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www.franklingoldgrub.com A Metáfora Opaca - franklin goldgrub 1º capítulo - (texto parcial) O oráculo e a esfinge Assim, o analista que evocasse a situação analítica como algo de real e falasse do amor de sua paciente como alguma coisa ilusória não teria muita autoridade, justamente no momento em que acreditava exercê-la (...) (...) o amor de transferência é, além do mais, um sintoma como qualquer outro, e será preciso admitir, então, que os sintomas são mais ou menos 'normais' .[1] Mais do que as divergências teóricas, o principal indício da diversidade de abordagens psicanalíticas é a ausência de consenso metodológico. Apesar disso, os autores que se dedicam ao tema, não importa sua filiação (kleiniana, lacaniana, "ortodoxa"), jamais deixam de apontar a transferência como o principal diferencial da intervenção psicanalítica em relação às outras modalidades psicoterápicas. Em compensação, o próprio conceito de transferência varia conforme o enfoque teórico. A ótica lacaniana apresenta o analisando

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A Metáfora Opaca -

franklin goldgrub

 1º capítulo - (texto parcial)

O oráculo e a esfinge

Assim, o analista que evocasse a situação analítica como algo de real e

falasse do amor de sua paciente como alguma coisa ilusória não teria

muita autoridade, justamente no momento em que acreditava exercê-la

(...)

(...) o amor de transferência é, além do mais, um sintoma como qualquer

outro, e será preciso admitir, então, que os sintomas são mais ou menos

'normais' .[1]

Mais do que as divergências teóricas, o principal indício da diversidade de

abordagens psicanalíticas é a ausência de consenso metodológico.

Apesar disso, os autores que se dedicam ao tema, não importa sua

filiação (kleiniana, lacaniana, "ortodoxa"), jamais deixam de apontar a

transferência como o principal diferencial da intervenção psicanalítica em

relação às outras modalidades psicoterápicas.

         Em compensação, o próprio conceito de transferência varia

conforme o enfoque teórico. A ótica lacaniana apresenta o analisando

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como um pirata intelectual cuja intenção, mais do que a transformação

pessoal, é apropriar-se do saber que atribui ao psicanalista. Os kleinianos

exumam as emoções arcaicas de que acreditam ser alvo enquanto os

freudianos, por sua vez, procuram enquadrar as manifestações afetivas do

paciente nos vértices do triângulo edipiano.

         Tais diferenças, porém,  não alteram o fato de que todas as

correntes compartilham do mesmo pressuposto. Os sentimentos dirigidos

ao analista prevalecem sobre qualquer outro tema na abordagem padrão

da psicanálise contemporânea. A descoberta do fenômeno transferencial,

feita por Freud a partir de uma reflexão retrospectiva sobre o caso Dora

[2], integrou ao âmbito da intervenção clínica falas até então tidas como

extrínsecas ao tratamento, porque diziam respeito a questões factuais,

contratuais e... a um inesperado interesse do divã pela poltrona.

É comum que o paciente inicie sua incursão "extra-muros" fazendo

perguntas teóricas ou metodológicas. Não raro pretende discutir, durante

a própria sessão, mudanças de horário e preço, bem como reposições e

arranjos de férias.  A tentativa de mesclar o processo analítico com o que

poderia parecer uma temática extrínseca costumeiramente precede a

intensificação de expectativas referentes a um contato mais pessoal.

         Até perceber que essas atitudes inocentes transportavam

mercadoria contrabandeada, digna da maior atenção, Freud considerava

como material legítimo da alfândega psicanalítica apenas as queixas,

relatos sobre a vida afetiva, descrições de sintomas e conflitos, fantasias

sexuais, recordações de infância, sonhos e atos falhos. A extensão da

escuta rigorosa a todo e qualquer conteúdo representa uma aplicação

coerente dos conceitos associação livre e atenção flutuante, pilares do

método psicanalítico.

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Como se sabe, a regra fundamental existe para ser transgredida. Em

relação aos pacientes, os silêncios, atrasos, faltas, atuações  e  falas

truncadas são perfeitamente compreensíveis - a resistência foi uma das

primeiras evidências com que Freud se deparou.  Quanto aos

psicanalistas, a tendência a hierarquizar e priorizar determinados temas,

em obediência a esta ou aquela concepção teórica, carece de qualquer

justificativa. Se no momento de sua descoberta a transferência

representou um avanço metodológico considerável na medida em que

resultou na inclusão de todo e qualquer conteúdo no âmbito da

associação livre, sua hipertrofia levou à situação exatamente oposta. Hoje,

o interesse quase exclusivo pelas expectativas afetivas do paciente detém

a principal quota de responsabilidade pela transformação do divã no

proverbial leito de Procusto. 

Em seus primórdios, a psicanálise seguia o modelo médico tradicional,

que distinguia ciosamente o joio (contato pessoal) do trigo (dados

clínicos). (A posterior valorização do rapport relativiza mas não elimina

essa distinção, que permanece vigente em medicina). Quanto à

psicanálise, na medida em que a fantasia, em sua concepção inicial, era

concebida como deformação das recordações infantis, os relatos de

eventos transcorridos no presente eram considerados de menor interesse,

porque "lógicos" e "objetivos". Graças à escuta da transferência é que

puderam ser incorporados à jurisdição da clínica. Daí em diante o

interesse deslocou-se não só do passado para o presente mas também,

algo menos notado, do discurso para a afetividade. Essa dupla

perspectiva passou a guiar a compreensão do material associativo. Em

acréscimo, quando o enfrentamento da resistência tornou-se prioridade

máxima, a transferência adquiriu importância ainda maior visto que Freud

não tardou em reconhecê-la como a mais significativa das defesas.

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Quando o passado era o objeto por excelência da escuta psicanalítica, as

manifestações transferenciais, contemporâneas do tratamento, portanto

"reais"  e atuais, se afiguraram como obstáculo aparentemente

intransponível. Pareciam inviabilizar o processo psicanalítico da mesma

forma que o grito de incêndio esvazia os teatros, segundo uma

comparação sugestiva feita pelo próprio Freud.

Uma vez entendida como radiografia do padrão emocional, a

transferência começa sua ascensão irresistível ao zênite do firmamento

metodológico, na qualidade de objeto principal (e na perspectiva kleiniana

talvez único) da intervenção clínica. A confiabilidade dos relatos acerca da

infância havia sido abalada pela descoberta das distorções da memória, a

que se deu o nome de fantasia.[3] Considerou-se então que seria possível

deduzir as vivências infantis das modalidades de vínculo estabelecidas

entre os ocupantes do divã e da poltrona. Os psicanalistas kleinianos

promoveram a transferência ao duplo estatuto de objeto e instrumento da

prática clínica. Desenvolveu-se uma nova  atitude metodológica, a de

identificar os próprios sentimentos, entendidos como reativos, para

melhor auscultar os do paciente. 

Assim descrita, a transferência parece permitir acesso ao que há de mais

concreto na situação clínica e de mais recôndito na afetividade do

paciente - a matriz da afetividade, construída na primeira infância. Com

efeito, se a descoberta da fantasia aproximou acontecimento e ficção a

ponto de torná-los indiscerníveis,  os sentimentos aferíveis no hic et nunc

da sessão devolvem ao psicanalista a segurança de estar diante da

realidade, com a vantagem suplementar de permitir-lhe sondar

diretamente, em carne e osso,  o padrão de relacionamento afetivo

governado pelas vivências primárias.

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Entretanto, se a indagação acerca das emoções transferenciais amplia a

jurisdição da associação livre, por outro lado resulta numa escuta seletiva

que colide com a atenção flutuante.

