A MORTE NO IMAGINÁRIO COLETIVO MEDIEVAL: O OLHAR ...
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A MORTE NO IMAGINÁRIO COLETIVO MEDIEVAL: O OLHAR
CONTEMPORÂNEO DE INGMAR BERGMAN NO FILME O SÉTIMO SELO1
Edilson Baltazar Barreira Júnior
Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza (FAMETRO)
Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC)
Resumo: O artigo apresenta uma análise do filme O Sétimo Selo do cineasta sueco Ingmar Bergman. A interpretação busca mostrar que a película embora sendo ambientada na Idade Média, porém desnuda o homem moderno, com seus medos, angústias e temores, como o enfretamento da morte. Bergman constrói uma alegoria na qual o cavaleiro Antonius Block (Max von Sydow) ao retornar das Cruzadas joga a decisiva partida com a Morte. A investigação procura vincular o universo pessoal e o ambiente sociocultural vivido pelo autor, incluindo sua formação protestante luterana, dramatúrgica e cinematográfica com uma concepção de morte a qual é tematizada cinematograficamente.
Palavras-chave: Ingmar Bergman. Cinema. Morte.
1 INTRODUÇÃO
O Sétimo Selo (Det sjunde inseglet, 1956) é uma obra-prima do cinema
mundial, que contempla quatro temáticas recorrentes no cinema de Ingmar Bergman –
Deus, morte, amor e arte. O argumento do filme é simples. O cavaleiro Antonius Block
(Max von Sydow) retorna da Cruzada na Terra Santa com seu escudeiro Jöns (Gunnar
Björnstrand) e encontra seu país devastado pela Peste Negra2. Os religiosos atemorizam
o povo com a mensagem de que o fim do mundo está próximo. Os fiéis, por sua vez,
flagelam-se para expiar a culpa. No percurso de volta para casa, Block depara-se com
várias pessoas, uma jovem acusada de bruxaria, uma trupe de artistas mambembes, um 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 3 e 6 de agosto de 2014, Natal/RN.2Epidemia devastadora que assolou a Europa entre 1346 e 1352, matando mais de um terço da população do continente. Hoje esta epidemia é concebida como Peste Negra, mas na época era chamada A peste ou Morte negra. Apenas no ano de 1894 foi descoberto que a doença é provocada pelo bacilo Pasturella pestis, cuja manifestação se dá de três formas: a pneumônica, que ataca os pulmões; a septicêmica, cuja infecção se dá na corrente sanguínea; e a bubônica, a mais corriqueira, cujo nome deriva das tumefações do tamanho de um ovo, conhecidas como bubos, que surgem no pescoço, nas axilas ou nas virilhas do doente nos primeiros estádios da doença (BOYLE, 1991, p. 34).
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ferreiro e sua esposa, além da presença constante da morte personificada, com quem
joga uma partida decisiva de xadrez.
Logo no início, após os créditos, há uma inscrição na qual Bergman situa o
momento histórico em que ambienta o filme: “na metade do século XIV, Antonius
Block e seu Escudeiro, depois de muitos anos como Cruzados na Terra Santa, voltam
enfim à sua Suécia natal, um país devastado pela Peste Negra”.
Ernest Ingmar Bergman Äkerblön nasceu em Uppsala, cidade universitária
da Suécia, em 1918, filho de Erik Bergman, austero pastor luterano da paróquia de
Hedwidge-Eleonora, e Karin Bergman, oriunda de uma família burguesa. O cineasta
sueco faleceu em 31 de julho de 2007. A obra cinematográfica de Bergman, seus livros
e entrevistas são marcadamente autobiográficos. Ele opera uma aproximação entre seus
filmes e sua vida privada. Boa parte das histórias narradas flui da atmosfera de suas
experiências e lembranças, principalmente aquelas relacionadas com a infância e a
juventude.
Os filmes de Ingmar Bergman têm grande relevância na cinematografia
mundial, em vista das reflexões estéticas, sociais e filosóficas neles suscitadas. Assim,
decidi analisar uma destas obras, o filme O Sétimo Selo, pois entendo que o universo
pessoal e o ambiente sociocultural vivido pelo autor, incluindo sua formação protestante
luterana, dramatúrgica e cinematográfica, viabilizaram uma concepção de morte a qual
é tematizada cinematograficamente.
Este trabalho vem somar-se aos estudos de outros pesquisadores que se
debruçaram na análise dessa película. O mundo acadêmico brasileiro pouco se dedicou
à obra bergmaniana, mas destaco a relevante contribuição de Lênia Márcia Mongelli,
professora da Universidade de São Paulo, que no artigo intitulado Ingmar Bergman e o
jogo da morte empreende uma profunda análise do filme. Saliento também a existência
em língua portuguesa da tradução do livro O Sétimo Selo de Melvyn Bragg publicado
pela Editora Rocco. Ressalto ainda, o livro de Fabrizio Marini intitulado Il Settimo
Sigillo. Estas obras e muitas outras possibilitam um diálogo profícuo, bem como
apontam novos caminhos de investigação, alguns dos quais tentei trilhar neste artigo.
Bergman informa que o filme foi concebido, inicialmente, como peça em
um ato, destinada ao exame final dos alunos do Teatro de Malmö, onde era professor,
intitulada Uma pintura em madeira. O cineasta ressalta que há na película a marca de
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suas memórias da infância, conforme relata na obra autobiográfica Lanterna mágica,
principalmente quando acompanhava seu pai nos ofícios religiosos3. Bergman expressa,
ainda, que, quando concebeu a peça, havia comprado um gramofone e adquirido o disco
Carmina Burana de Carl Orff, cuja base refere-se a “canções de viajantes medievais,
dos anos da peste e de guerra, quando bandos de gente sem teto percorriam o país. Entre
essa gente havia estudantes, monges, padres e saltimbancos”4. Assim, aliada a esta ideia
e a peça sobre o retábulo da peste foi que deu origem O Sétimo Selo. O filme foi
realizado em trinta e cinco dias e com parcos recursos. O Cineasta sueco alude à obra
como um dos filmes que acalenta o coração.
