A Morte Os Defuntos e Os Rituais de Limpeza No Pos-guerra Angolano

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    A MORTE, OS DEFUNTOS EOS RITUAIS DE LIMPEZA

    NO PS-GUERRA ANGOLANO:QUAIS OS CAMINHOS

    PARA PR TERMO AO LUTO?

    Rosa Maria Amlia Joo Melo*

    Introduo

    A morte um tpico que tem merecido alguma ateno da parte dosinvestigadores, nas mais diversas reas disciplinares. Tem sido objetode discusso em seminrios e cursos e destacada atravs da imprensa,independentemente das suas causas. O seu impacto produz emoes;emoes complexas, s vezes, aparentemente contraditrias e, em ge-ral, diferentes de cultura para cultura, ou seja, apesar de evidncias desimilitudes, nos diferentes contextos sociais, nas diferentes culturas, asperformances rituais de morte variam, assim como as concepes sobreo mundo, a vida e a morte. Do mesmo modo, difere o tratamento dadoaos cadveres.1Conforme as culturas, alguns cadveres so enterradosou queimados com ou sem sacrifcios (nomeadamente de animais);outros so conservados embalsamados ou defumados; outros ainda so

    * Bolsista de Ps-Doutoramento da Fundao Cincia e Tecnologia Lisboa.1 Clara Saraiva, Embalming, Sprinkling and Wrapping Bodies: Death Ways in America, Portu-

    gal and Guinea-Bissau: A Cross-Cultural Study, Symposia, Journal for Studies in Ethnologyand Anthropology, Craiova, Center for Studies in Folklife and Traditional Culture of Dolj County,(2004), pp. 97-119. Centrando-se numa anlise transcultural sobre a morte em trs contextos

    diferentes, localizados na Europa, na frica e nos Estados Unidos da Amrica, este artigo mos-tra algumas das especificidades dos ritos morturios inerentes a cada um dos contextos.

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    deixados apodrecer, ritualmente expostos como coisa imunda ou sim-plesmente abandonados.2Alm de momentos de choro e de partilha dador e das memrias do defunto, os funerais e os bitos, em algumas

    culturas, podem ser vividos como momentos singulares para a hilarida-de,3 a disputa, a exibio do poder e das economias da famlia e dodefunto, ou mesmo como uma combinao desses elementos. Podemcumprir objetivos especficos como celebrar a vida, apaziguar os esp-ritos, manifestar a oposio entre homens e mulheres, enfatizar laosde parentesco, solidificar as relaes entre os membros da comunidadee dramatizar a ordem natural da vida como nascer, crescer e morrer.Cada um dos momentos mencionados acima est, em geral, envolvidode significao, podendo esta ser expressa atravs de canes, gestos,elocues verbais, danas, objetos manuseados, etc. De carter transi-trio (se se entender que surgem dentro de uma ordem seqencial comum princpio, um meio e um fim), tais momentos podem ser, igualmen-te, partes de um conjunto ritual, tambm ele transitrio, demarcandouma etapa do percurso de uma vida. Uma transio igualmente perce-bida no quadro da estrutura tripartida (identificada por Van Gennep) deuma grande parte dos rituais, envolvendo um perodo de separao,seguido de um liminal e de outro, de reintegrao num novo status.4

    As inmeras questes levantadas hoje, individual ou coletiva-mente, no seio de algumas famlias, em Angola, em torno da morte, dosmortos, dos rituais morturios, da guerra e das suas conseqncias,motivaram-me a refletir sobre estes tpicos, no contexto angolano.Contudo, alm de uma vasta extenso territorial, de uma diversidadeclimtica e de uma multiplicidade de fauna e flora, Angola caracteri-

    zada por uma variedade cultural marcada pela coabitabilidade de dife-rentes grupos sociais, com identidade prpria, desde os bakongos, osovimbundus, os ngangelas, os cokwes, os handas, os nkhumbis, os ngam-bwes, os nyanekas, os kuanyamas, os kuvales, os kimbundus, entre

    2 Peter Metcalf e Richard Huntington, Celebrationsof Death. The Anthropology of MortuaryRitual, Cambridge, Cambridge University Press 1991; Robert Hertz, Contribucin a un estudiosobre la representacin colectiva de la muerte, in idem,La muerte y la mano derecha, Madri,Alianza Universidad, [1909] 1990.

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    Metcalf e Huntington, Celebrations of Death.4 Arnold Van Gennep, Os ritos de passagem, Petrpolis, Editora Vozes, [1909] 1978.

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    Mapa. Esboo de localizao dos handasFonte: Melo, Homem homem, mulher sapo, p. 40.

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    outros, at os que, por condicionalismos vrios, no se revem em ne-nhum dos grupos mencionados e clamem por uma identidade outra,tendo por base a cor da pele, o poder econmico, o grau de aculturao,

    etc. Conforme o seu modo de vida, as zonas de localizao dos mes-mos, as caractersticas climticas das reas que ocupam, a sua proximi-dade ou afastamento do mar, o grau de aculturao, etc., assim variamos grupos identitrios, diferenciando-se uns dos outros. Tais diferen-as, revelam-se no plano da linguagem, da indumentria e do toucado,no tipo de construo, no estilo de ornamentao, nas atitudes corpo-rais e nos desempenhos sexuais, na maneira de falar, de cantar, de cho-rar e de comer e nas suas representaes sobre gnero. Mas, esto, igual-mente, patentes, na expresso artstica religiosa e estilo musical, nasprticas rituais, como as de morte, de cura, e nas representaes sobre avida.5Nesta conformidade, elegi os handas para este estudo um gruposocial localizado no sul de Angola, particularmente nas provncias daHuila e numa pequena parte da provncia do Namibe, ou seja, as refle-xes que apresento, assentam, particularmente, sobre questes davivncia social e cultural do grupo mencionado.6

    Destrutiva e com um forte e amplo impacto em todos os domniosda vida social, a guerra ps-independncia, em Angola, provocou deslo-caes populacionais, estimulou e acelerou processos como o de urbani-zao, desenraizando e concentrando, em grande escala, indivduos e fa-mlias inteiras nos centros urbanos. As crises sucessivas de fome e demisria (contrastando-se com o potencial econmico do pas) que se fi-zeram sentir, a ausncia e a perda de ente queridos, sobretudo dos ho-

    5 Rosa Melo,Homem homem, mulher sapo. Gnero e identidade entre os handa no sul deAngola, Lisboa, Edies Colibri, 2007.

    6 Para mais pormenores sobre os aspectos do modo de vida e dos usos e costumes dos handas:Rosa Melo, Efuko. Ritual de iniciao feminina entre os handa (Angola), (Tese deDoutoramento em Antropologia Social, Lisboa, ISCTE, 2001); idem, Guerra dor e luto,disponvel em http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/RosaMelo_GuerraDorLuto.pdf, acedido a11/04/2007; idem,De menina a mulher. Iniciao feminina entre os handa no sul de Angola,Lisboa, Ela por Ela, 2005; idem, Mulher aquela que comeu o boi. O efukoe a construodo gnero no grupo tnico handa, in Marissa Moorman e Kathleen Sheldon (orgs.), Gneroe relaes sociais, edio monogrfica de Lusotopie, vol. 12, nos1-2 (2005), pp. 139-160;idem, Nyaneka-nkhumbi, uma carapua que no serve aos handa, nem aos nyaneka, nem

    aos nkhumbi, Caderno de Estudos Africanos, nos

    7/8 (2005), pp. 157-78; idem, Homem homem, mulher sapo.

