A Natureza Sociologica Do Conflito

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8. A NATUREZA SOCIOLóGICA DO CONFLITO * O conflito como sociação Em princípio, a importância sociológica do conflito (Kampf) nunca foi questionada. Admite-se que o conflito produza ou modifique grupos de interesse, uniões, organizações. Por outro lado, sob um ponto de vista comum, pode parecer paradoxal se alguém perguntar, desconside- rando qualquer fenômeno que resulte do conflito ou que o acompanhe, se ele, em si mesmo, é uma fonna de sociação. À primeira vista, essa parece uma questão retórica. Se toda interação entre os homens é uma sociação, o conflito - afinal, uma das mais vívidas interações e que, além disso, não pode ser exercida por um indivíduo apenas - deve certamente ser considerado uma sociação. E de fato, os fatores de dis- sociação- ódio, inveja, necessidade, desejo- são as causas do conflito; este irrompe devido a essas causas. O conflito está assim destinado a resolver dualismos divergentes; é um modo de conseguir algum tipo de unidade, que através da aniquilação de uma das partes confli- tantes. Isso é aproximadamente paralelo ao fato do mais violento sintoma * Reproduzido de SIM MEL, G. The sociological nature of conflict. ln: -. Conflict & The web oj group-affiliations. Nova York-Londres, The Free Press e Collier Macmillan Publisbers, 1964. p. 13-28. Trad. por Dinah de Abreu Azevedo. Trad. revista pelo Organizador e cotejada com o original alemão: Der Streit. ln: Soziologie. Ed. cit., p. 186-95. Simmel, G., A natureza sociológica do conflito, in Moraes Filho, Evaristo (org.), Simmel, São Paulo, Ática, 1983.

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Texto de Georg Simmel

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8. A NATUREZA SOCIOLóGICA DO CONFLITO *

O conflito como sociação

Em princípio, a importância sociológica do conflito (Kampf) nunca foi questionada. Admite-se que o conflito produza ou modifique grupos de interesse, uniões, organizações. Por outro lado, sob um ponto de vista comum, pode parecer paradoxal se alguém perguntar, desconside­rando qualquer fenômeno que resulte do conflito ou que o acompanhe, se ele, em si mesmo, é uma fonna de sociação. À primeira vista, essa parece uma questão retórica. Se toda interação entre os homens é uma sociação, o conflito - afinal, uma das mais vívidas interações e que, além disso, não pode ser exercida por um indivíduo apenas - deve certamente ser considerado uma sociação. E de fato, os fatores de dis­sociação- ódio, inveja, necessidade, desejo- são as causas do conflito; este irrompe devido a essas causas. O conflito está assim destinado a resolver dualismos divergentes; é um modo de conseguir algum tipo de unidade, aind~ que através da aniquilação de uma das partes confli­tantes. Isso é aproximadamente paralelo ao fato do mais violento sintoma

* Reproduzido de SIM MEL, G. The sociological nature of conflict. ln: -. Conflict & The web oj group-affiliations. Nova York-Londres, The Free Press e Collier Macmillan Publisbers, 1964. p. 13-28. Trad. por Dinah de Abreu Azevedo. Trad. revista pelo Organizador e cotejada com o original alemão: Der Streit. ln: Soziologie. Ed. cit. , p. 186-95.

Simmel, G., A natureza sociológica do conflito, in Moraes Filho, Evaristo (org.), Simmel, São Paulo, Ática, 1983.

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de uma doença ser o que representa o esforço do organismo para se livrar dos distúrbios e dos estragos causados por eles.

Mas esse fenômeno significa muito mais que o trivial "si vis pacem para bellum" (se quiser a paz, prepare-se para a guerra); isso é algo bem genérico, que esta máxima apenas descreve como um caso especial. O próprio conflito resolve a tensão entre contrastes. O fato de almejar a paz é só uma das expressões - e especialmente óbvia - de sua natureza: a síntese de elementos que trabalham juntos, tanto um contra o outro, quanto um para o outro. Essa natureza aparece de modo mais claro quando se compreende que ambas as formas de relação - a anti­tética e a convergente - são fundamentalmente diferentes da mera indiferença entre dois ou mais indivíduos ou grupos. Caso implique na rejeição ou no fim da sociação, a indeferença é puramente negativa; em contraste com esta neg~vidade pura, o conflito contém algo de positivo. Todavia, seus aspectos positivos e negativos estão integrados; podem ser separados conceitualmente, mas não empiricamente.

