A Necessária Crítica à Razão Cínica Brasileira – a Barbárie

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  • 5/21/2018 A Necess ria Cr tica Raz o C nica Brasileira a Barb rie

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    CONSTITUIO OU BARBRIE? A LEI COMO POSSIBILIDADE

    EMANCIPATRIA A PARTIR DO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO

    Lenio Luiz Streck

    Procurador de Justia-RSPs-Doutor em Direito Constitucional e HermenuticaCoordenador Adjunto e Professor do PPGD da UnisinosConselheiro do Instituto de Hermenutica Jurdica

    1. A necessria crtica razo cnica brasileira a barbrie

    No momento em que o mundo varrido por uma fustigante onda

    neoliberal, inexorvel que a questo da funo do Estado e do Direito seja

    (re)discutida, assim como as condies de possibilidade da realizao da

    democracia e dos direitos fundamentais em pases recentemente sados de

    regimes autoritrios, carentes, ainda de uma segunda transio. O (dominante)

    discurso neoliberal atravessado/impulsionado pelo fenmeno da democracia

    delegativa1 adjudica sentidos em nosso cotidiano, tentando convencer-nos de

    que a modernidade acabou. Pois justamente neste contexto que estas

    reflexes se inserem, buscando a construo de um discurso e a justificao do

    poder oficial por meio do discurso jurdico em face da problemtica relao

    Direito-Estado-Sociedade.

    Para as elites brasileiras, a modernidade acabou. Tudo isto parece

    estranho e ao mesmo tempo paradoxal. A modernidade nos legou o Estado, o

    Direito e as Instituies. Rompendo com o medievo, o Estado Moderno surge

    como um avano. Em um primeiro momento, como absolutista e depois como

    liberal, mais tarde o Estado transforma-se, surgindo o Estado Contemporneo

    sob as suas mais variadas faces. Essa transformao decorre justamente do

    acirramento das contradies sociais proporcionadas pelo liberalismo. Ou seja, oEstado intervencionista resultante da prpria crise do Estado Liberal de cunho

    absentista.

    1 Segundo ODonnel, a transio de regimes autoritrios para governos eleitos democraticamente no encerraa tarefa de construo democrtica: necessria uma segunda transio, at o estabelecimento de um regimedemocrtico. A escassez de instituies democrticas e o estilo de governo dos presidentes eleitos em vriospases que saram recentemente de regimes autoritrios particularmente da Amrica Latina caracterizamuma situao em que, mesmo no havendo ameaas iminentes de regresso ao autoritarismo, difcil avanar

    para a consolidao institucional da democracia. O estudo desses casos sugere a existncia de um tipo peculiarde democracia em que a DELEGAO prevalece sobre a REPRESENTAO, denominada pelo autor deDEMOCRACIA DELEGATIVA, fortemente individualista, com um corte mais hobbesiano do que lockiano.Consultar ODonell, Guillermo. Democracia delegativa? In: Novos Rumos CEPRAP, n. 31, out/91, p. 25 e segs.

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    Nessa linha, vem bem a propsito o dizer de Boaventura de Souza

    Santos, para quem esse Estado, tambm chamado de Estado Providncia ou

    Social, foi a instituio poltica inventada nas sociedades capitalistas para

    compatibilizar as promessas da modernidade com o desenvolvimento capitalista.

    Este tipo de Estado, segundo os defensores do neoliberalismo, foi algo que

    passou, desapareceu, e o Estado simplesmente tem, agora, de se enxugar cada

    vez mais. Para os neoliberais, complementa Souza Santos, ele (o Estado) ,

    agora, uma instituio anacrnica, porque uma entidade nacional, e tudo o

    mais est globalizado.

    A globalizao neoliberal-ps-moderna coloca-se justamente como o

    contraposto das polticas do welfare state. Como bem assevera Fbio Wanderlei

    dos Reis, a lgica geral da competio globalizante inequivocamente

    concentradora. Da no apenas fuses, mas, sobretudo, a excluso de grandes

    massas de trabalhadores da possibilidade de insero apta no mundo econmico,

    o desemprego e a precarizao do trabalho, a desigualdade social crescente

    mesmo nos pases em que o desemprego comparativamente reduzido, e os

    indicadores exibem sade e pujana econmica em suma, aquilo que alguns

    tem chamado de brasilianizao do capitalismo avanado. No caso brasileiro,

    acresce o fato de que nos inserimos mais precariamente no jogo, no s porquej somos o Brasil da pesada herana escravista e do fosso social, mas tambm

    porque nossas fragilidades nos tornam vtimas preferenciais, sempre prontas a

    surgir como bola da vez nas perversidades da dinmica transnacional2.

