A nebulosa do decrescimento
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Universidade de So PauloFaculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de AntropologiaPrograma de Ps-Graduao em Antropologia Social
Ana Flvia Pulsini Louzada Bdue
A nebulosa do decrescimento.Um estudo sobre as contradies das novas formas de
fazer poltica
So Paulo2012
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Ana Flvia Pulsini Louzada Bdue
A nebulosa do decrescimento.Um estudo sobre as contradies das novas formas de
fazer poltica
So Paulo2012
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, sob a orientao da Profa. Dra. Ana Claudia Duarte Rocha Marques, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
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Nome: Ana Flvia Pulsini Louzada Bdue
Ttulo: A nebulosa do Decrescimento. Um estudo sobre as contradies das novas formas de
fazer poltica
Aprovada em:
Banca Examinadora
Prof. Dr.:____________________________________________________________________
Instituio:__________________________________________________________________
Julgamento:_________________________________________________________________
Assinatura:__________________________________________________________________
Prof. Dr.:____________________________________________________________________
Instituio:__________________________________________________________________
Julgamento:_________________________________________________________________
Assinatura:__________________________________________________________________
Prof. Dr.:____________________________________________________________________
Instituio:__________________________________________________________________
Julgamento:_________________________________________________________________
Assinatura:__________________________________________________________________
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, sob a orientao da Profa. Dra. Ana Claudia Duarte Rocha Marques, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
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A meu av, que me ensinou a gostar de histria.
Ao Danilo.
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Agradecimentos
Agradeo, primeiramente, quelas e queles que deram corpo a esta pesquisa:
militantes e ativistas do decrescimento que me receberam em suas casas, em seus locais de
trabalho, em suas reunies, aes e manifestaes. Agradeo pela disposio em me mostrar
que o decrescimento era muito mais do que um conjunto de ideias, e que para saber do que se
tratava, era preciso circular muito. Especialmente a Lucie Supiot, Nicolas Lechopier e
Guillaume Gamblin, que me ofereceram muitas das condies necessrias para essa
circulao. Agradeo tambm a(os) integrantes do grupo Decrescimento Brasil pelas trocas,
debate e dilogos.
professora Ana Claudia Duarte Rocha Marques, que aceitou orientar um trabalho
cujo tema sempre foi to nebuloso. Seu apoio, suas indicaes e sobretudo a liberdade que
sempre me concedeu foram fundamentais para deslindar o caos que insistia em se colocar
diante de ns.
professora Isabel Loureiro, pelas ricas contribuies na banca de qualificao. A
suas sugestes foram de extrema importncia, inspirando grande parte desse trabalho.
Ao professor Renato Sztutman, no apenas pelo instigante dilogo na banca de
qualificao como pelas trocas ao longo das disciplinas. Agradeo por estar sempre aberto e
pelo constante incentivo.
professora Sylvia G. Garcia, que me ensinou, ainda na graduao, o que ser
cientista social 24 horas por dia e que para fazer um bom trabalho, preciso dar razes.
Ao grupo de estudos sobre ideologia, do qual fiz parte de maneira tmida e silenciosa.
Sou imensamente grata por terem aberto as portas para um universo do qual eu no fazia
parte, mesmo sob a minha condio de espectadora. Espero, com este trabalho, tornar pblico
o quanto aprendi com vocs, Bruna, Anouch, Lais, Eduardo, Everaldo, Ugo, Fbio e Vladimir.
Ao grupo Hybris, de onde este trabalho sorveu muitas referncias, indagaes e
questionamentos. O cruzamento de temas aparentemente to distantes foi e continua sendo
absolutamente enriquecedor, permitindo-me ultrapassar fronteiras tericas e polticas.
Agradeo ao Nicolau, Julia, ao Carlos, Fernanda, Dani, Flor e ao Adalton. Sobretudo
Natacha por compreender muitas vezes as minhas incertezas, e Catarina, que uma grande
inspirao.
Anouch e Lais, pelas conversas infindveis e por sempre me lembrarem de que eu
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no estava sozinha. Samantha, pela amizade de anos, pelos incentivos nos momentos de
crise e por compartilhar inquietaes e questes. Ao Edu, pelas sempre animadas discusses.
Carol e ao Leandro, por estarem sempre presentes. Andrea pelo apoio na reta final.
Em especial Bruna, por ter me ensinado, com sua fora e sua amizade, o que (e
como) enfrentar este mundo.
A quatro mulheres que, ora de perto ora de longe, acreditaram na importncia deste
trabalho: minha av Janette e as tias queridas Sandra, Heleninha e Ndia. Ao Camilo e ao
Alexandre, por terem acompanhado e torcido com tanto carinho.
A minha me e ao meu pai, por incentivarem e por me oferecerem todas as condies
para que eu pudesse ir a campo, passar horas diante dos livros e por nunca duvidarem da
importncia de tudo isso. Agradeo ainda minha irm que, com sua incrvel compreenso
das contradies do mundo, sempre esteve disposta a ouvir o que que eu tanto estudo.
Ao Danilo, por estar presente sempre, em tudo o que est por trs e pela frente de
todas essas pginas.
Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq.
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BDUE, Ana Flvia P. L. A nebulosa do decrescimento. Um estudo sobre as contradies das novas formas de fazer poltica. 181p. Dissertao (Mestrado em Antropologia Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Antropologia da Universidade de So Paulo, 2012.
Resumo: Esta dissertao de mestrado tem como tema central a mobilizao poltico-
ecolgica de Decrescimento na Frana. Com o argumento de que o crescimento econmico
destri o meio ambiente, militantes do decrescimento acionam uma diversidade de coletivos,
aes e ideias para construir uma mobilizao poltica em forma de nebulosa. Diferente de um
movimento social, de um partido poltico ou de um grupo com contornos bem estabelecidos,
uma nebulosa uma mobilizao descentrada e aberta, que coloca em relao iniciativas
distribudas pelo territrio francs com a preocupao de garantir a autonomia e a
particularidade de cada grupo local. A fim de discutir as implicaes dessa forma de fazer
poltica que frequentemente considerada inovadora, esta dissertao toma como ponto de
partida a nouvelle gauche, nascida em meados dos anos 1950 na Frana. Por meio do
levantamento de algumas questes que aparecem nessa nova esquerda, discute-se as
implicaes do aparecimento de novas maneiras de conceber o social e agir politicamente em
detrimento do marxismo, da contradio de classes e da noo de explorao por meio do
trabalho. Diante da problematizao do conjunto de ideias e prticas que tomava corpo
naquele perodo, parte-se para uma discusso das continuidades e descontinuidades
instauradas pelo decrescimento com relao aos movimentos precedentes, atravs da
descrio etnogrfica das relaes estabelecidas pelos militantes franceses. Por fim, as novas
formas de fazer poltica desenvolvidas pelo decrescimento so problematizadas na medida em
que so aproximadas das novas formas do capitalismo. Muitas anlises sugerem que a crtica
tornou-se o motor do capitalismo por meio da incorporao de formas de organizao social e
ideolgica que tem profundas afinidades com o movimento decrescimento. Dessa forma, so
discutidas as contradies de um movimento que tenta colocar o crescimento em xeque.
Palavras-chave: 1) Decrescimento; 2) Ecologia poltica; 3) Movimentos sociais; 4)
Capitalismo
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BDUE, Ana Flvia P. L. The nebula of degrowth. A study on the contradictions of new forms of political action. 181p. Dissertao (Mestrado em Antropologia Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Antropologia da Universidade de So Paulo, 2012.
Abstract: The aim of this thesis is to discuss the degrowth movement in France. Considering
that economic growth leads to environmental damages, degrowth activists state that it is
necessary to create new forms of political action. Thus, many informal collectives, practices
and ideas are mobilized in order to built what is called nebula of degrowth. Different from a
social movement, a political party or a well defined group, a nebula is a non-centered and
opened mobilization, that establishes many relations between collectives and groups spread
all over the French territory. While the connections are created, many efforts are made to
guarantee the differences and autonomy of the groups joined together. To discuss the
implications of the nebula form of degrowth, this thesis goes back to the emergency of the
nouvelle gauche, during the 1950s. Some issues that usually have shown up in this moment
allows us to discuss how society and political action was reconceptualized, for example by the
expulsion of marxist ideas such as class struggle and labor exploitation. The mapping of the
main points of the new left in France leads us to discuss the continuities and discontinuities
introduced by degrowth movement in the political scenery. After an ethnographic presentation
of degrowth nebula, the conclusion is that there are many contradictions in the form the
movement states social criticism. To explain what are the meanings of such contradictions, a
final topic is presented: the contradictions of the contemporary capitalism. By bringing
capitalism and degrowth movement aside, it is possible to see that both have similar but
opposite forms.
Keywords: 1) Degrowth; 2) Political ecology; 3) Social movements; 4) Capitalism
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Sumrio
Introduo.................................................................................................................................10Captulo 1. A Nouvelle Gauche.................................................................................................18
1. 1. O diagnstico de uma sociedade integrada pela tcnica..............................................211. 1. 1. O novo mundo..................................................................................................211. 1. 2. A recusa do marxismo e tcnica como nova inimiga...........................................231. 1. 3. Da prxis transformao...................................................................................46
1. 2. A nouvelle gauche e a ecologia poltica....................................................................561. 3. Marxismo fragmentado................................................................................................661. 4. Do novo nebulosa...................................................................................................69
Captulo 2. Decrescimento em nebulosa...................................................................................732. 1. Histria(s).....................................................................................................................78
2. 1. 1. Nasce o decrescimento como conceito................................................................782. 1. 2. Etiquetando e costurando o decrescimento: nebulosa como mtodo..................90
2. 2. Meios de comunicao.................................................................................................962. 2. 1. Silence e a nebulosa das alternativas...............................................................972. 2. 2. Redes de comunicao.......................................................................................1062. 2. 3. La Dcroissance: a crtica como ao................................................................110
2. 3. Consumo poltico, trocas humanizadas e produo justa...........................................1172. 3. 1. Borrando a publicidade......................................................................................126
2. 4. Militncia e as totalizaes parciais...........................................................................1322. 5. A expulso do outro no outro possvel....................................................................135
Captulo 3. Transformaes no capitalismo e as contradies da crtica................................1383. 1. O achatamento das contradies................................................................................1403. 2. Economia de espelhos e ps-modernismo..................................................................1493. 3. Ideologia.....................................................................................................................1623. 4. As contradies do decrescimento.............................................................................167
Referncias Bibliogrficas......................................................................................................174
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Introduo
A Cincia Poltica europeia est passando por um dilema: como estudar poltica se as
instituies polticas (parlamento, eleies, partidos) esto perdendo a credibilidade e a fora?