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    mens (pais, filhos e irmos), em circunstncias violentas de guerra, odesenraizamento das pessoas das suas terras e dos seus costumes, assimcomo os desequilbrios de ordem social que daqui ressaltam conduziram

    a populao a adotar novas posturas e a reinventar estratgias de sobrevi-vncia. No caso das mulheres, por exemplo, tais estratgias passam pelasua ao tambm fora do lar, onde se confrontam direta e permanente-mente com o homem.7 certo que muitas dessas estratgias e posturasdecorrem das adversidades sociopolticas. Contudo, no deixam de cons-tituir, por si mesmas, um corolrio direto da guerra civil que assolou opas durante cerca de 30 anos consecutivos. Consequentemente, no obe-deciam, em geral, a grandes concertaes. A guerra implicava uma doseajustada de desespero, de indignao, de criatividade e de suporte psico-lgico para ultrapassar as dificuldades e mitig-las com trabalho e sus-surros sem resposta; sussurros nos quais homens e mulheres se interroga-vam sobre o porqu de um tal sofrimento, o porqu de uns terem tudoe outros no terem nada e sobre o quando seria o fim do martrio emque estavam mergulhados. Para alguns angolanos, tanto a guerra como amisria resultante dela eram fruto da arrogncia e da ambio degovernantes e chefes militares, da corrupo e da m governao. Entre-tanto, sem descurar estes aspectos e comparando a situao econmicade Angola com diversos outros pases, alguns estudiosos associam tam-bm as adversidades sociais ao potencial dos recursos naturais do territ-rio, ou seja, admitem, pelas estatsticas, que os pases naturalmente ricosem recursos naturais, como o caso de Angola, apresentam um ndice depenria mais alto do que aqueles em que os recursos so mais escassos.8

    Se recursos como o diamante e o petrleo serviram, em Angola, para

    alimentar e combater a guerra, alm de sustentar, aqui e ali, determinadasfamlias, diga-se que graas guerra muitas dessas famlias se foramlocupletando, em detrimento da maioria. A guerra ora ia estimulando eaprofundando as desigualdades sociais j existentes, ora ia criando novospobres e novos ricos. A gua, o carvo, a lenha, o sal e o cobre, recursos

    7 Sobre questes referentes s relaes de gnero, bem como s estratgias de poder, entre oshandas, ver tambm Melo Efuko; idem,De menina a mulher; idem, Mulher aquela quecomeu o boi.

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    Tony Hodges, Angola: Anatomy of an Oil State, Bloomington/Oxford, Indiana UniversityPress/James Currey, 2004.

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    de menos-valia relativamente aos acima mencionados, constituram econstituem hoje ainda os mais frequentemente usados pelos cidados maisdesfavorecidos, incluindo mulheres, com vistas sua sobrevivncia e

    das famlias.A sujeio dos handas, bem como da maioria da populao angola-

    na, aos condicionalismos supramencionados, ao xodo rural acelerado eforado pela guerra, bem como a uma onda de violncia mortfera, at hpouco tempo, no s afetou o seu comportamento individual como permi-tiu e tem conduzido introduo de alteraes considerveis, nas suas pr-ticas coletivas, como os rituais de iniciao9ou de morte e, igualmente, nasprticas mais ou menos restritas, como so as de cura e as de adivinhao.Alm disso, e sobretudo aps a guerra, tais condicionalismos suscitaramum sem nmero de questionamentos relativos participao dos familiaresna guerra; ausncia de compensao pelos danos sofridos e pelos esfor-os empreendidos; aos restos dos entes queridos mortos na guerra, postu-ra da chefia militar com relao famlia dos soldados e atitude do gover-no relativamente s vivas, aos mutilados e aos rfos de guerra. Questio-namentos que denunciam, como se poder ver adiante, a angstia das fam-

    lias em relao questo da purificao/limpeza do meio familiar ousocial da presena ou da perturbao de espritos.

    No obstante abordar questes que se prendem com os rituaismorturios, num grupo social particular, o meu interesse est direcionadopara os contextos emotivos e sociais que envolvem tais rituais. Assim,alm de abordar as emoes e os sentimentos das mulheres ao retrata-rem as ocorrncias da guerra civil angolana e ao confrontarem-se com aperda de entes queridos, nas circunstncias apontadas, procuro, com

    base nas crenas, articular tais sentimentos e emoes com as prticasrituais, nomeadamente as de carter reparador.

    O poder dosonosande(espritos ancestrais)

    O reconhecimento de Deus, como um ser supremo, integra-se no con-junto das crenas religiosas tradicionais dos handas. No contexto des-

    9 Melo, Efuko; idem,De menina a mulher.

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    sas crenas, alm da existncia de uma denominao especfica, na pr-pria lngua dos handas, para designar a Deus, nomeadamente Suku,Kalunga ou Ndjambi, so-lhe reconhecidos atributos vrios, tais como a

    oniscincia, a onipresena, a justia e outros que, como diria CarlosEstermann, so idnticos aos que fazem parte do corpo doutrinrio dasreligies [ditas] reveladas.10Apesar de invisvel, cr-se que exerce asua influncia sobre os homens por intermdio dos espritos ancestraise das foras da natureza, uma crena, alis, apontada por diversos estu-diosos como sendo extensvel a frica.11

    Entretanto, no quadro das crenas mencionadas, Deus no seconfunde com os onosande(espritos ancestrais). Estes funcionam comointermedirios dos homens. Pela sua anterioridade na terra e, sobretu-do, pela natureza extraordinria do seu ser, os espritos ancestrais sodesignados por ovakulu(os mais velhos). Note-se que este mesmo ter-mo (ovakulu), alm de denominar os ancios do grupo e os mais velhosda famlia, remete para a idia de pertena a um escalo superior, emtermos de status, experincia de vida, idade, etc. Com efeito, os ovakuluso os que controlam e organizam a comunidade, asseguram o cumpri-

    mento das leis e da ordem social e detm o poder. Pertencentes a umahierarquia superior, so os guardies da tradio, o smbolo do saber eos conselheiros dos mais novos. Depois de morrerem, so estes que, decerta forma, orientam a vida dos vivos. Portanto, acima dos ancios,situam-se os onosande yovakuku (os espritos ancestrais) que, pela na-tureza do seu ser, pertencem a um escalo superior e so respeitadospor todos os membros da comunidade, independentemente da funoque desempenhem ou do status social que possuam. Cada indivduo

    estabelece com os onosande yovakuluuma relao particular (inclusi-vamente de proximidade) e reconhece que o seu comportamento podeser recompensado ou penalizado por estes. A fertilidade, a sade, a pro-

    10 Carlos Estermann,Etnografia do sudoeste de Angola. Vol. 2: Grupo tnico nhaneka-humbe,Lisboa, Junta de Investigaes do Ultramar, 1957, p. 234.

    11 Alassane Ndaw, Caractres gnraux. Les sens du mot religion pour lafricain,Encyclopdiedes Religions, vol. 1, Paris, Bayard ditions, 1997, pp. 1159-64. A respeito das crenas, dosritos morturios e da ancestralidade, ver tambm G. K. Nukunia, Some Underlying Beliefs in

    Ancestor Worship and Mortuary Rites Among the Ewe, inLa notion de personne en Afriquenoire, Paris, Editions LHarmattan, 1973, pp. 119-30.

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    teo, uma colheita bem sucedida e a paz de esprito so alguns dosexemplos dessa recompensa.

    No obstante conferirem proteo e prosperidade aos seus, cr-seque os onosandeyovakulutambm se zangam diante do descumprimentoe do desleixo no desempenho dos costumes tradicionais ou quando se sen-tem negligenciados. Nesses casos, expressam o seu desagrado de diferen-tes formas, nomeadamente enviando uma onda de peste (nas plantaes),provocando mortes (de ocorrncia sucessiva, no seio familiar), introduzin-do patologias (como as do frum fsico e psiquitrico) ou induzindo situa-es adversas na famlia, de modo especial intrigas e divrcios.