    O neoliberalismo e a globalizao aparecem como nova face/roupagem

    do capitalismo internacional. Por isso, Edmundo Arruda Lima Jr.3 chama a

    ateno para uma espcie de frenesi terico que toma conta das discusses: h

    um discurso apocalptico antimoderno, onde a globalizao neoliberal vistacomo sinnimo de modernizao. Na verdade, diz Arruda, o que nos vendido

    como prova de modernidade d os claros sinais de uma barbrie, a barbrie

    neoliberal que, a ttulo de guardar identidade com a filosofia ps-moderna, traz

    como resultado sinais de retorno pr-modernidade. Nessa mesma linha Andr-

    Nol Roth adverte para o perigo de estarmos indo rumo a uma nova forma de

    2Cfe. Folha de So Paulo, 28 maro 1998, pp. 1-3.3Cfe. Arruda Jr., Edmundo Lima. Neoliberalismo e Direito. Paradigmas na crise global e o Neoliberalismo. In:Direito e sculo XXI: ordem e conflito na onda neoliberal ps-moderna. Rio de Janeiro: Luam. Caps. II e III.

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    regulao neofeudal, porque as principais especificidades que separaram o

    Estado Moderno do medievo esto sendo diludas no plano da globalizao.

    Evidentemente, a minimizao do Estado em pases que passaram pela

    etapa do Estado Providncia ou welfare statetem conseqncias absolutamentediversas da minimizao do Estado em pases como o Brasil, onde no houve

    Estado Social. O Estado interventor-desenvolvimentista-promovedor, que deveria

    fazer esta funo social, foi, especialmente no Brasil, prdigo (somente) para

    as elites, enfim, para as camadas mdio-superiores da sociedade, que se

    apropriaram/aproveitaram de tudo desse Estado, privatizando-o, dividindo/lo-

    teando com o capital internacional os monoplios e os oligoplios da economia e,

    entre outras coisas, construindo empreendimentos imobilirios com o dinheiro do

    FTGS dos trabalhadores, fundo esse, que, em 1966, custou a estabilidade no

    emprego para milhes de trabalhadores brasileiros.

    No Brasil, a modernidade tardia e arcaica. O que houve (h) um

    simulacro de modernidade. Alis, como bem disse Eric Hobsbawn, o Brasil um

    monumento negligncia social, ficando atrs do Sri Lanka em vrios

    indicadores sociais, como mortalidade infantil e alfabetizao. E por que isso?

    Pela simples razo de que, no Sri Lanka, o Estado empenhou-se na reduo das

    desigualdades4. Ou seja, no Brasil as promessas da modernidade no se

    realizaram. Em face disso, como contraponto, visando dar um saldo em direo

    modernizao, o establishmentapresenta, por paradoxal que possa parecer, a

    soluo do retorno ao Estado (neo)liberal. Da que a ps-modernidade vista

    como a viso neoliberal. S que existe um dficit social, e por isso precisamos

    defender nossas Instituies (conquistas da modernidade) contra esse

    neoliberalismo ps-moderno. Da vir a propsito o dizer de Boaventura Santos,

    para quem o Estado no pode pretender ser fraco: Precisamos de um Estadocada vez mais forte para garantir os direitos num contexto hostil de

    globalizao neoliberal. E acrescenta:Fica evidente que o conceito de um

    Estado franco um conceito fraco.

    evidente que, em pases como o Brasil, em que o Estado Social no

    existiu, o agente principal de toda poltica social deve ser o Estado. As polticas

    neoliberais, que tem minimizado o Estado, no apontam e no apontaro para a

    realizao de tarefas antitticas a sua natureza! este, pois, um de nossos

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    dilemas: quanto mais necessitamos de polticas pblicas, em face do profundo

    processo de excluso social, mais o Estado se encolhe...

