A Música Que Incomoda- o Funk e o Rolezinho

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014 www.compos.org.br 1 A MÚSICA QUE INCOMODA: o funk e o rolezinho 1 THE MUSIC THAT BOTHERS: the funk and the rolezinho Felipe da Costa Trotta 2 Resumo: As reflexões sobre música popular com frequência enfatizam os casos de experiência musical voluntários, motivados por adesões indentitárias, afetivas e simbólicas que os indivíduos e grupos sociais realizam com as músicas que gostam. Mas nem sempre é assim. Este texto tem como objetivo discutir as situações nas quais a experiência musical compulsória gera incômodo nos ouvintes, irritando e intimidando aqueles que não compartilham do prazer de ouvir determinado repertório. O exemplo debatido aqui é o caso do funk, gênero com histórica vinculação com o contexto das periferias, morros e favelas e que volta a surgir como tema privilegiado na mídia a partir de seu uso nos fenômenos dos rolezinhos, causando incômodo e rechaço. Pensar sobre o incômodo do popular-funkeiro- periférico significa reprocessar ideias sobre a desigualdade social, num contexto de grandes transformações sociais, políticas e comportamentais no Brasil e no mundo. Palavras-Chave: Música popular. Funk. Valor cultural. Abstract: Reflections on popular music often emphasize cases of voluntary musical experience, motivated by affective and symbolic empathy that individuals and social groups feed related the songs they like. However, it is not always so. This paper aims to discuss the situations in which compulsory musical experience provokes in uncomfortable, irritating and intimidating feelings to those who don´t share the pleasure of listening to certain repertoire. The example discussed here is the the funk. genre with historical link with the context of the suburbs, peripheries and favelas. Funk appeared as a prime topic in the media because of its use in the rolezinhos, causing discomfort and rejection. To think about the hassle of folk- funkeiro-peripheral means to reprocess ideas about social inequality in a context of social, political and behavioral transformations in Brazil and worldwide. Keywords: Popular Music. Funk. Cultural Value. 1. Introdução 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Sociabilidade do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Universidade Federal Fluminense (UFF), Doutor em Comunicação, [email protected].

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A música que incomoda- o funk e o rolezinho Felipe Trotta

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    XXIII Encontro Anual da Comps, Universidade Federal do Par, 27 a 30 de maio de 2014

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    A MSICA QUE INCOMODA: o funk e o rolezinho1

    THE MUSIC THAT BOTHERS:

    the funk and the rolezinho Felipe da Costa Trotta

    2

    Resumo: As reflexes sobre msica popular com frequncia enfatizam os casos de

    experincia musical voluntrios, motivados por adeses indentitrias, afetivas e

    simblicas que os indivduos e grupos sociais realizam com as msicas que gostam.

    Mas nem sempre assim. Este texto tem como objetivo discutir as situaes nas

    quais a experincia musical compulsria gera incmodo nos ouvintes, irritando e

    intimidando aqueles que no compartilham do prazer de ouvir determinado

    repertrio. O exemplo debatido aqui o caso do funk, gnero com histrica

    vinculao com o contexto das periferias, morros e favelas e que volta a surgir

    como tema privilegiado na mdia a partir de seu uso nos fenmenos dos rolezinhos,

    causando incmodo e rechao. Pensar sobre o incmodo do popular-funkeiro-

    perifrico significa reprocessar ideias sobre a desigualdade social, num contexto de

    grandes transformaes sociais, polticas e comportamentais no Brasil e no mundo.

    Palavras-Chave: Msica popular. Funk. Valor cultural.

    Abstract: Reflections on popular music often emphasize cases of voluntary musical

    experience, motivated by affective and symbolic empathy that individuals and social

    groups feed related the songs they like. However, it is not always so. This paper

    aims to discuss the situations in which compulsory musical experience provokes in

    uncomfortable, irritating and intimidating feelings to those who dont share the

    pleasure of listening to certain repertoire. The example discussed here is the the

    funk. genre with historical link with the context of the suburbs, peripheries and

    favelas. Funk appeared as a prime topic in the media because of its use in the

    rolezinhos, causing discomfort and rejection. To think about the hassle of folk-

    funkeiro-peripheral means to reprocess ideas about social inequality in a context of

    social, political and behavioral transformations in Brazil and worldwide.

    Keywords: Popular Music. Funk. Cultural Value.

    1. Introduo

    1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicao e Sociabilidade do XXIII Encontro Anual da

    Comps, na Universidade Federal do Par, Belm, de 27 a 30 de maio de 2014. 2Universidade Federal Fluminense (UFF), Doutor em Comunicao, [email protected].

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    A premissa de que determinadas pessoas compartilham ideias a partir de uma

    experincia musical comum tem sido tomada como ponto de partida para diversos estudos

    sobre msica e sociedade. Seja sob o ponto de escuta de uma formao subjetiva (DeNora

    2004) ou da afirmao de um carter coletivo das prticas musicais (Wisnik 1999, Blacking

    1995), a msica costuma ser abordada como uma prtica social qual indivduos e grupos

    voluntariamente aderem, gostam e utilizam, atravs de determinados repertrios (Sandroni

    2001, Janotti Jr. 2004, Trotta 2011, entre muitos outros). Quase sempre, essa premissa

    estabelece que a construo de um gosto musical comum o vetor atravs do qual os debates

    sobre sonoridades, moralidades, valores e condutas sero processados em experincias

    musicais coletivas de vrios tipos (Frith 1998). Ao lado dessa substantiva produo, e muitas

    vezes em dilogo com ela, alguns autores tm se debruado sobre a experincia musical em

    contextos de violncia, como o narcotrfico (Herlinghaus, 2006), como arma empregada em

    guerras para neutralizar inimigos (Baker, 2013) ou mesmo como instrumento auxiliar em

    sesses de tortura em campos de concentrao e prises (Cusick, 2006).