         O modelo clínico fundado na análise da transferência

consubstanciou-se numa prática freqüentemente padronizada, visto que

guiada por conceitos teóricos. O psicanalista equipado com o contador

Geiger transferencial tende a desconsiderar o sentido subjacente às

associações livres e se concentra no objetivo de conhecer as causas do

conflito, supostamente situadas na infância. Acredita que o mapeamento

dos sentimentos transferenciais permitirá compreender as relações

objetais do paciente mediante a identificação de suas origens.

O questionamento dessa atitude soará como uma heresia para aqueles

que se mantêm fiéis ao modelo médico. Todavia, não é difícil perceber

que a preocupação com a etiologia e o diagnóstico insufla nova vida ao

conceito de realidade material, incompatível com a interpretação, cujo

objeto é o discurso, ou seja, a realidade psíquica. Possivelmente esse

estado de coisas resulta de que a interrogação sobre o sentido, proposta

metodológica de A Interpretação dos Sonhos, não foi estendida a

conteúdos não oníricos. Se, como observa Octave Mannoni, a

interpretação é o ato pelo qual se reconhece o psicanalista, a psicanálise

pós-freudiana (quer kleiniana, lacaniana ou de qualquer outra extração),

parece convencida de que se deve "ir além" da associação livre e

empenha seus esforços em descobrir esse "plus". A psicanálise pós-

interpretativa se transforma numa "pós-psicanálise".

Cabe suspeitar, porém, que a renúncia à interpretação deve-se sobretudo

à falta de compreensão e conhecimento, que por sua vez decorre da

inexistência de uma teoria do método.

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         Interpretação e transferência no caso Dora

O caso Dora inspirou numerosas reflexões, tanto teóricas como

metodológicas.  Deste último ponto de vista, parece ter tido a função de

demonstrar que o psicanalista não pode restringir-se a interpretar as

associações mas precisa manter-se atento sobretudo àqueles aspectos

da fala do paciente que tem por referência a própria situação terapêutica. 

Foi à desatenção com os sentimentos da jovem em relação a ele - bem

como a um possível erro de interpretação[4] - que Freud atribuiu a

interrupção do tratamento.

Temos assim duas explicações para o fim precoce da análise de Dora. Em

vias de enamorar-se pelo analista, na esteira de sua relação com o sr. K.,

Dora deixou o divã no intuito de preservar a paixão infantil pelo pai ou,

bem diferentemente, para evitar saber a respeito de seus sentimentos

pela senhora K. (A última hipótese postula a identificação de Dora com o

pai, amante da Sra. K.).[5]

Os dois sonhos de Dora manifestam sua recusa em deixar a redoma

familiar. No primeiro, o perigo representado pela relação com o casal K. é

metaforizado pelo incêndio do chalé e no segundo o interesse pelo

casamento (a cidade desconhecida onde ela vagueia) é interrompido pela

urgência de retornar a Viena (à relação com o pai).

Freud parece ter extraído da análise de Dora a lição de que interpretar é

insuficiente para vencer a resistência. O surpreendente é que, apesar

disso,  a redação do caso foi empreendida com a finalidade explícita de

exemplificar o papel da interpretação de sonhos no procedimento clínico,

a ponto de poder ser considerado um apêndice ao famoso livro de 1900.

A hesitação entre interpretar ou ficar à espreita da transferência, questão

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que nasce com Dora, retrata não apenas a dificuldade específica desse

caso mas um impasse não solucionado que perdura na psicanálise

contemporânea.

Lacan observou que a resistência ao tratamento é sempre a resistência do

psicanalista. Que o paciente freqüentemente "nada queira saber" é

bastante compreensível (a resistência é legítima e faz parte da situação). A

contra-transferência do analista  costuma manifestar-se simultaneamente

pelo "querer saber" e pelo "querer curar".

A "recusa em expor-se" pode ser descrita, em termos genéricos, como

um pedido de amor (daí a postura do psicanalista ser julgada fria e

distante), que ao não ser atendido pode transformar-se em hostilidade.  O

apelo afetivo tem várias acepções: proteção, amizade, preferência,

cooperação, aconselhamento, orientação, ajuda, cumplicidade e inclusive

amor no sentido comum da palavra. Em última instância significa: "Aceite-

me como sou, não exija que eu me transforme".

A contra-transferência como resistência do analista está presente no caso

Dora. A herança médica de Freud não poderia deixar de manifestar-se

dessa forma. O desejo de curar e a preocupação em demonstrar a

cientificidade da psicanálise o impeliam nessa direção. O querer-saber

refere-se à causalidade imediata (quem é o verdadeiro objeto da paixão

reprimida?) e o querer-curar tem por matriz a suposição etiológica de que

Dora sofria de uma ligação excessiva ao pai. Esta, portanto, deveria ser

combatida. Freud, em conseqüência, exibe uma empenhada militância

anti-edipiana e procura convencer a moça de que ela está enamorada do

marido da amante do pai, sentimento que em parte colide e em parte

deriva de sua paixão infantil - mas que, em todo caso, parece-lhe menos

"grave".

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 Quando Dora deixa a análise, Freud faz a pergunta que desde então será

repetida muitas vezes pelos psicanalistas: "Onde foi que eu errei"?[6]

Conjectura então que o objeto do amor secreto, causa do conflito, não

era o senhor K. mas sua esposa. A metodologia não é questionada; Freud

acredita ter cometido apenas um erro de atribuição. Lacan, ao debruçar-

se sobre a questão, concorda com a auto-crítica freudiana. Para ele,

Dora, como boa histérica, ama a Sra. K.  Essas suposições mostram a

adesão de ambos, Freud e Lacan, a uma concepção clínica

diagnosticante. O conflito de Dora resultaria quer da ligação ao pai quer

da identificação com ele, e se expressaria pelo desejo e pela recusa

simultâneos de um(a) substituto(a)  da figura paterna.

A hipótese não deixa de ser plausível em termos de atribuição causal

tendo em vista a "realidade" dos sentimentos de Dora. O problema é que

se trata de algo irrelevante. Pois cabe perguntar se pertence ao escopo

de uma análise estabelecer a quem se dirige tal ou qual sentimento

recalcado. Se a resposta for afirmativa, ela inclui a suposição que as

associações livres serviriam como pistas para identificar o "verdadeiro"

padrão afetivo.

Algo bem diferente resulta da concepção de que as associações livres

constituem o conteúdo manifesto de um sentido específico a ser

desvendado em cada ocasião. Nessa perspectiva não se trataria de saber

quais são os "verdadeiros sentimentos"[7] de quem se analisa mas, bem

diferentemente, que sentido subjaz ao que se manifestou na "sessão" em

questão.

"Recomendações aos médicos que praticam a psicanálise"[8], um dos

artigos sobre técnica, publicado sete anos depois, preconiza uma postura

clínica que a psicanálise contemporânea parece ter abandonado.

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Enquanto o trabalho está em andamento, escreve Freud, o psicanalista

deve abster-se de construir hipóteses abrangentes, evitando avaliações e

prognósticos.[9] Em Dora, Freud ainda aderia à atitude médica por

excelência; a insistência em fazer com que a paciente admita seu amor

pelo Sr. K. lembra um xarope empurrado goela abaixo. O procedimento

não parece muito adequado,  principalmente quando a própria transcrição

das sessões revela um material (o segundo sonho, por exemplo) bem

mais rico.