    Da a pergunta: como pode o Estado, nesse contexto, atuar, intervir,

    para (comear a) resgatar essa imensa dvida social? O quadro desanimador.Criamos uma apartheid social no pas. Pesquisa recente mostra que os excludos

    so 59% da populao. E assim por diante... Da a existncia no Brasil de duas

    espcies de pessoas: o sobreintegrado ou sobrecidado, que dispe do

    sistema, mas a ele no se subordina, e o subintegrado ou subcidado, que

    depende do sistema, mas a ele no tem acesso5.

    A absoluta maioria da sociedade passa a acreditar que existe uma ordem

    de verdade, na qual cada um tem o seu lugar (de)marcado. Esse cada-um-tem-o-seu-lugar engendrado a partir de um processo de violncia simblica,

    reforado pelos meios de comunicao de massa. Por isso, por exemplo,

    possvel e observe-se a relevncia dessa questo no plano simblico que o

    pas mantenha impunemente um apartheidna diviso entre elevadores sociais e

    de servio, o que legitima o preconceito social6.

    Tudo isso se encaixa, pois, em uma espcie de razo cnica brasileira.

    Invertendo a famosa frase de Marx dita no Capital: Sie wissen das nicht, aber

    sie tun es, que significa disso eles no sabem, mas o fazem, Peter Sloterdijk7

    nos ajuda a explicar a frmula dessa razo cnica traduzida no comportamento

    de nossas classes dirigentes: eles sabem muito o que esto fazendo, mas fazem

    assim mesmo. Ou seja, nossas classes dirigentes e o establishment jurdico

    sabem o que est ocorrendo, mas continuam a fazer as mesmas coisas que

    historicamente vm fazendo. Vem bem a propsito disso o dizer de Jurandir

    Freire Costa, para quem hoje aposentamos os Rosseau. Em vez de utopias,

    (existem os ) manuais de auto-ajuda, psicofrmacos, cocana e teraputicas

    diversas para os que tm dinheiro; banditismo, vagabundagem, mendicncia ou

    religiosismo fantico para os que apenas sobrevivem.

    4Consultar Hobsbawn, Eric.A era dos extremos. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.5Ver, nesse sentido, Neves, Marcelo. Teoria do Direito na Modernidade Tardia. In: Arguello Ktie (Org.). Direitoe democracia. Florianplis: Letras Contemporneas, 1996. p.110.6

    Nesse sentido, ver Streck, Lenio Luiz. Hermenutica Jurdica E(m) Crise. 4a

    . Ed. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2003.7 Sloterdijk, Peter. Kritik der zynischen Vernunft.Frankfurt, 1983. Tambm, Zizek, Slavoj. Como Marx inventouo sintoma? In: Uma mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, pp. 312 e 313.

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    2. O (novo) papel do Direito no Estado Democrtico de Direito a

    Constituio como constituir e a resistncia constitucional como

    compromisso tico do jurista

    Releva notar que tudo isso acontece na contramo do Direitoestabelecido. Sim, porque o ordenamento constitucional brasileiro aponta para

    um Estado forte, intervencionista e promovedor, na esteira daquilo que,

    contemporaneamente, se entende como Estado Democrtico de Direito. Ou seja,

    o Direito, no Estado Democrtico de Direito, recupera a sua especificidade,

    devendo ser, hoje, um campo necessrio de luta para implantao das

    promessas modernas. uma proposta de emancipao.

    A toda evidncia, no se est, com isso, abrindo mo das lutas polticas,

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    atravs do Executivo, do Legislativo e dos movimentos sociais. importante

    observar, nesse contexto, que, em nosso pas, h at mesmo uma crise de

    legalidade, uma vez que nem sequer esta cumprida, bastando, para tanto, ver

    a inefetividade dos dispositivos da Constituio. Com efeito, passados doze

    anos desde a promulgao da Constituio, parcela expressiva das regras e

    princpios nela previstos continuam ineficazes. Essa inefetividade pe em

    xeque, j de incio, o prprio art. 1 da Constituio, que prev a dignidade da

    pessoa humana como um dos fundamentos da Repblica brasileira, que,

    segundo o mesmo dispositivo, constitui-se em um Estado Democrtico de

    Direito. Da a necessria pergunta: qual o papel (e a responsabilidade) do

    jurista nesse complexo jogo de foras, no interior do qual Konder Comparato9

    denuncia a "morte espiritual da Constituio"? Quais as condies de acesso

    justia do cidado, visando o cumprimento (judicial) dos direitos previstos na

    Constituio?