    Seguindo essas pistas, e me esquivando de situaes limtrofes (como a guerra ou a

    tortura), gostaria de refletir sobre um tipo de relao que estabelecemos cotidianamente com

    a msica pautado pela sensao subjetiva de incmodo. Escutar uma msica que no

    gostamos ato frequente e desagradvel sobre o qual pouco temos pensado3. Na maioria das

    vezes, essa escuta tende a ser fragmentada, permeada por juzos negativos e repetida sem

    controle em nossos mltiplos cenrios urbanos. o carro que passa com som alto ao nosso

    lado, o impertinente pandeiro do churrasco do vizinho, a reverberao grave da boate do

    bairro, a jukebox do botequim da esquina, o jovem que liga o celular no nibus cheio ou

    mesmo o canto amplificado do pastor em sua pregao dominical na praa pblica. So

    msicas que no escolhemos ouvir e essa vulnerabilidade escolha alheia provoca um

    sentimento de impotncia reforado pela sonoridade e as simbologias associadas a repertrios

    3 Estava concluindo a redao desse texto e aparece na tela de meu computador uma postagem no Facebook de

    meu querido colega e amigo Afonso Albuquerque na qual ele manifestava esse sentimento. Em suas palavras:

    possvel abstrair o calor. Com fora de vontade a gente consegue aguentar. possvel abstrair o fato de que o prdio do lado tem uma piscina imensa e azul e voc no tem. Controle de

    inveja. O que fica difcil de abstrair quando num dia quente a galera privilegiada do prdio com piscina ainda

    resolve sacanear todos os vizinhos tocando JORGE VERCILO no mximo volume.

    Est provado. A inveja aumenta a sensao trmica em um grau, mas Jorge Vercilo aumenta em 15 graus.

    Porque o sangue ferve... de dio. (em 9 de fevereiro de 2014)

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    que preferiramos no ouvir. Repertrios que atrapalham nosso caminho, nosso sono, nossa

    viagem, nossa calma.

    O que quero propor nesse texto uma indagao sobre o incmodo que essa escuta

    provoca. Com suas algumas excees4, tal incmodo comumente resultado de algum tipo

    de conflito tico-moral, traduzido em sonoridades, comportamentos, ideias e refres que

    invadem os ouvidos e entram em choque com nossos estilos de vida, cdigos de conduta e

    preferncias difusas.

    Um caso recente e instigante para se pensar esse incmodo o caso dos rolezinhos.

    O passeio de grupos numericamente expressivos de jovens majoritariamente negros oriundos

    das periferias nos espaos fechados e controlados dos shoppings centers provocou acaloradas

    discusses, aes policiais, liminares judiciais, uma certa indignao e uma complexa

    reflexo sobre as tenses que compem nossa sociedade estratificada. Poucos textos e ideias

    que circularam sobre as manifestaes deixaram de estabelecer alguma conexo entre os

    rolezinhos e o funk, sobretudo com a vertente conhecida como funk ostentao. Nessas

    reflexes, o gnero tornou-se ingrediente-chave da discusso sobre juventude e pobreza que

    atravessou os debates, quase sempre acompanhado de uma considervel dose de incmodo.

    O funk incomoda por diversos motivos, sobretudo quando sua sonoridade invade

    espaos mais prestigiados do ambiente urbano, como praias da zona sul carioca, shoppings

    centers ou palcos de casas noturnas prestigiadas. Em certa medida, ele pode ser pensado

    como uma sntese de diversos incmodos sociais que so muitas vezes condensados e

    processados pela experincia musical, nem sempre de modo amigvel. Mas vamos por partes.

    2. O velho popular que incomoda

    Apesar de reconhecer a existncia de uma variedade de incmodos relacionados

    prtica musical, meu objetivo aqui investigar mais de perto o conjunto de ideias associado

    ao universo popular e sua metfora geogrfica, o perifrico. Possivelmente, o rechao

    que nossa elite cultural desenvolve em relao a algumas msicas e o funk tem sido nos

    4Basicamente h momentos em que a escuta de msica involuntria causa irritao por sua impertinncia e

    inadequao, mesmo que seja uma msica que gostamos. Essas msicas, ao ocuparem o espao sonoro, desviam

    nossa ateno e podem causar algum desconforto. Esse texto no aborda esses casos.

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    ltimos anos o principal alvo desse rechao tem relao estreita com um mal estar contnuo

    derivado da assimetria entre as classes sociais. As desigualdades sociais derivadas de

    distines de renda e acessos variados a bens materiais e culturais moldam um terreno de

    grande tenso, em torno do qual gostos, ideias e repertrios circulam. Esse conjunto de ideias

    se materializa parcialmente no conceito de popular.

