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A narrativa literária e histórica na obra Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado La narrativa literária y histórica en la obra Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado Adriana de Jesus Souza Centro de comunicação de Letras – Universidade Presbiteriana Mackenzie Rua Piauí, 143 – 01241-001 – São Paulo – SP [email protected] Resumo Jorge Amado, em seu romance Os subterrâneos da liberdade (1954), conta a história “não oficial” da época da ditadura Vargas. A transposição dos elementos históricos para a narrativa ficcional mostra as semelhanças e diferenças entre o discurso literário e o histórico. Os fatos históricos são vivenciados por diferentes personagens de núcleos sociais distintos. A profusão de vozes dessas personagens, no entanto, não traz uma pluralidade de pontos de vista, mas a voz unívoca do próprio autor, que busca difundir as idéias do Partido Comunista Brasileiro. No desenvolvimento do romance percebe-se uma esquematização maniqueísta expressa na construção das personagens e na própria construção da narrativa. Jorge Amado apresenta a História da ditadura varguista, acrescentando elementos ficcionais e sua perspectiva a respeito dos fatos históricos, que está marcada pela intencionalidade ideológica do Partido e, assim, não escapa, em muitos momentos, da propaganda partidária. Palavras-chave: Romance histórico. Literatura brasileira. Jorge Amado. Resumen Jorge Amado en su novela Os subterrâneos da liberdade (1954) cuenta la história 'no oficial' de la época de la dictadura Vargas. La transposición de los elementos históricos para la narrativa ficcional juega con las semejanzas y diferencias entre el discurso literario y el histórico. Los hechos históricos son “vividos” por diferentes personajes de núcleos sociales distintos. La profusión de voces de esos personajes, sin embargo, no conduce a una pluralidad de puntos de vista, sino a la voz unívoca del propio autor, que busca difundir las ideas del Partido Comunista Brasileño. En el desarrollo de la novela se percibe un mecanismo maniqueo expreso en la construcción de los personajes y en la propia construcción de la narrativa. Jorge Amado presenta la Historia de la dictadura varguista, añadiendo elementos ficcionales, su perspectiva a respecto de los hechos históricos está marcada por la intencionalidad ideológica del Partido y, así, no escapa, en muchos momentos, de la propaganda partidária. Palabras claves: Novela histórica. Literatura brasileña. Jorge Amado.

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A narrativa literária e histórica na obra Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado

La narrativa literária y histórica en la obra Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado

Adriana de Jesus Souza

Centro de comunicação de Letras – Universidade Presbiteriana MackenzieRua Piauí, 143 – 01241-001 – São Paulo – SP

[email protected]

Resumo

Jorge Amado, em seu romance Os subterrâneos da liberdade (1954), conta a história “não oficial” da época da ditadura Vargas. A transposição dos elementos históricos para a narrativa ficcional mostra as semelhanças e diferenças entre o discurso literário e o histórico. Os fatos históricos são vivenciados por diferentes personagens de núcleos sociais distintos. A profusão de vozes dessas personagens, no entanto, não traz uma pluralidade de pontos de vista, mas a voz unívoca do próprio autor, que busca difundir as idéias do Partido Comunista Brasileiro. No desenvolvimento do romance percebe-se uma esquematização maniqueísta expressa na construção das personagens e na própria construção da narrativa. Jorge Amado apresenta a História da ditadura varguista, acrescentando elementos ficcionais e sua perspectiva a respeito dos fatos históricos, que está marcada pela intencionalidade ideológica do Partido e, assim, não escapa, em muitos momentos, da propaganda partidária.Palavras-chave: Romance histórico. Literatura brasileira. Jorge Amado.

Resumen

Jorge Amado en su novela Os subterrâneos da liberdade (1954) cuenta la história 'no oficial' de la época de la dictadura Vargas. La transposición de los elementos históricos para la narrativa ficcional juega con las semejanzas y diferencias entre el discurso literario y el histórico. Los hechos históricos son “vividos” por diferentes personajes de núcleos sociales distintos. La profusión de voces de esos personajes, sin embargo, no conduce a una pluralidad de puntos de vista, sino a la voz unívoca del propio autor, que busca difundir las ideas del Partido Comunista Brasileño. En el desarrollo de la novela se percibe un mecanismo maniqueo expreso en la construcción de los personajes y en la propia construcción de la narrativa. Jorge Amado presenta la Historia de la dictadura varguista, añadiendo elementos ficcionales, su perspectiva a respecto de los hechos históricos está marcada por la intencionalidad ideológica del Partido y, así, no escapa, en muchos momentos, de la propaganda partidária.Palabras claves: Novela histórica. Literatura brasileña. Jorge Amado.

