo: Atheneu, p. 527-530, 2000.

27 JUBRAN, C. “Especificidades da referenciação metadiscursiva”. In: I.G.V. Koch; E. M. Morato, A. C. Bentes. (Orgs.). Referenciação e Discurso. São Paulo: Con-texto, 2005.

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A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?

No episódio focalizado, podemos observar que tanto IG, a senhora com DA, quanto sua interlocutora, EM, mobilizam processos metadiscursivos (Jubran, 2005, 200228; Borillo, 198529), tais como: referência à formulação linguística dos enunciados, próprios e alheios; referência à estruturação tópica das interações verbais; referência aos papéis enunciativos assumidos na intera-ção; referência ao próprio ato comunicativo; referência a fatores, a instâncias não-verbais co-produtoras dos enunciados, próprios e alheios.

O que nos parece interessante observar no episódio abaixo é que os va-riados processos metadiscursivos emergentes na fala de IG e na de EM es-tão relacionados intimamente com pistas de contextualização (cf. Gumperz, 1982/1998) e com as mudanças de footing, bem como de enquadres interacio-nais e estrutura de participação de ambas na conversação.

Se as mudanças de footing ocorrem de forma a “realinhar” o enqua-dre comunicativo e as posições discursivas das interactantes no decurso da interação, os processos metadiscursivos a quem ambas recorrem assinalam também, como nas inserções meta-enunciativas, a presença de esquemas de conhecimento envolvidos na metaforicidade. Os gestos interpretativos levados a cabo por IG e EM em torno da expressão chá de cadeira promo-vem constantes realinhamentos e novos enquadres interacionais, ao mesmo tempo em que estes atuam de forma decisiva na interpretação do sentido da expressão em foco.

No início do episódio, EM pergunta a IG se conhece a expressão chá de cadeira, solicitando a ela uma interpretação do tipo metalinguístico (“o que ela quer dizer?”) e contextual (“em que situação a gente pode usar essa expressão?”). IG, rindo, afirma que não pretende falar contra sua interlocu-tora, produzindo com seu enunciado um implícito que (re)orienta a sequên-cia interativa entre elas neste momento (em resposta a EM, IG afirma estar, naquele momento, tomando um chá de cadeira). A partir de um realinha-mento na sequência interacional entre IG e EM (na qual IG altera seu status na interação), temos uma primeira interpretação de chá de cadeira posta em questão: tomar chá de cadeira é permanecer sentada na cadeira por muito

28 JUBRAN, C. “Marcadores metadiscursivos em entrevista televisiva: funções tex-tuais-interativas”. Estudos Lingüísticos XXXI. São Paulo, cd-room, 2002.

29 BORILLO, A. “Discours ou Metadiscours?” DRLAV Revue de linguistique (32). Paris: Centre de Recherche de l’Université de Paris VIII, p. 91-151, 1985.

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tempo (ou seja, não exatamente ficar sentada esperando por alguém por muito tempo, ou em vão, mas estar sentada durante muito tempo).

Não reconhecendo na explicação de IG uma boa aplicação à situação que ambas experimentavam concretamente, uma vez que as duas foram pon-tuais em relação ao horário marcado previamente para a entrevista ora em andamento, EM manifesta um questionamento da interpretação proposta por IG (“tá tomando um chá de cadeira?”). IG, entretanto, procede a uma mo-dalização de seu enunciado, reduzindo possíveis efeitos de constrangimento provocados em sua interlocutora pela comum percepção da injunção ético-discursiva contida na expressão em foco (“brincadeirinha, tá”). Instada pelo comentário que EM faz sobre a mudança de footing que ocorrera (“Veja só...”), IG, ainda entre risos, procura explicitar o sentido que está dando à expressão chá de cadeira (“eu tô aqui respondendo às perguntas”), algo que não deixa de veicular uma ideia de tempo (e de enfado) presente na interpretação desse idiomatismo.

Entretanto, a intervenção de EM destaca a relação entre o sentido vei-culado pela expressão e a situação concreta que ambas vivenciavam (“sentada conversando é tomar chá de cadeira?”). Neste momento, uma formulação de ordem metalinguística provoca nova mudança na dinâmica interacional e, cer-tamente, na atividade interpretativa levada a cabo por IG, que se vê entre uma instabilidade de sentido e uma ação reflexiva provocada por essa contingência: “exato é é (4s) deixa eu ver (3s) como é? sentada”. A partir da complexidade linguística aí presente, IG, novamente entre risos, concentra-se em sua inter-pretação inicial, reintroduzida aqui com um marcador argumentativo (“mas”), reforçando o contexto interacional que associa ao sentido que dá à expressão (“mas tô tomando um chá de cadeira”).

EM a interpela a respeito do sentido por ela atribuído à expressão e IG ratifica o sentido de estar sentada por muito tempo: “é o seguinte é eu fiquei sentada muito tempo tomando um chá de cadeira”. Ainda que desta vez a in-terpretação não esteja vinculada ao comentário a respeito da situação concreta da entrevista, nova instabilidade emerge a partir da inserção de um elemento (a ideia de esperar por alguém por muito tempo) por EM: “num sentido de que a gente fica esperando?” .