    O adjetivo popular assume significados distintos quando associado a determinadas

    palavras como bairro, restaurante, celebridade, jogo, liderana, mercado,

    cultura, moda, produto, shopping, carro, linguagem, etc. Como afirma Hall, nem

    todos os significados do popular so efetivamente teis para se pensar sobre ele

    (2003:253). Em alguns casos, o vocbulo pode ser lido como sinnimo de popularidade,

    classificando aquele substantivo (como nos casos de jogo, liderana ou celebridade)

    como algo que compartilhado, usado ou experimentado por muita gente. Na estrutura

    piramidal de nossas sociedades capitalistas, a ideia de muita gente est intimamente

    conectada a determinados setores da populao com baixo poder aquisitivo e grau de

    educao formal. Assim, um bairro popular o lugar onde essas pessoas habitam, um

    shopping popular o centro de compras que elas frequentam. Um terceiro significado do

    adjetivo coloca esse popular em perspectiva comparativa e designa um valor monetrio

    inferior daquele substantivo em questo. Um carro popular simplesmente um veculo que

    custa menos dinheiro do que um no-popular, assim como um restaurante, um

    mercado ou um produto. Porm, a esse valor financeiro se sobrepe um valor moral e de

    uso, que de forma linear associa o custo monetrio sua qualidade. Assim, um carro popular

    pior do que um no-popular, da mesma forma que restaurantes ou shoppings populares so

    piores do que seus semelhantes no-populares.

    De modo um tanto perverso, o julgamento negativo resvala do produto em questo

    para os consumidores de tais produtos, estabelecendo um rebatimento de sentidos que

    tambm termina negativando o pblico popular em relao ao no-popular. Ou seja, o

    adjetivo popular refere-se a um conjunto especfico da populao, formado por um grande

    contingente de pessoas que ganham menos e gastam menos na compra de produtos

    diversos. Numa manobra no muito criativa de continuidade semntica, tais pessoas tambm

    valem menos na hierarquia social e suas prticas culturais so parte desse conjunto de

    desqualificaes.

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    Segundo Martn-Barbero, essa negativizao do popular est atrelada a uma

    ambiguidade sobre a prpria ideia de povo que percorre nossa civilizao pelo menos

    desde o Iluminismo. No plano poltico o povo foi tomado pelos pensadores iluministas

    como uma instncia legitimante do governo civil, gerador da nova soberania (2001: 36).

    Porm, no mbito cultural, ele sintetiza para os ilustrados tudo o que estes quiseram ver

    superado, tudo o que vem varrer a razo: superstio, ignorncia e desordem (idem). E

    segue o autor:

    nesse movimento que se geram as categorias do culto e do popular. Isto , do popular como in-culto, do popular designando, no momento de sua constituio em

    conceito, um modo especfico de relao com a totalidade do social: a da negao, a

    de uma identidade reflexa, a daquele que se constituiu no pelo que mas pelo que

    lhe falta (idem: 37).

    A ideia de que o popular constitudo pela falta define, por extenso, uma posio

    inferiorizada para as prticas sociais designadas como tal. Uma linguagem popular um

    conjunto de prticas lingusticas relacionadas baixa educao formal do setor propriamente

    popular da populao e se torna eixo de desqualificao em relao linguagem formal

    culta (a norma correta). A cultura popular , sob esse prisma, uma cultura inserida nesse

    universo de rebaixamento de valor, que inclui pessoas, lugares, produtos e se estende at

    comportamentos, cdigos de conduta, estticas e estilos de vida. Uma cultura incorreta,

    informal e associada a um conjunto amplo de desqualificaes variadas. Pensar na cultura

    popular envolve, portanto, refletir sobre o campo de fora das relaes de poder e de

    dominao culturais (Hall, 2003: 254).

    Ainda seguindo o raciocnio de Martn-Barbero, a retrica ilustrada sobre o popular foi

    tensionada pelo Romantismo, que constri um novo imaginrio no qual pela primeira vez

    adquire status de cultura o que vem do povo (2001: 39). A manobra romntica mitifica o

    popular como lugar da autenticidade, da tradio e da criatividade, opondo-o quase sempre

    civilizao, ao capitalismo e vida urbana. interessante observar que a valorizao

    romntica da ideia de autenticidade ligada s prticas populares se tornou um dos mais

    significativos critrios de avaliao esttica na msica urbana midiatizada a partir do incio

    do sculo XX (Moore, 2002). Destituda de elementos que configuravam a valorao esttica

    das artes eruditas (complexidade formal, elaborao tcnica, escuta contemplativa,

    valorizao da autoria individualizada), essa msica moldou critrios prprios de qualidade

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    que acionavam prioritariamente a noo de que ela deriva de uma manifestao espontnea e

    autntica do povo.

    O impulso de valorizao do popular e do perifrico, portanto, no novidade nos

    debates sobre cultura brasileira. Recentemente, contudo, o interesse de determinados setores

    da elite social e intelectual sobre as prticas populares tem se intensificado, possivelmente

    por causa do incremento quantitativo da chamada classe C na ltima dcada (Negri 2010).