A aproximação entre cinema e imaginário é grandemente explorada por
Edgar Morin em seu livro Cinema ou o homem imaginário. A trilha que ele percorreu
em seu ensaio foi a de associar a sétima arte ao sonho. Isto fica ainda mais claro quando
Morin define o cinema como sendo “um complexo de realidade e irrealidade,
cavalgando sobre a vigília e sobre o sonho, vai determinar um estado misto”5.
Portanto, para Morin, o cinema entra no campo do imaginário a partir do
momento em que as aspirações, os desejos, os medos, os temores do homem são
captados e modelados nas imagens, ordenando segundo uma lógica própria, os mitos, os
sonhos, as crenças, as religiões, as literaturas, ou em outras palavras todas as ficções.
Assim, o imaginário passa a ser a prática espontânea do homem que sonha.
O Sétimo Selo é composto por muitos planos gerais6, que, de acordo com
Arecco7, são mais pictóricos do que narrativos. Entendo que esta estética tem
comparativo com outros filmes de Bergman, como Gritos e Sussurros e Persona, por
exemplo, cuja marca é o destaque do rosto das personagens. Em O Sétimo Selo, porém,
veem-se vários quadros, como o da Morte, que joga xadrez com o cavaleiro; o da peste;
3Bergman relembra que quando garoto, era assíduo visitante das igrejas medievais, e enquanto seu pai pregava, ele contemplava e admirava a iconografia presente nos altares, retábulos, crucifixos, vitrais, murais, afrescos, Jesus crucificado ao lado dos ladrões, o cavaleiro que joga xadrez com a Morte e que corta a árvore da Vida; a Morte que empunha a foice conduzindo a dança para o mundo das trevas. Sublinha ainda “é verdade algumas igrejas são autênticos aquários, nelas não se vê um lugar seco, limpo de imagens. Em todo o lado os seres humanos, santos, profetas, anjos, satanás e diabinhos. Fumegam por toda a parte, aqui como no Além. Realidade e fantasia formam uma liga indissolúvel, é como se dissessem: Olhe para sua obra, pecador! Veja o que o espera do outro lado do rio, veja a sombra que se esconde atrás de suas costas”. (BERGMAN, 2001, p. 229-230).4 BERGMAN, Ingmar. Imagens. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 230.5 MORIN, Edgar. Cinema ou o homem imaginário: ensaio de antropologia. Lisboa: Moraes Editores, 1980, p. 139.6O plano geral é definido em relação à cena, enquadrando na sua totalidade. (COSTA, 1989).7 ARECCO, Sergio. Ingmar Bergman: Segreti e Magie. Genova: Le Mani, 2000, p.118.
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o da execução na fogueira da jovem acusada de bruxaria; o da procissão dos flagelantes,
como se fossem quadros de uma imaginária lanterna mágica.
A temática religiosa é bem evidente ao longo de todo o filme, justificada
pelo próprio Bergman:
Dado que, naquele tempo, eu ainda não me libertara da problemática religiosa, há dois conceitos no filme, um ao lado do outro. A cada um dei possibilidade de se exprimir em sua própria linguagem. Daí existir neste filme um armistício relativo entre a crença religiosa, de menino, e um rude racionalismo, de adulto. Entre o Cavaleiro e seu Escudeiro não se vê nenhuma complicação neurótica (...) naquele tempo eu ainda vivia com uns restos de uma fé de criança, a ideia absolutamente ingênua do que se poderá chamar uma possibilidade de salvação para além deste mundo8.
O religioso ao qual Bergman se refere está presente desde o início do filme.
Nas primeiras imagens, há um jogo de luz e sombras. A tela escurece para depois
iluminar-se, e nela se vê uma águia9 planando, em seguida; há um corte mostrando uma
praia deserta. A música Dies irae é interrompida e ouvimos uma voz-off, que lê o
seguinte trecho do livro Apocalipse10 do evangelista João: “e, quando o Cordeiro abriu o
sétimo selo, fez-se silêncio no céu, quase por meia hora. Então os sete Anjos, que
tinham as sete trombetas, preparam-se para tocar a trombeta”11.
Este trecho é lido mais uma vez no final do filme, quando Block acolhe os
companheiros de viagem em sua casa. Karin (Inga Landgré), esposa do cavaleiro, junto
à mesa, lê o texto integral. É interessante observar que Bergman lança mão de uma
passagem bíblica para intitular um de seus mais célebres filmes.
Os eventos bíblico-escatológicos, relacionados ao Juízo Final e à morte,
atormentavam o homem medieval, como ensina Ariès:
A partir do século XII, a iconografia desenrola durante cerca de quatro séculos na tela dos portais decorados com cenas sagradas o filme do final dos tempos, as variantes do grande drama escatológico que deixa transparecer, na
8 BERGMAN, Ingmar, op. cit., p. 233-234.9 Mongelli (2009, p. 99) descreve a ave como uma gaivota marinha, mas atribui a correlação com uma águia, notadamente, pela leitura de Apocalipse 4:7, visto ser este livro bíblico que dá unidade ao filme. O livro de Daniel 7:4 também faz alusão a uma águia no sonho que o profeta teve durante o governo de Belsazar, rei da Babilônia.10O livro de Apocalipse pertence a uma classe especial de escritos chamados de apocalípticos. A palavra de origem grega significa desvelamento ou revelação. A literatura apocalíptica foi muito utilizada pelos judeus durante e após o cativeiro babilônico (um exemplo é o livro do profeta Daniel). O propósito básico destes escritos era ressaltar a manutenção da lealdade, bem como incutir a fé, revelando fortes elementos simbólicos a derrota certa e infalível das forças do mal e a vitória final da causa de Deus. Essa forma literária era produzida em épocas de tribulação, provação e infortúnio, como nos primeiros anos do Cristianismo. Assim, ante as adversidades, é que João escreveu o livro, cujo texto objetivava tanto esconder como revelar - esconder o significado da mensagem a um não cristão mediante alegorias, que por sua vez, eram conhecidas dos cristãos. (SUMMERS, 1978, p. 19-21). 11 Apocalipse 8: 1, 2.
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sua linguagem religiosa, as inquietações novas do homem na descoberta de seu destino (...) Essa iconografia reproduz essencialmente três operações: a ressurreição dos mortos, os atos de julgamento e a separação dos justos que vão para o céu, dos malditos que são precipitados no fogo eterno12.