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A narrativa literária e histórica na obra Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado

O presente trabalho analisa a construção da narrativa literária e da narrativa histórica configuradas no romance Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado, o qual foi publicado no ano de 1954, em três tomos com os seguintes subtítulos: Ásperos tempos, Agonia da noite e A luz no túnel, sendo todos os volumes publicados pela editora Livraria Martins.

As fusões existentes no romance dos elementos ficcionais e dos elementos históricos são recorrentes durante toda a narrativa. Dada a importância das diferenças e semelhanças das formas de narrar do discurso histórico e do literário, fez-se necessária uma análise dos fatos históricos apresentados na obra, bem como de sua construção na narrativa ficcional. No desenvolvimento do romance percebe-se que o escritor faz uma nova escritura da História do Brasil da época da ditadura Vargas, e também narra “o processo de crescimento político das massas no confronto com os donos do poder.” (DUARTE, 1996, p.209). Dessa forma, verifica-se que a construção narrativa se baseia na escritura ficcional da História do Brasil centrada nos aspectos políticos e econômicos da época de 1937 a 1940, período em que o romance se desenvolve.

Segundo Eduardo de Assis Duarte, em sua obra Jorge Amado: romance em tempo de utopia (1996), essa escritura ficcional “constitui o ponto extremo do engajamento amadiano” (p.209), pois, como verificar-se-á neste estudo, o autor busca elevar os valores partidários do Partido Comunista Brasileiro, denegrindo o sistema capitalista vigente.

Partindo do conceito de engajamento de Jean Roche (1995), a obra Os subterrâneos da liberdade (1954) apresenta um realismo socialista, o qual segue os modelos indicados pelo partido, e mostra de forma maniqueísta os integrantes do partido comunista, criando personagens “do bem”, que são representados na obra pelos comunistas, que lutam contra o “mal”, representado pelos banqueiros, latifundiários e pelas tradicionais famílias paulistanas que representavam a política do café com leite.

Devido a essa ideologia partidária muito explícita, o romance é considerado por vários críticos brasileiros como “literatura de cunho panfletário”1, portanto não é uma das obras do autor que possui um grande impacto junto ao público, e pode ser considerada como a representação de um segundo momento do autor, que após esse romance passou a escrever romances mais populares, como Gabriela, Cravo e Canela (1958), que apresenta personagens do nordeste de forma pitoresca e sensual. Essa fase do autor é a mais conhecida e referenciada, sendo que algumas dessas obras foram adaptadas para a televisão e para o cinema.

Diferentemente das obras pós-1954, as personagens construídas no romance em estudo são descritas por meio de seus ideais políticos e sociais. Isso revela os conceitos principais que constituem a obra, um momento histórico de repressão política, realizada pela ditadura Vargas, e os ideais políticos que o autor defendia.

1 Esse termo é utilizado por Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira (1975), para designar os romances que professam uma ideologia partidária.

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Neste trabalho, portanto, são estudados aspectos pouco conhecidos dos leitores, isto é, uma fase em que o autor narra a história e a política da época de 1937 a 1940 por meio da ficção; trazendo, assim, uma escritura da história “não-oficial” (DUARTE, 1996, p.211).

No desenvolvimento da narrativa verifica-se que os elementos ficcionais e históricos estão intrinsecamente ligados. Essa fusão do ficcional e da história revela uma fronteira entre o imaginado e o supostamente “real” que permeia toda a obra. Esse elo entre o discurso histórico e o ficcional traz à tona uma problemática entre a narrativa histórica e a literária. A fim de compreender essa fronteira entre os elementos ficcionais e os elementos históricos que permeiam a obra, ou seja, as relações que se estabelecem entre Literatura e História, buscou-se a compreensão dos estudos de Hayden White e Walter Mignolo.