    Nesse mesmo perodo podemos observar um crescimento da circulao de produtos culturais

    perifricos em grandes veculos de mdia como a fico seriada da Rede Globo5 (Junqueira,

    2009: 161). Em 2012, as telenovelas Cheias de charme e Avenida Brasil tiveram suas tramas

    construdas sobre personagens populares, bairros perifricos e sonorizados com msicas

    que encarnavam esses contextos (ver Trotta 2013). A veiculao do popular na grande mdia

    com frequncia segue a trilha de uma valorizao de suas prticas, enaltecendo

    comportamentos, valores e sabedorias. No por acaso, o funk penetra nessas compilaes de

    forma bastante discreta. O funk signo de uma negociao do popular que representa um

    conjunto de referenciais exgeno, associado vulgaridade, violncia e a uma ampla gama

    de condutas moralmente reprovveis pelas elites econmicas e intelectuais. Ao mesmo

    tempo, objeto de curiosidade e temor.

    O fato de os primeiros rolezinhos terem sido convocados pelo MC Jota L (Jefferson

    Luis) intensifica a associao com o funk. O primeiro encontro ocorreu no dia 6 de dezembro

    no Shopping Itaquera (zona Leste de So Paulo) e foi noticiado como uma espcie de

    arrasto, feito por arruaceiros (os termos so da matria do SPTV6). Na semana seguinte

    outro encontro ocorreu no Shopping Internacional de Guarulhos e tambm foi enfrentado

    pela polcia e seguranas como uma atividade criminosa. Segundo a matria do site de

    notcias G1, as reunies de funkeiros batizadas de rolezinho passaram a amedrontar

    administradores de shoppings e viraram alvo de investigaes policiais. Nessa ltima, entretanto,

    no foi registrado furto, violncia ou porte da droga citada na cano-hino de abertura do

    5 Podemos citar como exemplos as telenovelas como Senhora do Destino (Aguinaldo Silva, 2004), Duas Caras

    (Aguinaldo Silva, 2007), Cheias de charme (Filipe Miguez e Isabel de Oliveira) e Avenida Brasil (Joo

    Emmanoel carneiro, 2012), alm de sries como Cidade dos homens (2002), Antnia (2006) e Subrbia (2012). 6 Vdeo mostra tumulto no Shopping Metr Itaquera, G1, 08/12/2013. Acesso: 14/02/2014.

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    evento7. Os jornalistas faziam referncia msica Deixa eu ir, de MC Daleste, assassinado no

    palco durante um show em julho de 2013. O refro Eita porra, que cheiro de maconha, dava

    ares de movimento organizado e consciente ao agrupamento de jovens que, segundo seu

    prprio organizador, tinha como objetivo somente reunir os jovens para se encontrar no

    shopping e fazer as coisas normais que os outros fazem: tomar sorvete, conhecer pessoas

    novas. (MC Jota L, entrevista revista Carta Capital, 24/01/2014).

    A desproporo da atuao policial em um encontro de jovens despertou diversos

    comentrios e reflexes sobre o universo popular e as relaes contraditrias de condenao e

    curiosidade que as elites intelectuais e culturais nutrem em relao aos pobres.

    Emblemtica nessa administrao ambgua de tenso e teso pelo popular a reportagem de

    capa da Revista Veja de 29 de janeiro de 2014. Em seu estilo peculiar, a revista busca

    desvendar para o leitor de classe mdia e alta o pas dentro do Brasil chamado periferia,

    composto, segundo o lead da capa, por 155 milhes de habitantes. Periferia uma metfora

    geogrfica que se refere a todo um conjunto de prticas e valores que circundam o universo

    popular. Incorpora tanto os habitantes de reas marginalizadas das grandes cidades quanto

    suas prticas de consumo, seus produtos, gostos e estilos de vida. Fortemente atravessada por

    uma interpretao do popular e do perifrico como construes operadas a partir da falta, a

    matria da Veja se estende por 16 pginas descrevendo com surpresa vrios exemplos de

    moradores da periferia que passaram nos ltimos anos a ter padres de consumo

    identificados como de classe mdia. Histrias de sucesso profissional em vrias reas

    matizam um texto ambguo, que destaca positivamente esse movimento, mas o apresenta sob

    a forma de uma descrio estereotipada e linear de personagens impregnados de exotismo.

    Sem cair na tentao de fazer uma anlise do discurso do mais conservador semanrio

    brasileiro, vale destacar a forma com que a Veja se apropria e apresenta o outro perifrico

    atravs da imagem (sonora) do funk, materializado na capa pela figura (um tanto extica

    tambm) de MC Guim, um dos principais artistas da vertente conhecida como funk

    ostentao.

    7 Rolezinhos nos shopping so gritos por lazer e consumo, dizem funkeiros, por Tatiana Santiago, Klber

    Tomaz e Lvia Machado, G1, 18/12/2013 Acesso: 14/02/2014.

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    Na seo de sete pginas dedicada ao gnero, o funk didaticamente descrito como

    uma msica consumida por jovens de bairros suburbanos os meninos com correntes

    douradas, as meninas com saia curtinha, todos com roupas de grife (p. 73) , fenmeno de

    popularidade que torna-se um hino de cidadania e identidade para os jovens das classes C, D

    e E (p.74), numa sucesso de clichs jornalsticos. Ao descrever a trajetria e carreira de

    alguns artistas do funk, a revista enfatiza o faturamento obtido com shows, deixando

    transparecer novamente alguma surpresa e uma certa ironia.