Consoante Jean Mambrino, comentado por Siclier13, no fragmento do livro
de Apocalipse em que Bergman se inspirou para intitular o filme, não há nenhuma
relação com a morte. Segundo o crítico de cinema, o tema diz respeito ao Julgamento
Universal e ao Dia da Ira do Senhor, que se anunciam ao longo de histórias de
catástrofes e guerras, sem nenhuma insistência especial sobre a morte individual. No
texto bíblico, o sétimo selo, ao ser aberto, não desvenda os segredos da vida e da morte,
mas o julgamento de Deus sobre toda a humanidade.
Bergman não é um exegeta bíblico. Assim, se o fragmento do texto sagrado
sobre a abertura do sétimo selo está falando da morte individual ou coletiva, pouco
importa ao Cineasta. Entendo que o filme fala da morte individual e coletiva, mas, a
partir da iconografia e do imaginário coletivo medieval, cuja figuração expressava o
desespero do povo diante da peste devastadora, entendida pelos clérigos (intérpretes
oficiais da Bíblia) como manifestação da cólera divina.
No início do filme veem-se os cavalos à beira-mar. Block acorda-se e o
escudeiro dorme profundamente com um punhal na mão. O cavaleiro levanta-se e lava o
rosto. Quando retorna, ajoelha-se para a prece matinal. Nenhuma palavra é proferida.
Logo se levanta, como se uma dúvida atroz apoderasse sua existência e desistisse de
rezar. Ao voltar para o local onde dormira, mexe em seus pertencentes. Próximo há um
tabuleiro de xadrez pronto para o início de uma partida. Block vira o rosto e percebe a
aproximação de uma pessoa vestida em um longo manto preto e descobre que é a morte
personificada intentando tragá-lo.
2 A MORTE PERSONIFICADA
O cavaleiro passara mais de dez anos lutando nas Cruzadas, convivendo
com a morte a cada instante. O escudeiro, mesmo dormindo um sono profundo, ainda
mantém o hábito de guerra, pois está com o punhal pronto para desferi-lo ao menor sinal
de perigo. Block, no caminho de volta para casa, encontra a morte personificada. A
iconografia religiosa, a qual Bergman contemplava quando criança nas igrejas
medievais, é a mesma invocada por Block, quando desafia seu interlocutor a jogar
xadrez, indicando que descobriu a habilidade do adversário pelas pinturas. A partida 12 ARIÈS, Philippe. O Homem diante da Morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, p. 108.13 SICLIER, Jacques. Ingmar Bergman. Paris: Edtions Universitaires, 1960, p. 127.
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inicia-se e passa a ser a última tentativa do cavaleiro de descobrir os segredos da vida e
da morte.
Bergman, mesmo vivendo imerso no ambiente protestante, criou outras
formas de percepção, conforme se manifestam em sua obra cinematográfica. Durand
assinala que o “imaginário protestante” combateu, desde cedo, a estética da imagem e a
veneração dos santos esculpidos e pintados (imagens figurativas), com a destruição das
estátuas e quadros. Esse iconoclasmo radical diminuiu de intensidade com o “culto” às
Escrituras e à música14. Lutero, que também era músico, considerava a Senhora
Música15 um elemento importante do culto a Deus, situada logo depois da Teologia.
Bergman, de certa forma, rompe com a tradição imagética do protestantismo luterano ao
estampar em seus filmes uma rica iconografia.
A Morte (Bengt Ekerot), fotografia de Gunnar Fischer
Segundo frisa Cowie16, a cena inicial em que a Morte aparece ao cavaleiro
de forma sorrateira e silenciosa, aliada à supressão de efeitos sonoros e mantendo
apenas o ruído das ondas, constitui uma das “entradas” mais impressionantes da história
do cinema. De acordo com o crítico, talvez se a cena fosse realizada por outro cineasta,
poderia criar uma situação ridícula, mas nas mãos de Bergman se tornou um momento
de rara beleza.
14 DURAND, Gilbert. O imaginário: Ensaio acerca das Ciências Sociais e da Filosofia da Imagem. Rio de Janeiro: Difel, 1998, p. 23.15 A expressão alemã Frau Musika.16 COWIE, Peter. Ingmar Bergman: Biographie Critique. Paris: Seghers, 1986, p. 157.
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A Morte, apesar de sua terrível missão, não é apresentada como uma figura
macabra, pois o rosto pálido lembra um clown17. Além da máscara, há um relativo senso
de humor, por exemplo, quando escolhe as peças pretas e diz ao cavaleiro – bem
apropriado, não achas? Neste momento, no qual define o preto como seu tom preferido,
há um contraste da iluminação entre o branco e o negro, como uma contraposição entre
vida e morte. A Morte também se revela ambígua em sua personagem, interpretada por
um homem, o ator Bengt Ekerot, quando pela situação alegórica deveria ser uma figura
feminina.
Na entrevista que Bergman concedeu a Melvyn Bragg, em 1978, à BBC de
Londres, outra ambiguidade flui da conversa. O jornalista entende que a Morte se
parece mais com um monge e o cineasta insiste em um clown. Bragg defende sua
posição:
A ambiguidade não podia ser enunciada de maneira mais sucinta. Ataquei a jugular religiosa, que é onde o filme influiu em mim; mais de vinte anos depois de realizá-lo, Bergman me apresentou a uma interpretação que parece menos convincente quando se pensa no filme, mas que seguramente um traço de caráter que pode assentar no personagem Morte. Se ele é “como” um monge, então é o monge diabo, mas veste-se como um monge e realmente numa sequencia posterior do filme personifica um monge para levar vantagem sobre o Cavaleiro. Se é um clown, com toda sabedoria e a enfastiada visão da vida que um clown de Bergman possuiria, então é como o Bobo de Lear e interpretando um papel dos mais sérios, clown como verdadeira voz da realidade, não um clown cômico18.
Bergman, sobre a concepção da figura da Morte, discutiu com o ator Bengt
Ekerot e chegaram à conclusão de que “teria as feições de um palhaço, maquilado de
branco. Bem, seria uma síntese de feições de palhaço e de caveira”19. Assim, entendo
que a síntese proposta pelo Cineasta gerou este clown o qual Bragg chama de “voz da
realidade”.