Pode-se dizer que Freud, acreditando ter chegado ao âmago do conflito,

impõe o seu saber como uma espécie de remédio que a paciente deve

aceitar para curar-se. Priva-se assim de entrar em contato com a

especificidade de cada sessão, concedendo mão preferencial à hipótese

genérica. Supor que houve um erro (a Sra. K. é que seria o verdadeiro

alvo da paixão proibida) apenas altera o diagnóstico e deixa intacta a

atitude.

A plausibilidade da hipótese genérica não esgota a compreensão do

conflito. Duas observações podem ser feitas a esse respeito:

primeiramente, a ligação ao pai talvez seja uma metáfora representando a

identidade de filha, que Dora tem dificuldade em abandonar; por outro

lado , os sentimentos dirigidos ao Sr. K. (e/ou à Sra. K.) servem de

metáfora à identidade feminina. Em pleno conflito, Dora não adere nem

renuncia plenamente a qualquer dessas posições.

Tais raciocínios não pretendem ampliar ou substituir os diagnósticos de

Freud e Lacan. Visam assinalar que a causa, em psicanálise,  somente

pode ser concebida genericamente - e conseqüentemente seu valor

clínico é nulo. O conflito entre infantilidade e condição adulta constitui o

conflito por excelência[10].

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Trata-se de uma afirmação aplicável, na perspectiva psicanalítica, ao

conjunto dos seres humanos. Mas, por outro lado, suas manifestações se

revestem de características absolutamente singulares, que é o que

interessa ao trabalho clínico. Em decorrência, cabe reconhecer que o

material de cada sessão é único.

A noção de repetição, muito difundida em psicanálise, refere-se sempre

ao conteúdo manifesto e reflete muito mais o desejo de saber do analista

bem como a correspondente dificuldade de ouvir sem preconceitos.  O

método psicanalítico se destina a captar a especificidade de cada

conjunto de associações livres, para o que faz-se preciso renunciar à

pretensão de qualquer expectativa prévia, tanto por motivos práticos

como éticos.[11] 

Cabe perguntar a que descoberta se consagra o método. Os adeptos da

análise de transferência apontariam os sentimentos e emoções arcaicos

como alvo privilegiado da escuta, que se assemelharia assim a uma

prática pedagógica dedicada à superação dos resíduos infantis.[12] Para

tanto seria necessário enfrentar as defesas que, a pretexto de preservar

uma auto-imagem favorável, protegem a autonomia dos feudos edipianos

ou pré-edipianos face aos decretos do eu adulto. Uma a uma as

máscaras de uma maturidade falsa ou incompleta deveriam ser retiradas

para aceder a essas regiões onde predomina a afetividade primária

caracterizada pelo maniqueísmo, a expectativa de amor incondicional, o

narcisismo, a onipotência, a desconsideração pelo desejo do outro, o

temor à rejeição, a angústia da separação, a ambivalência, a clivagem,

etc.

A referida enumeração e sua terminologia indicam por si sós o teor

moralizante dessa concepção, bem como a escala de valores subjacente.

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Trata-se de uma perspectiva que apenas substitui a postura religiosa

(condenação do prazer pecaminoso e preconização da virtude) pela

psiquiátrica (condenação da "infantilidade" e preconização da

"maturidade"). Como acontece com qualquer noção valorativa, não existe

definição consensual de 'prazer', 'maturidade',  'recalque, 'infantilidade'

ou 'perversão'. O psicanalista que adota esse enfoque acabará por

operacionalizá-lo mediante critérios pessoais.

O diagnóstico de sentimentos e atitudes se apóia numa perspectiva

teórica inspirada na medicina, pautada pelas noções de saúde (ou

"equilíbrio")  e doença  (ou "comprometimento"). Correspondentemente,

também visa a "cura" (por transformação da infantilidade em maturidade).

Como não ver nesses critérios a presença de uma contra-transferência

que, como se diz habitualmente da transferência, já está presente antes

do começo da análise? Não é de surpreender que, tratado como uma

criança, o ocupante do divã seja compelido à rebeldia e à submissão, ao

amor e ao ódio, à idealização e à projeção, à admiração e à decepção, à

proteção e ao abandono... Suplementarmente, o paciente é cientificado

que deixar de manifestar tais "emoções primárias" equivale a não se

envolver com o tratamento, resistir-lhe, sabotá-lo.

O fundamentalismo lacaniano

Foi reagindo a esse estado de coisas que Lacan redigiu sua catalinária "A

situação da psicanálise e a formação do psicanalista em 1956". O texto  é

cáustico em relação às diretrizes dos institutos de psicanálise,

responsáveis por práticas adaptacionistas e a conseqüente capitulação

perante preconceitos e valores morais extrínsecos às questões do

analisando. A essa denúncia da traição do pacto psicanalítico seguem-se

outras críticas, não menos veementes, de teor metodológico. Não é claro

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se os exemplos mencionados por Lacan traduzem idiossincrasias deste

ou daquele clínico ou se a invasão da prática por "técnicas" de intuição,

adivinhação, escuta literal e escuta com o 'terceiro ouvido'[13] refletem os

desvios da própria formação. Em todo caso atestam suficientemente as

falhas na transmissão da metodologia bem como uma política de laissez

faire. Para Lacan, quase duas décadas após a morte de Freud, a

psicanálise ingressara num processo de deterioração ética, teórica, 

metodológica e epistemológica.

A argumentação é extremamente convincente. Falta-lhe apenas a pá de

cal, ou seja, a comparação com uma atitude metodológica coerente, 

para estabelecer o contraste da maneira devida. Como Freud havia

legado exemplos práticos de interpretação mas não uma teoria do

método psicanalítico (apesar de ter formulado dois conceitos básicos,

associação livre e atenção flutuante), seria de se esperar que Lacan, sob o

lema do retorno a Freud, inaugurasse um trabalho de reflexão acerca da

prática freudiana. Não é o que acontece. Quando Lacan se refere às

intervenções de Freud, reconhece  a sagacidade, a sensibilidade e

sobretudo a ética do criador da psicanálise, mas diferentemente do que

aconteceu em relação à teoria, cuja inspiração se empenhou em

recuperar, ele não inquire a metodologia freudiana. Em decorrência, não

se encontra nos Escritos nem nos Seminários sequer o esboço de uma

teoria da interpretação. Tal omissão parece mostrar mais uma vez que

Lacan se sente muito mais à vontade no terreno da crítica, da denúncia, 

da desconstrução e do sarcasmo, onde seu talento é inegável.

Um especialista em demolições. Talvez a bandeira do retorno a Freud

tenha inibido a discussão de uma prática com a qual Lacan não

concordava - ou não concordava plenamente. Constrangimento? Seja

qual for o motivo, constata-se que, ao contrário do que aconteceu com os

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conceitos teóricos, examinados minuciosamente, é inútil vasculhar os

textos lacanianos em  busca de uma reflexão sistemática acerca da

'Deutung'.

A alternativa de percorrer vias indiretas tampouco remedia a situação.

Nesse caso, o mais aconselhável seria consultar os numerosos

comentários lacanianos sobre A Interpretação dos Sonhos, principal texto

metodológico de Freud[14]. Decerto Lacan se debruça sobre os sonhos

da injeção de Irma, da bela açougueira  e do filho que está sendo velado,

mas o que está em pauta pouco tem a ver com a discussão

metodológica. É principalmente à tradução dos mecanismos de

condensação e deslocamento pelos conceitos metáfora e metonímia,

inerente à preocupação de levar água ao moinho da definição lingüística

de inconsciente,  que suas incursões são consagradas. O

prosseguimento lógico desse esforço, ou seja, a definição da

interpretação como processo intrinsecamente discursivo, não é

empreendido.