Uma srie de estudos vem sendo elaborados para tentar medir a democracia, para verificar
se as pessoas identificam-se com os partidos e qual a confiana que depositam nas instituies
democrticas. Segundo dados obtidos pelo Eurobarometer (um conjunto de surveys realizados
em diversos pases da Unio Europeia sobre a percepo da economia e da poltica na UE1),
europeus declaram acreditar mais em instituies no democrticas como a polcia do que em
eleies e partidos. Alm disso, os jovens esto depositando sua energia poltica no mais em
militncia partidria, mas sim em associaes e organizaes no governamentais. Por fim, os
partidos que tinham amplo apoio popular tem sua participao quantitativamente diminuda
nas instncias de poder, sendo substitudos por uma mirade de novos pequenos partidos cuja
base social de classe mdia. A consequncia disso a expulso dos setores mais pobres para
fora da poltica, por um lado, e de outro uma reorganizao da ao de jovens de classe mdia
e alta que no parece se encaixar nos moldes tradicionais de partidos e eleies (cf.
MERKEL, 2012).
Essas questes, no interior da teoria poltica, passam por uma srie de reas temticas,
que vo do debate sobre o conceito de democracia at a discusso metodolgica sobre a
possibilidade de mensur-la, passando por problematizaes filosficas de representao e
legitimidade. Qualquer que seja a perspectiva e a posio adotada, o ponto no qual todas se
cruzam o consenso de que preciso repensar o que poltica na Europa e discutir as
instituies e seus limites.
H cientistas polticos (que declaram-se isolados) que tentam traar um quadro mais
otimista no que diz respeito aparente falncia da participao popular no engajamento
poltico e propem que as associaes, organizaes e mesmo coletivos no formalizados que
so apontados como substitutos dos partidos pelo Eurobarometer so novas formas de fazer
poltica. Esta viso corresponde aos argumentos acionados pelos prprios militantes que
travam batalhas (semnticas e concretas) para mostrar o quo importante consumir
1 Conferir o site do Eurobarometer: .
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orgnicos e andar de bicicleta. E mais do que politizar novas esferas da vida, o argumento em
voga que isto se d por oposio a outras formas de ao que seriam estreis do ponto de
vista da transformao social.
Os planos de austeridade europeus em resposta crise econmica (que comeou em
2008 e que voltou ainda com mais fora nos pases de capitalismo avanado em 2010)
levaram s ruas europeias e norte-americanas multides de indignad@s que reivindicavam
democracia real j, uma democracia cujas decises fossem tomadas sem a mediao dos
partidos existentes e sem que a poltica fosse submetida a prerrogativas econmicas. As
praas tomadas, como Bellecour em Lyon, eram como arenas nas quais se poderiam ensaiar,
em pequena escala, a democracia que se queria levar adiante2. Ao mesmo tempo, no interior
dos acampamentos, havia um grande problema em jogo: seria preciso fazer a crtica ao
sistema contra o qual as pessoas ali presentes se manifestavam ou a prpria existncia de
coletivos auto-geridos daria conta de colocar abaixo a poltica que servia aos bancos? Esse
debate, que tomava as assembleias e as conversas nas praas, abordava a mesma questo que
a cincia poltica europeia aciona: o que fazer poltica?
Esta dissertao de mestrado tem como tema central o decrescimento, uma dentre
tantas novas formas de fazer poltica que circulam na Frana e cujos militantes3 estiveram
presentes ativamente nas praas europeias durante o ms de maio de 2011. Nascido na esteira
dos primeiros Fruns Sociais Mundiais, no incio dos anos 2000, o decrescimento era uma
termo que aparecia para sistematizar a crtica ao crescimento econmico e os problemas
ambientais e para tornar pblica a possibilidade de se construir uma sociedade no baseada
nos ndices de crescimento e desenvolvimentos.
A novidade conclamada pelo decrescimento residiria em sua forma disforme e por isso
democrtica: sem um centro, sem um programa comum deliberadamente qualquer pessoa
ou coletivo pode integr-lo e transform-lo, mediante debates e relaes com os demais.
Diferente de um conjunto de coletividades dispersas, a nebulosa do decrescimento
2 Na Espanha, foram milhares de pessoas que ocuparam praas em Madri, Barcelona e outras cidades. Logo, a pequena escala no significa uma quantidade pequena de pessoas envolvidas, mas sim que havia um acordo sobre as ocupaes serem uma forma de protesto e no uma construo imediata de uma sociedade alternativa, como se aquelas praas oferecessem instrumentos para a nova poltica na medida em que eram organizadas de maneiras novas.
3 Novas formas de fazer poltica implicam novas formas de militncia. Militar pelo decrescimento, como veremos ao longo deste trabalho, no pertencer a um grupo de decrescimento, mas defender a causa em diversas situaes coletivas e tambm no modo de vida cotidiano.
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definida por seus militantes como a possibilidade de interconectar iniciativas esparsas e
separadas, bem como aes individuais e pontuais e, assim, potencialmente estend-las para
provocar uma transformao social em larga escala.
Por meio dessa forma de organizao, o decrescimento uma mobilizao que
problematiza o crescimento econmico em funo das destruies ambientais que este
provoca, mas a mirade de argumentos evocada para fazer essa associao e para propor
solues dificulta propositadamente o elenco de um conjunto de conceitos que definam
decrescimento. H, por exemplo, setores do movimento que enfatizam a dimenso econmica
do crescimento; outros colocam a economia como fruto de nosso imaginrio consumista, e
propem que a ao deve ser voltada para a transformao das mentalidades. Alguns grupos
defendem uma relativa separao temtica no interior da crtica ao crescimento e assim as
reivindicaes seriam melhor atendidas, por exemplo separar a luta contra a publicidade dos
problemas ambientais. Ainda h coletivos voltados para a construo de relaes entre
pequenos grupos (como associaes de associaes, redes de movimentos, etc.) para evitar
que a mobilizao se fragmente.
A questo de inovar as formas de fazer poltica por meio do decrescimento toma corpo
nas alianas e nos conflitos entre grupos, pessoas e ideias. Militar pelo decrescimento no
pertencer a um grupo bem constitudo, mas passar por uma srie de coletivos de forma
flexvel, como que deslocando o compromisso com uma causa que se pretende totalizante
para um mltiplo engajamento. Os coletivos, por sua vez, so pequenos, frequentados por um
nmero flutuante de pessoas e a diferena entre uma militante e um simpatizante difcil de
ser estabelecida, como que se isso no fizesse diferena para efetividade da mobilizao.
E exatamente este o ponto mais importante para se compreender o que
decrescimento: a efetividade da mobilizao. Como ser mostrado ao longo deste trabalho, a
reconfigurao da ao poltica, que to debatida em diversos meios (acadmicos,
militantes, nos jornais, etc), passa por uma relao com o fazer: no basta criticar o
crescimento, preciso fazer algo. Aparecem, ento, os conflitos em torno do que este fazer:
seria suficiente entregar panfletos na rua, integrar um partido poltico? Fazer no apenas
organizar descontentamentos (mas, diro rapidamente as defensoras e defensores do
decrescimento, certamente isto fundamental), e sim fazer o outro mundo que se quer
quando se nega aquele em que se vive. Decrescimento colocar em prtica a crtica ao
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crescimento (que, por sua vez elaborada nos livros e debatida em diversas coletividades),
no apenas atravs da publicizao dos questionamentos, mas tambm de formas de ao que
supostamente no passam pelas orientaes gerais (tericas e prticas) do sistema o qual se
critica.
Muitas das propostas e prticas envolvidas com o decrescimento, apesar de
aparecerem aos olhos de jovens militantes como uma novidade, j estiveram presentes nas
mobilizaes da nova esquerda nos anos 1960. Contudo, apesar das proximidade entre as
aes, o que retomado deste perodo na construo do decrescimento menos o repertrio
das prticas do que a produo terica de autores como Bernard Charbonneau, Jacques Ellul,
Ivan Illich e Andr Gorz.
No primeiro captulo da dissertao, retomamos alguns aspectos da esquerda francesa
entre as dcadas de 1950 e 1970, tanto aqueles que so explicitamente mencionados pelos
militantes do decrescimento quanto os que no so. A partir de uma retomada de pontos
centrais da obra produzida naquele contexto por Charbonneau, Ellul, Gorz e Illich, bem como
de algumas questes que perpassavam diversas mobilizaes, pode-se perceber que mais
importante do que o modo como o meio ambiente era problematizado naquele contexto era a
proposta de reformular a compreenso da sociedade, a crtica e as formas de ao poltica.
A reformulao da crtica pela nova esquerda dizia respeito expulso do marxismo
dos partidos comunistas, bem como de conceitos e explicaes que pareciam estar superadas
(como as classes sociais e a explorao do trabalho), sob a justificativa de que o mundo
mudara consideravelmente e novas anlises precisavam ser feitas e novas formas de ao
seriam necessrias para mudar essa realidade social. Entravam em cena, ainda, novos atores,
como cientistas e estudantes de classe mdia.
