A Narrativa Na Pesquisa Social Em Saúde
-
Upload
dadaidaison -
Category
Documents
-
view
219 -
download
0
description
Transcript of A Narrativa Na Pesquisa Social Em Saúde
-
Recebido em: 18.08.2003Revisado em: 30.09.2003
Aceito em: 14.11.2003
A NARRATIVA NA PESQUISA SOCIAL EM SADE:PERSPECTIVA E MTODONarrative in the social health research: perspective andmethod
RESUMO
A narrativa uma tcnica de pesquisa que tem sido utilizada no mbito da AntropologiaMdica como forma de acesso a e de reconstruo da experincia da doena. Esta ltima, defato, tem sido reconhecida por autores da rea como imprescindvel ao estabelecimento deum dilogo mais emptico e tico entre o profissional de sade e o paciente e a sua rede decuidados. Assim, no que concerne ao campo da pesquisa social em sade, a valorizao daexperincia da doena est acompanhada da necessidade de aliciao de narrativas, tantocom respeito ao cuidado, quanto com respeito pesquisa. Neste artigo, vinculamos oconceito e a estrutura da experincia da doena ao conceito e estrutura da narrativa, descrevendosuas contribuies ao campo da pesquisa, os tipos de pesquisa em que pode ser empregada,os tipos de narrativas em que so traduzidas as experincias humanas, os procedimentospara a sua eliciao, bem como as tcnicas de anlise do dados dela obtidos. Quanto a estas,descrevemos trs: (1) a anlise de narrativas proposta por Shtze; (2) a Anlise Temticade Contedo; e (3) a tcnica do Discurso do Sujeito Coletivo.
Descritores: Narrao, Relaes mdico-paciente, Pesquisa qualitativa, Comportamentoverbal, Comunicao
ABSTRACT
The narrative is a research technique that has been used in Medical Anthropology researchas an access form to illness experience and its reconstruction. The illness experience, infact, has been recognized by medical anthropology authors as indispensable to the establishmentof a more empatic and ethic dialogue among health professional and patient and his/hersocial network. Thus, in the health research issues, valorization of illness experiencemeans its necessary to eliciate narratives, both in the care and in the research. In thisarticle, we linked the illness experience concept and structure to the narrative concept andstructure, describing its contributions to research, the research types in what it can beused, the types of narratives in that the human experiences are translated, the proceduresfor its eliciation, as well as the techniques of analysis of data obtained in the fieldwork. Inrespect to these techniques, we describe here three: (1) the analysis of narratives proposedby Shtze; (2) the Thematic Content Analysis; and (3) the technique of the CollectiveSubjects Speech.
Descriptors: Narration. Physician-patient relations, Qualitative research, Verbal behavior,Communication
INTRODUO
Este artigo tem por finalidade discorrer sobre a narrativa, uma tcnica de pesquisautilizada no mbito da metodologia da pesquisa social em sade como forma de obteracesso aos sentidos atribudos e experincia dos indivduos e de seus esquemasinterpretativos no que concerne realidade da vida cotidiana, com enfoque no
Descrio de mtodos
Geison Vasconcelos Lira (1)Ana Maria Fontenelle Catrib (2)
Marilyn K. Nations (3)
1) Mdico, Mestre em Educao emSade, professor-adjunto da
Universidade Federal do Cear2) Pedagoga, Doutora em Educao,
professora titular da Universidadede Fortaleza/UNIFOR
3) PhD em Antropologia MdicaHarvard-Massachusetts, professora
titular da Universidade de Fortaleza/UNIFOR
-
60 RBPS 2003; 16 (1/2) : 59-66
Lira GV et al.
fenmeno do adoecimento humano. Este, de fato, pode serapreendido em dois nveis de estruturao de sentidos: o dasrepresentaes sociais e o da reconstruo da experincia.Entretanto, a narrativa, enquanto tcnica de pesquisa, mostra-se intrinsecamente relacionada estrutura da experincia,apesar da tentativa de articular o plo representacional e oplo da experincia do adoecer na produo de conhecimentosobre a dimenso sociocultural do adoecer (1). Neste artigo,limitar-nos-emos discusso da narrativa no bojo do plo dareconstruo da experincia do adoecer.
A EXPERINCIA DA DOENA
Segundo Rabelo(2), os trabalhos de filiaoetnometodolgica abordam a doena como uma ruptura deum fluxo do cotidiano, uma ameaa sbita a um mundo tomadocomo suposto. Nesse sentido, trata-se de um evento a exigir,das pessoas envolvidas, que dem incio a aes quepermitam reconduzir a vida cotidiana dentro de pressupostosaceitos. Na sua dimenso social, a doena problema eseu estudo implica a compreenso dos projetos e prticasformulados para resolver os impasses decorrentes e, assim,normalizar a situao(2).