Correspondentemente, na mesma época (final da década de 50), os

seminários e escritos passam a veicular cada vez mais freqüentemente o

termo significante, primeiramente como contrapartida lingüística e depois

substituto daquilo que os psicanalistas designam habitualmente por

"inconsciente". É difícil precisar quando a prática clínica lacaniana

promove o significante a objeto de intervenção, mas não deve estar muito

longe desse momento teórico. Tem-se a impressão que se na abordagem

kleiniana o crescente privilégio concedido à transferência acabou por

promover a contra-transferência à função de instrumento, ubiqüidade que

privilegia a afetividade em ambos os pólos da situação clínica, algo

semelhante ocorre com a noção de significante no campo lacaniano. O

discurso do analisando é decomposto em seus elementos mínimos,

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sobretudo fonológicos, operação que exige do analista uma intervenção

igualmente oracular, ou seja, esquiva à compreensão. Esta última é

desautorizada enquanto atitude pedagógica subserviente à consciência.

A celebração do significante, inconsciente feito verbo, e sua coroação

como conceito chave, se inscreve na adesão lacaniana ao estruturalismo,

seguindo a via traçada por Roman Jakobson e Claude Lévi-Strauss.  À

subversão da lingüistica por Saussure segue-se, meio século depois,  a

leitura subversiva do genebrino por Lacan. O signo saussureano é

focalizado com a lente da primeira tópica, de maneira a fazer prevalecer o

significante (inconsciente) sobre o significado (consciente), em seguida

redefinidos como simbólico e imaginário. Nesse momento a

argumentação corre paralela à fórmula epistemológica "o inconsciente

está estruturado como uma linguagem". Como matriz da linguagem, o

significante, emancipado das armadilhas do significado,  torna-se o

núcleo do inconsciente.   

Na esteira dessas reformulações Lacan enrigece a relação inconsciente/

consciência, subordinando ferreamente o imaginário ao simbólico. As

conseqüências na prática clínica serão consideráveis; tudo o que portar a

presença do significado será considerado espúrio. O significante, por seu

turno, concebido segundo o modelo do fonema, é designado pelo termo

letra, o que lhe assegura proteção face a toda e qualquer questionamento

proveniente da lingüística. O discurso, em vez de ser entendido como

efeito da articulação entre os níveis fonológico, morfológico, sintático e

semântico,  é definido como enunciado e nessa medida associado ao

significado. O pecado capital do discurso é o de situar-se na jurisdição da

consciência. A partir daí o destino da interpretação já está traçado.[15]

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A retomada da linguagem como objeto e instrumento da prática clínica,

longe de constituir um retorno ao Freud da associação livre e da atenção

flutuante, privilegia o fonema, átomo da linguagem e modelo da letra

lacaniana, encarnação viva do significante , logo do inconsciente[16].

Parece datar desse momento o descarte do discurso como objeto da

intervenção clínica. O lacanismo participa à sua maneira de um

movimento mais amplo que atravessa a psicanálise, cujo denominador

comum é o abandono do procedimento interpretativo formulado com

base no modelo metodológico da interpretação de sonhos. No caso

lacaniano, um dos indícios mais claros dessa escolha é a oposição

conceitual "palavra plena" / "palavra vazia", que do ponto de vista da regra

fundamental constitui um verdadeiro absurdo.

A interpretação cai em desgraça

Nem kleinianos nem lacanianos explicitam os motivos pelos quais o

discurso deva ser eclipsado pela transferência e pelo significante, mas não

é improvável que isso decorra da ausência de uma teoria dedicada à

compreensão da articulação entre manifestação e latência. A afirmação

pode surpreender, mas se A Interpretação dos Sonhos consta de

numerosos exemplos ilustrativos do método formado pelo par associação

livre/atenção flutuante, é preciso reconhecer, por outro lado,  que nem

nesse nem em qualquer outro texto de Freud se encontra  o equivalente a

uma reflexão sistemática sobre o método interpretativo e suas condições

de possibilidade. Além disso, e apesar de algumas passagens em que

Freud afirma que a interpretação de  sonhos constitui o modelo do próprio

método psicanalítico, a utilização do procedimento interpretativo em

relação a conteúdos não oníricos, mesmo se eventualmente praticada, 

jamais foi teorizada e sequer tematizada.

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Outra possível razão do abandono do método interpretativo já foi

mencionada. Trata-se da "lição" extraída do caso Dora: interpretar é

perigoso para a continuidade da análise.

Cabe acrescentar que O manejo da interpretação de sonhos em

psicanálise[17], graças a um possível mal-entendido, pode ter jogado a pá

de cal no túmulo da interpretação. Nesse artigo de 1911 Freud

recomenda não prosseguir em sessões posteriores a interpretação

incompleta de um sonho, dando mão preferencial à associação livre. Em

seu arrazoado ele adverte o psicanalista a não manifestar interesse

especial por sonhos, atitude que intensificaria a resistência, tornando as

charadas oníricas mais difíceis de lembrar e mais indecifráveis.

A argumentação em si é inquestionável. Contudo, na medida em que

Freud não preveniu contra possíveis mal-entendidos, tudo leva a crer que

o corolário, para muitos, foi o de que a própria interpretação (e não

apenas o interesse seletivo por sonhos) aumenta progressivamente as

dificuldades do trabalho terapêutico. O que, por outro lado, não deixa de

ser plausível: os progressos da análise, alcançados via interpretação,

costumam mobilizar a resistência, intensificada pelo catalisador

transferencial. Mas, se para evitar a resistência for necessário renunciar ao

avanço da análise...

"E, no entanto, a interpretação é o ato pelo qual se reconhece o analista;

podemos mesmo nos perguntar o que mais ele poderia fazer". Como diria

Pompeu[18], navegar é preciso. As associações livres que expressam a

resistência e a transferência permanecem tão metafóricas como qualquer

outro conteúdo discursivo e, nessa medida, igualmente interpretáveis.

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 Além disso, O manejo da interpretação de sonhos em psicanálise pode

dar a impressão de que o interesse pelo sonho se opõe à regra da

associação livre. Freud permaneceu, por iniciativa própria, analisando os

dois sonhos de Dora durante várias sessões seguidas. A responsabilidade

por esse deslize metodológico, porém,  não recai sobre o método

interpretativo. O erro consistiu em privilegiar determinado conteúdo (o

sonho), em detrimento da associação livre.

Como o procedimento interpretativo permaneceu indevidamente restrito

ao sonho, compartilhou seu destino, ou seja, a destituição do papel

central que até então ocupava na prática psicanalítica. É provável que O

manejo da interpretação de sonhos em psicanálise constitua o resultado

final (e paradoxal) da reflexão sobre o valor clínico da interpretação de

sonhos, ou seja, da interpretação propriamente dita. De certa maneira

representa o prosseguimento do mea culpa freudiano proferido por

ocasião da interrupção do tratamento de Dora. Em suma, a suspeição

que recaiu sobre o método interpretativo resulta da auditoria a que foi

submetido em virtude do insucesso da referida análise.

Entretanto, uma leitura atenta permite, como nos processos judiciais,

reabrir o caso. É possível que Dora tenha deixado tão rapidamente a

análise não em virtude dos "excessos interpretativos" mas justamente

porque Freud foi além da interpretação, dando mostras eloqüentes do que

ele mesmo denominaria posteriormente furor sanandis.

Nada disso, porém, foi discutido ou ventilado. Uma espécie de  decreto

administrativo, proferido sem alarde, faz a interpretação cair em desgraça.