Hayden White em seu ensaio de 2001, “O texto histórico como artefato literário”, define a narrativa histórica como

ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes na literatura do que com os seus correspondentes nas ciências (p.98).

Essa definição de White traz à tona um dos principais eixos das relações entre História e Literatura. White, inicialmente, apresenta em seu ensaio a reflexão de Northrop Frye, que parte do entendimento de que o historiador trabalha indutivamente e busca os fatos por meio de pesquisas e relatos da vida real, diferentemente do literato, que narra a partir da sua imaginação. White complementa essa reflexão de Frye dizendo que, mesmo com essa busca de fatos em lugares opostos, a estrutura da narrativa histórica se assemelha à narrativa literária, pois ambas são concebidas a partir de uma ordenação dos fatos e de uma seleção do tipo de enredo para que se tornem compreensíveis ao leitor.

Dessa forma, White mostra que o conjunto de acontecimentos históricos registrados e colhidos pelo historiador não podem, isoladamente, constituir uma narrativa histórica, pois são apenas elementos da história. Segundo White (2001), esses acontecimentos serão

[...] convertidos em estória pela supressão ou subordinação de alguns deles e pelo realce de outros, por caracterização, repetição do motivo, variação do tom e do ponto de vista, estratégias descritivas alternativas e assim por diante – em suma, por todas as técnicas que normalmente se espera encontrar na urdidura do enredo de um romance ou de uma peça [...] (p.100)

A estrutura narrativa histórica, portanto, é composta não só de acontecimentos “reais”, mas também pela ordenação desses acontecimentos, ou seja, o mesmo conjunto de eventos poderá servir como componente de uma história trágica ou romântica; isso dependerá da escolha da estrutura de enredo que parecer melhor ao historiador para ordenar tais eventos, como explana White (2001):

[...] a maioria das seqüências históricas pode ser contada de inúmeras maneiras diferentes, de modo a fornecer interpretações diferentes daqueles eventos e a dotá-los de sentidos diferentes [...] (p.101)

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A partir desse conceito desenvolvido por White, este estudo analisa a construção da História do Brasil da ditadura Vargas, de 1937 a 1940, na obra de Jorge Amado, na qual o autor destaca na ficcionalidade do seu romance datas históricas e nomes reais, relacionando, dessa forma, fatos históricos e fatos ficcionais.

A partir dessas definições de White, pode-se dizer que Jorge Amado não muda os fatos históricos, porém constrói uma narrativa escolhendo os fatos, ordenando-os, destacando e ocultando outros, ou seja, cria uma história dentro de uma convenção ficcional. Como mostra White (2001):

[...] toda narrativa não é simplesmente um registro do que aconteceu na transição de um estado de coisas para outro, mas uma redescrição progressiva de conjuntos de eventos de maneira a desmantelar uma estrutura codificada num modo verbal no começo, a fim de justificar uma recodificação dele num outro modo final. Nisto consiste o “ponto médio” de todas as narrativas (p.115).

Dessa forma, entende-se que há uma convenção ao longo dos anos que deu um status à narrativa histórica de representação do “real”, portanto de caráter verídico, enquanto a narrativa literária assumiu seu estado de representação do imaginado, do ficcional. Essa convenção é muito bem exposta por Walter Mignolo em seu ensaio de 1993, Lógica das diferenças e política das semelhanças da Literatura que parece História ou Antropologia, e vice-versa, no qual o autor busca uma definição de

normas historiográficas e literárias. A linguagem é empregada de acordo com as normas historiográficas (NH), ou literárias (NL), sempre que todo membro de uma comunidade especializada (científica ou artística) CmE, ao realizar uma ação lingüística, espera que os outros membros de CmE, assim como também todo membro da comunidade lingüística Cm que conhece a língua e as normas, reaja de acordo com a NL ou a NH e aceite: que o escritor ou historiador opera dentro do contexto x de historiografia, ou y de literatura, ou se opõe a eles de uma maneira que é incompreensível, porque ao opor-se, invoca-as (p.124).