Segundo Alves et al(3), problematizar a idia deexperincia significa assumir que a maneira como osindivduos compreendem e se engajam ativamente nassituaes em que se encontram ao longo de suas vidas nopode ser deduzida de um sistema coerente e ordenado deidias, smbolos ou representaes. Na verdade, segundoesses autores, a experincia muito mais complexa do que ossignificados formulados para explic-la, pois estes oferecemsempre quadros parciais e inacabados de uma realidadesempre dinmica. Eles reconhecem que os significados nopertencem a um plano etreo de puras idias, ao contrrio,atrelam-se s situaes em que so formulados, ou antes, emque so usados, as quais so fundamentalmente situaesde dilogo com outros.
A noo de experincia toma parte do conceito deenfermidade (illness) a que se refere Kleinman(4). Segundoele, a enfermidade a experincia dos sintomas e dosofrimento, a experincia vivida do monitoramento dosprocessos corporais, incluindo a categorizao e aexplicao, em sentidos do senso comum acessveis a todasas pessoas leigas, das formas de angstia causadas pelosprocessos fisiopatolgicos(4). Outra noo que nos interessanesta discusso a de que quando o autor fala em enfermidade(illness), ele inclui o julgamento do paciente sobre comoele pode lidar com a angstia e com os problemas prticosem sua vida diria que ela cria(4). Esses problemas
relacionados enfermidade so as principais dificuldadesque os sintomas e a incapacidade criam em nossas vidas.
No modelo de Kleinman, a experincia da enfermidade determinada pela cultura e pela singularidade da biografiaindividual. Na primeira determinao, observamos que asorientaes culturais locais (as formas modelares que nsaprendemos para pensar sobre e agir nos mundos em quevivemos e que replicam a estrutura social desses mundos)organizam nossas convenes do senso comum sobre comoentender e tratar as enfermidades. Na segunda determinao,por outro lado, observamos que as expectativasconvencionais sobre as enfermidades determinadas pelasorientaes culturais so alteradas atravs de negociaesem diferentes situaes sociais e em redes particulares derelaes.
As abordagens de Kleinman(4) e de Rabelo(2)interseccionam-se na concepo da experincia humana comoobjeto de abordagem antropolgica concernente aosproblemas trazidos pela enfermidade (illness) ao cotidianode vida dos indivduos, estando os significados definidos nainterao social. A negociao e o dilogo entre os distintossignificados que envolvem mdico e paciente so um campoimportante de estudo com vistas a melhorar o cuidado adoenas, em especial no que concerne s doenas crnicas(4).
No mbito da interao simblica entre o mdico e opaciente, evidencia-se uma inadequao da abordagemsemitica que a tem lugar, e que dirigida precipuamentepela perspectiva do mdico, sendo excluda a perspectiva dodoente, a sua experincia do adoecer e, em conseqncia, desuas narrativas. Nesse sentido, como a perspectiva do mdico,que dirige a interao, distinta da do paciente, convmdefinir como o problema de sade interpretado pelo primeiro,a qual se d dentro de uma nomenclatura e de uma taxonomiaparticulares, que constituem a nosografia mdica. A doena(disease) o problema de sade na perspectiva do mdico.Nos termos estritos do modelo biomdico, ela significa que adoena configurada como uma alterao da estruturaanatmica ou fisiolgica. Como define Kleinman (1988) (4) o que o mdico cria ao reconfigurar a enfermidade (illness)em termos de teorias da desordem, ou seja, a reconfiguraodos problemas relacionados enfermidade que feita pelomdico em temas estritamente tcnicos, em problemasclnicos. Porm, ressalta o autor, no ato clnico de reconfigurara enfermidade (illness) em doena (disease), algo essencialda experincia da doena perdida; a enfermidade no legitimada como assunto que concerne clnica, nem tidacomo algo que merea receber uma interveno. Aqui, aantropologia mdica tem dado uma contribuio importante,no apenas no que concerne ao resgate da experincia da
-
61
A narrativa na pesquisa social em sade
RBPS 2003; 16 (1/2) : 59-66
doena, como tambm no desenvolvimento de estratgiasmetodolgicas para a sua abordagem, a exemplo dasnarrativas. No que concerne a estas Laplantine (5) afirma queo antroplogo, que realiza uma experincia nascida doencontro do outro, atuando como uma metamorfose de si, freqentemente levado a procurar formas narrativas [...]capazes de expressar e transmitir o mais exatamente possvelessa experincia.