Tão secreto foi o procedimento que ninguém parece ter-se dado conta,

nem os próprios protagonistas. Para isso contribuiu decisivamente o

prestígio do termo, que continuou a ser usado, mas para designar outras

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práticas. (Houve um rei sueco cujo cadáver foi mantido sobre o cavalo

para evitar que os inimigos, a quem inspirava terror, soubessem da sua

morte). 

Seria o caso de concluir que a reflexão retrospectiva sobre Dora modifica

as diretrizes metodológicas de Freud, transformando a interpretação em

procedimento estético mas ineficaz, espécie de "agente provocador" da

resistência? É muito provável. Sobretudo se introduzirmos a ressalva de

que a interpretação e o sonho mantiveram sua importância teórica como

demonstrações inexcedíveis da "outra cena", enquanto eram demitidos

silenciosamente da prática clínica. O sonho passa assim de "via real para

o inconsciente" a fenômeno perigosamente sedutor. Abria-se dessa

maneira o caminho para que a transferência herdasse do sonho a posição

de principal conteúdo a ser perscrutado.

A hierarquização de conteúdos não cessou de afirmar-se cada vez mais

na prática psicanalítica. Trata-se de uma atitude incompatível com a

associação livre e a atenção flutuante. Os respectivos efeitos serão

nefastos.  É lícito desconfiar que o anátema em relação à interpretação

tampouco é alheio à preocupação de manter o paciente em análise,

mediante a priorização do vínculo.

Exagero? Talvez. Mas há como que uma admissão disso na idéia - tão

comum entre psicanalistas - de que a motivação fundamental da

demanda por análise resulta mais da transferência do que da queixa.

Não que a transferência deixe de comparecer com o candidato na

primeira entrevista.  É óbvio que toda análise se funda numa expectativa

dirigida a seu praticante - mas o que acontece nesse momento inicial não

difere substancialmente do que ocorre em muitas outras relações

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profissionais. É no decorrer do processo que a transferência, na acepção

freudiana do termo, enquanto intensificação da resistência,  passa a

refletir a especificidade da situação analítica.

É difícil evitar a suspeita de que a hipertrofia da transferência aproxima a

psicanálise das práticas amparadas na sugestão. Isso não escapou a

Freud. Os textos Transferência e Terapia Analítica, das Conferências

Introdutórias à Psicanálise, de 1916/17, abordam a citada objeção sem

conseguir refutá-la.

A inexistência de uma teoria do método interpretativo deve muito à

incompreensão das relações entre linguagem e inconsciente. Esse, aliás, 

foi um dos principais motes da intervenção lacaniana, mas sua aplicação

conduziu ao impasse visto a primazia concedida ao significante em

detrimento do discurso.

Na ausência de uma teoria da interpretação, a psicanálise deslizou ao

longo de três caminhos. Um deles conduziu ao pragmatismo de

inspiração médica, cuja marca é o abandono da palavra em prol das

emoções. Outro tomou a sociedade como fons et origo do inconsciente e

enfatizou estratégias adaptativas, preconizando a aliança com a "parte

saudável" do eu.  O terceiro orientou-se por uma visão iconoclasta,

amalgamando surrealismo e non-sense zen, amparados num esforço de

erudição sobre cuja autenticidade somente os crentes convictos deixam

de alimentar dúvidas.

Primazia do significante e interpretação

A revolução lacaniana, da qual caberia esperar a teorização da

interpretação, descartou-a por confundi-la com aplicação da teoria ao

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discurso e/ou análise das relações de objeto. Vista a partir do ângulo

lacaniano, a interpretação pecaria por favorecer a inoculação dos valores

do analista no paciente. O lacanismo entende que o método deve ater-se

ao manejo do significante, o que supostamente vacinaria o analista e o

impediria de contaminar o analisando com sua subjetividade. Em

decorrência, o discurso passa a ser ciosamente evitado, quer como

instrumento quer como objeto da prática psicanalítica. O enunciado cai

sob o anátema proferido em nome da primazia do significante. Mesmo

assim, o termo 'interpretação' freqüenta os textos lacanianos, embora

numa acepção bem diferente da que lhe havia sido dada por Freud.

O estado de coisas atual reflete essa notável confusão, tanto

metodológica como terminológica. Sem que sua teorização tenha

ultrapassado os conceitos associação livre e atenção flutuante, sobre os

quais raras e sobretudo improfícuas reflexões foram empreendidas, o

procedimento interpretativo enquanto método ficou restrito aos sonhos e

ao mesmo tempo o termo interpretação conheceu um desvio semântico,

passando a designar quase qualquer tipo de intervenção psicanalítica.

Tem sido empregado para descrever tanto a aplicação da teoria ao

discurso (freudismo ortodoxo) como a captação dos sentimentos

transferenciais e sua atribuição a protótipos infantis (kleinismo). Até

mesmo a atomização lacaniana (que desintegra palavras e frases em

fonemas, sílabas e sintagmas) foi descrita como interpretação, embora os

termos pontuação, escansão e corte sejam bem mais adequados.

A atenção dedicada aos atos falhos, a ênfase nas aliterações, sílabas,

anagramas e trocadilhos, consubstanciou-se em intervenções destinadas

a surpreender, desmistificar, desexplicar, desinterpretar, desintelectualizar

e sobretudo desconstruir, verbo que antes de ser cunhado por Derrida já

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portava a marca registrada do ethos lacaniano, sempre a serviço da

denúncia militante dirigida a qualquer pretensão de compreensão.

O significado é o alvo principal das enigmáticas invectivas proferidas nas

sessões de tempo variável. As anedotas do budismo zen parecem ter

fornecido o modelo exato para o modus operandi lacaniano. Agente de

uma crítica ao ritual psicanalítico, o psicanalista lacaniano visa o estupor

do analisando à maneira de um pintor que usa a tinta para destruir a tela.

O exemplo não é inteiramente gratuito. A arte contemporânea, em seu

aspecto mais contestador, parece ter inspirado o consultório surrealista

apto a registrar a escrita automática do significante.

Não estaria muito enganado quem buscasse no dadaísmo a raiz oculta do

non sense lacaniano.

Adepto do paradoxo pelo paradoxo, Lacan não tardou em proclamar o

desejo de analisar-se como sintoma por excelência, já que embute a

idealização do analista, sujeito suposto saber. Em decorrência, a principal

diretriz clínica lacaniana é a esquiva a qualquer expectativa. No

consultório, bem entendido, já que fora dele a imagem do erudito é

construída com afinco exemplar nos cartéis, supervisões, seminários,

publicações, debates, etc. Lacan se autorizava a supervisionar e

coordenar grupos de estudo com analisandos, bem como convocar para

seu divã interlocutores e alunos que considerava "interessantes". A

mesma prática costuma ser seguida por seus discípulos. Mesmo que nem

todo lacaniano tenha um trânsito intenso pelo milieu ou pela mídia, ele se

beneficia da atribuição de saber (suposto ou não) simplesmente por

pertencer a instituições dirigidas por herdeiros e êmulos do mestre. À

sedução exercida por esse mesmo saber sobre o neófito é que será

atribuída sua decisão de analisar-se. Fecha-se então o círculo. O totem da

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rua Lille criou um novo tipo de clã, em que o tabu do incesto foi revogado

e a endogamia tornou-se a regra.