Embora os movimentos daquele momento sejam vistos hoje com ressalvas por terem
fracassado, se estabelecemos pontos de contato entre aquelas mobilizaes e o decrescimento
atualmente, percebemos que na verdade a nova esquerda teve efeitos bastante significativos
com relao renovao da compreenso do social e das estratgias polticas. Ao defender
que na nova formao social no mais eram mais as classes operrias que eram exploradas,
mas toda a sociedade que, por meio do consumo de massas e do Estado de Bem Estar Social
se via submetida aos imperativos da tcnica at mesmo as esferas subjetivas no escapavam
ao seu jugo, j estava em jogo a organizao de formas de mobilizao que colocavam em
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xeque certas categorias sociais ao lanar propostas e reflexes sobre autonomia, autogesto,
aes locais e micropolticas.
Em termos mais abstratos, a fora da multiplicao de pontos de vista e de
movimentos fragmentados corresponde a uma supresso da noo de contradio como motor
da organizao social. As teorias que defendiam o fim das classes, por exemplo, propunham
que a sociedade no era mais marcada por uma ciso interna, porque toda a populao estava
igualmente submetida ao totalitarismo das tcnicas e do progresso. O novo fenmeno da
alienao no se dava mais pelo trabalho, defendiam muitos pensadores e militantes daquele
momento, e sim pela determinao de todas as esferas da vida por tcnicas heternomas, ou
seja, que subvertem as necessidades, desejos e princpios humanos transformando-os em seus
produtos.
A reformulao da esquerda passava tambm por uma recusa de uma centralizao
poltica e ideolgica (aqui no sentido de conjunto de ideias polticas), que reverberava nas
formas de ao pontuais e fragmentadas, nas quais o corpo, a alimentao, a sexualidade e os
modos de vida assumiam papel preponderante. O prprio marxismo, que tanto fora avaliado
naquele momento como fracassado e insuficiente incorporou as crticas que recebia. A partir
de um breve levantamento dos rumos do marxismo na Frana nos anos 1960, sugerimos que a
descentralizao e a recusa de um corpo coeso de conceitos e projetos de mobilizao tambm
marcaram-nos.
O efeito da combinao entre recusa de teorias totalizantes de um lado e exploso de
lutas pontuais baseadas nos modos de vida de outro foi a consolidao de uma esquerda que
entende a ao por meio do fragmento, que perde de vista a totalidade social, seja como modo
de organizao ou como alvo das mobilizaes. Anos depois, quando emergem os
movimentos anti-globalizao, essa fragmentao potencializada mas tambm
problematizada por movimentos como o do decrescimento, que busca restabelecer alguma
percepo de totalidade ao mesmo tempo que se esfora para no recair em formaes
totalitrias.
No fim dos anos 1990, quando surgem os movimentos anti-globalizao, os problemas
contra os quais estes se colocavam eram significativamente distintos daqueles vivenciados
pela nova esquerda trinta anos antes. Ao mesmo tempo, no se pode dizer que no houvesse
qualquer continuidade entre ambos perodos. O decrescimento, que nasceu nesse contexto,
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sempre foi marcado por uma recusa da centralizao de ideias por determinados grupos, como
se a prpria existncia do movimento passasse por sua forma disforme. O segundo captulo
faz uma descrio dessa multiplicidade de coletivos, pessoas, ideias e conceitos que compem
o decrescimento e atenta para a nfase da ao militante na construo de relaes, como
uma maneira de evitar que pequenos gestos e pequenas coletividades restem isoladas e no
produzam efeitos socialmente relevantes.
comum, como j foi dito, que os militantes definam o decrescimento como uma
nebulosa, composta por meios de comunicao, sites, jornais e revistas, produtores, lojas e
restaurantes de alimentos orgnicos, coletivos anti-publicidade e uma mirade de associaes
ligadas a temas diversos. As relaes so o mote destas pequenas organizaes, ou seja, no
bastaria agir pontualmente produzindo orgnicos se esta produo no fosse um modo de
religar produtores e consumidores, de restabelecer laos de amizade onde o dinheiro havia
provocado despersonalizao das relaes. Entre este e outros casos, o decrescimento aparece
como uma dupla resposta s formas precedentes de fazer poltica: de um lado, recusando a
ao tradicional (como militncia partidria) e de outro, problematizando a herana new age
dos anos 1960, isto , das iniciativas individuais de levar estilos de vida alternativos que em
nada mudariam o mundo. Em suma, por meio de uma srie de discusses, o segundo captulo
traa um mapeamento de alternativas militantes e problematiza o que est em jogo quando se
propem novas formas de fazer poltica que passem tanto pelos modos de vida quanto pelos
investimentos de criar conexes que no suprimam as especificidades e diferenas efeito das
mobilizaes da nova esquerda quarenta anos antes.
A continuidade entre os dois perodos , portanto, mais profunda do que uma mera
transmisso de contedos e de repertrios de ao e de reflexes. Ao enfatizar as relaes
entre as lutas fragmentadas que a nova esquerda havia lanado no campo do poltico, o
decrescimento procurou restabelecer uma dimenso de totalidade que ao mesmo tempo fica
ameaada pelo princpio organizador de no territorializar o decrescimento em lugar algum.
A hiptese final deste trabalho, desenvolvida no terceiro e ltimo captulo, que esta
oscilao contraditria do decrescimento corresponde outra contradio, que sua relao
tensa com o capitalismo contra o qual se erige. Ao se constituir como uma nebulosa de
alternativas (seja no plano do pensamento ou das aes concretas), o decrescimento retoma,
sua maneira, a ideia de outro mundo possvel postulada pelos movimentos antiglobalizao
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da virada para o sculo 21. Alternativas a qu, poderamos perguntar? No apenas ao
crescimento econmico, mas tambm ao neoliberalismo, manipulao dos desejos pela
publicidade, estetizao da poltica, entre tantos outros questionamentos que so
apresentados no segundo captulo.
O terceiro captulo , ento, uma reflexo feita com base em diferentes abordagens
sobre o capitalismo contemporneo com o objetivo de apreender como o alvo das lutas do
decrescimento se organiza. A partir desse quadro, nos deparamos com contradies no
movimento pois, na medida em que se ope a uma srie de elementos que constituem o
capitalismo, acaba se aproximando dele atravs de sua forma nebulosa de estabelecer relaes
que constituem totalidades parciais e ao acionar a diferena como motor de sua existncia. Por
outro lado, h que se levar em conta que esto envolvidas na nebulosa do decrescimento
motivaes de resistncia que, diante de um diagnstico de falncia da mobilizao social de
massas, encontram suas armas de luta no cotidiano e na articulao de gestos pontuais. Uma
vez que o capitalismo incorporou a crtica (como forma e no o contedo especfico de
alguma crtica em particular), parece no haver mais lugar para sair dele; se seu motor a
prpria possibilidade de crtica, ele ir sempre se perpetuar como verses diferentes de si
mesmo. Mas fica a questo: ser que o movimento de decrescimento tambm no instaura
rupturas que desafiam um pensamento teleolgico, e cujo efeito no pode ser previsto?
***
Nota etnogrfica
O trabalho de campo que deu origem s questes desenvolvidas nesta pesquisa de
mestrado foi realizado em Lyon, terceira maior cidade francesa, em maro de 2010 e maio de
2011, mas antes de ir a Frana, a pesquisa j estava em curso a partir do levantamento dirio
de textos que circulavam na internet com a palavra dcroissance4. Foi em campo que me
deparei com uma inesperada rede de pequenos coletivos, pelos quais as pessoas circulam e
constroem imagens de mundo a partir de sua perspectiva militante, de modo que pude recortar
4 Por meio de uma ferramenta do Google, recebo em minha conta de e-mails todos os dias as notcias publicadas que contenham a palavra dcroissance. Entre 2008 e 2010 organizei o material em um banco de textos.
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como tema da pesquisa de mestrado a organizao em nebulosa do decrescimento.
importante apontar, de incio, que muitos grupos, pessoas, ideias, propostas e aes
ficaram de fora deste trabalho, no apenas pela economia do texto, mas pela impossibilidade
(constitutiva do movimento) de acompanhar todos os grupos. Durante esses dois meses,
acompanhei uma srie de atividades e movimentaes organizadas por pessoas e coletivos
que defendem diretamente o decrescimento, como o jornal La Dcroissance, a revista Silence,
e a Entropia ou por grupos que se dizem afeitos ideia de decrescimento, como o
Deboulonneurs, o Les Compostiers, o bazar 3 p'tit pois, o restaurante Le Court Circuit, entre
outros, de modo que eu mesma fui considerada militante. Foram realizadas algumas
entrevistas mas o meio principal de adentrar na nebulosa foi segui-la diariamente.
A simples fala de que eu estava em Lyon para estudar o decrescimento me colocava
diante da forma descentrada da mobilizao: imediatamente meus interlocutores acionavam
uma srie de pessoas e de coletivos com os quais eu deveria estabelecer contato. Entre tantas
indicaes, algumas referiam-se a autores j mortos que teriam levantado precocemente o
tema do decrescimento, como aqueles sobre os quais me detive no segundo captulo. Passei a
intercalar a pesquisa sobre mobilizao social e correntes tericas da chamada nova esquerda.
Os temas escolhidos para serem trabalhados no primeiro captulo foram de certa forma
originados das questes que motivam o decrescimento contemporneo e, por essa razo,
foram feitos recortes e muitas questes importantes levantadas pelos autores em particular e
pelos movimentos da dcada de 1960 em geral no foram contemplados nesta dissertao.
Por fim, o carter aparentemente mais terico e menos emprico do ltimo captulo
est profundamente relacionado com toda a pesquisa de campo que realizei e com os
estranhamentos e contradies vividas pelos prprios militantes. Mais do que um captulo
separado que busca explicar e dar sentido a todas as questes previamente levantadas,
busquei realizar textualmente um procedimento metodolgico de passar das partes ao todo e
do todo s partes, bem como do geral ao particular e vice-versa.
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Captulo 1. A Nouvelle Gauche
No se deve perguntar qual o regime mais duro, ou mais tolervel, pois em cada um deles
que se enfrentam as liberaes e as sujeies. [] No cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.