Como conseqncia desse processo de constituio dadoena como experincia de um sujeito-no-mundo, temos oengendramento de histrias possveis, no concerto doprocesso de apreenso, interpretao e projeo para o futuroque pode ser empreendido pelo sujeito. Segundo Silva,Trentini(6):
Com a vivncia da doena, as pessoas passama ter uma histria para contar. Essas histriasno so histrias separadas do processo deviver, mas so convergentes maneira de ver omundo e de viver nele, passando a integra-se aesse mundo. Elas relatam vrias situaesvividas, que, no seu conjunto, tm um sentidomaior, o que as transforma em histriasacessveis aos outros.
A NARRATIVA COMO TCNICA DEPESQUISA PARA ACESSO EXPERINCIADA DOENA
Segundo Alves et al(3), tomar por tcnica de coleta dedados a narrativa como modo de acesso s experincias dedoena no significa postular uma equivalncia ou mesmouma reduo da experincia ao discurso narrativo, masreconhecer que existe uma vinculao estreita entre a estruturada experincia e a estrutura narrativa, pois esta semelhante estrutura de orientao para a ao: (1) um contexto dado;(2) os acontecimentos so seqenciais e terminam em umdeterminado ponto; e (3) inclui um tipo de avaliao doresultado. Ora, situao, colocao do objetivo, planejamentoe avaliao dos resultados so constituintes das aeshumanas que possuem um objetivo(7).
Segundo Labov(8), a narrativa uma tcnica de recapitulara experincia passada atravs da combinao da seqnciaverbal de sentenas com a seqncia de eventos que (infere-se) de fato ocorreram.
Durante a narrativa, o passado, o presente e ofuturo so articulados. Quando as pessoasnarram suas experincias, podem no s relatare recontar essas experincias e os eventos, sobum olhar do presente. Elas podem tambm
projetar atividades e experincias para o futuro.No ato de narrar, novos acontecimentospropiciaro novas reflexes sobre experinciassubjetivas, conduzindo remodelaes deperspectivas anteriores(1).
Atravs da narrativa, as pessoas lembram o queaconteceu, colocam a experincia em umaseqncia, encontram possveis explicaespara isso, e jogam com a cadeia deacontecimentos que constroem a vida individuale social. Contar histrias implica estadosintencionais que aliviam, ou ao menos tornamfamiliares, acontecimentos e sentimentos queconfrontam a vida cotidiana normal(7).
Para Lieblich et al(9), a investigao narrativa pode serusada no mbito de uma estratgia de mtodos combinados,onde ela prov, a partir de uma abordagem a um pequenogrupo de sujeitos, um entendimento em maior profundidadeda realidade estudada, permitindo, por outro lado, umaavaliao completa dos problemas, tais como vivenciadosno mbito da vida real.
A narrativa insere-se no concerto das tcnicas depesquisa que tomam parte das Metodologias de PesquisaQualitativa, que, segundo Minayo(10), so entendidas comoaquelas capazes de incorporar a questo do SIGNIFICADO eda INTENCIONALIDADE como inerentes aos atos, s relaes, es estruturas sociais, sendo essas ltimas tomadas tanto noseu advento quanto na sua transformao, como construeshumanas significativas. Referindo-se a estas metodologias,Serapioni (11) lista como suas caractersticas:
(a) Orientao epistemolgica: fenomenologia e compreenso.
(b)Analisam o comportamento humano, do ponto de vistado ator, utilizando a observao naturalista e nocontrolada.
(c) So subjetivos e esto perto dos dados (perspectiva dedentro, insider), orientados ao descobrimento.
(d)So exploratrios, descritivos e indutivos.
(e) So orientados ao processo e assumem uma realidadedinmica.
(f) So holsticos e no generalizveis.Quanto s contribuies da pesquisa narrativa para a
pesquisa, Lieblich et al(9), classificando o material obtido deuma reviso de literatura que colheu 2011 trabalhos cientficosonde a pesquisa narrativa estava presente, sugeriram trsdomnios principais, de acordo com a sua contribuio aocampo da pesquisa:
-
62 RBPS 2003; 16 (1/2) : 59-66
Lira GV et al.
(a) Estudos em que a narrativa usada para a investigao dequalquer questo de pesquisa, essa pode ser usada emum estudo piloto ou em combinao com outros mtodos.
(b)Estudos em que ela investiga a narrativa como seu objetoprecpuo de pesquisa.