    Portanto, a presena dos onosande yovakulu sentida, perma-nentemente, nesse mundo material e em toda a dimenso da vida daspessoas, particularmente entre os parentes e descendentes. Por essa ra-zo, cada um, individualmente, pode comunicar-se, diretamente, comeles, dirigindo-lhes palavras de conforto, de splica, de censura ou ou-tras; manifestando o desejo de prestar-lhes favores; fazendo-lhes oferendase invocando-os no seu dia-a-dia, principalmente nas cerimnias rituais p-blicas ou privadas, nos momentos de crise, no parto, nas colheitas, na guer-

    ra, no emprego, na universidade e no futebol. Por seu turno, os espritosdos ovakulupodem solicitar favores aos seus descendentes vivos, tais comosacrifcios de animais. Fruto de determinadas circunstncias, nomeadamentedoena, exerccio do poder de cura ou de adivinhao, os onosandepodemexigir a edificao de um lugar de culto, normalmente de carter individualuma operao que carece de ritual especfico para a legitimao do pro-prietrio e a sacralizao do lugar.12Aqui, o indivduo efetua as suas pre-ces, invoca os onosandee, de forma manifesta, presta-lhes reverncia, ofe-

    recendo-lhes, por exemplo, os primeiros gros da nova colheita de cereaiscomo massango (Pennisetum glaucum (L.) R. Brown), massambala(Sorghum bicolor (L.) Moench) e milho (Zea Mays (L.)) ou bebida (comogua, omakao13ou aguardente), antes de se servir a si prprio.

    12 Trata-se de um pequeno estrado de pau a pique, chamado omutala. O termo tambm usadopara designar os estrados onde se guardam os cereais durante a colheita. Tem, em geral, oformato de uma mesa rectangular invertida e no possui uma medida padro. Pode atingir 1metro de altura de 2 a 3 metros de comprimento, havendo miniaturas de 50cm x 40cm.

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    O omakao uma bebida tradicional (do gnero da cerveja) muito saborosa, feita, em geral,com a massambala.

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    Digamos que, entre os handas, os ovakulu, alm de manifesta-mente centrados na vida das pessoas, so o cerne das suas aspiraes, aexpresso do poder, o motor da comunidade um fato que me permite

    caracteriz-los como uma sociedade vakulucntrica.14Uma sociedade,alis, na qual o culto aos onosande yovakulu se baseia na crena daeficcia do seu poder na vida dos seus descendentes; na crena da suapresena e cooperao no seio familiar e do grupo e na crena na imor-talidade do ser, aps o perecimento fsico de um indivduo.

    Entretanto, o poder dos onosande yovakulupode ser neutralizadopor foras, sobretudo malficas. Os handas acreditam em foras malfazentescomo principais causadoras de doenas, de mortes e de desequilbrios soci-ais e ambientais. Atribuem poderes extraordinrios a determinados atoressociais que, conforme o seu exerccio, so categorizados como nganga (ouonganga), cimbanda (ouocimbanda) e omunianeki (ou munianeki). O pri-meiro tido como um agente tpico do mal. No satisfeito com a sua graa,cr-se que age, negativamente, atravs de prticas malficas, sendo porisso acusado de comer os outros, ou seja, de ceifar a vida dos outros. Osegundo a pessoa a quem se recorre para curar eventuais doenas. Mas,

    pelo carter dbio do seu desempenho (visto lidar com foras do bem e domal), o cimbandapode interferir, inclusivamente, na ao dos onosandeyovakulu, anulando o poder destes, em benefcio ou malefcio dos mem-bros da famlia. O recurso ao terceiro deve-se crena na sua capacidadede vaticinar, de alvitrar a causa do mal, da doena.15

    Por razes mltiplas, como a necessidade de outras e novas con-dies de vida e as deslocaes foradas pela guerra civil no pas, oshandas, como qualquer um dos grupos sociais em Angola, ultrapassam

    os limites dos espaos rurais para se estenderem, igualmente, s zonasurbanas. Aqui, em contato estreito com as culturas locais, e no s, assuas referncias culturais vo-se transformando, tendendo para umaocidentalizao comportamental, assumindo outros e novos valores.Ressalte-se, entretanto, que nenhuma cultura constante. As normas,os valores e os comportamentos, embora profundamente embebidos na

    14 Ver Melo,De menina a mulher.15

    Noutros trabalhos, examino mais extensamente os agentes sociais que, entre os handas, sosupostos ser os detentores de poderes extraordinrios: Melo Efuko: idem,De menina a mulher.

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    sociedade, mudam paulatinamente, com o tempo.16Mas, se na pocacolonial a dicotomia campo/cidade, alm de evidente se revelava ne-cessria, no sentido de diferenciar os civilizados dos no civiliza-

    dos, a guerra aproximou o campo da cidade. De tal ordem que, mesmonos centros urbanos, e com algumas adaptaes, certas prticas rituais(como as de morte, as de cura, as de iniciao masculina e feminina, asde adivinhaes, etc.) se desenrolam, sem grandes restries.

    Portanto, quer nos meios rurais, quer nos urbanos, o recurso aocimbanda(ao curandeiro) e ao munianeki(adivinho) muito freqente.Uma prtica, alis, extensvel a todos os grupos sociais em Angola. Noslocais apontados, tal como sucede na Europa, particularmente entre osportugueses, muitos dos intelectuais, polticos, professores, funcionriospblicos e empresrios angolanos tambm se servem dos prstimos dosagentes mencionados. As razes dessa demanda so inmeras. Em Por-tugal, pelo que me tem sido dado a observar, os portugueses tanto recor-rem a curandeiros africanos como a no africanos. Apesar de, em muitoscasos, pugnarem pela discrio, as suas motivaes vo desde a necessi-dade de prender o marido (evitando que ele se sinta atrado por outra

    mulher), a tentativas de conseguir emprego, dinheiro e assegurar o sal-rio, passando pelo desejo de promoo social, at necessidade de ex-purgar os maus-olhados, afastar o azar. Acrescentando-se a essas, ou-tras razes podem ser apontadas para o caso dos vahanda e de outrosgrupos sociais, em Angola. Elas vo desde a busca de solues para asdoenas e respostas s ocorrncias de morte dos parentes at procuradas suas causas, essas, normalmente, atribudas a agentes patolgicos,como o nganga, a rplicas dos espritos, etc. Em ambos os casos, a ambi-

    o desmedida, a inveja e outros sentimentos maliciosos podem impulsi-onar, igualmente, o recurso aos agentes como o cimbanda.

    Sendo a morte um fenmeno raramente atribudo s foras natu-rais, o apelo ao munianeki ocorre, invariavelmente, durante o perodo dedoena, imediatamente aps o perecimento de um indivduo ou depoisdo funeral. O acusado raramente algum de fora da famlia extensa.

    16 C. Cohen, C. Desmond e Elizabeth Reid, The Vulnerability of Women: is This a Useful Construct

    for Policy and Programming?, in Charles Becker, Jean-Pierre Dozon, Christine Obbo e MoribaTour (orgs.), Vivre et penser le Sida en Afrique(Senegal, ditions Karthala/CODESRIA, 1999).

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    Crenas e rituais morturios

    Na concepo dos handas, a morte no o fim da vida de um indivduo.