Giles Deleuze
O decrescimento tanto um movimento poltico-ecolgico, quanto um princpio de
vida, como ainda um conjunto de teorias sociais, econmicas e polticas. O ponto comum
entre as diversas formulaes do decrescimento a constatao da insustentabilidade
ecolgica e social do crescimento econmico que, mensurado por ndices de produo de bens
e servios e de consumo, encontraria seus limites na explorao da natureza, j que um mundo
de recursos naturais finitos parece dar sinais de esgotamento frente a nveis de crescimento
cada vez maiores. Em termos muito genricos, quem se diz favorvel ao decrescimento
concorda que o crescimento infinito no absolutamente compatvel com um mundo de
recursos naturais finitos.
O crescimento econmico nem sempre o nico ponto a ser explorado por militantes e
acadmicos. H temas e questes paralelas que circulam nos meios acadmicos e/ou
militantes e que complementam a construo da inteligibilidade do termo, permitindo
localiz-lo como algo distinto de uma oposio semntica ao crescimento5. o caso da
problematizao dos padres de consumo dos pases industrializados do Norte, tema que
parece ocupar certo lugar de consenso: opor-se ao crescimento passaria, inevitavelmente, por
uma crtica feroz ao consumismo e publicidade.
Os pontos de convergncia so, contudo, provisrios, no sentido de que nem sempre
so abordados da mesma maneira por quem defende o decrescimento. A crtica sociedade do
consumo pode ser o ponto de partida de certas coletividades, mas ser o ponto de chegada de
5 Para ficar mais claro, pensemos em como a palavra decrescimento aparece no Brasil: no a identificamos com um grupo de pessoas ou um conjunto de ideias. Decrescimento apenas a palavra que indica o contrrio de crescimento, seja econmico, fsico, estatstico. Na Frana, o termo dcroissance entrou para o dicionrio Petit Larouse em 2009 como "politique prconisant un ralentissement du taux de croissance dans une perspective de dveloppement durable" (BONAL, 2009). Porm, grande parte dos outros dicionrios do como definio termo "diminuio".
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outras. Uma heterognea massa de ideias, propostas, crticas, sugestes, aes prticas,
coletivos e associaes propem verses distintas de decrescimento e comum que os
prprios militantes do decrescimento nomeiem aquilo que aparece a uma observadora externa
como um mosaico como uma nebulosa. Como ficar evidente no prximo captulo, as
diferenas so consideradas a forma de existncia do decrescimento, como uma recusa em
sistematizar um conceito de decrescimento exclusivo e unvoco. Por isso o decrescimento
considerada pelas pessoas engajadas uma nebulosa e no propriamente de movimento
social, nem reduzido teoria do decrescimento ou a determinadas maneiras legtimas e
corretas de praticar o decrescimento.
O decrescimento se constituiu em um momento de efervescncia de mobilizaes
sociais e ambientais nos anos 2000, ao mesmo tempo em que muitos militantes remontam aos
anos 1960 e 70 como fonte de inspirao. Autores como os franceses Jacques Ellul, Bernard
Charbonneau, Andr Gorz, Cornelius Castoriadis e Franois Partant, o romeno Nicolas
Georgescu-Roegen, o austraco Ivan Illich e o ingls Ernst Friedrich Schumacher seriam de
certa forma referncias para a elaborao do pensamento e das propostas de decrescimento, j
que todos eles teriam, de um modo ou de outro, apresentado de forma sistemtica questes
relativas aos malefcios da sociedade de consumo e insuficincia (social e ecolgica) do
crescimento econmico (cf. BESSON-GIRARD; LATOUCHE, 2006).
O projeto de uma sociedade autnoma e econmica abarcado pelo slogan do decrescimento no de ontem. Sem remontar a algumas utopias do primeiro socialismo, nem tradio anarquista renovada pelo situacionismo, ele foi formulado, desde o fim dos anos 1960 e de uma forma muito prxima da nossa, por Andr Gorz, Franois Partant, Jacques Ellul, Bernard Charbonneau, mas sobretudo por Cornelius Castoriadis e Ivan Illich. O fracasso do desenvolvimento no Sul e a perda das referncias no Norte levaram esses pensadores a questionar a sociedade de consumo e suas bases imaginrias.
LATOUCHE, 2009, p. 13.
Alm de evocados atualmente como precursores de algumas das ideias do
decrescimento, os prprios autores tiveram alguma participao com o movimento atual. Ivan
Illich participou da conferncia Dfaire le dveloppement, rfaire le monde (ILLICH, 2002) e
Gorz escreveu o ltimo artigo de sua vida, amplamente noticiado pela internet em sites do
decrescimento, para a revista eletrnica EcoRev' (GORZ, 2007). Ellul, Charbonneau, Gorz e
Ellul produziram uma srie de trabalhos entre os anos 1950 e 1970 que nem sempre foram
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imediatamente reconhecidos. Contudo, este perodo de suas produes tornou-se referncia e,
mesmo os trabalhos mais recentes aparecem como se fizessem parte de uma obra cuja
importncia decorresse das reflexes produzidas naquele momento6. Tais autores mantiveram
profundo dilogo entre si. Ellul e Charbonneau trabalharam juntos desde a juventude, como
ambos relatam em diversos trabalhos. Charbonneau foi o "mestre" intelectual de Illich (cf.
ILLICH, 1994), que por sua vez tornou-se referncia obrigatria para Gorz depois que este
comeou a se engajar nas questes de sade, cincia e tecnologia (cf. GORZ, 2008).
Duverger (2011) sugere que o decrescimento apenas reabilitou, sob a forma de
movimento social, um debate que j estava posto quatro dcadas antes do qual tais autores
citados por Latouche eram expoentes. Que debate seria esse? Neste captulo, sero levantados
alguns temas desenvolvidos por Andr Gorz, Jacques Ellul, Bernard Charbonneau e Ivan
Illich para compreender o que era evocado, mobilizado e enunciado naquele momento e que
retorna hoje pela via do decrescimento. Ao selecionar a obra desses quatro autores, o objetivo
evitar generalizaes acerca daquele perodo e mostrar como estavam sendo produzidos
conhecimentos sobre a realidade social e propostas de transformao. Ao mesmo tempo, a fim
de localiz-los em seu tempo, sero apontadas algumas linhas gerais do que se convencionou
chamar de nova esquerda francesa, de ecologia poltica e do marxismo que entrava em
colapso como referncia unvoca. O duplo movimento de refinar as referncias de um lado
(aprofundar a apresentao dos quatro autores) e generaliz-las de outro (pela nova esquerda,
pela ecologia poltica e pelo marxismo fragmentado) ao mesmo tempo um modo de
apresentar o procedimento utilizado pelos defensores do decrescimento hoje e us-lo como
estratgia textual para relacionar parte e todo. Como diz David Harvey (2012), a proximidade
ajuda a revelar as microtexturas de que so compostas as grandes pinceladas e abrir mo de
uma implica abrir mo da outra.
Entre as generalizaes feitas sobre os anos 1960 e 1970 na Frana, esto aquelas que
falam sobre a nouvelle gauche: a nova esquerda francesa que se constituiu para responder
s crises do socialismo real, ao imobilismo e autoritarismo do comunismo internacional e s
transformaes scio econmicas decorrentes das altas taxas de crescimento na Frana. Uma
das caractersticas sempre lembradas dessa nova esquerda sua multiplicidade, no sentido de
6 Um exemplo o livro Finis Terrae de Bernard Charbonneau (2010), que foi escrito na dcada de 1990 mas que apresentado como se fosse um trabalho imediatamente associado s reflexes que o autor produziu nos anos 1970.
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ser praticamente invivel traar linhas comuns. Ao invs de mapear tudo aquilo que se
considerava como nova esquerda, ou de buscar todas as linhas gerais para conseguir
classificar os quatro autores, parece ser mais interessante levantar os elementos que se
tornaram significativos na reorientao da esquerda e que hoje marcam a crtica do
decrescimento e sua forma de mobilizao social. Isso significa que o quadro apresentado
adiante acaba deixando de fora uma srie de debates e questes, como a sexualidade e o
feminismo, que foram de suma importncia para o momento mas que hoje no esto
imediatamente ligados ao decrescimento.
O que liga os autores aqui escolhidos ao decrescimento contemporneo menos uma
preocupao propriamente ecolgica e a problemtica da natureza propriamente dita. Decerto
apareciam consideraes sobre o meio ambiente, mas na maior parte das vezes eram como
uma chave de acesso a problemas maiores: a questo da liberdade e da autonomia. O que
levou esses autores a serem reconhecidos tantos anos depois como importantes pensadores da
ecologia poltica so suas formulaes acerca de um mundo novo, em transformao, que
exigia novas reflexes, questionamentos e intervenes.
1. 1. O diagnstico de uma sociedade integrada pela tcnica
1. 1. 1. O novo mundo
Entre 1945 e 1973 a Frana (bem como os demais pases de capitalismo avanado,
cada qual com sua especificidade) foi marcada pela racionalizao extrema da indstria
amadurecida no entre-guerras, por elevados nveis de crescimento econmico, pelo aumento
do padro de vida (aumento de salrios reais e de renda familiar), pela conteno de
tendncias a crise e a conflitos blicos e pela preservao da democracia de massas. O
crescimento teve como fundamento uma reformulao dos papeis dos atores envolvidos nesse
fenmeno: o Estado passou a intervir pesadamente na economia e nas relaes corporativas; o
capital corporativo teve que se ajustar a reivindicaes dos sindicatos e estes, por sua vez,
para ter suas reivindicaes salariais e de polticas sociais atendidas ofereciam em troca a
cooperao s tcnicas fordistas de produo para garantir o aumento de produtividade (cf.
HARVEY, 2012). Alm disso, o regime sovitico apontava sinais de crise e os partidos
socialistas e comunistas fora da URSS representavam cada vez menos os grupos de esquerda,
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descontentes com uma srie de fatores do regime.