(c) Estudos sobre a filosofia e a metodologia das abordagensqualitativas de pesquisa, entre elas a narrativa.
No que tange sua utilidade, para Jovchelovitch , Bauer (7)
ela particularmente til:
(a) Em projetos de que investigam acontecimentosespecficos, especialmente assuntos quentes.
(b)Projetos onde variadas verses esto em jogo.
(c) Projetos que combinam histrias de vida e contextos scio-histricos.
Quanto aos tipos de narrativa que podem ser obtidas doprocesso heurstico de abordagem das experincias humanas,Silva, Trentini(6), a partir da literatura e da sua experinciacom o uso de narrativas na pesquisa em enfermagem, asexperincias humanas foram traduzidas em trs tipos denarrativas:
(a) Narrativas breves: so narrativas sintticas, contendo aestrutura mnima de uma narrativa (comeo, meio e fim),em que facilmente identificada a seqncia do enredo, eonde focalizado um determinado episdio, como adescoberta da doena, um sbito mal-estar.
(b) Narrativas de vivncias: so mais amplas, incluindo ahistria da vivncia de uma pessoa com a doena,incluindo vrios episdios que, geralmente, so colocadosnuma seqncia de acontecimentos, dos quais nem sempreh uma interpretao temporal, construindo-se aexperincia como um processo.
(c) Narrativas populares: so as histrias contadas erecontadas entre pessoas de uma comunidade, podendo,algumas vezes, tornarem-se lendas.
A questo metodolgica da obteno de narrativas crucial abordagem heurstica da realidade estudada. ParaSilva, Trentini(6) duas so as formas de obteno de narrativas:a entrevista aberta e a observao participante. Entretanto,podemos afirmar que deve haver um cuidado metdico para aobteno de histrias sustentadas, com o fito de manter ofluxo narrativo. Nesse aspecto, Jovchelovitch, Bauer(7)estabelecem fases para guiar a obteno de narrativassustentadas, num procedimento que eles denominam deentrevista narrativa, que podem ser observadas na Tabelaabaixo:
Tabela Fases Principais da Entrevista NarrativaFasesregras
FASES REGRAS
Preparao Explorao do campo
Formulao de questes exmanentes
Iniciao Formulao do tpico inicial paranarrao
Emprego de auxlios visuais (opcional)
Narrao central No interromper
Somente encorajamento no verbal ouparalingstico para continuar anarrao
Esperar para sinais de finalizao(coda)
Fase de perguntas Somente Que aconteceu ento?
No dar opinies ou fazer perguntassobre atitudes
No discutir sobre contradies
No fazer perguntas do tipo por qu?
Ir de perguntas exmanentes paraimanentes
Fala conclusiva Parar de gravar
So permitidas perguntas do tipo porqu?Fazer anotaes imediatamente depoisda entrevista
As regras explicitadas acima so formuladas para guiar oentrevistador, e so construdas para preservar aespontaneidade do sujeito em narrar alguns acontecimentosconvencionais e problemas em estudo, a qual pode estarcomprometida nas entrevistas tradicionais, porque aexperincia e as emoes envolvidas aqui tomam parteimportante da biografia dos entrevistados, que, ento,parecem reviver parcialmente aquela experincia, j que noso livres para monitorar a prpria fala como normalmenteacontece nas entrevistas face-a-face(8).
Com referncia Tabela, que discrimina as fases daentrevista narrativa, cabe aqui uma descrio de comoprocedemos para obt-la.
A explorao do campo terico do estudo constitui-sena reviso de literatura sobre o tema do estudo, cujo objetofoi definido a priori pelo pesquisador. Tendo em vias o tema,so formuladas questes exmanentes aquelas que refletem
-
63
A narrativa na pesquisa social em sade
RBPS 2003; 16 (1/2) : 59-66
o interesse do pesquisador, que se confundem com asquestes da pesquisa ou questes norteadoras.
Deve-se iniciar a eliciao da narrativa explicando aossujeitos o contexto da investigao, o problema que amotivou, seus objetivos e sua relevncia. Solicitamos o seuconsentimento livre e esclarecido para participar do estudo,assegurando-lhe o direito de escusar a participao, e de, emconsentindo, desistir a qualquer momento de nele continuar. necessrio assegurar ainda o sigilo das informaes, bemcomo o retorno dos resultados da pesquisa. O procedimentoda pesquisa narrativa , ento, brevemente explicado aoinformante.
Dado que a introduo do tpico central da pesquisanarrativa deve deslanchar o processo de narrao,Jovchelovitch, Bauer(7) orientam a sua elaborao com basenos seguintes critrios:(a) Necessita fazer parte da experincia do informante, para
garantir o seu interesse e uma narrao rica em detalhes.