 

A resistência do psicanalista

Já foi observado que os pacientes costumam trazer às sessões

conteúdos que contemplam as expectativas de seus psicoterapeutas. É

difícil dizer até que ponto tal observação é plausível, mas na medida em

que for será preciso reconhecer que ela retrata uma prática situada nos

antípodas da regra fundamental.  Esta, de fato, estipula que não há, por

definição, qualquer conteúdo preferencial. A menção ao desejo incestuoso

vale tanto quanto uma queixa de coceira no dedão ou a descrição

minuciosa do teto do consultório. A única atitude da qual se poderia dizer

que transgride a regra fundamental é a resistência. Contudo, na medida

em que também se trata de uma manifestação inconsciente, torna-se

paradoxalmente legítima. Assim, tem pleno direito a participar - ainda que

pelo avesso - da situação analítica.

A seleção de material, pretextando graus variados de importância e

pertinência, ilustra à perfeição a resistência do analista. A famosa aliança

entre os protagonistas da cena clínica ganharia assim um significado

inesperadamente irônico... Algo semelhante pode ser dito acerca da

transferência. A auto-imagem construída pelo lacaniano, se for possível

generalizar[19], é representada pela erudição enigmática, tanto quanto a

do kleiniano procura transmitir maturidade e continência e a do freudiano

alardeia franqueza e neutralidade. Os psicanalistas também costumam

receber seus pacientes ou analisandos com expectativas prévias. Os

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diferentes divãs de Procusto estão preparados de antemão para hospedar

quer o desejo de saber, quer a dependência ou a ambivalência.

Haveria como isentar-se da auto-imagem profissional e da expectativa

prévia em relação aos demandantes? A questão é espinhosa e será

abordada adiante. De qualquer maneira, o psicanalista não tem qualquer

motivo para antecipar o movimento transferencial, a não ser o afã por

controle e segurança, contraditório com os princípios da sua prática.

Em um dos escritos sobre técnica Freud critica o "...procedimento

insensato de alguns analistas que"preparam freqüentemente suas

pacientes para o surgimento da transferência erótica de modo a que o

tratamento possa progredir ou até mesmo instam as pacientes a "ir em

frente e enamorar-se do médico".[20] Cabe perguntar se as expectativas

acima mencionadas não traduzem algo semelhante: "Vá em frente e

manifeste seu desejo (de apropriar-se de meu saber, de aprender, de ser

protegido e orientado, de seduzir, agredir, rivalizar, admirar, decepcionar-

se, etc.) para que eu possa utilizar as fórmulas padronizadas de

intervenção".

Precisamente a partir do momento em que os psicanalistas entendem

legítimo utilizar a teoria no consultório é que, parafraseando Freud,

passam a correr o risco de selecionar, condenando-se a nunca descobrir

nada além do que já sabiam de antemão (ou seja, teoricamente). A

previsão relativa aos sentimentos transferenciais que surgirão no decorrer

da análise não deixa de veicular uma expectativa apoiada em suposições

teóricas. A ênfase na transferência tipo "sujeito suposto saber" constitui

claramente uma antecipação que contraria a recomendação lacaniana de

agir como se não se conhecesse a teoria[21].

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Por outro lado, não deixa de ser interessante que Lacan descarte a

possibilidade de superar (alterar, atenuar) a transferência pela respectiva

interpretação, alegando que esta última depende da própria transferência

para ter eficácia. Se, por outro lado,  a transferência não é senão uma das

manifestações do imaginário, do ilusório, da idealização, da projeção, da

infantilidade, etc., então o ceticismo lacaniano se estende

obrigatoriamente a qualquer transformação que caiba esperar de uma

análise. Além disso, subordinar a eficácia do método psicanalítico ao

fenômeno que representa por excelência a resistência é, também de

antemão, e mediante um diktat, condenar a psicanálise ao impasse.

Interpretar na transferência parece representar a impossibilidade, auto-

infligida,  de interpretar a transferência (ou, mais precisamente, o discurso

que a manifesta). Suplementarmente, conforme observado acima, tal

enfoque situa a psicanálise no âmbito dos tratamentos por sugestão.

Enfim, a hipertrofia da transferência manifesta-se atualmente sob duas

formas. É considerada simultaneamente o objeto e o instrumento da

intervenção psicanalítica (kleinismo) ou uma de suas formas (a apropriação

do saber do analista) é promovida à condição de modalidade exclusiva

(lacanismo).

 

Pesquisa e sublimação

Que outra resposta poderia ser dada à pergunta pelo objeto da prática

psicanalítica? Se tomarmos por base os dois conceitos que permanecem

referenciando o método - e cuja substituição, independentemente de seu

desuso, ainda não foi proposta - a resposta é relativamente simples. A

atenção flutuante não elege qualquer tema em particular - por definição.

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Ou não seria atenção flutuante nem teria sentido pedir ao paciente que

associe livremente. A regra é chamada fundamental porque propicia

material para a interpretação. Transforma, por assim dizer, a palavra em

texto apto a ser lido. Seu objetivo é abrir espaço para o discurso, no qual

os sentimentos transferenciais e o significante (principalmente via ato falho

e repetições vocabulares) podem ter seu lugar, como aliás qualquer outro

tema ou manifestação. Nem mais nem menos.

Não surpreende que a associação livre e a atenção flutuante tenham se

tornado incômodas para o lacanismo e o kleinismo. Menos ainda é por

acaso que o respectivo questionamento se assemelhe às críticas que tem

por alvo a interpretação. A argumentação é similar e lembra boatos e

maledicências propagados a boca pequena. A não oficialização do

enfrentamento talvez se explique pelo respeito a uma tradição já

consagrada e também por deferência e reverência ao próprio Freud, mas

fundamentalmente se deve a que para propor uma nova concepção é

necessário previamente discutir a questão metodológica, tarefa capaz de

desencorajar a muitos.

Razão pela qual são preferidas as críticas en passant, destiladas em

surdina.

"(...) a partir de que elementos específicos o analista intervirá, se nenhum

dos materiais é a priori privilegiado em sua escuta?" questiona um autor

lacaniano que dedica alguns comentários ao tema.[22] Se Dor acredita

que a escuta deve privilegiar certos temas (ou significantes) certamente

supõe que o ato clínica não prescinde da teoria, pois quem decide que

certos temas são mais importantes que outros é a teoria.

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Contudo, é precisamente a renúncia a qualquer saber prévio que Freud

advoga em Conselhos aos médicos que exercem a psicanálise. Dor, para

quem o conceito atenção flutuante se deve a uma "intuição freudiana",

argumenta que procurando captar o 'inconsciente' do analisando com o

mesmo instrumento o psicanalista corre o risco de ser perturbado pela

sua subjetividade. "(...) no exercício da atenção flutuante, como pode o

analista desvencilhar-se da influência de suas próprias motivações

inconscientes?"

Instalado o impasse, o crítico concede que "(...) as concepções

metapsicológicas elaboradas por Lacan não permitem solucionar

profundamente esses diferentes problemas". Mesmo assim,  elas teriam o

mérito de "(...) pelo menos introduzir um ponto de vista técnico original a

esse respeito".[23] Que não é outro senão permanecer "(...) receptivo aos

significantes que advêm, através do dizer, para além dos significados que

se organizam no dito"[24].

A primeira pergunta (a partir de que elementos o analista intervirá?) revela

que para Dor a noção de discurso não entra absolutamente em conta,

sequer para ser criticada. Demonstra também que sua concepção clínica

é guiada pela busca de determinados conteúdos ("significantes"), 

julgados mais importantes do que outros, à maneira da famosa boutade

de Orwell. Nada mais distante da atitude que levou Freud a propor o que

chamou de associação livre. Por outro lado, a menção ao risco das

influências inconscientes devidas à atenção flutuante tem  por implicação

que se o psicanalista permanecer com o dedo devidamente apoiado no

gatilho teórico, no caso o da teoria do significante, suas motivações

inconscientes se dissiparão ou diminuirão significativamente. Concepção

intrigante, na medida em que provém de um psicanalista.