    Para a conscincia coletiva, ela , como diria Robert Hertz, uma tran-sio da sociedade visvel para a invisvel.17Uma transio que, talcomo nos rituais de ekwendjee de efuko(rituais de iniciao masculinae feminina, respectivamente), d ao indivduo acesso aos mistrios sa-grados dos ovakulu (seniores do grupo), j que a passagem para estacategoria tambm implica uma mudana da condio do indivduo en-quanto ser que se renova e adquire um novo status, bem como umabase religiosa e moral aceita pelo grupo. Uma mudana que se efetua

    atravs da morte figurada do iniciado, seguida de um perodo de mar-gem e de renascimento para uma vida superior.18

    Tal como noutros grupos sociais em frica e no s,19 a morte,entre os handas, no se consuma no momento do ltimo suspiro. Crendona existncia de vida aps a morte, entendem que o esprito do indivduodeve libertar-se do corpo, despedir-se e, s assim, afastar-se da famliapara repousar e participar, com os outros, no outro mundo, do kokalunga.Os vivos (sejam familiares, amigos, vizinhos ou outros) so obrigados,

    por isso, a participar dessa entrega que passa por uma srie de momentosque vo desde as prticas que incluem viglia, elocues verbais deexaltao da vida do defunto ou de prece aos espritos ancestrais,enunciaes de linhagens familiares do defunto e suas valncias, desta-que das omaanda,20exaltao das relaes de parentesco, atitudes corpo-

    17 Hertz , Contribucin a un estudio, p. 92.18 Hertz, Contribucin a un estudio. A questo da morte figurada do iniciado, bem como todo

    o processo que marca a sua ascenso de status, passando pela liminaridade at aos simbolis-mos de todo o processo ritual foram por mim analisados, noutros trabalhos. Centrando-me noefuko(designao de um ritual de iniciao feminina), analiso-o no contexto socioculturaldos handas, de onde os aspectos acima mencionados como a transfigurao da morte, aliminaridade, os simbolismos, a ascenso de status, a senioridade, etc. so abordados em de-talhe: Melo, Efuko; idem,De menina a mulher.

    19 Hertz, Contribucin a un estudio; Alcinda Honwana,Espritos vivos, tradies modernas.Possesso de espritos e reintegrao social ps-guerra no sul de Moambique, Lisboa, Elapor Ela, 2003.

    20 A eanda(ou omaanda, no plural) um tipo de relao de parentesco engendrado no por viado sangue, mas sim de smbolos (totmicos?) animais ou vegetais, que ligam os indivduosuns aos outros to forte ou mais quanto o parentesco consanguneo. Para a percepo das suas

    formas, do seu significado, do seu modo de relacionamento, etc., ver Melo, Efuko; idem,Demenina a mulher.

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    rais e choro rituais, deslocao do cadver para um passeio simblico dedespedida dentro dos limites do eumbo,21 tabus alimentares, sacrifciosde animais como o boi (particularmente quando se trata de um defunto

    ancio), at ao enterramento do corpo. Pela sua importncia, os corposno so tratados ou abandonados como se fossem animais; eles so enter-rados em cemitrios prprios da famlia, conforme as linhagens (con-sangneas ou na base de omaanda), ou a idade biolgica (marcada pelapassagem ou no pelos rituais de iniciao masculina e feminina). O pr-prio ritual de enterramento impe uma disposio prpria do cadver, nasepultura. Nos meios rurais, por exemplo, os cadveres dos handas, aocontrrio do que fazem os designados ovacilenge muso, so ritualmentesepultados com as cabeas voltadas para o nascente, ou seja, para o pontomtico da origem dos seus antepassados.22Esse fato (isto , o ponto mticode origem) est de tal maneira impregnado nas suas concepes ideol-gicas e nas suas manifestaes socioculturais que o expressam, e se tornaimportante faz-lo, em momentos cruciais da sua vida, nomeadamentenos rituais de iniciao e nos morturios. Esse mesmo sentido de orienta-o imiscui-se tambm na estrutura das suas habitaes, bem como napostura do corpo ao dormir.23As suas camas tm, de igual modo, a cabe-ceira sempre voltada para este mesmo sentido.24Diz-se, entre os handas,que dormir com a cabea voltada para o lado do nascente a melhormaneira de o fazer com tranqilidade e de evitar maus sonhos.

    Portanto, os rituais morturios asseguram a passagem para o outromundo, celebram a vida, promovem o reforo das relaes de parentescoe homenageiam o defunto. Havendo uma relao entre o corpo e o esp-

    21 Um eumbo um conjunto de edifcios habitacionais; uma unidade habitacional composta porvrias vivendas independentes, cada uma com uma funo particular. Para outras especificaesdo eumbo, ver: Melo, Efuko; idem, De menina a mulher.

    22 Os handas apontam o sentido do nascer do sol como sendo a direco de onde eles provm.Contrariamente, seus vizinhos, os ovacilenge muso(como so conhecidos na literatura), apon-tam para o sentido do pr-do-sol como a direco mtica da sua origem, razo pela qual noenterramento dos seus mortos, por exemplo, os cadveres so ritualmente dispostos com ascabeas voltadas para o poente.

    23 Para detalhes sobre a estrutura do conjunto residencial dos handas, ver Melo, Efuko; idem,De menina a mulher.

    24 O fenmeno mencionado tambm observvel em muitas outras sociedades africanas, comoos criadores de gado da zona oeste do Knia: David Parkin, Ritual as Spatial Direction and

    Bodily Division, in Daniel de Coppet (org.), Understanding Rituals(Londres/Nova Iorque,Routledge, 1992), pp. 11-25.

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    rito, o enterramento dos mortos, alm de honrar o defunto e de o homena-gear, marca o fim desta passagem, incentiva o equilbrio entre o mundovisvel e o invisvel e promove a manuteno da ordem social.

    Entretanto, a vivncia nos meios urbanos no lhes permite manter,integralmente, a tradio. Aqui, outras normas se impem e, pela formacomo se vive (por exemplo, em prdios, em vivendas pequenas ou comdivises compactadas e, s vezes, sem quintal), os constrangimentos, nocumprimento dos rituais morturios, so ainda maiores. Conforme o graude assimilao, os familiares prximos do defunto (como filho, me) notomam contacto direto com o corpo (depois de colocado no caixo epublicamente exposto, num dos compartimentos da casa), ou o fazemimpelidos pelo desejo de olharem para ele e de o acariciarem enquantochoram, ou esse contacto surge apenas para beijar o cadver, em sinal dedespedida, antes de ser definitivamente fechado no caixo,25 ou aindapara dar banho e vestir o cadver. De qualquer modo, quer nos meiosurbanos, quer nos rurais, no raro precederem o enterramento com aadivinhao sobre a causa da morte26um fato que revela, entre outros,a incredulidade no acaso, quanto s questes que se prendem com a mor-

    te. Nem mesmo a guerra pode, por si mesmo, justificar suficientemente amorte. Isso porque, como j frisei, no obstante a crena na existncia deDeus, os handas acreditam, por um lado, em foras sobrenaturais benig-nas, como os onosande yovakulu (espritos ancestrais), e malignas, comoos ovilulu, estes ltimos manipulveis pelos vivos. Por outro lado, aoacreditarem na existncia de indivduos com poderes extraordinrios, cr-se que a ao destes sobre os outros tanto pode perturbar como corrigirdesordens, na famlia ou na sociedade. Um exemplo dessa desordem pode

    aqui se mencionado:No municpio de Cilenge, ainda durante a guerra, ouviu-se dizer queum dado jovem, militar das FAPLA27tinha morrido em combate. Tendo

    25 O ritual de beijar o cadver (como sinal de despedida), foi igualmente por mim observado, emLisboa, quer no cemitrio, quer na Igreja, em funerais de famlias migrantes, do norte de Angola.