(b)Deve ser de significncia pessoal e social, ou comunitria.
(c) O interesse e o investimento do informante no tpico nodeve ser mencionado, para evitar que se tomem posiesou se assumam papis j desde o incio.
(d)Deve ser suficientemente amplo para permitir ao informantedesenvolver uma histria longa que, a partir de situaesiniciais, passando por acontecimentos passados, leve situao atual.
(e) Evitar formulaes indexadas, ou seja, no referir datas,nomes ou lugares, os quais devem ser trazidos somentepelo informante, como parte de sua estrutura relevante.
Gomes, Mendona(1) sugerem como tpico inicial apergunta: Como comeou a enfermidade?, cuja respostapode ser diferentes verses ou histrias, profissionais etradicionais, oficiais e leigas, individuais e coletivas, quepodero ser contadas.
Entretanto, para ser ativado o esquema das histrias medida que elas se apresentam ocasio da eliciao dasnarrativas e de provocar narraes dos informantes, deve-seseguir o esquema de Labov(8) ao referir que, a partir depergunta do tipo Que aconteceu?, foram obtidas narrativascom um largo corpo de informaes entre diversos grupos deindivduos, uma vez que o falante, por essa tcnica deabordagem, no est sujeito s formas normalmente utilizadaspara monitorar a sua fala, uma vez que a experincia e a emooenvolvidas aqui formam uma parte importante da biografiado indivduo. Assim, medida que histrias possveis foremse apresentando ocasio da eliciao da narrativa, deve-seintroduzir o interesse pelo tema saliente perguntando Queaconteceu? para desencadear as narrativas de tais histrias.
Por ocasio da fase da fala conclusiva, pode-se fazerperguntas do tipo por qu?, para esclarecer as questesimanentes, ou seja, aquelas que emergem da narrativa e quepermitem esclarecer dvidas, podendo ser uma porta deentrada para a anlise posterior, quando as teorias eexplicaes que os contadores de histrias tm sobre simesmos se tornam o foco de anlise.
No concerto da estrutura narrativa, cabe explicitar o papelcrucial do enredo na sua constituio, que pode sercompreendido atravs de suas funes especficas, a saber:(1) o enredo de uma narrativa que define o espao de tempoque marca o comeo e o fim de uma histria; (2) o enredofornece critrios para a seleo dos acontecimentos quedevem ser includos na narrativa, para a maneira como essesacontecimentos so ordenados em uma seqncia que vai sedesdobrando at a concluso da histria, e para oesclarecimento dos sentidos implcitos que os acontecimentospossuem como contribuies narrativa como um todo(7).
A ANLISE DAS NARRATIVAS
Por fim, no que diz respeito anlise das entrevistasnarrativas, o primeiro passo a converso dos dados atravsda transcrio das entrevistas gravadas, cujo nvel de detalhedepende das finalidades do estudo. Por ser uma tcnica paragerar histrias, a entrevista narrativa aberta quanto aosprocedimentos analticos que seguem a coleta de dados, entreas quais podemos citar trs:
A proposta de Schtze:Schtze citado por Jovchelovitch , Bauer(7) prope seis
passos para analisar narrativas: (1) transcrio detalhada domaterial verbal; (2) diviso do texto em material indexado (comreferncia concreta a quem fez o que, quando, onde e porqu)e no-indexado (que expressam valores, juzos e toda forma deuma generalizada sabedoria de vida); (3) uso doscomponentes indexados para analisar o ordenamento dosacontecimentos para cada indivduo, ou seja, as trajetrias;(4) investigao das dimenses no-indexados para permitir aanlise do conhecimento (opinies, conceitos e teoriasgerais, reflexes e divises entre o comum e o incomum, quepermitem reconstruir teorias operativas sobre o objeto deestudo); (5) agrupamento e comparao das trajetriasindividuais; e (6) identificao de trajetrias coletivas.
Anlise temtica de contedo:Segundo Bardin(12), a anlise temtica de contedo
um conjunto de tcnicas de anlise das comunicaesvisando obter, por procedimentos, sistemticos e objetivosde descrio do contedo das mensagens, indicadores(quantitativos ou no) que permitam a inferncia de
-
64 RBPS 2003; 16 (1/2) : 59-66
Lira GV et al.
conhecimentos relativos s condies de produo/recepo (variveis inferidas) destas mensagens(12). Ainvestigao destas variveis inferidas (as causas que seprocura determinar no processo heurstico) a partir dos efeitos(variveis de inferncia ou indicadores; referncias no texto),confere Anlise de Contedo o carter de ser um bominstrumento de induo. Numa palavra, a induo a essnciado mtodo.