Esse perodo, que ficou conhecido como os Trinta Gloriosos (ou Anos Dourados do
capitalismo), colocava para a esquerda, uma srie de problemas relativos a como interpretar e
compreender essas relaes sociais, econmicas e polticas e como lutar contra elas. Era
comum que se definisse aquela realidade como uma novidade radical, no sentido de romper
completamente com o passado. Conforme Angela Alonso (2009, p. 59), naquele momento
dizia-se que uma mudana macroestrutural teria alterado a natureza do capitalismo, cujo
centro teria deixado de ser a produo industrial e o trabalho. Uma nova sociedade se
vislumbraria, dando lugar tambm a novos temas e agentes para as mobilizaes coletivas. O
marxismo comeou, assim, a ser visto por certos setores da esquerda francesa como
insuficiente para dar conta desse contexto. O mundo parecia no mais corresponder ciso de
classes, como se todas as pessoas agora tivessem sido igualmente submetidas tcnica; logo,
a transformao social no dependeria mais de uma luta interna sociedade, mas de uma
recusa a algo que lhe exterior e lhe determina de fora.
A indstria, a tcnica e a ao humana deixam de figurar como soluo para o futuro
para se converterem em problema presente, causadoras de problemas sociais, ambientais e,
mais do que isso, um perigo liberdade. Como mostra Jean Jacob (1999), os anos 1960 e 70
foram marcados pelo fim das esperanas oferecidas pela razo. A cincia no mais levaria a
um futuro melhor e inelutvel, o progresso parecia ter deixado de ser soluo e tornou-se
problema, a industrializao elevou o nvel de vida material, mas teria sido responsvel por
novas formas de restries s liberdades humanas.
Alm disso, divulgava-se o fracasso do socialismo real e consequentemente parte da
esquerda recusava o Partido Comunista e a Unio Sovitica como referncias ou paradigmas.
Por fim, tudo isso estava associado reconfigurao dos problemas diante da emergncia de
novas questes, como a ecologia, o feminismo e a sexualidade. As fronteiras sociais, polticas
e territoriais dos problemas se transformaram: uma vez que o poder passa a ser
problematizado como algo que opera sem centro e por meio de pequenos gestos e em relaes
sociais que antes no eram problematizadas como tais (como a escola, o turismo, a sade,
etc), esse poder (e a dominao) no mais estava associado a grupos especficos nem era
mediado por determinadas relaes sociais, de modo que todo o mundo parecia estar sujeito
aos mesmos mecanismos de controle e dominao.
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1. 1. 2. A recusa do marxismo e tcnica como nova inimiga
Atualmente, o marxismo uma questo que aparece entre os militantes do
decrescimento, mas em menor medida se comparado com o debate crtico das dcadas de
1950 a 70 na Frana. Parece haver um certo consenso sobre sua derrocada dada sua suposta
insuficincia; mas antes de haver um consenso (que frequentemente questionado em alguns
textos ou em algumas conversas entre militantes), houve um momento em que foi preciso
explicitar as razes para tirar o marxismo de cena.
Dificilmente o marxismo era qualificado ou adjetivado porque era sempre identificado
com aquilo que se proferia e se executava nos partidos comunistas, que respondiam ao PC da
Unio Sovitica. Algumas vezes, o dilogo fazia parte de uma tentativa de reabilitar Marx e a
crtica ao capitalismo fora do circuito do partido comunista sem abrir mo da posio
questionadora e da perspectiva de transformao social. Charbonneau, Ellul, Illich e Gorz
oscilavam muito entre desferir golpes violentos s proposies de Marx e entre historiciz-lo,
garantindo um status de importncia obra de Marx, mas que era limitada por ser datada no
tempo e no espao. Novas anlises deveriam ser feitas para explorar pontos aos quais Marx
no teria dado a devida ateno ou que no teria vislumbrado dado o momento em que seu
trabalho foi produzido. Muito do que se convencionou chamar de nova esquerda e as teses dos
quatro autores tinham o objetivo de ser uma nova luz para reabilitar a crtica social sem
necessariamente ter que passar pelo arcabouo terico-poltico marxista.
Um dos elementos que se mobilizava com certa frequncia para estabelecer uma
distncia com relao ao marxismo vigente era a crtica ao socialismo real. Charbonneau
(1973) identificava a Unio Sovitica aos Estados Unidos a fim de mostrar que os problemas
sociais e ambientais no eram exclusivos de um regime ou de outro, j que ambos
compartilhavam a ideologia do progresso. Alm disso, tanto em um sistema com em outro, as
estruturas tcnicas dominantes moldavam as formas de vida cotidiana suprimindo a liberdade
de todos os indivduos. Ellul dizia que o grande problema nos anos 1930 e 40 era saber com
qual tempero seremos devorados: hitlerista, stalinista ou americano" (ELLUL, 1982b, p. 12),
ou seja, todos os sistemas apresentavam grandes ameaas totalitrias e deveriam igualmente
ser combatidos.
Illich, que viveu no Mxico e em Porto Rico por muitos anos, direcionava sua crticas
sobretudo aos Estados Unidos e s intervenes deste pas na Amrica Latina, mas no
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deixava de compartilhar com Ellul e Charbonneau, reflexes sobre o socialismo. Afirmava
que os mesmos processos se verificavam nos pases capitalistas e socialistas:
contraprodutividade, subdesenvolvimento e monoplio radical7. Argumentava que, uma vez
que a industrializao elimina a poltica, pouco importava a orientao do pas: a
industrializao imperava, gerando um crescente dano irreparvel em todos os setores, em
todas as partes do mundo. A nfase na industrializao fazia com que o socialismo e o
capitalismo falassem o mesmo idioma ao classificar as sociedades por seu grau de
desenvolvimento (ILLICH, 2006a, 2006b).
Andr Gorz, nos anos 1960, discordava que se pudesse comparar os regimes
capitalistas entre si bem como comparar capitalistas e socialistas, mas verificava um processo
comum a todos: a subordinao do consumo produo e das necessidades, exigncias
criadoras, cultura e educao s exigncias do processo de acumulao (GORZ, 1968a,
1968b). Em suma, em nenhum dos pases as necessidades econmicas respondiam s
exigncias de libertao humana; pelo contrrio, as finalidades humanas se submetiam s
tcnicas. Isso se passava porque a acumulao tambm teria orientado o socialismo real, mas
ao invs de ser privada, ali era pblica.
A aproximao dos regimes capitalistas e socialistas implicava uma reviso das teorias
sociais que preconizavam os segundos como alternativa (e por vezes inevitvel) aos
primeiros, levando inevitavelmente a um dilogo, seno uma ruptura, com o marxismo, j que
este, na viso dos autores em questo e de muitos outros contemporneos, no conseguia dar
conta de uma nova realidade que subjugava todo o mundo, independentemente do regime
poltico.
Charbonneau e a grande metamorfose
Ellul e Charbonneau se conheceram ainda jovens, quando faziam parte do movimento
personalista. O personalismo foi uma corrente filosfica fundada por Emmanuel Mounier
como uma alternativa leitura marxista economicista disponvel naquele momento para
explicar as crises pelas quais passava a Europa desde 1929. Segundo essa corrente, a pessoa
era o cerne das relaes sociais, por oposio s estruturas totalitrias e ao individualismo. A
pessoa era concebida como uma relao dialtica, como um ser cuja existncia uma relao
7 Esses conceitos sero desenvolvidos adiante.
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contnua de conflitos entre a exteriorizao e a interiorizao. O personalismo era, assim,
tambm um projeto social uma vez que sugeria a plena realizao dessa existncia, da
conciliao entre a pessoa e a vida comunitria uma vez que apessoa era a referncia de todas
as aes humanas (cf. PEIXOTO, 2010).
A perspectiva personalista de Charbonneau e Ellul j prenunciava na dcada de 1930
as teses que publicariam nos anos 1950 e 1960. Conforme escreveram no Diretivas para um
manifesto personalista, texto de 1935 publicado na revista Esprit, coordenada por Mounier, a
organizao social, poltica e econmica que vivenciavam funcionava sem passar pelas
escolhas reais dos indivduos, que agora se viam subjugados a uma ordem que lhes era
exterior (CHARBONNEAU; ELLUL, 2011). Nesta sociedade, a renncia ao ser humano,
conscincia, medida humana levou a um quadro no qual no so mais pessoas que dominam
pessoas, mas as fbricas, as instituies, o Estado, o lucro, os armamentos que dominam a
humanidade, minando as liberdades humanas. O personalismo seria uma nova civilizao que
s se alcanaria mediante um novo estilo de vida verdadeiramente humano. Aquilo que
verdadeiramente humano feito por "juzos que ns temos sem pensar, pelas nossas reaes
em face a todos os eventos dirios" (CHARBONNEAU; ELLUL, 2011, p. 155). Seria como
uma conjugao entre espontaneidade e conscincia.
A questo central para os dois amigos era a perda da liberdade provocada pela
hipertrofia das estruturas tcnicas e de gesto, mais do que com uma eventual "crise de
civilizao" (CRZUELLE, 2006, p. 20). Eles pretendiam mostrar que as experincias
totalitrias no foram uma anormalidade, uma exceo, mas ao contrrio, a sociedade
contempornea herdara, por meio da tcnica, o totalitarismo. Essas reflexes pautaram toda a
obra subsequente de ambos os autores. Em 1937, Charbonneau escreveu o que hoje
considerada uma das primeiras reflexes ecolgicas publicadas na Frana, intitulada Le
sentiment de la nature, force rvolutionnaire. Desde ento, juntamente com Ellul, passou a
refletir sobre os custos e consequncias do progresso tecnolgico (INGRAND, 2012;
LAURENCIN, 2010). Por conta disso, ambos enfrentaram resistncia do marxismo que
predominava entre a esquerda francesa no ps-guerra, porque contestar o progresso, depois da
ocupao nazista, parecia ser muito reacionrio; as palavras de ordem eram reconstruo e
produo (CRZUELLE, 2006).