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A pesquisa científica, como qualquer outro ato humano, não tem porque

ser desvinculada das determinações inconscientes (ou seja, da linguagem;

já nos Três Ensaios..., de 1905,  Freud mencionava a pulsão

epistemológica). A existência de determinações inconscientes não faz

com que a pesquisa seja invalidada pela subjetividade. Se for, que valor

caberia dar à teoria psicanalítica, incluindo a vertente lacaniana? O

inconsciente não consiste apenas no que é recalcado; isso é patente em

Freud (cf. seu estudo sobre Da Vinci) e se torna mais evidente ainda

quando o inconsciente é redefinido como linguagem. No caso da prática

científica ou profissional bem desempenhada, analogamente ao que

acontece com a criação artística, é fácil perceber que estamos diante do

que Freud conceituou como sublimação. Por estranho que pareça, a

maioria dos psicanalistas não leva em conta a sublimação e menos ainda

sua relação com o inconsciente. E isso apesar do livro sobre o chiste...

De qualquer forma, se é óbvio que Dor tem pleno direito a defender esse

ponto de vista, sua posição se beneficiaria muito de uma argumentação

crítica que levasse em conta as razões alegadas por Freud para propor a

regra fundamental.

A idéia de que observações e hipóteses ganham em isenção quando

livres de viseiras teóricas é um truísmo bem mais recomendado do que

efetivamente observado na prática científica. Provavelmente por essa

razão as descobertas científicas são relativamente raras em comparação

com repetições, dogmatismos, erros e impasses. Não obstante, a

revogação do princípio é impensável. Aplicá-lo à psicanálise, como faz

Freud ao preconizar que o psicanalista renuncie ao saber prévio, é

perfeitamente condizente com a isenção que caberia esperar de um

pesquisador. Aliás, é condizente também com uma recomendação feita

nos mesmos moldes... pelo próprio Lacan[25].

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Para Dor, pelo contrário, a isenção implica no risco de ser "influenciado

pelas próprias motivações inconscientes". Talvez Dor deseje exorcizar o

risco da falha interpretativa, inevitavelmente presente em toda hipótese

científica. Colocar em pé o ovo da isenção requer bastante disciplina e

habilidade, mas é possível; em contrapartida, ainda não nasceu quem

faça a omelete da hipótese sem quebrar os ovos da apólice do seguro

contra erros.

A pesquisa não garante a descoberta. Se os erros se devem a distorções

subjetivas, cabe afirmar que todo projeto dedicado ao conhecimento, em

qualquer ciência, está sujeito ao equívoco. Desse ponto de vista, e ao

contrário do que dizem os que enfatizam a dificuldade suplementar

representada pelo estudo de um objeto a cuja categoria pertencemos,

não há diferença entre ciências naturais e humanas.

Lacan redefine a função da intervenção psicanalítica (ainda que continue a

designá-la pelo termo 'interpretação'). Para ele,(...) o valor de uma

interpretação não se mede pela sua "(...) correspondência com a

realidade"[26], podendo ser inexata mas (...) não obstante verdadeira, no

sentido de que possui poderosos efeitos simbólicos (cf. Escritos, pg.

237)."[27]

Do ponto de vista da regra fundamental, trata-se de uma afirmação

totalmente questionável, porque a interpretação visa o sentido do

discurso, não a 'realidade' (como quer que seja definida). Substituir

'realidade' por 'verdade' torna essa tese ainda mais discutível.  Além

disso, a posição lacaniana faz supor que "qualquer coisa" pode ser dita

porque, em última análise, é capaz de provocar "poderosos efeitos

simbólicos".

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Durante os milênios que antecederam seu enquadramento nas fórmulas

matemáticas da física e da química, a natureza convocava

poderosamente o imaginário da humanidade, como testemunha o

animismo.  Isso não impediu que se desenvolvesse paulatinamente o

conhecimento de suas leis. A menos que o lacanismo descarte

igualmente a ciência[28] não há como deixar de reconhecer que o modus

operandi científico inclui a interpretação. Onde há interpretação há risco.

As teorias científicas são mais do que coleções de fatos e descrições de

fenômenos; apóiam-se na aferição e na sistematização mas,

fundamentalmente, constituem leituras. A interpretação sempre diz algo

sobre o fenômeno, não "qualquer coisa". Implica em compromisso, ou

seja, aceita a possibilidade do erro para poder reivindicar, em

contrapartida,  sua eventual validade.

A preconização de permanecer "(...) receptivo aos significantes que

advêm, através do dizer, para além dos significados que se organizam no

dito..." resulta num tipo de intervenção minimalista cuja meta principal

parece ser a fuga a qualquer responsabilidade maior. De fato, quando se

faz trocadilhos e anagramas não há qualquer possibilidade de erro - nem

de acerto.

A atitude clínica lacaniana se parece muito à preconização empirista de

"deixar os fatos falarem por si mesmos". Apenas substitui os "fatos" pelo

"inconsciente". Ao analisando é concedido o duvidoso privilégio de

descobrir sozinho como lidar com as suas questões a partir das pistas

fornecidas por pontuações, escansões e cortes.  Intervenções tão

enigmáticas que, como já se disse dos eletrochoques (cuja verdadeira

função seria punir o paciente), poderiam ser úteis não em virtude de sua

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qualidade intrínseca mas por desviar a atenção para essas charadas ainda

mais herméticas do que os conflitos pessoais.

Os que acreditam demonstrar a inoperância do método interpretativo pelo

questionamento da atenção flutuante têm a sorte de estar sentados num

galho mais forte do que o seu serrote. Há outras objeções ao método

interpretativo, mas todas derivam fundamentalmente da incompreensão.

Os críticos não se dignaram a teorizar o procedimento proposto por Freud

em relação ao sonho e muito menos se interrogaram sobre a

especificidade da interpretação face a outras modalidades de atuação.

'Interpretação', insistamos, passou a designar praticamente qualquer tipo

de intervenção, do comentário descompromissado ao diagnóstico,

passando por diversas categorias de atos verbais, geralmente extraídos

de opiniões pessoais ou apoiados na teoria psicanalítica. Às vezes a

palavra interpretação chega a designar a própria interpretação. Mas é

raro, a ponto de causar estranheza.

Lacan e a interpretação

Praticamente qualquer texto poderia ilustrar essa asserção. Por

pertinência e brevidade convirá recorrer ao respectivo verbete do

Dicionário Introdutório à Psicanálise Lacaniana, de Dylan Evans, que

apesar de participar da confusão reinante retrata alguns aspectos

importantes do debate sobre a interpretação. 

Após observar que o "(...) o analista oferece uma interpretação quando diz

algo que subverte alguma maneira de ver "cotidiana" consciente do

analisando"[29], o autor assinala que a interpretação teve como primeira

função corrigir as omissões dos relatos, dando o exemplo do caso Lucy

(Estudos sobre a Histeria, 1895), em que Freud diz à paciente que o

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verdadeiro motivo da sua dedicação aos filhos de patrão é o amor por ele.

Em seguida, constata que o "(...) modelo de interpretação foi estabelecido

por Freud em A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900), ainda que

explicitamente o mesmo se referisse apenas aos sonhos"[30].