    Mas a Veja no est sozinha nessa linha editorial. Revistas como poca8, Carta

    Capital9 e Isto

    10 e vrios outros veculos reproduziram nas ltimas semanas diversas

    matrias sobre o fenmeno dos rolezinhos discutindo o direito dos pobres de acessarem os

    templos de consumo das elites. Em quase todas as abordagens, o funk aparece como um vetor

    sonoro do processo de tensionamento de divises sociais territoriais, econmicas e polticas,

    agente de um deslocamento de ideias sobre esse popular. Num emaranhado de especialistas

    convocados pela imprensa para pensar o rolezinho (msicos, polticos, ativistas, socilogos,

    psiclogos, advogados, jornalistas, crticos culturais), podemos destacar a arguta

    interpretao do rapper Emicida sobre o caso, em sua coluna na revista Piau:

    8 Reportagem de capa intitulada A turma da algazarra, edio 816, de 18 de janeiro de 2014.

    9 Diversas matrias abordaram o tema: Rolezinho: adolescentes so barrados em shopping de So Paulo

    (Joseh Silva, 11/01/2014); Rolezinho, capitalismo e gente bonita (Pedro Estevam Serrano, 17/01/2014); Contra o rolezinho, shopping em Braslia ficar fechado neste sbado (sem assinatura, 25/01/2014); Eu j sentia o preconceito antes (entrevista de Samantha Maia com MC Jota L, em 24/01;2014). 10

    Matria na seo comportamento intitulada Rolezinho: violncia e preconceito, edio 2304, de 22 de janeiro de 2014.

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    Mas, voltando a nosso rolezinho, a massa movida pelo funk (ostentao) e

    considerada a mais alienada, a menos politizada, a subcultura contempornea ou

    qualquer outra ofensa vinda do asfalto, involuntariamente conseguiu um case fascinante (sejamos publicitrios aqui, temos um belo case em mos). Talvez essa

    mesma massa nem tenha se dado conta disso, mas exps de uma maneira exemplar

    toda a segregao, o racismo e o medo (dos burgueses), fazendo apenas o que a

    publicidade e os meios de comunicao ordenam que faa todo dia: consuma e se

    exiba. (Emicida, 31/01/201411

    )

    A conjugao de consumo e presena pode ser uma das chaves da ocupao dos jovens

    e, ao mesmo tempo, elabora a forma com que a msica tem sido um dos artefatos de

    enfrentamento (e conciliao) mais eficazes e amplamente difundidos. Presena, incmodo e

    enfrentamento processados preferencialmente em ritmo de funk.

    3. O incmodo do funk

    Na votao que aprovou na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro a lei estadual n.

    5543, que define o funk como movimento cultural e musical de carter popular (conhecida

    como Lei do Funk), o antroplogo Hermano Vianna disse no conhecer registro de

    represso to violenta contra qualquer outra manifestao cultural festiva de qualquer outro

    lugar do mundo (Vianna, 15/8/200912).

    Talvez haja uma certa dose de exagero na afirmativa de Vianna, mas possvel afirmar

    que, pelo menos em contexto recente, o funk se tornou um gnero-smbolo de uma certa

    tenso social, tnica e poltica. O prprio texto da lei uma pea retrica que fala sobre essa

    tenso ao excluir da regra contedos que faam apologia ao crime (artigo 1., pargrafo

    nico), assim como designar que os assuntos relativos ao funk devero, prioritariamente, ser

    tratados pelos rgos do Estado relacionados cultura (artigo 3, grifo meu). O subtexto ,

    obviamente, uma tentativa de retirar o funk do universo policial e posicion-lo como prtica

    cultural legtima. Reafirmando que os artistas de funk devem ser respeitados (artigo 5.) e

    proibindo a discriminao e o preconceito contra o funk (artigo 4.), a lei acaba evidenciando

    o incmodo causado pelo gnero. O mal estar causado pelo funk no novidade.

    Em trabalho referencial sobre o funk e o hip hop, Micael Herschmann afirma que os

    eventos conhecidos como arrastes no vero de 1992/1993 instauraram um divisor de

    11 Pelo telefone, deixa isso pra l... pela intimao. Revista Piau, 31/01/2014, edio 88.

    12 Disponvel em http://www.youtube.com/watch?v=KABnv7GBK8I (Acesso: 15/02/2014)

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    guas para os gneros. A partir daquele momento, com intensa veiculao na mdia, ambos

    adquirem uma nova dimenso, colocando em discusso o lugar do pobre no debate poltico e

    intelectual do pas (2005: 19. grifo original). O funk um gnero associado violncia que

    estigmatiza o outro jovem, negro e perifrico. Em sua pesquisa, realizada na dcada de

    1990, Herschmann constata que

    a partir de 1992 o termo funkeiro substitui o termo pivete, passando a ser utilizado emblematicamente na enunciao jornalstica como forma de designar a

    juventude perigosa das favelas e periferias da cidade. (...) Mesmo o termo arrasto, que surgiu na mdia, entre 1989 e 1990, associado ao de pivetes e de alguns grupos urbanos, encontra-se hoje, fortemente relacionado ao universo funk.

    (Herschmann, 2005: 69).