    26 O recurso ao cimbanda(curandeiro) ou simplesmente ao munyaneki(adivinho), nos casosapontados, ainda que depois do enterro, uma prtica comum no seio de determinadas fam-lias, sobretudo nas menos escolarizadas e menos aculturadas.

    27

    FAPLA: Foras Armadas Populares de Libertao de Angola; eram as iniciais pelas quais sedesignava o exrcito angolano aps a independncia e at s primeiras eleies no pas.

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    a famlia recorrido ao cimbanda[que frequentemente combina o exer-ccio da cura com o da adivinhao] para conhecer a causa da morte, opai do rapaz foi acusado de o ter comido.28Diante disto, os parentes

    da mulher confrontaram-no com o fato. Da acusao passou-se ao des-pojo de todos os seus bens [traduzidos sobretudo em gado bovino, man-timentos e charruas], tendo-lhe sido retirada, inclusivamente, a mulher,a me do rapaz em causa. A acrescentar punio, o acusado, alm deter sido agredido fisicamente, sofreu um escrnio pblico quando, obri-gado a admitir, em voz alta e repetidas vezes, que tinha comido ofilho, foi constrangido a arrastar, s costas, uma pele ensangentada deuma rs sacrificada, ao longo de vrios quilmetros, passando por pes-soas, aglomerados populacionais, etc. Alguns meses depois, j maisdebilitado, com a casa desfeita, a famlia dispersa e ele mesmo incrdu-lo, este homem assiste ao regresso do filho. Um defunto entre ns? gri-tou ele de lgrimas nos olhos.29

    Foi instalado o caos nessa famlia: (i) primeiro, por quem prestou ainformao sobre a morte do militar. Note-se que a famlia no temnem por que, nem como duvidar de algum que participa da guerra eque supostamente vem da frente militar com uma tal notcia; (ii) de-

    pois, pelo cimbanda ou pelo munianeki, com o seu quase sempreinquestionvel augrio. Posto isto, pergunto: poder-se-, no caso apon-tado, restabelecer a ordem?

    Note-se, entretanto, que situaes como a descrita tero ocorridoem vrios pontos do pas: alguns militares supostamente mortos emcombate, acabavam por aparecer, aqui ou ali, e ir ao encontro dos fami-liares. Alguns no o puderam fazer, obviamente, por terem perdido orastro das famlias que (mormente as dos meios rurais), em virtude dapresso da guerra, se movimentavam sucessivamente em busca de lu-gares mais seguros, acabando por dificultar a sua localizao. O teste-munho da morte de um militar das FAPLA, sobretudo de um soldado,era, em geral, dado pelos seus companheiros de armas, pelos seus pa-

    28 No contexto em que o mesmo usado, a expresso ser comido aplicada no sentido de sermorto. No caso, no se trata de matar, usando veneno ou arma, mas, sim, faz-lo com recurso

    a prticas obscuras e maliciosas de owanga(termo que designa o poder do mal).29 F., entrevista, Namibe, 08/2003.

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    res, quando supostamente conheciam algum da famlia. De contrrio,nunca se saberia, da mesma forma que pouco ou nada se sabe de grandeparte das crianas, jovens, mulheres e homens que foram arrastados

    fora para servirem UNITA.30Excetuam-se casos de oficiais do exr-cito, sobretudo os mais graduados. O passamento fsico de um militar,em combate, dificilmente era anunciado famlia pelas prprias chefi-as militares. Os nmeros, reais ou putativos, estes, sim, eram frequente-mente divulgados em jornais e atravs dos noticirios radiofnicos etelevisivos. Diante deste quadro impreciso, indireto, obscuro e medo-nho, impressionadas com os nmeros de baixas militares de ambas asalas da contenda, ou com os horrores de algumas imagens apresenta-das, ou com os sacrifcios da guerra, ou ainda com a falta de compreen-so das suas motivaes, as mulheres (mes, esposas, filhas, irms),no raramente angustiadas, tinham como alternativa nica chorar depesar; chorar quando fosse possvel; chorar para resistir dor ou, ento,afogar-se no trabalho para no mais chorar, reinventar estratgias paradissimular a dor, a perda, o vazio. Desta vacuidade em termos de not-cias, somada intensidade e ao perigo da guerra, emergiam os mauspressentimentos. A tendncia e a intensidade dos confrontos militaresnuma ou noutra zona de Angola eram suficientes para enegrecer o cora-o das mes, das mulheres, das filhas, enfim, dos familiares. As ima-gens dos cadveres expostos, das casas incendiadas, das vidas destro-adas, reveladas atravs dos meios de comunicao massiva, sobretu-do, nutriam a sua imaginao, aprofundavam a sua dor ao mesmo tem-po que os levavam a confrontar-se com as suas perdas e limitaes.Desconhecendo onde se encontravam os seus mancebos, qualquer um

    desses lugares de conflito armado era suposto ser o lugar onde eles seencontravam. Com efeito, podiam estar feridos ou at j mortos, embo-ra houvesse sempre a esperana do reencontro. Para algumas mulheres,tornavam-se freqentes os maus sonhos ou simplesmente os sonhos

    30 UNITA a sigla que corresponde, hoje, ao maior partido da oposio em Angola: UnioNacional para a Independncia Total de Angola. Comeou por se caracterizar como um movi-mento armado, liderado por Jonas Savimbi. Mas, mesmo aps as eleies legislativas e presi-

    denciais de 1992, nas quais participa enquanto partido poltico, a sua aco continuou at2002 a desestabilizar, em grande medida, a vida das populaes em diferentes regies do pas.

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    com os seus entes queridos que participavam na guerra. Entretanto,apesar da fora interior e do impulso produzido pelo desespero, elassentiam-se simplesmente impotentes para alterar ou exigir fosse o que

    fosse. Diga-se que condies para o efeito tambm no lhes foram ofe-recidas.

    Alega-se, como razes da ausncia de informaes diretas s fa-mlias, o fato de muitas delas ou estarem localizadas nos meios ru-rais, sem acesso s vias de comunicao, ou por se desconhecer a sualocalizao. Contudo, no difcil perceber tambm como razo o fatode muitos dos mancebos terem sido incorporados, fora, atravs derusgas (noturnas ou diurnas) e de raptos (sobretudo nas reas de atua-o da UNITA, e de acabar por serem colocados a combater nas linhasda frente e a morrer, sem qualquer registro de filiao, nem de endereodas suas procedncias. Para alguns deles, tudo ficou apenas na mem-ria dos colegas. Com efeito, continuam muitas destas famlias afetadas,ainda hoje, a aguardar pelo reencontro.

    Quando, em 2006, no Namibe, abordei esta questo com umamulher, cujo filho (ento desaparecido na guerra, de que participou como

    soldado das FAPLA) conheci, quando criana, percebi nela um mistode dor, de ansiedade e de esperana. Com os olhos marejados de lgri-mas, ela fitou-me nos olhos e, como que forjando, por antecipao,uma resposta, perguntou-me: Pode ser que o meu filho ainda esteja emvida, no ? [...] o outro [referia-se ao outro filho tambm militar] en-viou-me carta, mas ele nem uma s me enviou. Se ele est onde, se estonde [...] se tem vida, no sei [...].