A relevância sociológica do conDito

Todas as formas sociais aparecem sob nova luz quando vistos pelo ângulo do caráter sociologicamente positivo do conflito. Toma-se logo evidente que, se as relações entre os homens (mais que aquilo que o indivíduo é para si mesmo e em suas relações com os objetos) constituem a matéria subjetiva de uma ciência especial, a Sociologia, nesse caso os tópicos tradicionais desta ciência cobrem apenas uma de suas sub­divisões: ela é mais abrangente. e mais verdadeiramente definida por um princípio. Parece que antigamente havia só duas questões subjetivas compatíveis com a ciência do homem: a unidade do indivíduo e a unidade formada pelos indivíduos, a sociedade; uma terceira parecia logic~ente excluída. Nesta concepção, o próprio conflito - sem consi­derar suas contribuições a estas unidades sociais imediatas - não encon­traria lugar próprio para estudo. É o conflito um fato sui generis e sua inclusão sob o conceito de unidade teria sido tão arbitrária quanto inútil, uma vez que o conflito significa a negação da unidade.

Uma classificação mais abrangente da ciência das relações humanas deveria distinguir, parece, aquelas relações que constituem uma unidade, isto é, as relações sociais no sentido estrito, daquelas que contrariam a unidade. Deve-se compreender, todavia, que ambas as relações cos­tumam ser encontradas em todas as situações historicamente reais. O indivíduo não alcança a unidade de sua personalidade exclusivamente

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através de uma harmonização exaustiva - segundo normas lógicas, obje-tivas, religiosas ou éticas dos conteúdos de sua personalidade. A ~ contradição e o conflito, ao contrário, não só precedem ·esta unidade como operam em cada momento de sua existência. :a claro que prova­velmente não existe unidade social onde correntes convergentes e diver­gentes não estão inseparavelmente entrelaçadas. Um grupo absoluta­mente centrípeto e harmonioso, uma "união" pura (V ereinigung) não só é empiricamente irreal, como não poderia mostraT um processo de vida real. A sociedade de santos que Dante vê na Rosa do Paraíso pode ser como esse grupo, mas este não tem qualquer mudança ou desenvol­vimento, enquanto que a assembléia sagrada dos Patriarcas da Igreja, na Disputa de Rafael mostra, se não um conflito verdadeiro, ao menos uma considerável diferenciação de ânimos e direções de pensamento, de onde fluem toda a vitalidade e a estrutura realmente orgânica daquele grupo. Assim como o universo precisa de "amor e ódio", isto é, de forças de atração e de forças de repulsão, para que tenha uma forma qualquer, assim também a sociedade, para alcançar uma determinada configuração, precisa de quantidades proporcionais de harmonia e desar­monia, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavo­ráveis. Mas essas discordâncias não são absolutamente meras deficiências sociológicas ou exemplos negativos. Sociedades definidas, verdadeiras, não resultam apenas das forças sociais positivas e apenas na medida em que aqueles fatores negativos não atrapalhem. Esta concepção comum é bem superfiCial: a sociedade, tal como a conhecemos, é o resultado de ambas as categorias de interação, que se manifestam desse modo . como inteiramente positivas 1

1 Este é o exemplo sociológico de um contraste entre duas concepções de vida muito mais gerais. Segundo o ponto de vista comum, a vida sempre mostra duas partes em oposição. Uma delas representa o aspecto positivo da vida, seu conteúdo propriamente dito, se não a sua substância, enquanto que o próprio significado da outra é não-ser, o qual deve ser subtraído dos elementos positivos, antes de poderem constituir vida. Este é o ponto de vista comum da relação entre felicidade e sofrimento, virtude e vício, força e deficiência, sucesso e fracasso - entre todos os conteúdos possíveis e todas as interrupções do curso da vida. A mais elevada das concepções a respeito desses pares de contrários me parece diferente: devemos conceber todas estas diferenciações polares como uma só vida; devemos sentir o pulso de uma vitalidade central mesmo naquilo que, se considerado do ponto de vista de um ideal particular, não deveria existir absolutamente e é apenas algo negativo; devemos permitir que o sentido global de nossa existência brote de ambas as partes. No contexto mais abrangente da vida, mesmo aquele elemento que, isolado, é perturbador e destrutivo, é totalmente positivo; não é uma lacuna, mas o preenchimento de um papel reservado apenas