Segue-se a menção a um debate bem conhecido. Além do procedimento

da associação livre, os sonhos também poderiam ser interpretados

mediante uma atribuição de significados já codificados "(...) em virtude de

suas relações com um sistema pré-existente de equivalências". Essa

possibilidade é de início parcialmente admitida por Freud, que

posteriormente lhe opõe certas reservas[31]. Evans observa ainda que

"(...) Muito depressa na história do movimento psicanalítico, a

interpretação se transformou na ferramenta mais importante do analista,

seu meio primordial para conseguir efeitos terapêuticos. Visto que se

supunha serem os sintomas expressão de uma idéia reprimida, pensava-

se que a interpretação curava o sintoma ao ajudar o paciente a tomar

consciência de sua idéia".

Mas, prossegue, "(...) depois de um período inicial no qual o oferecimento

de interpretações parecia alcançar efeitos notáveis, na década de

1910/20 os analistas começaram a perceber que suas interpretações

estavam se tornando menos efetivas. Em particular, o sintoma persistia

inclusive depois de que o analista houvesse fornecido interpretações

exaustivas".

O motivo da súbita inoperância é atribuído pelos psicanalistas à

resistência. Lacan diverge, afirmando que "(...) a eficácia decrescente da

interpretação depois de 1920 devia-se a um fechamento do inconsciente

que os próprios analistas haviam provocado (Seminário 2, pp. 10-11,

Seminário 8, pg. 390)". Reduzidas a fórmulas pré-estabelecidas e

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previsíveis,  "(...) as interpretações careciam de importância e de valor de

choque". 

Para outros analistas, acrescenta Evans, os problemas decorriam da

crescente familiarização dos pacientes com a teoria psicanalítica. Em

conseqüência, preconizou-se uma sofisticação do saber do analista para

fazer frente a essa situação. Novamente Lacan diverge, propondo que

[1] O amor de transferência (Isso não impede de existir, Octave Mannoni,

1982).

[2] Freud analisou Dora nos últimos meses do século XIX e publicou

"Fragmentos da análise de um caso de histeria" em 1905.

[3] Posteriormente o conceito de fantasia ganhou uma abrangência muito

maior, passando a referir, em última instância,  a singularidade intrínseca à

subjetividade.

[4] Freud considerou, nos três meses de duração da análise, que Dora

estava apaixonada pelo 'Senhor K.'; em seus comentários retrospectivos,

ao empreender a "autópsia" do caso, conjectura que o objeto da paixão

talvez fosse a 'Sra. K.'.

[5] Entretanto, nada impede a coexistência, pacífica ou não,  de tais

sentimentos.

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[6] Posteriormente Freud entenderá que nem sempre os pacientes deixam

a análise em virtude dos erros do analista. Às vezes, exatamente pelo

motivo oposto...

[7] Tarefa impossível, se entendermos que entre "verdade" e "sentido" há

um abismo.

[8] A palavra "médico", no título do artigo, indica que Freud estava ciente

do viés que essa formação ocasionava... talvez com base em sua própria

experiência pessoal.

[9] "Não é bom trabalhar cientificamente num caso enquanto o tratamento

ainda está continuando -reunir sua estrutura, tentar predizer seu

progresso futuro e obter de tempos em tempos, um quadro do estado

atual das coisas, como o estudo científico exigiria. Casos que são

dedicados, desde o princípio, a propósitos científicos, e assim tratados,

sofrem em seu resultado; enquanto os casos mais bem sucedidos são

aqueles em que se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista,

em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta

neles, e sempre se os enfrenta com liberalidade, sem quaisquer

pressuposições. A conduta correta para um analista reside em oscilar, de

acordo com a necessidade, de uma atitude mental para outra, em evitar

especulação ou meditação sobre os casos, enquanto eles estão em

análise, e em somente submeter o material obtido a um processo sintético

de pensamento após a análise ter sido concluida". (Recomendações aos

médicos que exercem a psicanálise, pp. 152/153, O.C., vol. XII).

[10] Essa descrição tampouco esgota a lógica do conflito. Ela conduz à

teoria das pulsões (Thanatos vs Eros, desejo de não desejar vs aceitação

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do desejo), que por sua vez se vincula estreitamente à teoria da

constituição do sujeito.

[11] "A técnica, contudo, é muito simples. (...) Consiste simplesmente em

não dirigir o reparo para algo específico e em manter a mesma "atenção

uniformemente suspensa" (como a denominei) em face de tudo o que se

escuta (...) evitamos um perigo que é inseparável do exercício da atenção

deliberada. Pois assim que alguém deliberadamente concentra bastante a

atenção, começa a selecionar no material que lhe é apresentado (...)Ao

efetuar a seleção, se seguir suas expectativas, estará arriscado a nunca

descobrir nada além do que já sabe; e se seguir as inclinações,

certamente falsificará o que possa perceber. Não se deve esquecer que o

que se escuta, na maioria, são coisas cujo significado só é identificado

posteriormente". (Idem, pp. 149/150; grifo meu).

[12] O próprio Freud veiculou uma idéia semelhante (por exemplo, nas

Cinco Lições de Psicanálise).

[13] Essa metáfora, de sabor anedótico, chegou a ser efetivamente

proferida.

[14] E sumamente importante também do ponto de vista teórico e

epistemológico.

[15] "Com efeito, na medida em que o inconsciente emerge no discurso

do sujeito pelo processo de enunciação, a atenção flutuante aparece

sobretudo ao nível do enunciado e de seu sujeito". Joël Dor, "Introdução à

leitura de Lacan",  pp. 119/120.

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[16] Os textos mais ilustrativos desse movimento são o "discurso de

Roma" (Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise, de

1953) e A instância da letra no inconsciente ou a razão a partir de Freud

(1957/8).

[17] O primeiro, cronologicamente, dos artigos sobre técnica que Freud

redigiu entre 1911 e 1915.

[18] E Camões, e Fernando Pessoa...

[19] Mas como não generalizar quando o adjetivo em questão (assim

como "kleiniano", "freudiano", "bioniano", "winnicotiano") é brandido à

maneira de uma carteira de identidade profissional?

[20] Observações sobre o amor transferencial, 1915, O.C., volume XII, pg.

211.

[21] É muito difícil encontrar uma obra que não encerre contradições. A

intenção da frase anterior é a de mostrar que a crença na inevitabilidade

da transferência "sujeito suposto saber", alardeada a torto e a direito nos

comentários sobre a especificidade da prática lacaniana, deveria antes ser

motivo de reflexão e constrangimento.

[22] Joël Dor, Introdução à leitura de Lacan, pg. 119.

[23] Idem, ibidem.

[24] Idem,p. 120.

[25] Ver adiante.

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[26] Sic.

[27] Citação extraida do Diccionário Introductorio de Psicoanálisis

Lacaniano, de Dylan Evans.

[28] E realmente o faz em uma de suas vertentes, embora por outro lado

Lacan tenha iniciado seu trabalho de renovação invectivando o misticismo

pseudo-técnico que infestava a psicanálise na época.

[29] A edição consultada é a tradução em castelhano, feita pela Editôra

Paidós. A inserção da palavra "cotidiana" prejudica um pouco a

inteligibilidade da frase mas de qualquer maneira a própria definição de

Evans é imprecisa a ponto de ser equívoca.

[30] Afirmação pertinente, mas que não suscita em Evans uma reflexão

sobre suas implicações.

[31]  "(...) Freud sempre sustentou que a interpretação deve concentrar-se

primordialmente no sentido particular, e preveniu contra a superestimação

da importância dos símbolos na interpretação dos sonhos".

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