    Diga-se, entretanto, que a razo do caos social no estar apenas

    nas crenas religiosas, nas representaes que as pessoas tm da morteou na importncia atribuda aos ovimbanda, aos ovanianeki e aosnganga.31Ela est tambm na distncia relacional entre as estruturasdas prprias Foras Armadas e as famlias dos militares. Alm dedesinformada, relativamente ao batalho, brigada ou ao ramo militarde que os filhos faziam parte, a grande maioria da populao, mesmo a

    31

    Ovimbanda, em oluhanda (lngua dos handas), designa o plural de cimbanda(ocimbanda).Por sua vez ovanianekidesigna o plural de omunianeki.

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    dos centros urbanos, desconhecia o paradeiro dos mesmos, assim comoa designao da frente militar em que estavam destacados. Nos casosem que se sabia, a famlia (incluindo as esposas) nunca era informada

    do local, da posio ou da regio para onde eram destacados os seusparentes militares. Raramente os prprios, ainda que sabendo antecipa-damente para onde se dirigiria a sua coluna militar, diziam aos familia-res, incluindo as esposas.

    Da convivncia que tive com militares das FAPLA, ouvi frequen-temente frases que revelavam uma intensa e latente desconfiana ouento uma estratgia de salvaguarda das suas prprias vidas, enquantomilitares, assim como a das famlias: eu no posso dizer famlia paraonde vou, quando sou destacado para alguma frente de combate; nose deve dizer nada, sabe-se l o que voc vai encontrar l a frente; eumesmo nem sei para onde vou. Essa ltima surgia, sobretudo, quandoeram interrogados pelas esposas, por ocasio da sua partida para o cum-primento de misses militares. No querendo deixar a famlia preocu-pada, preferiam evitar um sofrimento antecipado da mesma ou umafuga de informao. Entretanto, diz-se, tambm, que guardar um tal

    segredo reduzia o perigo de o militar ser exposto a prticas maliciosasde owanga (poder do mal). No saber nem para onde ia, nem para quandoseria o regresso do marido militar semeava incertezas que permitiamtambm, fala-se, reduzir as probabilidades de adultrio da parte dasmulheres durante a ausncia do marido: Muitas mulheres que puse-ram homens em casa, na ausncia do marido, foram apanhadas. Porquehomem militar chega de surpresa. Ele no avisa que estou aqui e chegono dia tal ou na hora tal.32

    Outra razo do caos social est na ausncia de comunicao en-tre os familiares e grande parte dos militares (uma lacuna reforadapelo elevado ndice de analfabetismo, no pas, pela ineficcia dos ser-vios de correio e camarrios, pela inexistncia de transportes pbli-cos, sobretudo nos meios rurais).33Ainda outras razes esto na desor-

    32 V., entrevista, Lubango, 08/2003.33

    O envio de cartas e encomendas por mos de outrem foi e continua a ser uma prtica que,reforada durante a guerra, contornou a ineficcia dos servios de correios e da comunicao.

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    dem dos diversos organismos do estado (um fato qui perceptvel, numpas em guerra), na ambio e na insensibilidade de alguns governantese chefes militares (que se iam locupletando com a guerra ao mesmo

    tempo que aumentavam o nmero de mulheres com as quais copular);34e, na atitude discriminatria e sutil de alguns chefes militares e gover-namentais que, excluindo das frentes de combate determinados nomes(por serem de famlia X ou por possurem a cor da pele Y), vitimaramuma maioria de desfavorecidos e desconhecidos, em nome da defesado pas. E eram muitos destes, cujo anncio sobre a sua morte, na fam-lia, dependia mormente dos companheiros. Um simples desaparecimentode algum do ngulo ptico durante o combate, ainda que por ferimen-to ou atraso no avano ou no recuo podia ser tomado, pelo companhei-ro, como morte, e assim transmitido famlia.

    Entre os handas (tal como noutros grupos sociais vizinhos, no-meadamente muilas, nkhumbis, ngambwes e nyanekas), a vida de umindivduo marcada por etapas sucessivas e heterogneas, com carac-tersticas peculiares, correspondendo cada uma delas a uma categoriasocial determinada. A ascenso a cada uma dessas categorias de modo

    especial o nascimento, os rituais de okupita pondje (a que so sujeitosos recm-nascidos), o efukoou o ekwendje (rituais de iniciao femini-na e masculina, respectivamente), o matrimnio e a morte implicauma passagem de um statusa outro, uma excluso (simbolizada pelamorte) e uma integrao ou renascimento. Implica, outrossim, comodiria Robert Hertz, uma mudana profunda e gradual da atitude mentalda sociedade com relao ao indivduo.35Ora, alm de destruir vidashumanas, de permitir a locupletao de uns em detrimento de outros, de

    34 A incerteza do futuro e a misria de uns, por um lado, a ambio, a arrogncia, a deslealdadee a ignorncia de outros, por outro lado, incitaram desvios comportamentais quer entre oshomens, quer entre as mulheres. Intensificada com a guerra e com o alargamento dos contatosentre as pessoas, quer fossem nacionais, quer outras, muitas das relaes matrimoniaispolignicas, assim como inmeras relaes sexuais fortuitas traduziram-se, em muitos casos,num mecanismo de represso e controle, de uso e de abuso do poder por parte de algunshomens (principalmente dos chefes civis e militares ou simplesmente dos homens endinheira-dos); num garante da sustentabilidade do lar para determinadas mulheres, algumas das quais

    j casadas. Traduziu-se, consequentemente, numa prtica abonatria do caos social e da imo-ralidade decorrente da guerra, contribuindo para a subverso dos valores tradicionais. Ver

    Melo,Homem Homem Mulher Sapo.35 Hertz Contribucin a un estudio.

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    desterrar famlias inteiras e de as despojar dos seus prprios bens, demultiplicar os matrimnios inter-tnicos e de acelerar o processo deaculturao, a intensidade e a extenso do perodo de guerra ps-inde-

    pendncia conduziu, de certo modo, ab-rogao das prticas morturi-as, nas zonas de conflito militar e no s. A guerra envolveu atos violen-tos, quer no seio de militares de uma mesma ala, quer entre os beligeran-tes, quer ainda no contato destes com a populao local; envolveu umaviolncia fsica e simblica que atingiu militares e no militares, incluin-do, aqui, crianas, velhos e mulheres grvidas; uma violncia que, aoultrapassar as alas beligerantes, se incrustou nos circuitos sociais restri-tos e nas dinmicas sociofamiliares, ou seja, se estribou em espaos inte-riores, domsticos e sagrados, transpondo, sobretudo aqui, todos os limi-tes dos desvarios humanos na relao entre si e com os antepassados.Longe de constituir uma exclusividade, prticas do gnero, estendendo-se por diferentes pontos do pas, foram, igualmente, identificadas emcontextos similares em Moambique e outros lugares.36

    Hodiernamente, no obstante o novo contexto, as mulheres, par-ticularmente, quando confrontadas com as prticas alternativas dos ri-

    tuais morturios, bem como com todo o cenrio vivenciado ao longo daguerra, parecem manifestar o que eu chamaria de limite do pesar;algo que, embora no palpvel, e aparentemente invisvel, est expres-so no seu olhar, na atitude, nas palavras e nos gestos. Interrogo-mesobre se isso traduzir a idia de chega, a guerra acabou, vamos esque-cer o passado, reconstruamos agora o pas. Percebo, entretanto, que oreferido limite do pesar traduzido de diversos modos, nomeada-mente no silncio explcito manifesto diante da dor e do desespero ao

    longo da guerra, na inrcia defronte a um corpo ptrido exposto, noesforo em conter as lgrimas diante do cadver de um ente querido ouda violao de um corpo indefeso est, hoje, dissimulado, na prolon-gada mudez que se segue s inmeras perguntas sobre as suas vivnciase perdas no passado recente de guerra. Est, igualmente, dissimuladona avidez com que elas multiplicam os afazeres para suprimir a acalmia

    36

    Ver Paulo Granjo, Limpeza ritual e reintegrao ps-guerra em Moambique,Anlise Soci-al, vol. 42, no182 (2007), pp. 123-44; Honwana,Espritos vivos.