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Unidade e discordância

Há um mal-entendido, segundo o qual um desses dois tipos de inte­ração desfaz o que o outro constrói, e aquilo que eventualmente fica é o resultado da subtração dos dois (enquanto na realidade deve ser mais propriame~te designado como o resultado de sua soma). É provável que esse mal-entendido derive do duplo sentido do conceito de unidade. Designamos por "unidade" o consenso e a concordância dos indivíduos que interagem, em contraposição a suas discordâncias, separações e desarmonias. Mas também chamamos de '1unidade" a síntese total do grupo de pessoas, de energias e de formas, isto é, a totalidade suprema daquele grupo, uma totalidade que abrange tanto as relações estrita­mente unitárias quanto as relações duais. Concebemos assin1 o grupo de fenômenos que julgamos ·~unitários" em termos de componentes fun­cionais considerados especificamente unitários; e ao fazer isto, descon­sideramos aquele outro sentido mais abrangente do termo.

Essa imprecisão é reforçada pelo correspondente duplo sentido de "discordância" ou "oposição". Desde que a discordância mostra seu caráter negativo e destrutivo entre indivíduos particulares, concluímos ingenuamente que deve ter o mesmo efeito no grupo todo. Na realidade, todavia, algo que é negativo e prejudicial entre indivíduos, se conside-

a ele. Talvez não nos seja dado alcançar, e muito menos manter permanente­mente, a_ altitude da qual todos os fenômenos podem ser vistos compondo a unidade da vida mesmo que, de um ponto de vista objetivo ou avaliador, pareçam se opor um ao outro como a mais e a menos, como contradições, como eliminações mútuas. Inclinamo-nos demais a pensar e sentir que nosso ser essencial, nossa verdade, nossa significação suprema, seja idêntica a uma dessas facções. De acordo com nosso sentimento de vida otimista ou pessimista, um deles nos parece como superfície ou acidente, como algo a ser eliminado ou subtraído, a fim de que se manifeste a vida i!ltrinsecamente coerente e verdadeira. Estamos emaranhados nesse dualismo por toda parte (o que será agora discutido em detalhe no texto acima) - tanto nas regiões mais íntimas da vida quanto nas mais abrangentes, as pessoais, as objetivas e as sociais. Pensamos ter, ou ser, uma totalidade ou unidade, composta de duas partes lógica e objetivamente opostas, e identificamos esta nossa totalidade com uma delas, enquanto sentimos que ,p. outra é algo alienígena que não nos pertence propriamente e que nega nosso ser abrangente e fundamental. A vida s~ move constantemente entre essas duas tendências. Uma delas acabou de ser descrita. A outra permite que a totalidade realmente seja a totalidade. Faz com que a unidade, que afinal de contas compreende ambos os contrârios, exista em cada um desses contrários e em sua articulação. Tudo isso é mais do que necessário para afirmar o direito dessa tendência em relação ao fenômeno sociológico do conflito, porque o c.onflito tanto nos impressiona com sua força socialmente destrutiva quanto como um fato aparentemente incon­testável.

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rado isoladamente e visando uma direção particular, não tem necessa­riamente o mesmo efeito no relacionamento total desses indivíduos, pois surge um quadro muito diferente quando visualizamos o conflito associado a outras interações não afetadas por ele. Os elementos negativos e duais jogam um papel inteiramente positivo nesse quadro mais abrangente, apesar da destruição que podem causar em relações particulares. Tudo isso é muito óbvio na competição de indivíduos no interior de uma unidade econômica.