Assinalo neste trabalho, que Bergman, em sua obsessão e temor da morte, a
rechaça pela representação ou publicidade, o que está na contramão das práticas sociais
de luto na contemporaneidade ocidental, que tudo faz para ocultá-la. Em seus filmes,
como O Sétimo Selo, no qual o Cineasta estampa a iconografia e o imaginário coletivo
do mundo medieval, representar a morte, conforme sublinha Company20, é um arriscado
exercício, pois ela é o irrepresentável por excelência. Apesar desta dificuldade, no
17A tradução mais comum para clown em Língua Portuguesa é a palavra palhaço, mas a ideia é mais ampla de que um mero artista circense, conforme informa Rizzo Jr. (1994).18 BRAGG, Melvyn. O Sétimo selo (Det Sjunde Inseglet). Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 33.19 Bergman, Ingmar, op. cit., p. 234.20 COMPANY, Juan Miguel. Ingmar Bergman. Madrid: Ediciones Cátedra, 1999, p. 67.
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entanto, entendo que Bergman consegue prender o público, com genialidade, levando
para a tela imagens que fazem refletir sobre a vida e a morte.
Jöns prepara os cavalos para retomarem a viagem. Ao longo da cavalgada,
Block permanece em silêncio, enquanto o escudeiro canta: “entre as pernas de uma
prostituta está o conforto para um homem como eu. Deus está lá em cima, ele está tão
longe, mas o seu irmão o diabo encontramos por todo o lado”.
Jöns não está preocupado com questões espirituais, pelo contrário, ele
blasfema contra Deus, colocando-o ao mesmo lado do Diabo. E, ainda mais, Deus é o
transcendente que está distante no céu, enquanto o diabo em sua “imanência” está por
todo lado. Bergman, por meio de Jöns, subverte a teologia cristã, pois, tanto no
Catolicismo Romano como no Protestantismo, Deus é visto como transcendente-
imanente. Estas constelações cristãs entendem que, de fato, ele está distante, mas ao
mesmo tempo está perto, pela expressão visível, o Cristo.
Bergman, porém, provoca o público quando identifica o Diabo, o eterno
inimigo na tradição cristã, como a manifestação visível de Deus, como indica o cântico
de Jöns “mas o diabo seu irmão está por todo lado”. Cristo, a expressão fenomênica da
imanência de Deus, no filme, não passa de uma imagem agonizante pendurada na cruz,
totalmente impotente para ajudar os homens em seus infortúnios.
O Cineasta deixa bastante claro que, se Deus existe, não está preocupado
com o homem. Isto está reiterado no segundo diálogo de Block com a Morte. Enquanto
Jöns conversa com o pintor (Gunnar Olsson), que elabora um mural com a temática da
dança da morte no interior da igreja, objetivando alertar o povo que um dia todos
morrerão, Block, por sua vez, está aflito diante de um grande crucifixo com a imagem
do Cristo sofredor. O cavaleiro percebe a presença de um indivíduo vestido num manto
preto, deduz ser um monge e pede para “confessar com sinceridade, mas de coração
vazio, refletido em seu rosto”. Ele vê a própria imagem com repugnância e medo.
Block, não sabe que seu confessor é a Morte se passando por monge.
No segundo diálogo de Block com a Morte há importantes elementos para
análise da concepção do religioso em Bergman. O cavaleiro retorna da jornada bélica
em profunda crise existencial e religiosa. A discussão sobre a transcendência de Deus é
novamente trazida à baila. Block informa que sua vida tem sido de eternas buscas.
Clama por Deus, mas não é ouvido, pois este permanece em silêncio, escondido em
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falsos milagres e promessas. O cavaleiro busca um Deus tangível, mas o único sinal
visível é a inexorabilidade da morte. A crise na fé é patente, pois para Block não é
possível manter a crença no Deus que não se dá a conhecer aos que clamam nos
momentos de angústia.
Na Idade Média, a morte como personificação, do modo como estampa em
O Sétimo Selo, desde muito cedo se separa da figura divina, pois, segundo O Novo
Testamento bíblico, o Deus cristão é a divindade dos vivos. Assim,
O isolamento da morte como personificação, juntamente com todos os seus atributos atemorizantes, torna o homem capaz de dirigir sua revolta e rebelião contra a morte e, assim, evitar a pergunta pela justiça divina. Dessa forma a morte fica livre para assumir muitos dos atributos não-cristãos, como, por exemplo sua aparição como empunhando a foice ou o livro dos pecados. Ela se mostra como um morto ou numa procissão de muitos mortos, que aparecem aos vivos numa corrida louca e que, nas elaborações posteriores, os integram à dança macabra21.
Bergman utiliza, ao longo do filme, vários desses atributos. Block, porém,
não se limita a lutar contra a Morte, mas dirige também sua revolta contra o Deus
silencioso.
3 O SILÊNCIO DE DEUS
Bergman, portanto, no segundo diálogo, invoca uma temática importante em
sua obra – o silêncio de Deus, cujo conceito aparece com frequência nos escritos do
filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard22. Ressalto que Bergman, assim como
Kierkegaard, teve toda a sua formação religiosa no rigor da igreja luterana oficial, sendo
o Cineasta sueco tributário da reflexão filosófica do pensador dinamarquês,
notadamente, no que diz respeito à angústia que o homem sofre diante de um Deus
silencioso. Os dois exemplos bíblicos paradigmáticos que aparecem nos trabalhos de
Kierkegaard são Abraão e Jó.
Bergman, em suas observações sobre a vida religiosa no cristianismo
protestante luterano, critica a relevância dada à humilhação do cristão. Humilhar-se, na
Teologia luterana, implica reconhecimento do cristão, que é completamente dependente
de Deus. Jó, em meio aos seus sofrimentos, humilha-se diante de Deus. Bergman
despreza a Deus e recusa este cristianismo que valoriza a humilhação, bem como a
21 WILLIAMS, Gerhild Srholz. A morte como texto e signo na literatura da Idade Média. In: A morte na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1996, Ensaios de Cultura, nº. 8, p. 134.22A obra existencial do teólogo e filósofo dinamarquês percorre uma trajetória ao longo de três momentos denominados de estádios: o estético, o ético e o religioso. A palavra estádio, para Kierkegaard, refere-se a estádios da existência, em que o existente sempre se põe diante de uma escolha. (GOUVEA, 2002).