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    e lutar pela prole. Esta ltima pode at ser entendida como uma estrat-gia de sobrevivncia das mulheres. O certo que, ao excederem-se nassuas diligncias, alm de verem aplacada a dor da perda, elas se tornam

    potencialmente mais fortes. nesse contraste de dor e de luta que asmulheres evoluem e se emancipam, elas que so o alicerce da famlia eo fundamento da linhagem. Se se desmoronarem, tudo parece decom-por-se sua volta, sejam a famlia e a educao das crianas, sejam oscostumes e a tradio.

    Crenas e estratgias

    Tal como mencionei, no contexto das crenas religiosas dos handas, arelao de Deus com as pessoas intermediada pelos onosande(espri-tos ancestrais), com os quais aquelas estabelecem uma relao estreita,no seu quotidiano. Na guerra, como em qualquer outra circunstncia,tornam-se imprescindveis os cuidados dos onosande, e o recurso aosmesmos quando da integrao de um mancebo nas fileiras militares constitui prtica comum. Mais do que os homens, so as mulheres, so-bretudo as mes, que mais se expem, na relao com os onosande, embusca da sua proteo. Para este fato concorrem, nomeadamente, o elomaternal, a ansiedade das mes, as suas prprias fragilidades e incum-bncias, o desejo de verem suas splicas atendidas, assim como o medode terem os filhos feridos ou mortos na guerra.

    Para alm do reforo das redes de solidariedade por si j exis-tentes nas relaes do quotidiano ou outras, emergentes da conjuntu-ra da guerra, socorrer-se do cimbandaou, simplesmente, dos recursos

    botnicos locais constituiu tambm uma das estratgias de sobrevivn-cia em conflitos armados. Entende-se que o cimbandadetm o poder, aprtica e o dom da cura, assim como o de abordar os espritos ances-trais. Consequentemente, socorrer-se do mesmo visa a consecuo degarantias para o afastamento do mal, do perigo. No que concerne aosrecursos botnicos, cr-se que localmente existem espcies fitolgicascom poderes de cura, de proteco (incluindo-se, aqui, a proteo con-tra males de provenincia de owanga), e de neutralizao de poderes

    maliciosos perpetrados pelo inimigo. O manuseamento de armas de fogo,

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    cobertos por determinadas espcies botnicas, na frente de combate,explica no s o furor de alguns militares na linha da frente como ofracasso de fileiras inimigas, quando do confronto entre si. No se ge-

    neralizando, ressalte-se, entretanto, que a observncia de tais prticaspode circunscrever-se apenas a determinadas famlias; pode constituirum recurso pontual dos prprios militares, ou seja, dos prprios indiv-duos em risco e influenciados pelas circunstncias. Com efeito, poden-do achar-se na famlia, a sua motivao pode ser, de todo, pessoal, oupartir do convvio com os companheiros de armas; pode, outrossim,fundar-se nas crenas e nas fragilidades de cada um. Da, nem todosaderirem a tais prticas.

    Diga-se, entretanto, que, em Angola, com ou sem o envolvimen-to direto dos ovimbanda, a participao de determinados militares, naguerra, passou, independentemente da sua origem tnica ou statussoci-al, por prticas ritualsticas de natureza obscura. Fosse no intuito dedesviar balas inimigas, fosse para se revelarem eles mesmos invisveisdiante do inimigo, afastarem o medo, mostrarem-se corajosos diante doperigo, etc., o certo que, de ambos os lados da contenda, a participa-

    o na guerra, assim como o desenvolvimento dessa, nunca esteve dis-sociada de tais crenas e prticas. No entender de alguns, um tal aco-metimento com poderes extraordinrios e prticas ritualistcas com osfins referidos permitiu-lhes, igualmente, extravasar nas suas prticas deguerra. E, embora se protegessem de males contra si, no exerccio dasua misso, os soldados misturaram-se, tal como os outros (tidos porinimigos), com o sangue alheio e acharam-se no meio dos mortos e damorte. Legitimando o carter emotivo do guerrilheiro, participaram

    muitos deles de chacinas, adotando, como foi mencionado, comporta-mentos que ultrapassavam os critrios locais e, no s, de tolernciacom relao aos combatentes em contexto de guerra. O assassnio decrianas, o estupro, a decapitao de seres humanos, a humilhao dooutro, a profanao dos cadveres e a perversidade, constituindo, en-fim, algumas das prticas, no decurso da guerra, fazem agora parte damemria; da memria individual e social; de uma memria que no sefixa no passado, mas que se reconstri, frequentemente, no quotidiano

    dos indivduos, das famlias. Protegidos ou no, por via dos espritos

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    ou do poder do owanga, impe-se a reintegrao dos soldados, quandodo seu regresso casa; uma reintegrao, alis, nem sempre possvelou aceite, quer pelos mesmos, quer pelos outros. Note-se que o estigma

    do passado e a memria social ainda recente dos acontecimentos, po-dem, por si s, constituir um handicapnesse processo e assombrar oimperativo da tolerncia e do perdo na reconstruo do pas e na rein-tegrao social. Entretanto, so, ainda assim, matizados pelas atitudes epelas condies psicolgicas e fsicas dos indivduos implicados. Con-forme os casos, para muitos destes, a consecuo da sua reintegraopassa pelo cimbanda; passa por uma limpeza fsica e espiritual; passapor um tratamento ritual; passa pela expurgao dos males e do perigoque se cr advirem da sua participao na guerra.

    Entretanto, refira-se, a sujeio aos rituais de limpeza por par-te de determinados indivduos, por iniciativa prpria ou da famlia, podeser feita com ou sem a presena de um cimbanda. Em qualquer um doscasos, importa a supresso do trauma da guerra, o resgate da integrida-de da pessoa em causa, o simbolismo da passagem e a reintegrao doindivduo. Contudo, para os casos graves de dolo, de intransigncia

    comportamental no percurso da guerra, de impureza, exigindo-se a par-ticipao dos ovimbanda(plural de cimbanda), importa tambm o pro-cesso ao qual o indivduo se sujeita; importa a prpria ritualizao dacura, assim como da passagem. Convm referir que, no obstante umtal ritual estruturar-se nos moldes tripartidos de Van Gennep e Turner,conferindo uma nova condio ao indivduo e iniciando-o numa novavida, ele difere, substancialmente, dos rituais de efukoe de ekwendje(rituais de iniciao feminina e masculina, respectivamente) aos quais

    as raparigas e os rapazes so submetidos; rituais estes que visam, entreoutros, legitimar a transformao do ser, enquanto indivduo, assim comoa passagem dos iniciados para um novo estatuto, classe etria ou condi-o que garanta a sua participao plena na vida social.37Enquanto oefukoe o ekwendjecelebram a vida, sancionam a transferncia de co-

    37 Ver Gennep, Os ritos de passagem; Victor Turner, La selva de los smbolos. Aspectos del

    ritual ndembu, Madri, Siglo Veintiuno Editores [1967] 1980; idem, Processo ritual. Estruturae antiestrutura, Petrpolis, Brasil, Vozes [1969] 1974.

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    nhecimentos e poderes exclusivos dos iniciados, inculcam valores, pre-vinem desvios comportamentais, os outros, isto , os rituais de limpe-za, pela sua natureza, possuem um carter reparador, centram-se na

    correo de desvios de conduta, na reabilitao dos traumas, das mcu-las ou dos mal-estares fsico-mentais.