Charbonneau distancia-se de Ellul, contudo, no mtodo de exposio de suas questes.
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Reconstruir sua argumentao de forma linear uma tarefa difcil (diferentemente de Ellul) j
que o prprio autor buscava uma alternativa s abstraes cientficas. Em seus livros e demais
trabalhos fica evidente de que maneira a prtica da escrita lhe soava como uma reduo da
sensibilidade, da oralidade e da experincia8. As palavras crescimento, desenvolvimento,
tcnica, burocracia e economia so muitas vezes tratadas como equivalentes, sem que haja
uma preocupao em filiar-se a uma linguagem conceitual rigorosa.
Sua proposta era que, pelo carter potico e pouco sistemtico, fossem apresentadas
reflexes sobre a realidade das sociedades (sobretudo europeias) depois do fim da Segunda
Guerra Mundial. Em 1973, Charbonneau publicou o livro Le systme et le chaos, no qual
propunha a tese de que a autonomizao da cincia e da tcnica no capitalismo e no
socialismo levaram destruio da liberdade humana porque invadiram todas as esferas da
vida social e individual com suas leis e com sua organizao. De acordo com a interpretao
de Crzuelle (CRZUELLE, 2006, 2012), Charbonneau fez convergir uma srie de
problemas sociais na expresso grande metamorfose (que, na verdade, no definida como
um conceito e aparece em uma srie de textos).
Em diversos textos, Charbonneau fala sobre uma contradio entre a natureza do ser
humano de criar meios para facilitar sua vida, por um lado, e a autonomizao desses meios e
a consequente destruio da liberdade humana, de outro. Como veremos adiante, essa
contradio no deveria ser eliminada, mas sim, equilibrada. Antes de chegarmos ao projeto
do equilbrio, vamos ver como Charbonneau desenvolve sua argumentao a respeito dessa
contradio.
Na primeira parte de Le systme, dedicada emergncia da razo e da cincia,
Charbonneau defende que a recusa da tradio, o questionamento das verdades religiosas e o
racionalismo levaram transformao do universo em uma mquina eficaz. Paradoxalmente,
essa mesma mquina tornou-se pesada, abstrata e complicada. Com a objetividade, o
conhecimento se descolou do sujeito, no havendo mais bem e mal nem a responsabilidade
sobre os frutos da cincia, pois tudo apenas objetivo, neutro. Consequentemente, a tcnica
que nasceu para responder certas necessidades se autonomizou com relao a seus fins
8 Um exemplo da preocupao de Charbonneau em escapar da escrita cientfica e das abstraes foi o prefcio para um livro de fotografias de Maurice Bardet intitulado La fin du paysage (1972). Segundo Crzuelle, Charbonneau mostra mais do que demonstra e isso que caracteriza seu mtodo expositivo, articulado com seu projeto terico-poltico (CRZUELLE, 2006).
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(valores, julgamentos) e acabou se convertendo ela prpria em um fim, sobretudo por meio
das leis cientficas que acabam por atribuir cincia um carter normativo. Em suma, a
cincia melhorou a condio das massas, mas ao mesmo tempo concentrou na mo de poucos
especialistas (e no na mo das massas) a autoridade e o poder (CHARBONNEAU, 1973).
Charbonneau defendia que o processo que se verifica na cincia espraia-se por todas
as dimenses sociais por meio da tcnica, fazendo com que a vida humana, tanto individual
quanto coletiva, seja organizada segundo os princpios da eficcia. Era como se a sociedade
tivesse se autonomizado frente ao indivduo, que fica restrito sua vida privada, de onde sai
ocasionalmente para participar da "poltica", nas eleies ou participando de sindicatos. A
espontaneidade desaparece quando a vida social passa a ser mediada.
Isso significa que a tcnica no s mquina, j que para que uma cadeia qualquer
funcione necessrio que tudo esteja integrado e que haja uma organizao de tudo o que est
envolvido. Quando essa organizao feita de forma hierrquica, aparecem novas tcnicas de
controle na figura da administrao. O Estado, a economia, a propaganda, a urbanizao, o
turismo e o lazer, a relao com a natureza, a burocracia, tudo isso so mediaes tcnicas da
vida social. Outras formas intermedirias de associao (entre sociedade global e indivduo),
como os sindicatos, desapareceram ou entraram na lgica administrativa. Delegou-se o poder
de unio e articulao social ao Estado, ao qual cabe agora a organizao da sociedade.
No sistema em que a tcnica impera, a economia ocupou lugar fundamental por ser a
nova religio universal. At ento, a economia no era algo separado, no tinha conscincia de
si mesma. Segundo Charbonneau, a burguesia inventou a economia poltica; ela pretendia
governar as naes em funo de suas prprias leis naturais e sagradas, as leis do lucro. E
como preciso produzir para ganhar, a Produo se transforma no valor supremo, mais do
que a propriedade ou as finanas (CHARBONNEAU, 1973, p. 101). O dinheiro passa a
funcionar nessa mesma lgica como um signo que submete tudo economia, que serve
produo e tcnica. Tornou-se um signo que media as relaes privadas enquanto o Estado,
anlogo ao dinheiro, tornou-se mediador de relaes pblicas e tambm tem como finalidade
nica a produo9.
9 Segundo Crzuelle (2006), Charbonneau confere importncia fundamental ao Estado na constituio da nova configurao social pautada pela tcnica. Com a Primeira Guerra, os Estados viram-se diante da necessidade de controlar a produo de forma total, unificada e eficaz. Assim, a organizao e a eficcia foram se espraiando para outros setores, resultando em uma totalizao social.
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Neste mundo, no qual as prerrogativas da produo industrial imperam em todas as
dimenses, Charbonneau defende que no faz mais sentido pensar em termos de luta de
classes. No capitalismo, a explorao do trabalhador menos para enriquecer o patro e mais
para enriquecer a indstria, da sua afirmao que o trabalhador se libertou do capital para se
submeter produo. A explorao do trabalhador agora no se d mais pelo homem, mas
pela economia, e todas as pessoas passam a ser igualmente exploradas como recursos naturais.
O dinheiro e o Estado no servem a classes especficas, mas produo, bastaria ver que uma
parte da mais-valia sempre volta para a aquisio de novas mquinas e meios de produo,
afirma Charbonneau (ibid: 105).
Charbonneau seguiu algumas aulas do curso sobre Marx ministrado na Universidade
de Bordeaux por seu amigo Jacques Ellul. muito interessante notar que, apesar desse
conhecimento, Charbonneau quase no cita Marx em seus textos mas v-se que o dilogo era
bastante vivo. Em um relato, Michel Rodes conta que seu toda militncia de seu amigo
Charbonneau se deu em termos de lutas poltico-ecolgicas, contra uma srie de
transformaes territoriais nas pequenas cidades francesas mas no menciona qualquer
referncia ao marxismo. Ao fim do relato, Rodes lembra rapidamente que Marx foi uma
influncia de Charbonneau uma vez que seu pensamento se caracterizava pela sua notvel
capacidade de frustrar e denunciar paradoxos. (RODES, 2012, p. 135). Ao mesmo tempo,
Charbonneau teria seguido outro caminho: o estilo incisivo, pitoresco, que vai do detalhe
mais realiza sntese mais magistral, a nfase nas transformaes tcnicas, a crtica
colaborao entre a universidade e a indstria, a recusa de uma linguagem hermtica na
descrio da realidade.
Marx aparecia, ento, como uma inspirao mas tambm como algo a ser superado.
No lugar da suposta centralidade da economia em Marx, Charbonneua adotava uma
perspectiva que jogava luz sobre outros domnios sociais. A organizao torna-se palavra de
ordem em todos eles. O Estado como tcnica poltica, por exemplo, assume a organizao do
trabalho para garantir o pleno emprego. Mas o pleno emprego nada mais que a submisso de
todas as pessoas produo. Por isso Charbonneau diz que a produo totalitria: ela impe
sua organizao por todas as esferas para que possa continuar funcionando. Assim, ao invs
de a organizao permitir um controle da economia para que esta seja o meio, ela faz o
inverso.
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O mesmo processo se d com as cidades e a urbanizao: no incio, a cidade era um
espao de liberdade, pois era o lugar do individualismo. Mas, em nome da proteo
individual, o planejamento urbano e regulaes diversas minaram a liberdade
(CHARBONNEAU, 1988). Alm disso, se por um lado a cidade teve sucesso em permitir ao
homem escapar da natureza, por outro, elas se transformaram em meio totalmente artificial.
Esse argumento se confirmaria pelo fato de que as pessoas viajam para o campo para se
libertar da vida na cidade.
Uma das consequncias do espraiamento da tcnica por todas as dimenses do social
que no faz mais sentido, ressalta Charbonneau, pensar a sociedade exclusivamente em
termos de classes, uma vez que todos estariam igualmente submetidos a um nico sistema. A
burocracia, por exemplo, uma forma de unir a organizao humana com a organizao das
mquinas. Ela se despersonaliza cada vez mais, assim como o Estado, fazendo com que o
poder no se concentre mais nas mos de pessoas determinadas, mas que todos o exeram
igualmente para faz-lo funcionar. No h, ento, uma diferena essencial entre as classes,
no h mais dominadores de um lado e dominados de outro e todos se associam em um
aparelho burocrtico, mesmo que alguns tenham excelentes salrios e outros no. At mesmo
os diretores servem ao sistema mas sua autoridade garantida e exercida para amenizar e
esconder sua posio de servido.
Podemos falar de uma era dos gerentes, de uma tecnocracia? Eles formam uma classe dirigente, tal como fora a burguesia, que buscam conscientemente obter a conquista do poder e justificam-na por uma ideologia? [] Eles no so uma classe, eles so a sociedade.
CHARBONNEAU, 1973, p. 94.