Este est organizado em diferentes fases, em torno detrs plos cronolgicos: (1) a pr-anlise; (2) a exploraodo material; e (3) o tratamento dos resultados, a inferncia ea interpretao, conforme pode ser visto no Quadro 1, abaixo:
Quadro 1 Anlise temtica de contedo em pesquisanarrativa
FASES NARRATIVAS
O Discurso do Sujeito Coletivo:A experincia da sade e da doena so experincias
que esto a um tempo fora e dentro, objetivas e subjetivas,pessoais e coletivas, universais e culturais(14). Mesmo nasfalas pessoais, particularizadas, pode-se entrever um universosocial e cultural bem definido, bem como um discurso de umcoletivo situado em uma dada realidade scio-cultural.
Essa assertiva pode-nos levar considerao dapossibilidade de buscar as semelhanas das experinciasentre os sujeitos estudados, permitindo a elaborao de novasnarrativas que representem a sua experincia de viver umadoena. Essa possibilidade contemplada na proposta deSchtze, acima, quando este prope a elaborao detrajetrias coletivas. Entretanto, outra possibilidademetodolgica para anlise de narrativas, dirigida a essedesiderato, a tcnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC),elaborada por Lefvre, Lefvre (15), e que busca justamentedar conta da discursividade, caracterstica prpria eindissocivel do pensamento coletivo, buscando preserv-la em todos os momentos da pesquisa, desde a elaboraodas perguntas, passando pela coleta e pelo processamentodos dados at culminar com a apresentao dos resultados(15).
Assim, a experincia comum ou a trajetria coletiva materializada atravs de uma primeira pessoa (coletiva) dosingular, que, segundo os autores, um eu sinttico que,ao mesmo tempo em que sinaliza a presena de um sujeitoindividual do discurso, expressa uma referncia coletivana medida em que esse eu fala pela ou em nome de umacoletividade (15).
Para a confeco dos DSCs, os autores criaram quatrofiguras metodolgicas, que servem de base para reconstruir,com pedaos de discursos individuais, como em um quebra-cabea, tantos discursos-sntese quantos se julguenecessrios para expressar uma dada figura, ou seja, umdado pensar ou representao social sobre um fenmeno(15:19):(a) Expresses-chave: so pedaos, trechos ou transcries
literais do discurso, que devem ser destacadas pelopesquisador, e que revelam a essncia do depoimento ou,mais precisamente, do contedo discursivo dos segmentosem que se divide o depoimento.
(b) Idias centrais: so nomes ou expresses lingsticas querevelam e descrevem, da maneira mais sinttica, precisa efidedigna possvel, o sentido de cada um dos discursosanalisados e de cada conjunto homogneo de expresses-chave, e que vo dar nascimento do DSC.
(c) Ancoragem: uma figura metodolgica equivalente idiacentral que, sob a inspirao da teoria das representaes
Preparao domaterial
Leitura flutuante
Escolha do material aser submetido anlise
Formulao dehipteses
Formulao deobjetivos
Referenciao dendices e elaborao deindicadores
Escolha de unidades deregistro
Escolha de unidades decontexto
Mtodo
Transcrio, catalogao e fichamento
Aproximao de hipteses emergentes,da projeo de teorias adaptadas sobreo material e da possvel aplicao detcnicas sobre materiais anlogos
Dado a priori: registro transcrito dasnarrativas
Obtidas por procedimentos deexplorao
Objetivos da pesquisa
Escolhas dos temas referentes ao objetoda pesquisa, presentes no material verbal
Temas (ncleos de sentido) relacionadosao objeto da pesquisa, presentes nomaterial verbal
Recortes do texto
Plos de atrao:1. O emissor 2. O receptor 3. A prpria mensagem
EXPLORAO DO MATERIAL (CODIFICAO)Transformao dos dados brutos do texto, que por recorte,agregao e enumerao, permite atingir uma representao docontedo, ou da sua expresso, susceptvel de esclarecer o analistaacerca das caractersticas do texto
Interferncia Induo de variveis inferidas a partir deindicadores
PR-ANLISE Operacionalizao e sistematizao das idiasiniciais
Fonte: Lira (2003) (13)
-
65
A narrativa na pesquisa social em sade
RBPS 2003; 16 (1/2) : 59-66
sociais, se constituem em manifestao lingstica explcitade uma dada teoria, ideologia, ou crena que o autor dodiscurso professa e que, na qualidade de afirmaogenrica, est sendo usada pelo enunciador paraenquadrar uma situao especfica.