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Teologia que exige do fiel uma constante confissão de culpa. Ele põe na boca de Block
toda recusa a esta forma de religiosidade, quando diz: “Por que ele vive em mim de uma
forma tão humilhante apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração?”.
Block angustia-se por não ouvir nenhuma resposta de Deus às suas súplicas.
No confessionário, o cavaleiro reconhece sua indiferença ao próximo. O retorno para
casa tem-no levado a refletir e constatar que se excluiu, deliberadamente, da vida social,
ignorando os outros. Onde está a raiz desta indiferença? É provável que, ao passar mais
de dez anos convivendo com a guerra, em que o outro não é o próximo, mas o inimigo,
ou, como disse Sartre23, “o inferno são os outros”, Block, aos poucos, foi perdendo o
fervor da vida comunitária e se fechando em suas fantasias. O cavaleiro, no entanto, não
tenta resolver a indiferença ao próximo, mediante o debate social, mas no interior da
igreja, por meio da confissão. Bergman insere a ideia luterana, e reelaborada por
Kierkegaard, de que estar perante Deus é sentir-se pecador, porque é pelo pecado que se
introduz na vida religiosa, ou melhor, “existir é ser pecador, tomando consciência de
que a própria existência é pecado”24. Agora, também, Block está diante da Morte e
numa partida de xadrez quer ganhar mais tempo para fazer algo bom e descobrir o real
sentido da vida.
Na relação do cavaleiro com o próximo, Bergman faz fluir os conceitos das
filosofias da existência de único e outro. Conforme define Kierkegaard, o único é a
irredutibilidade do indivíduo que “não está num momento na história do sistema e não
pode ser expresso por obras”25. O outro é aquele que nos transcende. Deus é chamado
pelo Filósofo dinamarquês de o Outro Absoluto, pois nos ultrapassa infinitamente e só
existimos em razão desta transcendência. Bergman, porém, refere-se a Deus como o
totalmente outro, que se mantém em silêncio, cujo porta-voz é a Morte personificada,
que atua de forma terrível e implacável, mesmo com alguns lampejos de humor.
Portanto, é na luta com a Morte que o cavaleiro se põe à busca de sentido para a vida. A
criação do homem bergmaniano começa somente pela decisão de lutar contra a morte
que é o limite constitutivo do homem.
Kierkegaard reconhece que a comunicação com o outro, seja o vizinho ou
Deus, é sempre difícil, pois implica comunicar o saber subjetivo de cada um aos outros
23 SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.24 WAHL, Jean. As Filosofias da Existência. Lisboa: Europa-América, 1962, p. 44.25 Ibid., p. 104.
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e isto só pode ser feito de forma indireta. Assim, “o espírito só indiretamente pode
revelar-se, dado que nada de exterior pode revelar completamente o interior”26.
Outro elemento fundamental encontrado no segundo diálogo entre Block e a
Morte repousa na crise da fé. O cavaleiro está a caminho de casa. O retorno deveria ser
de intensa alegria, pois iria rever o grande amor da juventude, a esposa, no entanto, seu
espírito está tomado de dúvidas, decepções, além da presença inexorável da Morte. Dez
anos antes, Block fora convencido pelo então seminarista Raval (Bertil Anderberg) a
viajar à Terra Santa, a fim de lutar nas Cruzadas em nome de Deus. A ação de se
deslocar ao desconhecido, como a viagem de Abraão rumo ao Monte Moriá para
sacrificar o filho Isaque ou a ida do cavaleiro para guerrear nas Cruzadas, na filosofia
kierkegaardiana, é um ato de fé, um salto no escuro, um risco. Block viu a realidade nua
e crua da ignorância humana, que mata em nome da causa divina. Assim, é difícil
manter a fé no Deus que teima permanecer silencioso e que não interveio para dar cabo
à tão grande estupidez da guerra. Ao desiludido cruzado só restam indagações:
É tão inconcebível compreender Deus. Por que ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não a temos em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não a têm? Por que não posso tirá-lo de dentro de mim? Por que ele vive em mim de uma forma tão humilhante apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que, apesar dele ser uma falsa realidade, eu não consigo ficar livre?
Enquanto Block abre o espírito atormentado para a Morte disfarçada de
monge, Jöns continua a conversar com o pintor de murais, sobre as adversidades vividas
na Terra Santa e, em tom irônico, diz que fizeram tudo para a glória de Deus, e ainda
exprime, que “a Cruzada foi uma tolice que só um idealista inventaria”. As questões que
perturbam o cavaleiro não tiram o sono do escudeiro, pois é declaradamente cético,
como se define: “sou o escudeiro Jöns, desprezo a morte, zombo de Deus, rio de mim
mesmo e sorrio para as mulheres. Meu mundo é meu e só acredito em mim mesmo.
Ridículo para todos, até para mim mesmo, sem sentido para o céu e indiferente para o
inferno”.
Jöns é preso à realidade. O mundo do escudeiro é fenomênico, aqui e agora,
sem qualquer preocupação com o Além. A vida termina no túmulo, pois sua existência
não desperta interesse nem para o céu (Deus) nem para o inferno (Diabo). Ele é
irreverente, provocador, que zomba até de si mesmo.
4 O OLHAR CONTEMPORÂNEO DO CINEASTA
26 Ibid., p. 106.
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Como expõem Gibson27 e Mongelli28, Bergman realiza o filme ambientado
no mundo medieval para falar ao homem moderno. O total silêncio de Deus como uma
problemática medieval lança luz e é transposta para os dias correntes com a mesma
validade, na qual o cavaleiro e seu escudeiro encarnam características da humanidade.
Block vive atormentado na busca pelo conhecimento e a possibilidade da fé. Jöns é
cínico e sem qualquer elemento de reconciliação religiosa. Assim, o filme revela-se
como uma metáfora do mundo contemporâneo, expressa na eterna busca por Deus, mas
cuja certeza é apenas a morte.