    8 Nessa linha, relevante trazer colao o dizer de Tarso Genro, que, fazendo uma crtica ao parlamento,que parece ter sido terceirizado e aos tribunais superiores que aceitam o estupro de um governo que sgoverna pela exceo, prope um novo contrato social: No (precisamos) de um novo pacto social, quesempre foi um embuste das elites em horas de aperto poltico, mas de contrato que d base formao deuma nova maioria, na sociedade e no parlamento, para colocar o Estado a servio da construo da nao. Umcontrato social que viabilize a insero soberana, interdependente e cooperativa do pas na ordem globalizada eque oriente uma sociedade integrada nacionalmente por um mercado interno de massas. Esse novo contratosocial dever ter como participantes os que querem estabilizar econmica e politicamente o pas e subordinar oEstado sociedade, retirando-o do domnio do capital financeiro e dos seus burocratas, a servio apenas dosprprios interesses. In: Por um novo contrato social. Folha de So Paulo, Tendncia e Debates, opinio 1,02/08/98.9

    O jurista Fbio Konder Comparato publicou veemente artigo no jornal Folha de So Paulo (10/05/98, p. 1-3),fazendo crticas s reformas constitucionais. Na abertura do testo, Comparato diz; "No sejamos ridculos. AConstituio de 1988 no est mais em vigor. (...) A Constituio hoje o que a Presidncia (da Repblica)quer que ela seja, sabendo-se que todas as vontades do Planalto so confirmadas pelo Judicirio".

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    por mais evidente que a Constituio de 1988 uma Constituio

    classificvel como social, incluindo-se no moderno Constitucionalismo, lado a

    lado com as Constituies europias do ps-guerra. Mais do que isso, uma

    Constituio dirigente, contendo no seu iderio a expectativa de

    realizao dos direitos humanos e sociais at hoje (s)negados

    Sociedade brasileira. Mas no basta a vigncia do texto; o que preciso

    efetiv-lo. Um olhar retrospectivo j se torna suficiente para diagnosticar a

    necessidade urgente de uma mudana na postura dos juristas/operadores do

    Direito. Dito de outro modo, h que se redimensionar o papel do jurista e do

    Poder Judicirio nesse complexo jogo de foras (sociais e polticas), na exata

    medida em que se coloca o seguinte paradoxo: uma Constituio rica em

    direitos (individuais, coletivos e sociais) e uma prtica jurdico-judiciriaque, reiteradamente, (s)nega a aplicao de tais direitos.

    Em nosso pas, no h dvida de que, sob a tica do Estado Democrtico

    de Direito em que o Direito deve ser visto como instrumento de

    transformao social -, ocorre uma desfuncionalidade do Direito e das

    Instituies encarregadas de aplicar a lei. O Direito brasileiro e a dogmtica

    jurdica10 que o instrumentaliza est assentado em um paradigma liberal-

    individualista que sustenta essa desfuncionalidade, que, paradoxalmente, vem aser a sua prpria funcionalidade! Ou seja, no houve ainda, no plano

    hermenutico, a devida filtragem em face da emergncia de um novo modelo

    de Direito representado pelo Estado Democrtico de Direito desse

    (velho/defasado) Direito, produto de um modelo (neo)liberal-individualista-

    normativista de direito.

    Ou seja, no plano das prticas do Direito, continuamos a olhar o novo

    (Estado Democrtico de Direito, constituio dirigente, direitos sociais, etc) comos olhos do velho (modelo de direito liberal-individualista-normativista). Dizendo

    de outro modo, no Brasil predomina ainda o modelo de direito institudo/forjado

    para resolver disputas interindividuais, ou, como se pode perceber nos manuais

    de Direito, disputas entre Caio e Tcio (sic) 11ou onde Caio o agente/autor e

    10As crticas deste texto so dirigidas, evidncia, dogmtica jurdica no-garantista, que no questiona asvicissitudes do sistema jurdico, reproduzindo esta injusta e desigual ordem social. Ou seja, as crticas aquifeitas ressalvam e reconhecem os importantes contributos crticos - e no so poucos - construdos/elaborados

    ao longo de dcadas em nosso pas.11 Uma necessria observao: os personagens Caio, Tcio Mvio so aqui utilizados como uma crtica aosmanuais do direito, os quais, embora sejam dirigidos ou deveriam ser a um sistema jurdico (brasileiro) nointerior do qual proliferam Joo, Pedros, Antonio, Jos, Marias, Terezas, teimam (os manuais) em continuar