O conflito como força integradora do grupo

Existem aqui, entre os casos mais complexos, dois tipos opostos. Em primeiro lugar, temos os grupos pequenos que, assim como o casal, envolvem, não obstante, um número ilimitado de relações vitais entre seus membros. Uma certa quantidade de discordância interna e contro­vérsia externa estão organicamente vinculadas aos próprios elementos que, em última instância, mantêm o grupo ligado; isso não pode ser separado da unidade da estrutura sociológica. Isso não é válido apenas para os casos de evidente fracasso conjugal, mas também para os casa­mentos caracterizados por um modus vivendi suportável ou, no mínimo, suportado. Tais casamentos não são "menos" casamento pela quantidade de conflito que contêm; ao contrário, a partir de tantos outros elementos - ~ntr~ os quais há uma quantidade inevitável de conflito - evoluíram para as unidades definidas e características que são. Em segundo lugar, o papel positivo e integrador do antagonismo aparece nas estruturas que se distinguem pela nitidez e pela pureza cuidadosamente preservada de suas divisões e gradações sociais. Desse modo, o sistema social hindu não repousa apenas na hierarquia, mas também, diretamente, na repulsão mútua das castas. As hostilidades não só preservam os limites, no interior do grupo, do desaparecimento gradual, como são muitas vezes conscien­temente cultivadas, para garantir condições de sobrevivência. Além disso, têm também uma fertilidade sociológica direta : com freqüência propor­cionam posições recíprocas às classes e aos indivíduos que estes não poderiam encontrar, ou não encontram do mesmo modo, se as causas da hostilidade não estiverem acompanhadas pelo sentimento e pela ex­pressão hostil - ainda que estiverem operando as mesmas causas obje­tivas de hostilidade.

O desaparecimento de energias de repulsão (e, isoladamente consi­deradas, de destruição) não resulta sempre, em absoluto, numa vida social mais rica e mais plena (assim como o desaparecimento de respon-

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sabilidades não resulta em maior propriedade), mas num fenômeno tão diferente e irrealizável quanto se um grupo fosse privado das forças de cooperação, afeição, ajuda mútua e convergência de interesses. Isto não é válido somente para a competição em geral, que determina a forma do grupo, as posições recíprocas de seus componentes e a distância entre eles, e que o faz de modo tão puro quanto uma matriz formal de tensões, desconsiderando quase totalmente seus resultados objetivos; isto é válido também onde o grupo se baseia nas atitudes de seus membros. A opo­sição de um membro do grupo a um companheiro, por exemplo, não é um fator social puramente negativo, quando muitas vezes tal oposição pode tomar a vida ao menos possível com as pessoas realmente insupor­táveis. Se não temos nem mesmo o poder e o direito de nos rebelarmos contra a tirania, a arbitrariedade, o mau-humor e a falta de tato, não poderíamos suportar relação alguma com pessoas cujo temperamento assim toleramos. Nós nos sentiríamos impelidos a dar passos desespe­rados - e estes realmente acabariam com a relação, mas não consti­tuiriam, talvez, um "conflito"; não só pelo fato (embora não seja essen­cial aqui) de que a opressão costuma aumentar quando é suportada calmamente e sem protestos, mas também porque a oposição nos dá satis­fação íntima, distração, alívio, assim como, sob condições psicológicas diferentes, nos dá humildade e paciência. Nossa oposição nos faz sentir que não somos completamente vítimas das circunstâncias. Permite-nos colocar nossa força à prova conscientemente e só dessa maneira dá vitalidade e reciprocidade às condições das quais, sem esse corretivo, nos afastaríamos a todo custo . .

1 A oposição alcança esse objetivo mesmo onde não existe nenhum

êxito perceptível, onde este não se torna manifesto, mas permanece totalmente oculto. Mesmo quando dificilmente tenha qualquer efeito prático, pode ainda conseguir um equilibrio interior (às vezes até por parte de ambos os parceiros da relação), pode exercer uma influência tranqüila, pode produzir um sentimento de poder virtual e desse modo preservar relacionamentos, cuja continuidade muitas vezes atordoa o observador. Em tais casos, a oposição é um elemento da própria relação; está intrinsecamente entrelaçada com outros motivos de existência da relação. Não é só um meio de preservar a relação, mas uma das funções concretas que verdadeiramente a constituem. Onde as relações são pura­mente externas e ao mesmo tempo de pouca importância prática, esta função pode ser satisfeita pelo conflito em sua forma latente, isto é, pela aversão e por sentimentos de mútua estranheza e repulsão que, num

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contato mais íntimo, não importa quão ocasional, transforme-se imediata­mente em ódio e luta reais.