Bergman, como homem da Modernidade, tenta de todas as formas abolir a
presença de Deus em sua vida, exorcizando “os demônios” de sua formação religiosa no
protestantismo luterano. Ele encarna a concepção de mundo de Jöns, no entanto, não
consegue se desvencilhar completamente da faceta religiosa, pois, como o cavaleiro
Block, o Cineasta, ao tentar descredenciar sua herança protestante, constrói outro modo
do religioso, cuja relação religiosa com Deus é substituída por uma relação ética com os
homens. E ainda mais:
De todas as formas Bergman demonstra uma aberta preocupação religiosa ao longo de sua filmografia. Não crer em Deus não significa carecer de espiritualidade, e isto bem o demonstra o realizador sueco. Com toda a exatidão pode qualificar Bergman de “autor religioso” e seu cinema de “cinema da alma”, pelos estados da consciência, as reflexões interiores e as graves meditações que nos propõe29.
Quando o cavaleiro convidou a Morte para jogar xadrez, como a última
tentativa de viver, lançou mão da habilidade e autoconfiança de jogador invicto. No
segundo diálogo, no entanto, além de abrir a alma, também revelou uma jogada crucial
para o desenvolvimento da partida. A Morte vira-se para Block e diz que se lembrará da
dita jogada. O cavaleiro tomado de raiva a chama de enganadora e traidora. Block, que
entrara na igreja buscando refúgio para o espírito atribulado, se depara apenas com o
engano (a Morte), a impotência (Cristo crucificado) e, sobretudo o silêncio (Deus).
Todos os elementos visuais estão de acordo com o imaginário medieval,
porém a visão é de um homem criado na tradição protestante luterana, como na cena do
confessionário, na qual Bergman toma uma prática católica romana para falar de um
27 GIBSON, Arthur. The silence of God: Creative response to the films of Ingmar Bergman. New York: Haper & Row, 1969, p. 19.28 MONGELLI, Lênia Márcia. Ingmar Bergman e o jogo da morte. In: MACEDO, José Rivair & MONGELLI, Lênia Márcia (Orgs.). A Idade Média no cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009, p. 84-85.29 ZUBIAUR, Francisco Javier. Ingmar Bergman: fuentes creadoras del cineasta sueco. Madrid: Ediciones Internacionales Universitárias, 2004, p. 162.
12
elemento de sua raiz cultural religiosa protestante – a solidão individual. A concepção
dos reformadores protestantes era de que o indivíduo possui um sacerdócio, que o
credencia a entrar em contato direto com Deus, sem intermediários. A Morte, disfarçada
de monge, não assume o papel consolador do padre católico, porém atribula ainda mais
o desesperado Block. Analiso que a Morte, em sua incapacidade e ignorância em
conceder segurança ao cavaleiro, o que seria esperado do confessor católico, converte-
se na imagem do próprio Block, pois é o único espelho no qual ele pode perceber a sua
indiferença social, cuja consequência é a solidão.
Se, no interior da igreja, Block encontrou apenas engano, impotência e
silêncio, ao sair, depara-se com a atuação implacável e cruel dos religiosos. Logo na
porta, o cavaleiro esbarra com a jovem acusada de bruxaria e os preparativos para levá-
la ao local da execução. Ele aproxima-se e dela indaga se tem visto o Diabo. Block que
desesperadamente havia procurado por Deus, agora está interessado no adversário da
divindade cristã. Um monge o avisa, de que ele não deveria chegar muito perto, pois a
moça é a causadora da peste que assola o país.
Block e Jöns retomam a jornada. Logo chegam a uma vila deserta. O
escudeiro desce para pegar água. Em uma das casas irá encontrar Raval, que há dez
anos tinha convencido Block a participar das Cruzadas. O então seminarista agora é um
salteador, que pilha as residências, asseverando se tratar de um negócio lucrativo. Após
tirar o bracelete de uma morta, percebe a presença de uma moça muda (Gunnel
Lindblom) e tenta estuprá-la. Ela corre e o ladrão a persegue, porém, ao abrir a porta,
esbarra com Jöns, que lhe diz: “eu o reconheço apesar de não vê-lo há muito tempo.
Chama-se Raval, estudante de Teologia. É o Doutor Mirabilis Celestis et Diabilis. Não
é? Há dez anos convenceu meu patrão que era preciso partir para a Terra Santa. Eu o
assustei. Está se sentindo mal. Agora entendo o sentido dos anos que achei terem sido
inúteis. Estávamos muito bem, muito satisfeitos e Deus quis nos punir por isto. Ele
enviou o veneno celestial para os cavaleiros!”. Raval diz que fez tudo de boa-fé. O
escudeiro ironiza, dizendo que ele mudou muito, tornando-se ladrão, uma ocupação
mais adequada para safados e desonestos como ele. Jöns o agarra pela gola da camisa e
depois o coloca no chão, apontando o punhal e diz: “não estou sedento por sangue, mas
na próxima vez que o vir, vou marcá-lo, como todo safado é marcado.”.