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    Tcio (ou Mvio) o ru/vtima. Assim, se Caio invadir (ocupar) a propriedade de

    Tcio, ou Caio furtar um botijo de gs ou uma galinha, muito fcil para o

    operador do Direito resolver o problema. No primeiro caso, a resposta singela:

    esbulho, passvel de imediata reintegrao de posse, mecanismo jurdico de

    pronta e eficaz atuao, absolutamente eficiente para a proteo dos direitos

    reais. No segundo caso, a resposta igualmente singela: furto.

    Nos casos apontados, o campo jurdico coloca a disposio do operador

    do Direito umprt--porter significativocontendo uma resposta pronta e rpida.

    Entretanto, quando Caio e milhares de pessoas sem teto ou sem terra ocupam a

    propriedade de Tcio, ou quando Caio participa de uma quebradeira (golpe) do

    sistema bancrio, causando desfalque de milhes de dlares (Banco Nacional,

    Coroa-Bratel, Econmico, etc, sem falar nas grandes sonegaes...), os juristas

    somente conseguem pensar o problema a partir dos pr-juzos

    advindos do modelo-liberal-individualista-normativista.

    Como respondem os juristas (e os tribunais) a esses problemas, produtos

    de uma sociedade complexa, em que os conflitos no so mais simples

    problemas entre Caio e Tcio, mas sim entre Caio et caeterva? Na primeira

    hiptese, se a justia tratar da invaso/ocupao do mesmo modo que trata os

    conflitos de vizinhana (esbulho possessrio), as conseqncias sero

    gravssimas (e de todos conhecidas...) Na segunda hiptese (crimes do colarinho

    branco), os resultados so assustadores. Conseguimos ndices altssimos de

    condenaes dos delitosps-de-chinelo... mas quando o sistema se depara com

    os delitos que lesam o conjunto da sociedade (crimes de ndole transindividual),

    os resultados so aterradores (de 692 casos de crimes contra o sistema

    financeiro nacional investigados pelo Banco Central entre os anos de 1986 e

    1996, somente cinco resultaram em condenao final, sendo que nenhumacusado ficou um minuto na priso!). Parece que no Brasil se encaixa muito bem

    a frase dita por um campons salvadorenho a seu advogado e magnificamente

    trabalhada por Jesus A. De La Torre Rangel: La ley es como la serpiente; solo

    pica a los descalzos!

    No surpreende, pois, que importantes institutos jurdicos previstos na

    nova Constituio continuem ineficazes (desde o mandado de injuno at a

    utilizando personagens idealistas/idealizados, desconectados da sociedade. At mesmo nos proves do MEC ospersonagens Caio e Ticio (re)apareceram...

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    funo social da propriedade, passando pelos juros bancrios, o valor do salrio

    mnimo, etc). O problema eficacial das normas passa, fundamentalmente, por

    um redimensionamento do papel dos operadores do Direito, do Poder Judicirio e

    do Ministrio Pblico. Para tanto, deve ficar claro que a funo do Direito

    no modelo institudo pelo Estado Democrtico de Direito no mais

    aquela do Estado Liberal-Absentista. O Estado Democrtico de Direito

    representa umplusnormativo em relao ao Estado Social. Dito de outro

    modo, o Estado Democrtico de Direito pe disposio dos juristas os

    mecanismos para a implantao das polticas do welfare state, compatveis com

    o atendimento ao princpio da dignidade da pessoa humana.

    Considerando que a Constituio no somente o documento para

    organizar o Estado, mas, sim, a prpria explicitao do contrato social (a

    Constituio, portanto, constitui) e o espao de mediao tico poltica da

    sociedade (regulao social), ou, como diz Bonavides, a expresso do consenso

    social sobre os valores bsicos, tornando-se o alfa e mega da ordem jurdica,

    fazendo de seus princpios, estampados naqueles valores, o critrio mediante o

    qual se mensuram todos os contedos normativos do sistema, necessrio ter

    claro que o cumprimento do texto constitucional condio de

    possibilidade para a implantao das promessas da modernidade, em umpas em que a modernidade (ainda) tardia e arcaica.