Mignolo, portanto, relaciona a História e a Literatura, sendo que a linguagem literária enquadra-se na convenção de ficcionalidade; entretanto, ao deparar com o ensaio e a autobiografia, esse conceito de ficcionalidade dependerá da posição do escritor, ou seja, se o escritor for um poeta, sua autobiografia estará comprometida no mundo literário, enquanto uma autobiografia de um historiador ou de grandes políticos se compromete naturalmente nas normas historiográficas; dessa forma, Mignolo analisa que é preciso contemplar a heterogeneidade e a mobilidade dos níveis de conhecimento e a variação que ocorre entre as convenções e as normas. Mignolo (1993) mostra:

[...] A convenção de ficcionalidade não é, ao que parece, uma condição necessária da literatura, ao passo que a adequação à convenção de veracidade, ao que parece, é condição necessária para o discurso historiográfico (p.125).

Mignolo, portanto, problematiza a questão da separação entre a veracidade e a ficção, ao perceber que em uma narrativa literária poderão existir dois tipos de enunciados: o literário e o histórico. Neste estudo sobre a obra de Jorge Amado, é possível verificar essa inserção dos elementos “reais” - históricos e geográficos - na

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narrativa ficcional. Para solucionar esse problema, Mignolo apresenta a abordagem de Parson (1980), que distinguiu a inserção de elementos históricos dentro da narrativa literária da seguinte forma: “[...] entidades nativas e entidades imigrantes”. Mignolo segue explicando que a entidade imigrante, segundo Parson (1980), seria uma entidade já existente, cuja existência já era aceita antes que o romance fosse escrito, transportada para um mundo ficcional, no qual ela será aceita, ao mesmo tempo, como uma personagem de ficção e uma pessoa histórica. A entidade nativa, portanto, é aquela que terá sua “existência” somente no âmbito da narrativa literária, ou seja, aquela que o autor criou.

A partir dessas definições, percebe-se que Jorge Amado trabalhou essa transposição de personagens reais para seu romance, transformando-os em entidades imigrantes, segundo Parson (1980), e que passam a ter identidade histórica e ficcional. Mignolo (1993) explana em seu ensaio, sobre essa composição do ficcional e do histórico, da seguinte forma:

[...] A relação, portanto, entre o ficcional e a verdade não se estabelece necessariamente pela negativa (porque o ficcional não implica a mentira), mas pela própria natureza das convenções. O enquadramento na convenção de ficcionalidade apresenta as regras do jogo de forma aberta e, portanto, isenta das condições impostas pela convenção da veracidade. No entanto, quando no romance (que implica a convenção da ficcionalidade) imita-se o discurso antropológico ou historiográfico (que implica a convenção da veracidade), estamos diante de um duplo discurso: o ficcionalmente verdadeiro do autor (porque, ao enquadrar-se na convenção de ficcionalidade, não mente) e o verdadeiramente ficcional do discurso historiográfico ou antropológico imitado (porque, ao invocar a convenção de veracidade, está exposto ao erro e há a possibilidade de mentira) [...] (p.132-133)

Mignolo, dessa forma, mostra que a questão da “verdade” na ficção é apresentada quando se imita um discurso que está enquadrado na convenção de veracidade e que as linhas que separam a História e a Literatura estão muito próximas, sendo que, em alguns momentos, chegam a coincidir, como nesta obra de Jorge Amado.

A fim de demonstrar brevemente como a perspectiva teórica, descrita até então, aparece nas páginas de Os subterrâneos da liberdade (1954), destacam-se a seguir alguns exemplos da construção narrativa.

O primeiro tomo apresenta uma narração que se desenvolve nos anos de 1937 e nos primeiros meses de 1938. São narrados os acontecimentos anteriores e posteriores ao golpe de Estado de Getúlio Vargas. No segundo tomo prossegue a seqüência dos fatos políticos, tais como o golpe dos políticos armandistas e integralistas contra o governo de Getúlio e a prisão dos comunistas, abrangendo, dessa forma, os anos de 1938 e 39. No último tomo são narradas as torturas e prisões dos comunistas, bem como dos julgamentos destes e de Luis Carlos Prestes, sendo esses momentos decorridos nos anos de 1939 e 40. Nos três tomos aparece a seguinte epígrafe camoniana

Metida tenho a mão na consciência,e não falo senão verdades purasque me ensinou a viva experiência

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Segundo Duarte (1996), Jorge Amado narra os fatos ocorridos na ditadura varguista buscando em seu romance desmoralizar o governo de Getúlio, que persegue o Partido Comunista, prende Prestes e tortura os oposicionistas, sendo o próprio escritor vítima da ditadura de Vargas. Devido a esses fatores, o romance apresenta um aspecto de testemunho histórico e a epígrafe camoniana enfatiza essa característica ao se relacionar com o falar “verdades puras” que foram ensinadas pela “viva experiência”.