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A procissão dos flagelantes, fotografia de Gunnar Fischer
5 MORTE E A IRA DE DEUS
A terceira experiência externa da atuação eclesiástica acontece quando da
procissão dos penitentes. Em uma vila, a trupe de artistas mambembes está se
apresentando. Ao final do primeiro ato, Skat (Erik Strandmark), chefe da companhia, é
atingido por um tomate. Ante o fracasso da apresentação, ele sai de cena. Jof (Nils
Poppe), fantasiado de bufão, e sua esposa Mia (Bibi Andersson) ficam no palco
cantando e dançando, enquanto Skat corteja a fútil Lisa (Inga Gill), esposa de Plog (Ake
Fridell), o ferreiro. A canção entoada no palco reproduz o momento escatológico vivido
por todos, com alegorias bíblico-apocalípticas:
O cavalo sobe na árvore e canta como galo. A estrada é longa, mas o portão é estreito30. Alguém de negro31 dança na praia. A galinha anuncia a escuridão32. O dia raiou e o peixe está morto. Alguém de negro está agachado na praia. A serpente33 vibra no céu. A virgem está pálida, porém feliz como um rato. Alguém de negro corre na praia. A cabra assobia com seus dois dentes. O som do clarim34 soa forte. As ondas quebram. Alguém de negro defeca na praia. A porca deita nos ovos e o galo permite. A noite está coberta de
30Jesus falando sobre as possibilidades de escolha, diz aos seus ouvintes: “Entrai pela porta estreita. Larga é a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição, e muitos, os que entram por ele; quão estreita é a porta e apertado o caminho que leva à vida, e poucos são os que o encontram”. (Mateus 7:13-14).31Uma associação clara à Morte, cuja primeira aparição no filme se dá na praia.32Na abertura do sétimo selo, o Evangelista João fala da escuridão como uma das ações do juízo de Deus: “um terço do sol, um terço da lua e um terço das estrelas foram atingidos. Ofuscaram-se por um terço: o dia perdeu um terço de sua claridade, e da mesma forma, à noite”. (Ap. 8:12).33A serpente, na Bíblia, é identificada com Satanás. Bergman, no cântico entoado por Mia e Jof, subverte a concepção bíblica, pois a serpente aparece no céu, porém o texto do Apocalipse apresenta outro destino para ela: “foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, aquele a quem chamam diabo e Satanás, o sedutor do mundo inteiro. Ele foi precipitado à terra, seus anjos com ele”. E ainda “apoderou-se do dragão, da antiga serpente, que é o diabo e Satanás, e o acorrentou por mil anos”. (Ap. 12:9- 20:2).34Na abertura do sétimo selo cada um dos sete anjos recebeu um clarim ou trombeta. O apóstolo Paulo, referindo-se ao retorno glorioso de Cristo, diz: “Porque o Senhor em pessoa, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao toque da trombeta de Deus descerá do céu: então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro”. (I Ts. 4:16).
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fuligem e o escuro permanece. Alguém de negro permanece, permanece na praia.
A apresentação é interrompida sob os olhares estarrecidos dos atores que
veem desfilar a procissão de monges e penitentes ao som de Dies irae. O público se
prostra ante a passagem do cortejo. Os caminhantes param e um dos religiosos brada
para todos: “Deus mandou seu enviado. Todos padecerão com a Morte Negra.” O padre
olha para um indivíduo e diz “você aí, parado como um boi”, vê outro e grita “e você,
sentado com este ar de autocomplacência. Sabem que pode ser o fim de todos. A morte
está atrás de vocês. Posso ver sua sombra refletindo no sol. Sua ceifeira brilha quando a
levanta sobre suas cabeças. Quem será o primeiro a morrer?”. Aponta para outro
homem, dizendo “você aí, como um tolo, sua boca emitirá seu último gemido antes do
amanhecer”. Mira em uma senhora grávida e fala “você mulher, que leva uma vida de
abundância e luxúria. Irá murchar e desaparecer antes do amanhecer”. Olha para outro
homem e brada “você aí! Com seu nariz inchado e sorriso de idiota. Tem mais um ano
para desgraçar a terra com seu desprezo. Todos vocês idiotas, tolos, sabem que
morrerão! Hoje, amanhã, depois de amanhã! Estão condenados! Vocês ouviram?
Condenados! Senhor tenha piedade de nós (em primeiro plano35 vemos uma cabeça de
caveira) em nossa humilhação! Não nos castigue, tenha piedade de nós em nome de
Jesus (primeiro plano no crucifixo)”. Retomam o cortejo. Block, Jöns e a jovem muda
também presenciam esta procissão. O escudeiro olha para o patrão e comenta sobre a
palavra do monge:
Esta história de condenação, é disto que o povo gosta. Ele acha que levamos isso a sério. Você zomba de mim. Permita-me dizer que já li, ouvi e testemunhei a maioria das histórias populares. Até histórias sobre Deus, anjos, Jesus Cristo e o Espírito Santo que não impressionam.
O discurso do monge sobre a ira de Deus, em vista dos pecados dos
indivíduos, era a única explicação possível para um conjunto de ações devastadoras que
abalaram o mundo conhecido. Na Europa, a mudança climática iniciada na década de
1250, tornando o ambiente mais frio e úmido, teve seus efeitos mais visíveis no final do
século XIII e início do XIV, com a perda sucessiva de colheitas e a consequente fome
generalizada. As doenças devastavam e traziam o desespero às comunidades
superpovoadas. A epidemia mais conhecida deste período foi a Peste Negra.
A personagem Jof merece destaque. O artista é bufão não apenas quando
representa, mas na vida diária, como, por exemplo, nas visões nas quais ninguém
35No primeiro plano a figura humana é enquadrada de meio busto para cima. (COSTA, 1989).
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acredita. Diferentemente do debate se a Morte é um clown ou não, Jof certamente o é,
pois sua atuação encarna a insegurança típica do herói-cômico. Segundo Morin36, este
tipo de herói é definido a partir das seguintes características: feios, tagarelas e ridículos;
caricaturas dos heróis tradicionais; ingênuos, exprimem uma inocência quase infantil
que os leva à bondade ou à malícia; violam pequenos tabus da vida social, ignorando
qualquer forma de censura; são inocentes sexuais, pois, diante de uma mulher, não
apresentam características psicológicas de virilidade como coragem, decisão e audácia;
alguns apresentam até sinais de efeminação; herói assexuado se apaixona
frequentemente, expressando um amor sublime; estão próximos dos bobos e palhaços
dos quais é herdeiro. A inocência dos heróis cômicos os situa em estados de sofrimento,
representando em última análise um papel das vítimas purificadoras e até de bodes
expiatórios.
Reitero o fato de que Jof é herói cômico, cujas características apontadas por
Morin ficam mais evidentes na cena da taberna, quando é humilhado e maltratado pela
personagem Raval e por todos os presentes, ao descobrirem sua condição de artista. Jof,
sob os olhares inquiridores, pergunta, com medo, se querem machucá-lo ou se fez algo
de errado. Diz que irá embora e não voltará mais. Raval o humilha, motivo de
gargalhadas para todos, fazendo-o imitar um urso, dançando sobre uma mesa com fogo
nos pés. Jof consegue fugir ante a chegada de Jöns, levando o bracelete que Raval
pilhara na vila abandonada. O escudeiro cumpre a promessa que marcaria o ex-
seminarista se o encontrasse novamente; então Jöns fura o olho do malfeitor. Bergman
retoma a temática da humilhação fazendo que se veja o inocente sofredor.