    Assim, para que se cumpra a Constituio e se viabilize a dignidade da

    pessoa humana e s para isto tem sentido um Estado organizado e uma

    Constituio, necessitamos, primeiro, superar esse paradigma normativista,

    prprio de um modelo de Direito liberal-individualista, hegemnico no plano das

    prticas judicirias, onde os prprios mecanismos para viabilizar os direitos

    sociais e fundamentais, passados doze anos da promulgao da Constituio,tm permanecido ineficazes.

    Como toposhermenutico12, o texto constitucional deve ser visto em sua

    substancialidade, com toda a principiologia que assegura o Estado Social e oplus

    normativo que o Estado Democrtico de Direito que aparece j no art. 1 do

    12 Desnecessrio, neste ponto, dizer (e alertar) que a Constituio no aqui entendida como toposconformadorde uma atividade subsuntiva, onde o seu texto seria a ltima ratiodo sistema, atuando como um-repertrio-de-conceitos-abstratos espcies de significantes primordiais-fundantes espera de uma

    acoplagem proveniente da infra-constitucionalidade... Ora, pensar assim seria resvalar em direo metafsica, ocultando a diferena ontolgica. Dizendo de um modo mais simples: preciso ter claro que o

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    seu texto. Nesse sentido, as lies de Paulo Bonavides, para quem princpios

    valem, regras vigem, e Celso Antonio Bandeira Melo, que sustenta ser mais

    grave violar um princpio do que uma norma. Refora, ainda, a lio de Souto

    Maior Borges, para quem a violao de um princpio constitucional importa

    em ruptura da prpria Constituio, representando por isso mesmo uma

    inconstitucionalidade de conseqncias muito mais graves do que a violao de

    uma simples norma, mesmo constitucional.

    De forma crtica, preciso entender que - sustentando esse modelo

    liberal-individualista de Direito - existe um campo jurdico, institudo ao mesmo

    tempo que instituinte, no interior do qual trabalha-se ainda com a perspectiva de

    que, embora o Estado tenha mudado de feio, o Direito perfaz um caminho a

    latere,13 revelia das transformaes advindas de um Estado intervencionista,

    promovedor, previsto, em sua plenitude, no corpo da Constituio.

    preciso, pois, dizer o bvio, ou seja, que precisamos constitucionalizar

    o direito infraconstitucional e as aes do Estado. No a Constituio que deve

    adaptar-se ao Governo, mas, sim, o Governo que adaptar suas prticas

    Constituio. A materialidade da Constituio implica em entender que h um

    ncleo poltico no contedo do pacto constituinte. Com isso, deve ser colocado

    em xeque at mesmo o processo de privatizaes efetuado pelo governo, que

    caminha na contramo do que estabelecido nos objetivos da Constituio:

    construir uma sociedade com justia social. Como bem lembra Comparato14, "no

    regime democrtico, o atributo maior da soberania popular consiste em

    constitucionalizar a nao". Afinal, no parece bvio que a Constituio uma

    norma superior s demais e que ela a Constituio o fundamento de

    validade das normas infraconstitucionais? No parece redundante dizer que uma

    norma infraconstitucional somente tem validade jurdica se estiver emconformidade com outra norma, superior a ela, que a Constituio da

    Repblica? Entretanto, no isto que est ocorrendo, isto , nem os princpios

    sentido do ser de um ente no pode ser constitutivo do ser de outros entes. Para uma anlise maisaprofundada, ver Streck, Lenio Luiz. Hermenutica Jurdica, op.cit, em especial o posfcio.13O Juiz de Direito Dyrceu Cintra fere bem a questo, dizendo: "H o fator cultural. A tradio discursiva dosbacharis, sua linguagem arrevesada e a falta de objetividade dificultam o trabalho de todos. Gasta-se muitotempo com questes perifricas formais. Juzes e operadores do Direito no tm formao voltada paraaplicar o saber jurdico de modo a atender demanda da sociedade contempornea. A magistraturaguarda ranos do positivismo normativista, que mantm distante a preocupao com a Justia real ecultiva demasiada reverncia s cpulas dos tribunais, dando pouco espao criatividade. O processo

    tradicional despolitiza o conflito, que muitas vezes afastado sem ser resolvido". In: Por umareforma radical e abrangente. Folha de So Paulo, Tendncias e Debates, 25/05/99, p. 1-3. (grifei)

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    constitucionais so aplicados e nem as normas infraconstitucionais passa(ra)m

    pelo necessrio processo de filtragem constitucional. Ou seja, necessrio

    pregar o bvio. Afinal, como dizia Darci Ribeiro, em seu Tratado de Obviedades,

    Deus muito treteiro. Faz as coisas de forma to recndita e disfarada que

    precisamos ir tirando os vus, a fim de revelar a obviedade do bvio!