    Importa mencionar que, no perodo ps-guerra, as prticas ritua-lsticas relativas reintegrao social de ex-militares e de pessoas co-muns traumatizadas pela guerra, resultam do mesmo modo que aquelasreproduzidas para afastar males e perigos com origem em espritos deum esforo individual e ou familiar; de um esforo desenvolvido no sen-tido de conferir aos implicados novas oportunidades e novas vivncias ede permitir o reequilbrio das relaes sociofamliares. No obstante ascircunstncias de que tais desequilbrios, impurezas e perigos resulta-ram, apesar da teno que norteia tais prticas, as famlias suportam sozi-nhas os encargos, salvo raras excees. A prpria natureza dos pressu-postos que deram lugar sujidade moral do indivduo promove umcerto recato dos mesmos e das famlias, no que toca sujeio ao ritual.Isso porque, como se diz, uma coisa o indivduo ter sido vtima de

    guerra e, por isso, ter ficado traumatizado; outra, ter feito parte da cha-cina, e agora precisar de aceitao dos outros e de reintegrao.

    Sublinhe-se que, talvez pelo fato de terem de assumir sozinhas,em geral, os desgastes, os custos e outras implicaes relativas s prti-cas ritualsticas de limpeza ritual, a noo de uma limpeza ritualpblica e participada, abarcando grupos de ex-soldados e famlias, le-vada a cabo atravs de rgos especializados, perpassa, sobretudo, nassuas conversas e suspiros. Portanto, limpar ritualmente constitui ao

    mesmo tempo uma necessidade e um problema social. Embora latente,um tal problema subsiste. Entretanto, carece de alguma ateno dosrgos do poder e do estado.

    Crenas e rituais de purificao

    Na perspectiva das mulheres handas, corroborada pelos homens, a guerrainstalou a desordem, no seio familiar e social, acomodou a poluio ou,

    como diria Mary Douglas, a impureza, um fato traduzvel como sendo

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    uma ofensa contra a ordem social.38Melhor dito, no tendo os espri-tos encontrado o seu rumo (ou porque no foram enterrados ou porqueno foram sujeitos aos rituais), cr-se que continuam, atualmente, e no

    obstante o novo contexto (de paz), a deambular pelos locais onde fo-ram abandonados e no s. Desta feita, atuam poluindo o meio socialcircundante e perturbando a vida dos vivos, o que eleva a angstia dosfamiliares. No seu exerccio do poder, no exerccio de preservao dacultura, de transmisso do saber do grupo, bem como no de educado-ras, so as mulheres as que mais fortemente manifestam esta angstia,esta preocupao com os defuntos.

    Cr-se, entre os handas, que a morte por si s seja um elementode poluio. Ela mancha e marca. O contato com o morto, a permann-cia excessiva no meio de conflitos sangrentos, o homicdio, etc. sotambm tidos como fatores de poluio social que, por sinal, so igual-mente assim considerados noutros grupos sociais vizinhos, nomeada-mente os muilas, os nyanekas e os ngambwes. Entretanto, o estado deimpureza ou de poluio pode, igualmente, advir de outras circunstn-cias. Determinadas doenas e estados resultantes da morte de entes que-

    ridos, nomeadamente a viuvez, ou da no passagem pelos rituais deiniciao (como o efukoe o ekwendje) so igualmente vistos como umestado de impureza.39Com efeito, existem, como foi mencionado, me-canismos de purificao desses estados e situaes, alguns dos quaispassam necessariamente por rituais ministrados por agentes especiais,de modo especial os ovimbanda, ou os mais velhos da famlia. Taisrituais podem ser simples como uma lavagem simblica a seco, efetua-da por uma pessoa adulta da famlia, em ambiente domstico, que

    massageia o corpo do indivduo em causa e profere, simultaneamente,elocues verbais dirigidas aos espritos ancestrais. Mas, podem tam-bm ser complexos, necessitando, para o efeito, de pessoas especializa-das, como o cimbanda, para orientarem o ritual. Nesse caso, os rituaispodem incluir banhos de sangue fresco retirado de uma rs sacrificadapara o efeito, banhos rituais em rios ou em cruzamentos de caminhos eo uso de determinadas plantas medicinais. Qualquer um desses rituais,

    38

    Mary Douglas, Pureza e perigo, Lisboa, Edies 70, s.d., p. 14.39 Melo,De menina a mulher; idem, Mulher aquela que.

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    pressupondo uma limpeza e uma purificao, cumpre a funo de reporo equilbrio, apaziguar os espritos, restituir uma vida normal no seiodo grupo, reconstituir as suas identidades.

    Instalada a impureza social, em Angola, com a prolongadaguerra, resta, no entendimento dos handas, elimin-la, limp-la, porforma a repor a ordem, a organizar a estrutura social, a dar a viragem, apr fim ao luto. A reconstruo do pas, na acepo de muitas das mu-lheres com as quais tenho trabalhado, decorre disto. De contrrio, di-zia-me uma das minhas entrevistadas, ser como tapar uma ferida cr-nica com ligadura e fingir que ela no est ali, porque est.40Nessaperspectiva, a efetividade da paz e da reconstruo nacional, no pero-do ps-guerra, em Angola, passa pela limpeza, no seio social, dosespritos desorientados; passa pela conduo dos mesmos ao mundodos mortos; passa pelo pagamento da dvida contrada com os entesqueridos, decorrente da no realizao dos rituais; passa tambm pelademarcao ritual do termo do luto. No dizer da j mencionada entre-vistada [...] no basta tapar a ferida. preciso cur-la para ultrapassar.E no se supera essa dor, no se paga essa dvida, no se acaba esse

    luto, no se honram os defuntos se no cumprirmos com o que nos devido fazer.41

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    R., entrevista, Namibe, 08/2005.41 Ibid.

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    ResumoA morte um tpico destacado frequentemente, e de diferentes modos, emvrios contextos sociais. Em Angola, por exemplo, devido prolongada guer-ra civil de que foi alvo, este assunto foi sucessivamente abordado pelos rgosde comunicao massiva, pelos polticos e investigadores. Entretanto, quasenada se sabe sobre o modo como, luz das diversas culturas locais e das expe-rincias individuais, a morte e os rituais morturios tm sido tratados entre aspessoas que vivenciaram a guerra. Nem mesmo se conhece a abordagem dasmulheres sobre esse assunto, essas que se confrontaram com a perda dos ho-mens da famlia no contexto mencionado. Este artigo tem esta preocupao: apartir da anlise de um contexto particular no sul de Angola, o dos handas,expe alguns dos sentimentos e das emoes das mulheres, emergidos dessepassado de guerra. Ao mesmo tempo, e atendendo s suas crenas, articula taissentimentos e emoes com as prticas rituais, nomeadamente as de carterreparador.

    Palavras-chave: AngolaMulheresRituaisGuerraEmoes

    Death, Spirits of the Dead and Cleansing Rituals in the Angola Post-War:

    How to Put an End to Mourning?

    Abstract

    Death is a subject that is emphasized frequently and in different ways in various

    social contexts throughout the world. In Angola, during the prolonged civil

    war, death was frequently discussed by the media, by politicians and by

    researchers. However, very little is known about the manner in which those

    who endured the war, in diverse local cultures and with varying individual

    experiences, perceived death and its rituals. This paper focuses on attitudes

    about death among women who faced the loss of male family members in the

    war. Analyzing the situation of Handa women in southern Angola, the paper

    focuses on the sentiments and emotions that emerged during wartime, linking

    these to mortuary rituals, especially those that seek to cleanse and restore.

    Keywords: Angola Women Rituals War Emotions