Sem tal aversão, não poderíamos imaginar que forma poderia ter a vida urbana modema, que coloca cada pessoa em contato com inume­ráveis outras todos os dias. Toda a organização interna da interação

rbana se baseia numa hierarquia extremamente complexa de simpatias, indiferenças e aversões, do tipo mais efêmero ao mais duradouro. E nesse complexo, a_ esfera de indiferença é relativamente limitàda, pois nossa atividade psicológica responde com um determinado sentimento a quase todas as impressões que vêm de outra pessoa. A natureza sub­consciente, fugidia e mutável deste sentimento apenas aparenta reduzi-lo à indiferença. Na verdade, tal indiferença seria para nós tão pouco natu­ral quanto seria insuportável o caráter vago de inumeráveis estímulos contraditórios. A antipatia nos prótege desses dois perigos típicas da cidade; a antipatia é a fase preliminar do antagonismo concreto que irlgendra as distâncias e as aversões, sem as quais não poderíamos, em

I absoluto, realizar a vida urbana. A extensão e a combinação da antipatia, o ritmo de sua aparição e desaparição, as formas pelas quais é satisfeita, tudo isso, a par de elementos mais literalmente unificadores, produzem a forma de vida metropolitana em sua totalidade insolúvel; e aquilo que

\ ~ primeira vista parece desassociação, é na verdade uma de suas formas \elementares de socialização.

Homogeneidade e heterogeneidade nas relações sociais

As relações de conflito, por si mesmas, não produzem uma estrutura social, mas somente em cooperação com forças unificadoras. Só as duas juntas constituem o grupo como uma unidade viva e concreta. Nesse ponto, o conflito dificilmente se diferencia de qualquer outra forma de relação que a Sociologia abstrai da complexidade da vida real. Não é provável que o amor ou a divisão de trabalho, a atitude comum de duas pessoas em relação a uma terceira, ou a amizade, a filiação partidária ou a superordenação e a subordinação, por si mesmos, produzam ou mantenham permanentemente um grupo real. Onde isto aparentemente ocorre, o processo a que se dá um nome contém, não obstante, várias formas distinguíveis de relação. A essência da alma humana não permite que um indivíduo se ligue a outro por um elo apenas, ainda que a análise científica rtão se dê por satisfeita enquanto não determina o específico poder de coesão de unidades elementares.

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Talvez toda essa atividade analítica seja puramente subjetiva, num sentido mais amplo e aparentemente inverso: talvez os laços entre os indivíduos sejam muitas vezes, na verdade, bem homogêneos, mas nossa mente não consegue abarcar sua homogeneidade. As próprias relações que são ricas e que vivem em muitos conceitos diferentes estão aptas a nos tornar mais conscientes de sua mística homogeneidade; e o que temos a fazer é representá-la como o coeficiente de várias forças de coesão que se restringem e se modificam mutuamente, resultando num quadro cuja realidade objetiva chega através de um percurso mais sim­ples e muito mais coerente. Além do mais, não poderíamos segui-lo com nossa mente, ainda que quiséssemos.

Os processos de dentro do indivíduo são, afinal, do mesmo tipo. São, a cada momento, tão diversificados e contêm tal multiplicidade de oscilações variadas e contraditórias, que designá-los por qualquer de nossos conceitos psicológicos é sempre imperfeito e realmente enganoso, pois os momentos da vida individual, também, nunca se ligam por um elo somente - este é o quadro que o pensamento analítico constrói da unidade da alma, que lhe é inacessível. Provavelmente, muito do que somos forçados a apresentar a nós mesmos como sentimentos misturados, como combinação de muitos impulsos, como competição de sensações opostas, sejam inteiramente coerentes consigo mesmos. Mas muitas vezes falta ao intelecto calculador um paradigma para essa unidade e precisa assim construí-la como o resultado de diversos elementos. Quando somos atraídos e ao mesmo tempo repelidos pelas coisas; quando os traços de caráter mais nobres parecem misturados com os mais básicos numa determinada ação; quando nosso sentimento por uma pessoa em particular se compõe de respeito e amizade ou de impulsos paternais, maternais e eróticos, ou de avaliações éticas e estéticas - então é certo que estes fenômenos, em si mesmos, enquanto processos psicológicos reais, são muitas vezes homogêneos. Apenas não podemos designá-los diretamente. Por essa razão, através de analogias variadas, de prece­dentes, de conseqüências externas, fazemos deles um concerto de elemen­tos psicológicos diversos.