    Essa tarefa, entretanto, no se faz sem ranhuras. No se deve olvidar

    que o direito constitucional tem sido relegado a um plano secundrio em nosso

    pas. Isto ocorre porque a nossa cultura jurdica positivista, permeada e

    calcada no paradigma liberal-individualista-normativista, concebe a

    Constituio apenas como um marco, entendendo que a dimenso dos

    direitos fundamentais se resume a um leque de direitos subjetivos de

    liberdades voltados para a defesa contra a (indevida) ingerncia do

    Estado (G. Cittadino). Enfim, trabalha-se ainda com a concepo de que o

    Direito ordenador, o que, evidncia, caminha na direo oposta de um direito

    promovedor-transformador do Estado Social e Democrtico de Direito.

    Enfim, para vivificar o texto constitucional, necessitamos superar o

    paradigma liberal-individualista de Direito. Para tanto, torna-se indispensvel

    uma nova postura hermenutica, que envolve um "dar-se conta" do (novo) papel

    do Direito no Estado Democrtico de Direito. O processo hermenutico deve ser

    um devir constante. Interpretar dar sentido a cada momento. No processo

    interpretativo o jurista produz sentido e no reproduz um sentido

    primordial/fundante da norma.

    Por isto a necessria resistncia constitucional que se impe. O

    Constitucionalismo no morreu. Afinal, para que serve o Direito? Somos juristas

    para que? Proponho, assim, o que Garcia Herrera magnificamente conceitua

    como resistncia constitucional, entendida como o processo de

    identificao e deteco do conflito entre princpios constitucionais e a inspirao

    neoliberal que promove a implantao de novos valores que entram em

    contradio com aqueles: solidariedade frente ao individualismo, programao

    frente competitividade, igualdade substancial frente ao mercado, direo

    pblica frente a procedimentos pluralistas. O novo modelo constitucional

    supera o esquema da igualdade formal rumo igualdade material, o que

    14 Cfe. Comparato, Fabio Konder. Rquiem para uma Constituio. In: O desmonte da nao. Petrpolis:Vozes, 1999. p. 16.

  • 5/21/2018 A Necess ria Cr tica Raz o C nica Brasileira a Barb rie

    11

    significa assumir uma posio de defesa e suporte da Constituio como

    fundamento do ordenamento jurdico e expresso de uma ordem de

    convivncia assentada em contedos materiais de vida e em um projeto

    de superao da realidade alcanvel com a integrao das novas

    necessidades e a resoluo dos conflitos alinhados com os princpios e

    critrios de compensao constitucionais15.

    Numa palavra, a partir da superao da crise paradigmtica do Direito

    (crise de modelos de Direito e de Estado) que poderemos dar um sentido

    eficacial Constituio, inserida no novo modelo de cunho transformador que o

    Estado Democrtico de Direito, rumo emancipao social. Ao lado disto,

    imprescindvel uma nova hermenutica jurdica, que possibilite ao operador do

    Direito a compreenso da problemtica jurdico-social, inserida no contexto de

    uma sociedade excludente como a brasileira, onde a dignidade da pessoa

    humana tem sido solapada deste o seu des-cobrimento. preciso, pois, dizer o

    bvio. Comunicar esse bvio de que a Constituio constitui! O bvio est no

    anonimato. Deve ser descortinado. Como dizia Darci Ribeiro, em seu Tratado de

    Obviedades, Deus to treteiro, faz as coisas to recndidas e sofisticadas, que

    ainda precisamos dessa classe de gente, os cientistas, para desvelar as

    obviedades do bvio!

    15 Consultar Garcia Herrera, Miguel Angel. Poder Judicial y Estado Social: Legalidad y ResistenciaConstitucional. In: Corrupcion y Estado de Derecho El papel de la jurisdiccion. Perfecto Andrs Ibes(Editor). Madrid: Trotta, 1996. p. 83.