Dentro desse novo sistema, novas diferenas reconfigurariam as relaes sociais e a
existncia humana. Em termos mundiais, os pases podem ser divididos entre desenvolvidos e
subdesenvolvidos os que esto totalmente organizados e os que ainda resguardam espaos
de espontaneidade e no-organizao tcnica. E como a tcnica e a cincia tambm so
palavras de ordem no socialismo da URSS, as diferenas entre os pases no decorreriam do
regime poltico. Por fim, h ainda outro critrio de diferenciao social no interior das
sociedades tcnicas, que diz respeito oposio entre campo e cidade. O marxismo e o
socialismo "reduziram a questo social oposio da burguesia e do proletariado", mas
burguesia e proletariado "tm com efeito a mesma religio da indstria e o mesmo terreno de
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jogo a cidade. Para um como para outro, o campo um corpo estranho que se suporta pior
ou melhor, enquanto se aguarda o momento de elimin-lo, brutalmente pela revoluo e
metodicamente pela tcnica" (CHARBONNEAU, 1988, p. 37).
A lgica totalizante da grande metamorfose no implica em uma real unidade social.
Segundo Charbonneau, a unidade real s existe na medida em que h diferena, pois se no h
diferenas, no h trocas, no h comparaes10. As diferenas que de fato existem em nossa
sociedade so produto da diviso do trabalho, que acompanhada pela segregao espacial
nas cidades entre classes de ricos e pobres. Somente o dinheiro distingue os homens e
mulheres, e o dinheiro que os une.
Outra consequncia da grande metamorfose a perda da liberdade dos indivduos. As
mquinas, a organizao, a burocracia, os saberes tcnicos e cientficos especializados
controlam as foras sociais e podam as relaes materiais e sociais espontneas e livres. Se o
progresso nasceu para libertar o homem de Deus e das antigas formas sociais, ele trouxe
novos sofrimentos, observa Charbonneau. O produtor reduzido produo e o consumidor,
ao consumo. As tcnicas, as mquinas e a administrao nos do novos membros, mas
atrofiam os antigos.
Os indivduos sequer podem ter ideias e correr riscos, j que o Estado organiza tudo e
at mesmo cria um sistema de seguridade social. Para que a produo continue em perfeito
funcionamento, todo o risco (exceto a guerra) deve ser garantido pelo Estado, que assume
formas burocrticas e replica os mtodos de trustes privados a fim de garantir a ordem social.
Homens e mulheres repetem os mesmos gestos nas mesmas mquinas enquanto a televiso
impe a mesma distrao para todas (os). No h mais espontaneidade, as pessoas tm tarefas
bem definidas e uniformizadas e suas relaes so mediadas pelo dinheiro e pela organizao
impessoal. O efeito subjetivo da ausncia de espontaneidade e de liberdade a angstia.
Diante das mudanas constantes e das novas necessidades que devem ser supridas, o resultado
um sentimento de que nunca conseguiremos atingir a felicidade (CHARBONNEAU, 1973,
p. 187).
10 Charbonneau chega a mencionar Lvi-Strauss para dizer que o fim da multiplicidade tambm o fim da sociedade e embora o primeiro no recorra teoria das trocas do segundo, vemos que Charbonneau inspira-se nos trabalhos sobre esse tema para definir a sociedade em vias de desaparecimento.
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Ivan Illich, contraprodutividade e monoplio radical
Ivan Illich era catlico e fez parte do clero, assim como Jacques Ellul. Na dcada de
1960, devido s crticas que fazia Igreja Catlica acabou por desligar-se dela. Essas crticas
eram profundamente ligadas as suas teses sobre subdesenvolvimento e sobre a
desfuncionalidade da escola e de misses religiosas (ILLICH, 1973a, 1973b). Nesse
momento, sua obra se separava em duas frentes que dialogavam: a primeira era mais voltada a
temas teolgicos e religiosos e a segunda era "panfletria", defendia a tese da
contraprodutividade do desenvolvimento (ROBERT; PAQUOT, 2010). Apesar de sua extensa
trajetria (a partir de 1980, Illich adentra um perodo de reflexes sobre o poder e a funo
simblica de instrumentos conceituais e sobre a relao entre oralidade e escrita), a fama de
Illich pelo mundo fez-se, segundo Robert e Borremans (2006) por seus escritos panfletrios,
que hoje so referncia para o decrescimento.
Tais escritos abordam diversos temas como educao, sade e energia, todas
atravessadas por um mesmo processo: a contraprodutividade e o monoplio radical. Nas
sociedades industrializadas (capitalistas e socialistas), os meios se converteram em fins,
gerando o fenmeno da contraprodutividade, defendia Illich. A contraprodutividade designa o
modo como o desenvolvimento e o progresso carregam em si sua destruio; tanto biofsica,
quanto social e tambm poltica (contraprodutividade das ferramentas, instituies e da
sociedade industrial). Illich verificava isso nos transportes, na educao e na sade trs
temas importantes para a anlise j que, segundo o autor, so os elementos do
desenvolvimento e da modernidade por excelncia.
Segundo o comentrio de Boaventura de Sousa Santos (1975) sobre o panfleto
Energia e Equidade, Illich buscava provar a lei hegeliana da transformao da quantidade
em qualidade. Veja-se o caso do consumo de energia: ultrapassando-se determinado limite, h
um "efeito corruptor do poder mecnico" (ILLICH, 1975, p. 27), qual seja a transformao
desse poder mecnico em necessidade, e a necessidade converte-se em um monoplio:
Tal monoplio institui-se quando a sociedade se adapta aos fins daqueles que consomem o total maior de quanta de energia, e enraza-se irreversivelmente quando comea a impor a todos a obrigao de consumir o quantum mnimo sem o qual a mquina no pode funcionar.
ILLICH, 1975, p. 60.
Quando tudo reorganizado em torno dos meios de transporte motorizados, no resta
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espao para outra forma de transitar (por exemplo, as bicicletas), e as pessoas veem-se
obrigadas a se transportarem por meio de um produto industrial. Isso significa que o produto
industrial converte-se em necessidade a necessidade de locomoo transforma-se em
necessidade de ter um carro como se a indstria e o processo tcnico passassem a deter um
monoplio radical sobre as necessidades. A esse processo de inverses Illich d o nome de
coisificao e afirma inspirar-se em Marx e Freud: "por coisificao quero significar a
consolidao da percepo das necessidades reais numa procura de produtos manufaturados
de massa. Ou seja, a transferncia da sede para a necessidade de uma Coca-Cola" (ILLICH,
1973c, p. 210). A "rendio da conscincia social s solues pr-acondicionadas" se d na
medida em que organizaes burocrticas conseguem dominar a imaginao dos
consumidores sobretudo pela propaganda.
O monoplio cria, ento, duas alienaes: a primeira diz respeito ao alheamento das
necessidades, que passam a ser produzidas externamente, pelo processo tcnico e industrial; a
segunda vem do fato de que s mercadorias produzidas pela indstria serem capazes de
satisfazerem essas necessidades forjadas. Da a expresso monoplio radical para designar o
duplo controle da indstria e das instituies sobre a vida humana (criando falsas
necessidades e sendo as nicas a disporem de meios para satisfaz-las).
Com relao indstria do transporte, Illich argumenta que houve uma configurao
do espao em funo do transporte motorizado, provocando a extino das relaes humanas
e do comrcio local, bem como ocasionando uma dependncia do carro para qualquer
deslocamento. "Ao ultrapassar certo limite de velocidade, os veculos motorizados criam
distncias que s eles conseguem reduzir" (ILLICH, 1975, p. 48), e quem no dispe de
veculos motorizados, no consegue se locomover. O carro tambm reduz a liberdade de
trnsito no sentido que reduz as possibilidades de destino quem est a p pode mudar sua
rota, parar onde quiser, enquanto quem est de carro no pode faz-lo e tem que seguir rotas
desenhadas especificamente para automveis.
Alm da geografia, o transporte motorizado tambm altera o tempo social quando o
aumento do raio de circulao acompanhado por um maior dispndio de tempo com o
trnsito. Somando todo o esforo de uma pessoa para dirigir (tempo de trabalho para comprar
o carro e pagar as contas mais o tempo dirigindo), uma hora seria equivalente ao trajeto de
apenas seis quilmetros. Em pases onde no h carros, uma pessoa tambm passa uma hora
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para se deslocar por seis quilmetros, com a diferena de que gastam apenas 3% da sua vida
se movimentando, contra os 25% gastos em pases "motorizados", calculava Illich (2006c). A
transformao da quantidade em qualidade sobre a qual falava Boaventura de Sousa Santos,
diz respeito, assim, a uma nova forma social na qual a tecnologia se sobrepe s relaes da
humanidade entre si e com a natureza. O desenvolvimento da indstria, afirma Illich, se d em
detrimento da plena participao das pessoas, da autonomia dos indivduos e dos grupos de
base.
O mesmo se passa com a medicina: assim como o transporte motorizado implica
imobilidade e escravizao da maioria das pessoas ao carro, a medicina prolonga o tempo da
doena e cria novas normas a cada nova doena descoberta. A esse fenmeno da produo de
doenas, sofrimento e morte pela prpria medicina Illich d o nome de iatrognise. Soma-se a
isso o encarecimento dos servios mdicos, cujo efeito a criao de uma populao
submissa e dependente, que ao mesmo tempo que no consegue mais recorrer a seus prprios
meios para a cura, no tem acesso aos servios mdicos (ILLICH, 2006a). Antes, a cultura
oferecia mitos, tabus e padres ticos para tratar a vida, a doena e as relaes sociais. Com a
legitimao da medicina, a dor, a doena e a morte so tratadas por vias institucionais, de
modo que quem no se submeter a esses mecanismos no consegue mais lidar com a dor e
com a morte. Como destaca Illich, a promessa do progresso conduz recusa da condio
humana e averso arte de sofrer (ILLICH, 1999 s. p.).