Se isto está correto, então também as relações complexas entre di­versos indivíduos devem ser, muitas vezes, realmente unitárias. A distância que caracteriza a relação entre dois indivíduos associados, por exemplo, pode nos parecer como o resultado de um afeto - que deveria tomar muito maior a proximidade entre eles - e de uma repulsão - que deve levá-los a ficar completamente separados; e visto que os dois sen­timentos se restringem mutuamente, 0 resultado é a dístância que obser-

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vamos. Mas isso pode estar inteiramente errado. A disposição interior da própria relação podem ser essas distâncias particulares; basicamente, a relação tem, por assim dizer, uma certa temperatura, que não surge como o equilíbrio de duas temperaturas, uma mais alta, outra mais baixa. Muitas vezes interpretamos a quantidade de superioridade e suges­tão existentes entre duas pessoas como sendo produzida pela força de uma delas, que é, ao mesmo tempo, diminuída por uma certa fraqueza. Embora tal força e tal fraqueza possam de fato existir, muitas vezes sua separação não se torna aparente na relação que realmente existe. A relação pode, ao contrário, ser determinada pela natureza total de seus elementos, e só em retrospectiva analisamos seu caráter imediato naqueles dois fatores.

As relações eróticas oferecem os exemplos mais freqüentes. Quantas vezes não nos parecem um tecido simultâneo de amor e respeito, ou despeito; de amor e de harmonia sentida pelos indivíduos e, ao mesmo tempo, sua consciência de se complementarem por meio de traços opos­tos; de amor e de vontade de dominar ou necessidade de dependência. Mas o que o observador ou o próprio participante assim divide em duas tendências entrelaçadas, pode ser somente uma, na verdade. Na relação como realmente existe, a personalidade total de um atua sobre a personalidade total do outro. A realidade da relação não depende da reflexão de que, se ela não existisse, seus participantes, no mínimo, inspirariam um ao outro respeito ou simpatia (ou seus contrários). Inúmeras vezes designamos tais relações como sentimentos ou relações mescladas, porque interpretamos os efeitos que deveriam ter as quali­dades de um indivíduo sobre o outro, se estas qualidades exercessem isoladamente a sua influência - precisamente aquilo que não fa1.em, na relação enquanto ela existe. Além de tudo isso, a "mistura" de sentimentos e de relações, mesmo quando estamos completamente autorizados a falar sobre ela, é sempre uma declaração problemática, pois usamos um simbolismo dúbio para transferir um processo representado espacial­mente para o campo muito diferente das condições psicológicas.

Provavelmente então, muitas vezes é essa a situação com respeito à assim chamada mistura de corrente~ convergentes e divergentes no interior de um grupo, isto é, a estrutura pode ser sui generis, sua moti­vação e sua forma inteiramente coerentes consigo mesmas e apenas para conseguirmos descrevê-las e compreendê-las nós as mostramos, post

factum, em duas tendências, uma monista, outra antagonista. Ou tam­bém as duas de fato existem mas somente, por assim dizer, antes de se originar a próprià relação, pois na relação mesma elas se fundiram

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numa unidade orgamca, onde nenhuma delas se faz sentir como seu poder próprio isolado.