Confrontada com exemplos de cenas cotidianas fornecidos por EM para pontuar os sentidos de impontualidade, espera e enfado veiculados à expressão

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A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?

idiomática, IG prontamente os reconhece: “ISSO”, “EXATO”. Contudo, de-monstra não atentar para aspectos semânticos envolvidos no escopo da expres-são, que marcam uma diferença entre “ficar muito tempo sentada na cadeira (enquanto conversa, responde a perguntas, emite opiniões etc.)” e “ficar muito tempo sentada (à espera de alguém ou em vão)”.

Um novo exemplo de contexto de uso da expressão é aventado por EM, sendo aqui o sentido, mobilizado por frames semânticos e interacionais e ancorado na memória cultural de ambas, co-construído por IG e EM, que promovem, com o concurso de processos metadiscursivos, nova mudança de footing: ambas evocam de forma colaborativa uma cena enunciativa na qual caberia o uso da expressão chá de cadeira:

EM ou então assim quando as pessoas falam “ah, fui ao

baile”

IG aham

EM “e no baile eu fiquei tomando “chá de cadeira”

IG [“chá de cadeira”

EM [quer dizer eu

fiquei esperando (3s)

IG que algum cavalheiro

EM algum cavalheiro

IG tirasse você pra dançar

Porém, quando EM retorna à questão da distinção entre a ideia de per-manecer sentada na cadeira por longo tempo e a de esperar por alguém por muito tempo ou em vão, IG novamente manifesta uma incompreensão em relação ao que sua interlocutora procura enfatizar de forma metalingüística:

EM então não é só ficar sentada um tempão

IG como?

Quando instada a interpretar novamente a expressão chá de cadeira, IG retorna à interpretação que fizera inicialmente, mesmo quando confrontada por EM (“este contexto é um pouco diferente do que tá acontecendo aqui com a senhora...ou não é?”, “a senhora tá tomando um chá de cadeira porque tá sentada e conversando?”, “mas a senhora não tá por exemplo ali no...no sala

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esperando ser atendida?” “ficou esperando muito tempo? tomou um chá de cadeira?”), assinalando a percepção de uma injunção presente na expressão em foco e reafirmando que sua intenção não é criticar ou ofender EM: “não eu não tô falando da senhora né”, “eu não tô falando pra ofender”. E, finalmente, como quem espera ser compreendida, explica, de forma paciente, à sua inter-locutora: “eu tô falando/tô COM-PA-RANDO”.

Vejamos, pois, o episódio, em que o nome verdadeiro de IG foi trocado, para preservar sua identidade.

EM “chá de cadeira” (3s) conhece esta?

IG “chá de cadeira”?

EM é já ouviu?

IG já

EM então o que ela quer dizer? em que situação a gente

pode usar essa expressão?

IG [é chá (3s) “chá de cadeira’ é a gente usa da

seguinte maneira (4s) EU não vou falar contra a

senhora ((rindo))

EM o quê?

IG ((rindo)) é (3s) eu tô aqui agora tomando um chá de

cadeira

EM ((rindo)) tá tomando um chá de cadeira?

IG tô aqui agora tomando um chá de cadeira (3s)

brincadeirinha tá?

EM [veja só

((rindo))

IG eu tô aqui respondendo às perguntas ((risos de ambas))

EM mas em que situação a senhora tá agora? A senhora tá

tomando um chá de cadeira?

IG tô sentada aqui muito bem

EM sentada conversando é tomar chá de cadeira?

IG exato é é (4s) deixa eu ver (3s) como é? sentada

EM é

IG mas tô tomando um chá de cadeira ((rindo))

EM qual é o sentido então que a senhora tá dando pra

expressão “chá de cadeira” nessa

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110Morato, Edwiges Maria

A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?

IG [ah o chá de cadeira?

EM é, nesse uso da senhora é

IG [é o seguinte é eu fiquei sentada muito

tempo tomando um chá de cadeira

EM num sentido de que a gente fica esperando?

IG hum-hum

EM [alguém?

IG aham?

EM ou esperando por muito tempo à toa muito tempo pra

ser atendido, como quando alguém diz, por exemplo,

“eu fui ao dentista”

IG ISSO!

EM [e ele me deu um chá de cadeira”

IG [eXATO

EM não porque ficou muito tempo com ele

IG aham

EM mas é porque eu fiquei muito tempo esperando

IG [sentada na cadeira

EM mas eu fiquei sentada na cadeira, esperando por ele

IG pois é

EM não tem isso?

IG tem

EM ou então assim quando as pessoas falam “ah, fui ao baile”

IG aham

EM “e no baile eu fiquei tomando “chá de cadeira”

IG [“chá de cadeira”

EM [quer dizer eu

fiquei esperando (3s)

IG que algum cavalheiro

EM algum cavalheiro

IG tirasse você pra dançar

EM me tirasse pra dançar e não aconteceu tomei um

tremendo chá de cadeira

IG Isso mesmo

EM então não é só ficar sentada um tempão

IG como?