(d) Discurso do sujeito coletivo: um discurso snteseredigido na primeira pessoa do singular e composto pelacolagem das expresses-chave que tm a mesma idiacentral ou ancoragem. No caso da pesquisa narrativa, esseDSC representa a reelaborao das narrativas paratransform-las em discursos, como propuseram Silva ,Trentini (6).Os procedimentos de construo do DSC, no que tanges narrativas, seriam realizados em seis passos, a saber:
(a) Primeiro passo: copiar, integralmente, o contedo detodas as narrativas em um quadro, denominadoInstrumento de Anlise de Discurso 1 (IAD 1), na primeiracoluna, intitulada expresses-chave (Quadro 2).
Quadro 2 Instrumento de Anlise de Discurso 1
(b) Segundo passo: identificar e destacar, em cada uma dasnarrativas, as expresses-chave que remetem a idiascentrais e, quando for o caso, a ancoragens, utilizandodiferentes tipos de recursos grficos para identific-lasno texto das narrativas.
(c) Terceiro passo: identificar as idias centrais e, quando foro caso, as ancoragens, a partir das expresses-chave,colocando-as nas clulas correspondentes.
(d) Quarto passo: identificar e agrupar as idias centrais e asancoragens de mesmo sentido, ou de sentido equivalente,ou de sentido complementar.
(e) Quinto passo: criar uma idia central ou ancoragemsntese, que expresse, da melhor maneira possvel, todas
as idias centrais ou ancoragens de mesmo sentido, ou desentido equivalente, ou de sentido complementar.
(f) Sexto passo: construo do DSC em duas etapas: (1) copiardo IAD 1 todas as expresses-chave referentes a umamesma idia central ou ancoragem sntese, e col-las nacoluna das expresses-chave de um segundo quadro,chamado Instrumento de Anlise de Discurso 2 (IAD 2)(Quadro 3); (2) discursivar, ou seja, seqenciar asexpresses-chave obedecendo a uma esquematizaoclssica, do tipo comeo, meio e fim, e do mais geral para omenos geral e mais particular, ligando-se as partes dodiscurso ou pargrafos atravs de conectivos queproporcionem a coeso do discurso, eliminando-se dadosparticularizantes, tais como sexo, idade, eventosparticulares, doenas especficas etc. e as repeties deidias. O DSC, ao representar a reelaborao das narrativasvisando a explicitao de uma vivncia comum, ou de umatrajetria coletiva, pode, no processo de seqenciamento,ver comprometida a temporalidade, que uma dascaractersticas distintivas do enunciado narrativo.Entretanto, sobre esse aspecto, diremos com Vieira(16) queestudar a narrativa no significa apenas estudar a formacomo os seres humanos vivenciam e representam o tempo,mas tambm envolve o estudo de como o homem vivenciae significa o prprio mundo e a prpria vida.
Quadro 3 Instrumento de anlise de discurso 2 (IAD 2)Idia Central ou Ancoragem Sntese Determinada
Um ltimo comentrio acerca dos aspectosmetodolgicos referentes anlise da narrativa. Com oobjetivo de estabelecer uma compreenso mais ampliada dofenmeno do adoecimento humano socialmente construdo,para abarcar os plos representacional e da reconstruo daexperincia da doena, no suficiente uma anlise danarrativa em si, mas, tambm, preciso reconstruir ascondies sociais e histricas de produo, circulao erecepo que lhe deram origem, podendo-se, inicialmente,fazer um estudo sobre o contexto histrico e sociocultural dadoena para melhor analisar as narrativas sobre ela, ou, ento,fazer tal estudo com base nas prprias narrativas(1).
DSC
(Coluna onde construdo oDSC, a partir doseqenciamento dasexpresses-chave da coluna esquerda).
EXPRESSES-CHAVE
(Coluna onde so coladas asexpresses-chave referentes auma idia central ou ancoragemsntese).
E X P R E S S E S -CHAVE
Coluna onde feita atranscrio integral docontedo de todas asnarrativas passo 1 ,e onde sero destacadasas expresses-chavetanto das idiascentrais, quanto dasancoragens passo 2.
IDIASCENTRAIS
Coluna onde feito o registro dasidias centrais,referidas sexpresses-chaveidentificadas edestacadas nacoluna esquerda passo 3.
ANCORAGEM
Coluna onde feito o registrodas ancoragens,referidas sexpresses-chaveidentificadas edestacadas nacoluna esquerda passo 3.