Esse fato não deveria nos levar a negligenciar os numerosos casos em que as tendências contraditórias realmente coexistem em separado e assim podem ser reconhecidas a qualquer momento na situação global. Como uma forma especial do desenvolvimento histórico, algumas vezes as relações mostram, num estágio inicial, uma unidade indiferenciada de forças convergentes e divergentes que só mais tarde se separam de maneira completamente distinta. Nas cortes da Europa central, até o século XIII, encontramos grupos de fidalgos que constituem um tipo de conselho do príncipe e que vivem como seus hóspedes; mas ao mesmo tempo, representam a nobreza quase como uma classe e devem defender seus interesses contra o príncipe. Os interesses em comum com o soberano (a cuja administração estes nobres freqüentemente servem) e a vigilância oposicionista de seus próprios direitos enquanto classe, existem nestes conselhos não só lado a lado, separadamente, mas em íntima fusão; e o mais provável é que esta posição fosse sentida como coerente consigo mesma, não importa quão incompatíveis nos pareçam hoje esses elementos. Na Inglaterra desse período, o parlamento dos barões dificilmente se distingue de um conselho ampliado do rei. Leal­dade e oposição crítica ou tendenciosa ainda estão contidas na unidade original. Geralmente, na medida em que o problema é a cristalização de instituições, cuja tarefa é resolver o problema crescentemente com­plexo e intrincado do equilíbrio no interior de um grupo, muitas vezes não é claro se a cooperação de forças em benefício do todo toma a forma de oposição, competição ou crítica, ou de explícita união e har­monia. Existe assim uma fase de indiferenciação inicial que, vista de uma fase diferenciada poiiterior, parece logicamente contraditória, mas que está totalmente de acordo com o estágio não-desenvolvido da orga­nização.

As relações subjetivas ou pessoais se desenvolvem, freqüentemente, de maneira inversa, porque é no início dos períodos culturais nos quais costuma ser· relativamente grande o poder de decidir por amizade ou inimizade. Relações incompletas e equívocas entre as pessoas - relações que têm suas raízes em condições duvidosas de sentimento, cujo resultado pode ser o ódio, quase tão facilmente como o amor, ou. cujo caráter indiferenciado é às vezes revelado pela oscilação entre os dois - tais relações são encontradas com freqüência maior em períodos de matu­ridade e decadência do que nos períodos iniciais.

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O antagonismo como um elemento da sociação

Embora por si mesmo o antagonismo não produza sociação, é um elemento sociológico quase nunca ausente dela. Seu papel pode crescer indefinidamente, isto é, pode crescer a ponto de suprimir todos os elementos convergentes. Ao considerar os fenômenos sociológicos, encontramos assim uma hierarquia de relações. Essa hierarquia também pode ser construída a partir do ponto de vista das categorias éticas, apesar destas não constituírem, em geral, pontos de partida muito ade­quados para o isolamento completo e conveniente de elementos socio­lógicos. Os sentimentos de valor com que acompanhamos as ações das vontades individuais classificam-se em certas séries. Mas, por um lado, a relação entre estas séries, e por outro, a elaboração de formas de relação social segundo pontos de vista objetivo-conceituais, são completa­mente fortuitas. A :etica, concebida como uma espécie de Sociologia, ver-se-ia privada de seu conteúdo mais profundo e refinado. Tal é o comportamento da alma individual, em si e para si, que não aparece em absoluto em suas relações externas: seus movimentos religiosos, que servem exclusivamente à própria salvação ou danação; sua devoção aos valores objetivos do conhecimento, da beleza, da significação, que trans­cende todas as ligações com outras pessoas. A mistura de relações harmo­niosas e hostis, todavia, apresenta um caso nos quais as séries socioló­gica e ética coincidem. Começa com a ação de A em benefício de B, desloca-se para o benefício do próprio A sem beneficiar B, mas também sem prejudicá-lo, e finalmente torna-se uma ação egoísta de A à custa de B. Na medida em que tudo isso é repetido por B, embora dificilmente do mesmo modo e nas mesmas proporções, surgem as combinações inumeráveis de convergência e divergência nas relações humanas.