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111Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e cognição no 41, p. 93-113, 2010

EM não é só ficar sentada na cadeira um tempão, mas é

ficar um/ sentada um tempão...

IG [aham

EM sozinha esperando alguma coisa acontecer (3s) ficar na

espera e nada...

IG certo certo

EM este contexto é um pouco diferente do que tá

acontecendo aqui com a senhora...ou não é?

IG aham... é...

EM então (4s) a senhora tá tomando um chá de cadeira

porque tá sentada e conversando

IG [não eu não tô falando da senhora né eu não tô

((risos))

EM [mas a senhora não tá por exemplo ali no...no sala

esperando ser atendida? ficou esperando muito tempo?

Tomou um chá de cadeira?

IG não! ((risos))

EM nessa situação em que....ficar ali tomando um chá de cadeira

IG [não

vai se ofender comigo!

EM Imagina, dona Isaura. É que

IG [eu não tô falando pra ofender

EM imagina imagina

IG eu tô falando/tô COM-PA-RANDO

EM tá comparando

IG comparando (3s)

EM os exemplos do baile e do dentista eles são... eles

falam de quando a gente espera(3s) espera (3s) m vão

((EM encena uma pantomima na cadeira, olhando no

relógio, com expressão de enfado))

IG e isso mesmo sem resolver né? ((risos))

EM nesse contexto em que a senhora fica sentada na

cadeira um tempão conversando comigo

IG não (3s) é (4s) “chá de cadeira” (3s) é

brincadeirinha, heim?

((risos))

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112Morato, Edwiges Maria

A noção de frame no contexto neurolinguístico: o que ela é capaz de explicar?

Dados como o acima indicam que indivíduos com DA em fase inicial podem proceder a “cálculos metafóricos” (cf. Moura, 200530) de identificação do significado da expressão a partir de uma situação de uso e da observação de normas pragmáticas a ela relativas: tais dados mostram também que a metafo-ricidade é apreendida pelos indivíduos com DA a partir de expectativas inter-pretativas que eles nutrem em relação às regularidades linguísticas referentes ao “cálculo” aludido acima.

Temos observado que os indivíduos com DA em fase inicial, malgrado suas dificuldades linguístico-cognitivas, são capazes de reorganizar ou reorien-tar a significação durante a atividade em curso e em função da interação que mantêm com seu interlocutor em conversações situadas nas quais se torna (mais) perceptível todo um conjunto de processos colaborativos e toda uma construção conjunta e intersubjetiva de referentes (Morato, 2008)31.

Comentários finais

Como dar conta dos conhecimentos prévios e emergentes, reconhecidos, co-construídos, retomados em contextos interacionais? Como dar conta de um estado de coisas que em parte está organizado a priori, e em parte deriva da organização de algum ato de significação qualquer, verbal ou não-verbal?

A postulação de uma co-existência de conhecimentos organizados por estruturas ou esquemas conceptuais e por padrões interacionais requer que coloquemos em xeque qualquer corte abissal entre essas duas formas do co-nhecimento, mutuamente constitutivas, linguagem e cognição.

Se a noção de frame pode servir como ferramenta teórica e analítica para o estudo da forma como constituímos e (re)organizamos o conhecimento, impõe ao pesquisador alguns desafios.

Entre os desafios teóricos encontra-se a superação de posições externa-listas e internalistas com relação à concepção de cognição, bem como a neces-sidade de uma articulação mais estreita entre as chamadas análises macro e as

30 MOURA, H.M. “Metáfora e regularidades lingüísticas”. In: Lingüística e Cognição. (Miranda, N.S.; Name, M.C. Eds.). Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

31 Morato, E.M. “O caráter sócio-cognitivo da metaforicidade: contribuições do es-tudo do tratamento de expressões formulaicas por pessoas com afasia e com Doen-ça de Alzheimer”. Revista de Estudos da Linguagem 16:2, 2008.

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análises micro. O enfrentamento de tais desafios vincula-se tanto à explicação sobre a constituição do conhecimento, quanto ao que alguns autores chamam de atualização ou modificação de frames (reframing), fenômenos para os quais parecem concorrer tanto esquemas conceptuais ou frames semânticos, quanto frames interacionais.

RÉSUMÉ

Il existe plusieurs modèles ou constructions théoriques formulées pour rendre compte théoriquement et empi-riquement de la manière dont les individus construisent (partagent, modifient, organisent, règlent, représentent, reconnaissent) l´expérience de la connaisance du monde. Le but de cet article est de réfléchir sur la notion de fra-me - terme polysémique - dans un domaine théorique porteur pour une approche socio-cognitive du langage et de la connaissance, la Neurolinguistique.

LE MOTS-CLÉS: frame – cognition – Neurolinguis-tique

Recebido em: 31/03/2010Aprovado em: 17/06/2010