    Curiosamente, as palavras arrasto e funkeiro iriam ressurgir duas dcadas depois

    nas notcias sobre o primeiro rolezinho veiculadas no telejornal local de So Paulo. Desde o

    incio da dcada de 1990, a enorme produo de material negativo produzido pelos veculos

    de mdia sobre o funk termina, contudo, ampliando sua divulgao para o conjunto da

    populao, fazendo paradoxalmente surgir um movimento de valorizao de sua esttica.

    Assim, correlato ao processo de demonizao do funk operado pela mdia (sobretudo

    imprensa e tv) pode-se perceber uma glamourizao do gnero (os termos so de

    Herschmann 2005), que, aos poucos, o torna fato conhecido e reconhecido do contexto

    musical da cidade do Rio de Janeiro.

    Por outro lado os movimentos de valorizao no anulam a represso ao funk. A

    implementao de Unidades de Polcia Pacificadora nas favelas cariocas a partir de 2008

    explicitou novamente o enorme preconceito que circunda o funk. Em todas as UPPs, uma das

    primeiras providncias tomadas pelos comandantes locais a proibio do funk (tanto dos

    bailes quanto tambm a execuo pblica em bares ou mesmo na porta de casa), fato que gera

    revolta entre os moradores jovens por aniquilar parte importante de seu repertrio e

    atividades de lazer preferidas (Burgos et. al, 2012: 68). As arbitrariedades dos comandantes

    das UPPs so engrenagens de um amplo processo de criminalizao do funk (Lopes e Facina,

    2012: 197), que acompanham o gnero desde o incio da dcada de 1990.

    Mas atualmente falar em funk no sinnimo de falar no Rio de Janeiro e em suas

    particularidades geogrficas, sociais e policiais. Se o funk esteve historicamente vinculado

    favelas do Rio, o fenmeno do funk ostentao paulista inaugurou uma outra vertente de

    grande repercusso. A novidade do funk ostentao, alm de sua origem geogrfica, a

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    nfase no consumo de luxo tematizada nas letras e no visual de seus principais artistas, como

    o astro MC Guim da capa da Veja. Seu maior sucesso (43 milhes de acessos no Youtube),

    a msica Plaque de 10013, na qual a riqueza masculina permite ao personagem da cano

    conquistar as melhores gatas no baile funk. O dinheiro, o carro e as mulheres so os objetos

    de sua ostentao.

    Contando os plaque de 100, dentro de um Citron

    Ai ns convida, porque sabe que elas vm

    De transporte ns t bem, de Hornet ou 1100

    Kawasaky, tem Bandit, RR tem tambm

    A vertente ostentao est relacionada a determinados valores veiculados diariamente

    pela publicidade de modo cru e hiperblico. Em quase todas as canes, o modelo

    conservador de conquistas amorosas e financeiras enaltecido de maneira direta, sempre com

    o personagem masculino ostentando e as mulheres em volta, se beneficiando atravs de sua

    beleza fsica, das benesses materiais providas pelo homem. Em termos de relao de gnero,

    a ostentao um exacerbao contundente de um machismo capitalista explcito, eu absorve

    sem ressalvas ou sutilezas os apelos de consumo. Porm, essa leitura no pode ignorar o fato

    de que pelo consumo que os pobres costumam ser desqualificados. Ento o que ocorre

    simultaneamente um movimento de resposta histrica negativizao do popular.

    Ostentar, segundo o Dicionrio Houaiss significa exibir algo a outrem de modo

    intencionalmente hostil; estampar, pavonear, vangloriar. O ostentador aquele que

    demonstra prepotncia ou vaidade. De modo bastante direto, os MCs do funk ostentao

    direcionam essa hostilidade prepotente aos setores de maior poder aquisitivo da populao,

    utilizando agressivamente os mesmos elementos que sempre desqualificaram os pobres. Se

    o problema a falta de bens materiais, o funk ostentao responde com excesso deles, se a

    falta de dinheiro para comprar bens simblicos, a vertente ostentatria exibe a abundncia.

    Por um lado, o funk no rolezinho, no nibus ou amplificado em carros, bares e festas

    tem uma funo clara de reforar um pertencimento coletivo. Tem uma fora que convoca

    para a afirmao de um compartilhamento de posies culturais, ideias e pensamentos sobre

    msica e sociedade. Por outro, o funk que transcende os lugares e os indivduos que aderem a

    ele voluntariamente funciona tambm como dispositivo de presena e incmodo. Sua histria

    13 Disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=gyXkaO0DxB8 (Acesso: 21/01/2014).

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    associada a contextos perifricos, suas desqualificaes constantes e at a perseguio

    policial a seus bailes constroem uma atmosfera litigiosa na qual a simples execuo pblica

    do funk se torna uma ao de enfrentamento. O funk se torna, assim, msica de protesto,

    msica para mobilizar, msica para deslocar, para incomodar.

    4. A sonoridade e o volume do incmodo

    A vinculao do funk com o universo jovem, perifrico e popular , sem dvida, um

    dos elementos fundamentais de seu rechao, represso e desqualificao na esfera pblica.

    Mas no devemos desprezar o aspecto propriamente sonoro de sua constituio como gnero

    musical. claro que no estou querendo corroborar nem identificar causas acsticas da

    rejeio ao funk numa relao simplista, mas no creio tampouco que as caractersticas

    propriamente sonoras dos gneros musicais sejam irrelevantes para sua circulao social e os

    juzos elaborados sobre eles. No caso do funk em particular, elas so cruciais.