Dessa forma, nota-se que ao retomar a epígrafe camoniana e o tempo histórico em seu romance, conforme disserta Duarte (1996), Jorge Amado tenta deixar clara sua intenção de construir um panorama histórico dos primeiros anos do Estado Novo, em que destaca a interferência do imperialismo na política e na economia do país, o autoritarismo de Vargas e a luta do proletariado. Deve-se ressaltar, portanto, que essa escritura da História, apesar de ficcional possui um aspecto de denúncia e, conforme Duarte (1996), de uma visão partidária e panfletária do autor.

Para que se compreenda a estrutura narrativa, pode-se dizer que o romance é constituído de duas partes: um macrocosmo histórico que revela uma perspectiva histórica e um microcosmo ficcional que possui referentes extratextuais, porém de uma forma mais metafórica. Esse microcosmo ficcional é criado a partir da memória do autor e de sua imaginação, que cria personagens a partir do imaginário de pessoas que viviam na época.

A narrativa ficcional se apresenta a partir dos diálogos das personagens e de suas recordações, as quais remetem ao momento histórico de 1937. O leitor é inserido, primeiramente, no microcosmo literário, no qual o autor tem o compromisso de tornar o momento narrado coincidente aos acontecimentos que serão apresentados posteriormente, que são os fatos históricos; assim, o narrador cria uma linha imaginária que segue uma seqüência de fatos, sendo que o microcosmo literário dialoga constantemente com a história. Esse desenvolvimento da narrativa gera em alguns momentos uma fusão entre os elementos ficcionais e os históricos. Essa junção entre as narrativas traz ao leitor mais desprovido de conhecimentos históricos, uma dificuldade em separar o imaginado do “real”.

Pode-se dizer que o cenário da narração ficcional é a História, bem como alguns fatos que envolvem as personagens. O ficcional se desenvolve na construção das personagens, nas ações e diálogos das mesmas, sendo alguns fatos também imaginados. A partir dessa criação, percebem-se as estruturas narrativas criadas, que buscam produzir um efeito de sentido de “verdade”.

No desenvolvimento da narrativa nota-se a construção de três núcleos distintos de personagens: o núcleo dos capitalistas, representado pelos políticos armandistas e integralistas, pelos banqueiros, latifundiários e empresários; o núcleo dos comunistas, personagens que aceitam o ideário do Partido Comunista e militantes e, por fim, o núcleo das personagens que representam os a-partidários, que não possuem conscientização política, os imigrantes, os operários, os camponeses e os caboclos.

A partir dessa divisão das personagens em três núcleos distintos, que representam classes sociais e políticas, percebe-se que a construção histórica faz-se por meio das escolhas do autor, o qual cria o enredo da narrativa por meio de um esquema.

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Essa esquematização apresenta-se na descrição constante dos três núcleos vivendo o mesmo momento histórico, mas em posições sociais e políticas diferentes, portanto tendo visões e reações distintas em relação aos acontecimentos. Dessa forma, o autor constrói o fato histórico pelo discurso literário, sendo que essas diferentes perspectivas podem revelar que nenhum discurso apresenta uma verdade factual, mas apenas um ponto de vista em relação ao fato ocorrido, como nessa explicitação da professora Ana Lúcia Trevisan Pelegrino em sua tese de doutorado O espelho fragmentado de Terra Nostra: Literatura e História na narrativa de Carlos Fuentes (2004), que mostra como a realidade depende da perspectiva de quem a percebe e da maneira que a constrói discursivamente:

(...) Temos uma mesma história interpretada dezenas de vezes. É uma realidade vista, vivida e apresentada de forma plural. A afirmação de que a realidade não é linear pode justificar-se quando percebemos a realidade de forma fragmentada, ou seja, através das possibilidades de percepção dos diferentes sujeitos e seus discursos correspondentes, elaborados distintamente e traduzindo realidades paralelas. O real seria, para cada um, algo distinto do que para é o outro; não apenas como interpretação mas também como experiência concreta em si mesma. (p.86-87)

Nota-se, portanto, que o autor busca em sua narrativa mostrar diversos olhares sobre um mesmo fato histórico, porém, essas diferentes perspectivas passam primeiramente pelo olhar do autor, o qual busca reafirmar na obra os ideais do Partido Comunista Brasileiro.