A educao outra dimenso na qual o monoplio radical e a contrapodutividade se
verificam, quando o aprendizado se reduz escolarizao. O direito a aprender s se realiza
pela escola (ILLICH, 2006d) e, mais do que isso, s por seu intermdio podem ser formadas
as elites dirigentes e profissionais que orientam a sociedade. Em pases pobres, a
escolarizao ainda mais difundida, na medida em que somente pela escola que se obtm
um diploma, o qual necessrio para a insero na sociedade de consumidores disciplinados
da tecnocracia (ILLICH, 1973d)11.
Nos pases latino-americanos investiu-se em educao com vistas a "tirar a maioria
no-rural da sua marginalidade nos bairros de lata e numa agricultura de subsistncia e lev-la
para o tipo da fbrica, de mercado e de vida cvica correspondentes tecnologia moderna"
11 Embora as aproximaes com Bourdieu e seus trabalhos sobre a escolarizao na Frana sejam muitas, Illich no faz referncias a este e no consta, nos comentrios consultados, qualquer sinal de que tenha existido alguma relao entre ambos.
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(ILLICH, 1973e, p. 140). Mas concretamente a educao no gerou os frutos prometidos. Ao
contrrio, a escola produziu frustrao porque aparece como garantia de integrao social,
mas no a realiza porque, na medida em que marginaliza aqueles que no a seguem, produz
uma classe de pobres impotentes, ao lado de uma elite escolarizada (ILLICH, 2006d). A
escolarizao, que nasceu para incorporar as pessoas ao Estado industrial e que serviu para
derrubar o feudalismo, tornou-se um "dolo opressor" que s protege aqueles que j foram
educados, produzindo desigualdades.
Essa realidade no exclusiva de pases pobres, assevera Illich. Nos EUA a educao
tambm aquilo que designa quais pessoas so qualificadas ou no. A diferena maior :
enquanto em pases ricos h escola para todos, em pases pobres, no h. Mas nestes, a escola
aparece como o nico meio de acender riqueza, de modo que representa um fardo (ILLICH,
1973e, p. 155). Era o caso de Porto Rico, que investira 30% de seu oramento governamental
em educao, mas apenas pequena parcela chegava ao mundo universitrio. Nas palavras de
Illich, Porto Rico foi escolarizado, mas no instrudo.
Illich no explica, entretanto, as razes da pobreza e no deixa explcito se a
escolarizao, a medicalizao e o carro so produto de uma desigualdade a priori ou se as
instituies operam de forma contraditria produzindo desigualdades entre aqueles que a
consomem e aqueles no o fazem. Na maior parte dos textos, a impresso que se tem que as
desigualdades esto dadas de antemo, j que, ao menos nos pases pobres, o acesso s
instituies pressupe a posse de dinheiro e muitas so as pessoas que no conseguem fazer
parte delas. Essa questo no respondida porque Illich est mais preocupado com a
oposio que se situa primeiro entre os homens e a estrutura tcnica da ferramenta e, logo,
como consequncia, entre o homem e as profisses cujo interesse consiste em manter a
estrutura tcnica do que com a oposio entre uma classe de homens explorados e outra
classe proprietria das ferramentas (ILLICH, 2006a, p. 468).
Ao tentar contornar a questo das classes, Illich oscila entre duas explicaes. Ora o
sistema que cria as desigualdades, ora ele se impe a uma realidade j cindida. Os diplomas
criam uma diferenciao social, mas essa diferenciao s se d a partir de uma diferena
anterior: os que tiveram e os que no tiveram acesso ao ensino formal, conseguiram diplomas
e tiveram acesso a bons empregos. Com os carros, passa-se uma ambiguidade semelhante.
Illich afirma que o automvel nasceu como produto de luxo, o que quer dizer que existem
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ricos e pobres antes que o trnsito se transforme em espao exclusivo de veculos
motorizados. E uma vez que isso ocorre, os transportes criam uma desigualdade social entre
os que tm e os que no tm carro, mas Illich no incorpora essa questo em seus trabalhos.
Andr Gorz e a autogesto
Gorz era um revolucionrio anti-autoritarista e anti-stalinista e um crtico das
estratgias do movimento de trabalhadores via partido. Antes de comear a se dedicar
ecologia, nos anos 1970, Gorz estava preocupado com a configurao do capitalismo
contemporneo (GORZ, 1968a, 1968b). A primeira fase do pensamento de Gorz, quando ele
se define como marxista, pouco mencionada atualmente como referncia ao decrescimento.
So seus trabalhos que dialogam com a ecologia poltica que se tornaram importantes. Assim
como os demais autores, essa importncia decorre menos da problematizao da questo
ecolgica propriamente dita e mais da maneira como Gorz correlaciona a explicao social
com a crtica por oposio tradio marxista ento existente.
Os trabalhos de Gorz dessa poca so muito prximos s constataes de Illich e
tambm de Ellul e Charbonneau no que se refere ao diagnstico de uma nova forma social
desenvolvida com o ps-guerra, bem como submisso das necessidades e criatividade
humana tcnica. Gorz entrara em contato com os trabalhos do grupo de Illich no fim da
dcada de 1960 e lera os manuscritos de Nemesis Mdica em 1974. Sua impresso, na poca,
foi de que Illich revigorava as teorias de Ellul:
A expanso das indstrias transforma a sociedade em uma gigantesca mquina que, em vez de libertar os humanos, restringe seu espao de autonomia e determina como e quais objetivos eles devem perseguir. Ns nos tornamos os serviais dessa megamquina. A produo nao no est mais ao nosso servio; ns que estamos a servio da produo. E em razo da profissionalizao simultnea dos servios de todos os tipos, tornamo-nos incapazes de cuidar de ns mesmos, de autodeterminar as nossas necessidades e satisfaz-las por nossa conta: dependemos, para tudo, de 'profisses incapacitantes'.
GORZ, 2008, p. 54.
Ao mesmo tempo, ele distancia-se desses autores ao articular a submisso
reconfigurao da classe trabalhadora e produo de capital. Em suma, Gorz procedia de
maneira similar, mas usava um vocabulrio marxista, numa tentativa de reabilit-lo ao invs
de super-lo.
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Como dizia Charbonneau, a competio entre EUA e URSS criou um novo critrio de
comparao entre os pases: instituiu um novo sistema de produo e consumo voltado para o
bem estar e para o crescimento. Foi a primeira vez, de acordo com Gorz, que se travou uma
ligao imediata entre crescimento econmico e consumo final, substituindo a
industrializao macia como sinnimo de crescimento econmico. Para que o sistema
continue em funcionamento, necessrio que as pessoas necessitem comprar e usar dos
servios oferecidos pelo sistema, donde a manipulao das necessidades e desejos.
Ao mesmo tempo em que o novo capitalismo tem os olhos voltados para os desejos
das massas, estas no poderiam ser deixadas por sua prpria conta, afinal era preciso que se
consumisse cada vez mais para que o crescimento continuasse. Foi assim que a publicidade
assumiu papel central no sistema, cabendo a ela criar desejos e necessidades entre as massas
de consumidores. Tudo se passa, entretanto, como se a economia se desenvolvesse para
satisfazer as necessidades humanas, mas a realidade, segundo Gorz, que as necessidades so
forjadas para produzir lucro (GORZ, 1991).
Era comum que a padronizao dos comportamentos e aspiraes dos indivduos fosse
vista com bons olhos naquele momento, como um processo de aburguesamento do
proletariado. Evidentemente, Gorz opunha-se a essa viso otimista e defendia que a
homogeneizao produzia uma dominao generalizada, sendo que tanto proletrios como
colarinhos-brancos padeciam de alienaes similares, medida que as necessidades mais
ntimas se sujeitam determinao do capital.
O neocapitalismo (termo que Gorz utilizara em sua fase marxista) caracteriza-se
tambm por uma reconfigurao da organizao do trabalho, ou melhor, da diviso do
trabalho. As empresas passaram a obedecer critrios impessoais e objetivos de funcionamento,
que requeriam especializao tanto das camadas dirigentes quanto das massas e a produo
deixou de estar sujeita a determinaes pessoais ou de classe. No lugar do empresrio
individual apareceram grupos de tcnicos especializados em planejamento e organizao
racional que tentavam suprimir qualquer imprevisto, improvisao e qualquer interveno
pessoal. Quanto ao proletariado, este foi quantitativamente reduzido e qualitativamente
transformado em mo de obra qualificada. A isso Gorz d o nome de heteronomia (GORZ,
1978): as pessoas se transformaram em engrenagens de um mecanismo que no mais lhes diz
respeito.
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A composio das classes sofreu, com isso, uma grande transformao: alm de todos
terem se tornado peas do mesmo sistema, a explorao agora despersonalizada, no sentido
de que no h um grupo que personifique o papel de explorador. Charbonneau diagnosticava
tambm a "despersonalizao" de todo o sistema e dava pistas de que isso alterava a
composio das classes. Enquanto a reconfigurao significava para Charbonneau a
possibilidade de no mais se falar de classe, Gorz no abandona de imediato o vocabulrio
marxista, mas acaba articulando-o questo que lhe parece mais central e importante, qual
seja, a autonomia.
Quando Gorz comeou a se engajar com questes ecolgicas12, conferia especial
ateno questo da heteronomia provocada pela submisso das necessidades e desejos
tcnica. Os trabalhadores, que haviam sido substitudos por mo de obra qualificada so, na
viso de Gorz, substitudos por mquinas. Tais mquinas custam caro e seu valor repassado
para a mercadoria. Na concorrncia, cada capitalista busca rentabilizar suas mquinas o mais
rpido possvel, investindo em mquinas mais eficazes, mais caras e que necessitam de menos
trabalhadores para aumentar a produtividade. Assim, a composio orgnica do capital muda
(diminui o capital investido em salrios e aumenta o investido em mquinas) promovendo
uma queda tendencial da taxa de lucro. Se o lucro cai, torna-se mais difcil investir em novas
mquinas mais caras, pois h menos din