-
66 RBPS 2003; 16 (1/2) : 59-66
Lira GV et al.
CONCLUSES
Podemos concluir que a pesquisa narrativa uma tcnicaque est situada no concerto das metodologias qualitativasde pesquisa, sendo til apreenso da experincia humanano que concerne ao fenmeno do adoecimento humano, nombito da pesquisa social em sade, principalmente nasabordagens da sociologia e da antropologia da sade. O seuuso permite uma insero mais naturalista e no controladado procedimento heurstico na realidade emprica sobinvestigao, podendo ser empregada por pesquisadoresinteressados em compreender a realidade da vida cotidianados indivduos e a sua experincia com os fenmenos dasade e da doena. Por outro lado, a sua utilizao no mbitoda pesquisa social em sade pode ajudar a construir asnarrativas sobre a sade e a doena por parte de gruposhumanos, uma vez que elas so histrias altamente pessoais,porm expressar de uma forma culturalmente especfica.Ademais, permite ainda superar como fonte precpua de dadossemiolgicos para a construo do diagnstico clnico anarrativa mdica sobre a experincia do paciente com respeito sade-doena, que toma uma forma padronizada eburocrtica.
REFERNCIAS
1. Gomes R, Mendona EA. A representao e a experincia dadoena: princpios para a pesquisa qualitativa em sade. In:Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos dopensamento: epistemologia e mtodo. Rio de Janeiro: Fiocruz;2002. p.109-32.
2. Rabelo MCM. A experincia de indivduos com problemamental: entendendo projetos e sua realizao. In: Rabelo MCM,Alves PCB, Souza IMA, organizadores. Experincia de doenae narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999. p.205-28.
3. Alves PCB, Rabelo MCM, Souza IMA. Introduo. In: RabeloMCM, Alves PCB, Souza IMA, organizadores. Experinciade doena e narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999. p. 11-42.
4. Kleinman A. The illness narratives: suffering, healing & thehuman condition. New York: Basic Books; 1988. 284 p.
5. Laplantine F. Aprender antropologia. So Paulo: Brasiliense;2000. 205 p.
6. Silva DGV, Trentini M. Narrativas como tcnica de pesquisa
em enfermagem. Rev Latinoam Enfermagem 2002;10:423-32.
7. Jovchelovitch S, Bauer MW. Entrevista narrativa. In: BauerMW, Gaskell G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som:um manual prtico. Petrpolis: Vozes; 2002. p.90-113.
8. Labov W. The transformation of experience in narrative syntax.In: Labov W. Language in the inner city: studies in the BlackEnglish Vernacular. Oxford: Basil Blackwell; 1977. p.354-96
9. Lieblich A, Tuval-Maschiach R, Zilber T. Narrative research:reading, analysis and interpretation. California: Sage; 1998. 187p.
10. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativaem sade. 5 ed. So Paulo: Hucitec; 1998. 269 p.
11. Serapioni M. Mtodos qualitativos e quantitativos na pesquisasocial em sade: algumas estratgias para a integrao. CiencSade Coletiva 2000;5:187-92.
12. Bardin L. Anlise de contedo. Lisboa: Edies 70; 1977. 226p.
13. Lira GV. Avaliao da ao educativa em sade na perspectivacompreensiva: o caso da Hansenase [tese]. Fortaleza:Universidade de Fortaleza; 2003.
14. Concone MHVB. Os sentidos da sade: uma abordagemdespretenciosa. In: Goldemberg P, Marsiglia RMG, GomesMHA, organizadores. O clssico e o novo: tendncias, objetose abordagens em cincias sociais e sade. Rio de Janeiro: Fiocruz;2003. p.75-82.
15. Lefvre F, Lefvre AMC. O discurso do sujeito coletivo: umnovo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxiasdo Sul: EDUCS; 2003. 256 p.
16. Vieira AG. Do conceito de estrutura narrativa sua crtica.Psicol Reflex Crit 2001;14:599-608.
17. Helman CG. Cultura, sade e doena. 4. ed. Porto Alegre:Artmed; 2003. 408 p.
Endereo para Correspondncia:Geison Vasconcelos Lira,Av. Expedicionrios, 5405, Bloco 03, Apartamento 102,Montese, Fortaleza-CE, CEP 60.410-411,E-mail: [email protected]
Artigo baseado na dissertao de mestrado: LIRA, G.V. Avaliaoda ao educativa em sade na perspectiva compreensiva: ocaso da Hansenase. 2003. 260 f. Dissertao (Mestrado) Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2003.