    Como se sabe, o funk uma apropriao brasileira do rap norte-americano, elaborada

    em bailes black de subrbios e favelas durante as dcadas de 1970 e 1980 (Essinger 2005).

    Sua esttica reside fundamentalmente da combinao sonora de uma base eletrnica (sempre

    adaptada s novidades tecnolgicas de cada momento) e um canto-falado que se sobrepe a

    ela. Sendo uma prtica musical cuja sonoridade advm de mquinas ou aparelhos

    reprodutores (HDs, mesas de som, baterias eletrnicas, samplers, etc.), o funk torna-se alvo

    de ataques estticos por sua falta de autenticidade (Negus, 2011: 28), mas ao mesmo tempo

    conquista espao como prtica de msica eletrnica no contexto indie internacional.

    Enquanto primeiro gnero brasileiro de msica eletrnica danante (Palombini, 2009:50), a

    sonoridade eletrnica confere alguma legitimidade ao gnero, ao mesmo tempo em que

    permite uma ampliao de sua circulao pelo mundo (S, 2007: 15).

    Porm, talvez o aspecto mais notadamente incmodo do funk a elaborao de

    parmetros musicais distintos dos modelos consagrados da msica popular mundial. O canto

    falado inverte a valorizao da melodia sobre a letra e entorta os critrios de avaliao da

    qualidade dos cantores. Mais do que capazes de sustentar notas em alturas definidas, os MCs

    so avaliados por sua entoao rtmica e seu desempenho performtico. Um canto composto

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    por oscilaes na afinao tonal das notas e mais nfase na oralidade da narrativa, explorando

    um fraseado baseado na repetio de determinadas alturas (notas) entoado com um timbre

    anasalado, como se o cantor estivesse empurrando as slabas para frente, exagerando nos

    movimentos labiais e produzindo uma msica que parece deslocar o ouvinte. A esse canto em

    regio mdia-aguda da voz, corresponde todo um gestual performtico e sonoro que flerta e

    se inspira na cultura do hip hop, do break e dos chamados b-boys (Herschmann, 2005: 20).

    Menos prolongamentos de vogais e mais exploso de consoantes (Tatit, 1996) para construir

    um texto afirmativo e direto, que apresentam uma sexualidade ativa, duplos sentidos e jogos

    silbicos irnicos ou debochados.

    No final dos anos 1990, a proximidade de integrantes do trfico de drogas com o

    repertrio e a circulao dos chamados proibides inaugura a temtica da ilegalidade, da

    apologia s armas, s drogas e violncia temas que matizam a ressalva do pargrafo

    nico, artigo primeiro, da Lei do Funk. O contedo das letras do funk apresentados no estilo

    interpretativo prprio so ingredientes sonoros e semnticos que materializam

    enfrentamentos estticos e morais. O tipo de afinao dos MCs ao entoar as msicas se afasta

    de modelos convencionais de afinao tonal na msica pop, assim como a quase ausncia de

    acompanhamento harmnico e as batidas des-humanas dos aparelhos percussivos

    eletrnicos configuram uma sonoridade propositadamente crua e spera, vetor de enunciao

    de suas letras provocativas. Ainda que haja um movimento constante de apresentar um

    discurso de paz e de orgulho das suas comunidades (o Rap da Felicidade um exemplo

    emblemtico) (S, 2008: 236), a sonoridade do funk continua sendo ouvida fora dos

    contextos dos bailes com estranhamento e desagrado.

    O tom latentemente agressivo dessa sonoridade do funk apresenta ainda outro

    ingrediente fundamental: o alto volume da pista de dana. Funk msica para se ouvir no

    baile e em aparelhos de som potentes e imponentes. No texto da contracapa do LP da Furaco

    2000, de 1978 (!), Rmulo Costa, dono da famosa equipe, apresentava sua fora:

    So 50 caixas de som em suspenso acstica, 8 caixas de som para acstica, mesa

    de som com 19 canais, cmara de eco para efeitos especiais, 16 amplificadores

    transistorizados de 250 watts cada, sofisticado sistema de iluminao que vai das

    luzes rtmicas s cadavricas (...) (Rmulo Costa, citado em Essinger, 2005: 27).

    Pensar na potncia do equipamento de som significa refletir sobre o valor da

    intensidade. Em seu inspirado livro O som e o sentido, no qual discute o que chama de fsica

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    e metafsica do som, Jos Miguel Wisnik fornece uma descrio sobre a relao entre o

    poder da msica e o parmetro sonoro da intensidade.

    A intensidade uma informao sobre um certo grau de energia da fonte sonora.

    Sua conotao primeira, isto , a sua semntica bsica, est ligada justamente a

    estados de excitao energtica, (...). O som que decresce em intensidade pode

    remeter tanto fraqueza e debilitao, que teria o silncio como morte, ou

    extrema sutileza do extremamente vivo (...). O crescendo ou fortssimo podem

    evocar, por sua vez, um jorro de exploso protenica e vital emanando da fonte, ou a

    exploso mortfera do rudo como destruio, como desmanche de informaes

    vitais. (Wisnik, 1999: 25).