Certamente há conflitos que parecem excluir todos os outros ele­mentos - entre o ladrão ou assassino e sua vítima, por exemplo. Se essa luta visa simplesmente a aniquilação, aproxima-se do caso marginal do assassinato, onde a mistura com elementos unificadores é quase zero. Se há, todavia, qualquer consideração, qualquer limite à violência, aí já existe um fator socializante, mesmo que somente enquanto qualificação da violência. Kant afirmava que toda guerra em que as partes belige­rantes não impõem uma a outra algumas restrições no uso de possíveis recursos, toma-se necessariamente, ainda que apenas por motivos psico­lógicos, uma guerra de extermínio. Porque onde as partes não se abstêm nem mesmo do assassinato, da quebra de palavra e da instigação à traição, destroem a· confiança na mentalidade do inimigo, que só ela

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permite a materialização de um tratado de paz que acompanha o fim da guerra. ~ quase inevitável que um elemento comum se intro­duza na hostilidade, uma vez que o estágio de violência declarada ceda a qualquer outro relacionamento, embora essa nova realidade possa conter uma soma de animosidade exatamente igual entre as duas partes. Depois de conquistar a Itália no século VI, os lombardos impuseram aos vencidos um tributo de um terço da produção agrícola, e o faziam de maneira tal que cada indivíduo, entre os conquistadores, dependia do tributo que lhe era pago por indivíduos particulares entre os ven­cidos. Nesta situação, o ódio dos vencidos por seus opressores pode ser tão forte, senão mais forte, quanto durante a própria guerra, e pode ser considerado não menos intenso por parte dos conquistadores - seja porque o ódio contra quem nos odeia é uma medida instintiva de pro­teção, seja porque, como bem se sabe, costumamos odiar aqueles a quem causamos algum dano. Não obstante, a situação tem um elemento de comunidade. A própria circunstância que engendrou a animosidade -a participação forçada dos lombardos nos empreendimentos dos nativos - efetivou, ao mesmo tempo, uma inegável convergência de interesses. Divergência e harmonia entrelaçaram-se inextricavelmente, e o conteúdo de animosidade evoluiu na verdade para o germe de uma futura co­munhão.

Esse tipo de relacionamento fonnal é compreendido da forma mais ampla na escravização - em vez de exterminação - do inimigo apri­sionado. A despeito mesmo de a escravidão representar o extremo da absoluta hostilidade interior, sua ocorrência produz, todavia, uma con­dição sociológica e assim, muito freqüentemente, sua própria atenuação. A agudeza de contrastes pode ser provocada diretamente em benefício de sua diminuição, e de forma alguma apenas como uma medida violenta, na expectativa de que o antagonismo termine, uma vez alcançado um certo limite, devido à exaustão ou à compreensão de sua futilidade. Também pode acontecer pela razão que às vezes obriga as monarquias a tomar por líderes seus próprios príncipes oposicionistas, como fez, por exemplo, Gustavus Vasa. A oposição certamente se fortalece com essa política; elementos que de outra maneira ficariam afastados, são a ela trázidos pelo novo equilíbrio; mas, ao mesmo tempo, a oposição fica assim dentro de certos limites. Ao fortalecê-la, aparentemente de propó­sito, o governo na verdade a modera, através dessa medida conciliadora.

Outro caso limítrofe parece ser a luta engendrada exclusivamente pelo prazer de lutar. Se o conflito é causado por um objeto, pela vontade de ter ou controlar alguma coisa, pela raiva ou por vingança, tal objeto

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ou estado de coisas desejado cria as condições que sujeitam a luta a normas ou restrições aplicáveis a ambas as partes rivais. Mais ainda, desde que a luta se concentre num propósito fora dela mesma, é modifi­cada pelo fato de que, em princípio, todo fim pode ser alcançado por mais de um meio. O desejo de possuir ou subjugar ou mesmo de aniqui­lar o inimigo, pode ser satisfeito por meio de outras combinações e eventos além da luta. Quando o conflito é simplesmente um meio, deter­minado por um propósito superior, não há motivo para não restringi-lo ou mesmo evitá-lo, desde que possa ser substituído por outras medidas que tenham a mesma promessa de sucesso. Mas quando o conflito é determinado exclusivamente por sentimentos subjetivos, quando as ener­gias interiores só podem ser satisfeitas através da luta, é impossível substituí-la por outros meios; o conflito tem em si mesmo seu propósito e conteúdo e por essa razão libera-se completamente da mistura com outras formas de relação. Tal luta pela luta parece ser sugerida por um certo instinto de hostilidade que às vezes se recomenda à obser­vação psicológica. Suas diferentes formas devem ser discutidas agora.