No momento em que busca apresentar uma visão exterior dos acontecimentos, o narrador mostra cada personagem diante do mesmo fato como se possuísse uma câmera cinematográfica que focaliza cada ação em um mesmo instante. A partir dessa técnica, o leitor é levado aos diversos espaços, aos momentos históricos e aos imaginados, que seguem uma mesma linha temporal, a histórica. Dessa forma, o panorama histórico aparenta ser construído por uma pluralidade de vozes; no entanto, essa estruturação esquematizada da narrativa revela um paradoxo dentro da obra. Ao apresentar as diferentes visões de cada núcleo durante o momento histórico, o autor repete a estrutura e as ações das personagens, que seguem a seguinte forma: o núcleo capitalista aparece manipulando o governo e a polícia, perseguindo o Partido Comunista e oprimindo os operários; o núcleo comunista combate esses, sofrendo privações econômicas e sendo torturados. Ao mesmo tempo, busca conscientizar o núcleo a-partidário de seus direitos. Dessa forma, percebe-se que as visões não se diferenciam, seguem um esquema de bons e maus, trazendo, portanto, uma univocidade na narração, que apresenta uma forte inclinação ideológica e demonstra o engajamento do autor. A narrativa, assim, mostra que Jorge Amado teve a intenção de narrar a História “pelo avesso”, mostrando os bastidores e contando a história não-oficial, mas ao mesmo tempo fez da narrativa um meio de difundir a mensagem comunista (DUARTE, 1996). Essa escolha do escritor, no entanto, transformou a pluralidade de vozes das personagens em uma única, a do partido.

O romance, portanto, constrói a História de 1930 a 1940 por meio de uma perspectiva política e ideológica, que revela um panorama político e social da época, o que nem sempre é uma prioridade do discurso histórico.

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Observando atentamente a não linearidade da “verdade”, percebe-se que em um mesmo fato existem várias “verdades” ou, simplesmente, não há “verdades” e sim perspectivas diferentes, que durante a narração em um discurso histórico ou literário podem revelar ou obscurecer alguns fatos.

História e Literatura, em Os subterrâneos da liberdade (1954) , atravessam os limites das convenções, explicitadas por Mignolo, revelando as semelhanças entre a ficção e a história, pois ambas necessitam das escolhas para narrarem os fatos. Essa junção não diminui ou empobrece esses dois discursos, ao contrário, colaboram para que o leitor possa obter várias “versões” de um mesmo fato histórico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, Jorge. Os subterrâneos da liberdade: os ásperos tempos. Tomo I. São Paulo: Livraria Martins, 1954.

_____________. Os subterrâneos da liberdade: agonia da noite. Tomo II. São Paulo: Livraria Martins, 1954.

____________. Os subterrâneos da liberdade: a luz no túnel. Tomo III. São Paulo: Livraria Martins, 1954.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2.ed. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 455-457.

DUARTE, Eduardo de Assis. O crepúsculo do partidarismo romanesco. In.________ Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record, 1996. p.209-248.

MIGNOLO, Walter. Lógica das diferenças e política das semelhanças: da literatura que parece história ou antropologia e vice-versa. In: Chiappini, L.; Aguiar, F. (org.). Literatura e história na América Latina. São Paulo: Edusp, 1993. p. 115-134.

PELEGRINO, Ana Lúcia Trevisan. O espelho fragmentado: construção crítica da história em Terra Nostra de Carlos Fuentes. 2002. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.

ROCHE, Jean. Jorge bem / mal Amado. 10.ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In:____________. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. 2.ed. São Paulo: Edusp, 2001. p. 97-116.