    O conjunto de metforas empregadas pelo autor para definir variaes de intensidade

    (que fundamentalmente gravitam em torno das ideias de vida e morte) bastante ilustrativo

    do potencial dramtico do volume como elemento sonoro-musical. A percepo humana do

    som processada atravs de condicionantes biolgicos que matizam nossas referncias de

    fora, altura e intensidade. Somos capazes de ouvir como som determinadas frequncias e

    no outras e de classificar e responder fisicamente a esses estmulos em relao direta com a

    extenso de nossa capacidade de escuta. Com o alto volume, o corpo responde de modo mais

    imediato sobretudo s frequncias graves. Em instigante texto sobre o uso de frequncias

    graves na msica atual, Vinicius Pereira e Jos Claudio Castanheira afirmam que

    a cultura contempornea sempre pensada a partir das suas mediaes tecnolgicas estimula modelos de audibilidades que requerem, cada vez mais, sons intensos, valorizando, consequentemente, sons graves, sons que exigem e emanam mais

    energia fsica para a sua efetivao como experincia acstica. (2011: 131).

    A propaganda do equipamento da Furaco 2000 um dos elementos de valorizao do

    baile e um dos ingredientes do sucesso da festa. Som em alto volume e potncia para uma

    msica afirmativa, contempornea e inovadora, capaz de catalisar jovens das favelas e

    subrbios e de espantar a cidade da zona sul.

    evidente, contudo, que o alto som e a esttica de canto do funk no so incmodos, a

    princpio, para os frequentadores dos bailes ou os admiradores do funk fora deles. O alto

    volume do funk manifesta um sentimento de presena e pertencimento de um grupo

    populacional constantemente segregado de acessos variados a espaos de circulao,

    visibilidade e relevncia social. Contando plaques de 100 em carros carssimos e aparelhos de

    som potentes, admiradores do funk ultrapassam o espao sonoro e invadem o ambiente com

    uma esttica peculiar e agressiva. Nesse sentido, tanto faz se o aparelho reprodutor um

    singelo telefone celular numa viagem de nibus ou um equipamento instalado num carro

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    estacionado em um posto de gasolina ou parado num sinal de trnsito. O que importa que o

    som ultrapassa seu ambiente de origem para ocupar o espao sonoro alheio, provocando sua

    presena, incomodando. A atitude de ouvir som alto e, sobretudo de ouvir funk alto uma

    atitude de enfrentamento, que pode ser extremamente desagradvel e por isso potencialmente

    eficaz.

    5. Rolezinho de sada: um toque pessoal

    Os discursos sobre o popular na msica costumam ser muito polarizados. De um

    lado, detratores das msicas de massa exibem uma condenao esttica, tica e poltica

    primria que nega qualquer valor dos repertrios identificados com os subrbios, morros e

    periferias. Segundo essas narrativas, as msicas propriamente populares so resultado da falta

    de informao e educao do povo e deveriam ser desestimuladas por representarem

    valores moralmente condenveis e elementos expressivos de baixa qualidade. Ouvem tais

    repertrios como representaes de msicas de pobres e esteticamente pobres (Vila e

    Semn, 2011: 11). No extremo oposto, diversos intelectuais ligados pesquisa acadmica na

    rea de Humanas buscam identificar elementos de valorizao das prticas populares,

    entendidas como expresses de realidades vividas pelos pobres e dignas, portanto, de

    respeito esttico. Tais textos tendem a mitificar e vitimizar os protagonistas e criadores

    dessas msicas, protegendo-os das crticas e enaltecendo sua criatividade e outros elementos

    de valorizao esttica.

    Apesar de evitar absorver essa abordagem dicotmica de modo estrito, devo confessar

    que tenho uma tendncia a me identificar mais com esse segundo grupo. De fato, o

    reconhecimento da relevncia social e esttica das prticas musicais elaboradas por pessoas

    de menor poder aquisitivo vem acompanhando meu trabalho como um ponto de partida

    inegocivel. Mais do que isso, minha avaliao positiva sobre boa parte dos repertrios

    violentamente atacados pela crtica musical integra um jogo poltico de valorizao da

    heterogeneidade dos parmetros de qualidade musical compartilhados pela sociedade.

    Contudo, necessrio identificar que esse conjunto de msicas no uniforme nem

    isento de conflitos, como aponta sabiamente Stuart Hall quando reivindica a pluralidade do

    popular (Hall, 2003: 255). Entendendo a msica como uma forma de pensamento e ao no

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    mundo (Blacking, 1995), no possvel fugir das tenses geradas por repertrios e usos

    musicais radicalmente distintos de meu circuito cultural. Ao debruar-me sobre o repertrio

    do funk e a gigantesca produo discursiva sobre ele associado aos rolezinhos e aos pobres

    em geral, encontro-me com um repertrio incmodo. Incomoda-me a falta de rigor na

    afinao dos MCs, o contedo de algumas letras moralmente discutveis segundo meus

    valores e a vinculao do funk com um ambiente violento (ainda que tenha pleno

    conhecimento que isso no ocorre em todos os bailes e favelas). Incomoda-me o tom

    agressivo do canto, do gestual e a posio de enfrentamento de seus principais atores. O funk

    do nibus me incomoda mais do que na festa do vizinho, mas em ambos a invaso sonora

    perturba minha viagem e meu sossego domstico. Incomoda-me porque , em parte, feito

    para me incomodar. E sobre isso necessrio refletir bem mais do que cabe em um artigo

    acadmico. reflexo, talvez, para toda a vida.

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