Quando a procissão de monges e penitentes passa pela vila, a apresentação
da trupe é interrompida. O público muda a atenção para assistir a outro “espetáculo”. O
entretenimento cede lugar ao macabro. A cólera de Deus nos cânticos, porém, constitui
o único elemento de aproximação entre as duas apresentações. Isto porque, nessa
sequência, Bergman sintetiza o filme em polos duais, como vida/morte,
divertimento/angústia e comédia/tragédia.
Ao tomar Raval, antigo estudante de Teologia e doutor Mirabilis Celestis et
Diabilis, que se tornou salteador e estuprador, bem como os monges que assustam as
pessoas com pragas dos céus e que condenam inocentes à morte, Bergman ridiculariza a
instituição eclesiástica, e ninguém melhor para fazê-lo do que a personagem irônica de
36 MORIN, Edgar. Estrelas, mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 144-146.
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Jöns. Tal análise é corroborada por Mongelli quando assevera que “Raval representa o
oposto do ideal monástico, cuja ‘divisa é a renúncia ao mundo, a tudo o que é
transitório, é a eleição da pobreza voluntária como expressão da sequela Christi’”37.
Enquanto Jof estava na taberna, Block aproxima-se da carroça da trupe,
onde se encontram Mia e seu filho Mikael. Começam a conversar. A jovem artista
pergunta ao cavaleiro se ele está triste. Responde que sim. Ela insiste em descobrir a
causa da tristeza e indaga se é porque não tem boa companhia ou se é o escudeiro.
Block responde ser ele mesmo o causador da tristeza que invade a alma. Neste
momento, Jof chega. O marido conta à esposa o ocorrido na taberna, como herói
cômico, diz que haviam batido nele, mas rugiu como leão e riram dele. Mia o afaga.
Block contempla sobre a relva uma família feliz que contrasta com sua angústia. Mia,
Jof e Mikael não estão preocupados com a peste. O artista pede para a mulher trazer
comida ao visitante.
Enquanto Mia foi pegar a alimentação, Block aconselha a Jof não ir à cidade
de Elsinore. O cavaleiro informa não ser uma boa ideia, pois a peste está caminhando
para lá. Sugere acompanhá-los ao longo da floresta e depois irem para sua casa. Mia
traz leite e morangos silvestres, que crescem nas colinas e são muito cheirosos. Estes
frutos nativos simbolizam, para Bergman, o frescor do amor juvenil, como aparece nos
filmes Juventude (Sommarlek, 1950) e Morangos silvestres (Smultronstället, 1957).
Mia convence o marido a aceitar a proposta de Block, pois tem ouvido dizer que a
floresta está repleta de fantasmas e demônios.
6 A “EUCARISTIA” BERGMANIANA
Jöns chega acompanhado da jovem muda. Eles também participam do
momento no qual partilham os morangos silvestres e leite. Mia deita-se na relva e diz:
“como isto é bom. Todos os dias são iguais. Não há nada diferente. Mas o verão é
melhor que o inverno, pois não sentimos frio, mas a primavera é melhor que tudo”. Não
há preocupação para a família de artistas, pois vive cada dia de forma intensa
aproveitando o frescor da natureza. Mia, que no início do filme havia declarado toda a
afeição pelo marido com a expressão “eu te amo”, ressalta ser muito boa a vida
conjugal. A artista pergunta ao cavaleiro se ele tem alguém em sua vida. Block fala com
alegria dos momentos nos quais viveu a paixão juvenil, porém, rapidamente, utiliza a
temática do amor como leitmotiv para retomar o assunto que aflige a sua alma – a fé em 37 MONGELLI, Lênia Márcia, op. cit., p. 108.
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um Deus silencioso. Afinal para Block: “a fé é uma aflição dolorosa. É como amar
alguém que está no escuro e não sai quando se chama”.
Na concepção kierkegaardiana, Block posiciona-se na passagem do estádio
ético38 para o religioso, pois não dá o passo do herói da fé, isto é, ele reluta em
mergulhar no silêncio de Deus, em assumir os riscos de tal empreitada. O silêncio ou
ausência de Deus é transformado por Bergman em criação artística. Porque a
genialidade do cineasta
Não consiste em fazer filmes para dizer alguma coisa, afirmar qualquer coisa, transmitir uma ‘mensagem’ ou recado; pelo contrário, consiste em livrar-se da angústia, lançando na tela o desengonçado boneco que somos, boneco ridículo e digno de pena39.
Block fala para Mia que parece mentira vê-los tão felizes e indiferentes a
tudo o que os circunda. O cavaleiro frisa que nunca esquecerá este encontro, pois:
O silêncio, a tigela de morangos e o leite, seus rostos na luz do entardecer. Mikael dormindo na carroça e Jof com sua canção. Tentarei lembrar do que dissemos e levar esta lembrança entre minhas mãos com cuidado como se fosse uma cuia cheia de leite. Isto será como um símbolo para mim (segurando com cuidado o recipiente de leite) e uma grande ajuda.
A forma como o cavaleiro toma nas mãos a tigela com leite faz lembrar a
maneira como o sacerdote católico ou pastor luterano levanta a taça com vinho no
sacramento da Eucaristia. Para Bergman, o encontro de Block com a família de Jof é o
momento real de comunhão. Se, para o Cristianismo, a celebração da Ceia do Senhor40 é
o instante máximo de comunhão, no qual a morte de Cristo é partilhada ou relembrada,
para Block, aqueles poucos minutos sobre a relva devem ser guardados para sempre na
memória. Ao encontrar-se com a família de Jof, o cavaleiro angustiado se depara com a
felicidade tão almejada. Para Cowie, as palavras de Block encarnam a bênção, que reina
uma atmosfera de comunhão a céu aberto e sobre a relva, na qual compartilham
morangos silvestres e leite41. Este momento se contrapõe ao universo eclesiástico e
carcerário, pois o tom doce das palavras do cavaleiro contrasta com a arrogância do
monge que pragueja contra a multidão ao assistir à passagem da procissão de penitentes.
38 No estádio ético, Kierkegaard refere-se a um saber transitório de uma vida norteada pelas normas morais, sendo que o herói do plano ético é o “herói da vida conjugal”, que vive o matrimônio feliz.39 COLLET, Jean. De Jó a Bergman: a angústia e o desafio. In: “Jó e o silêncio de Deus” - Revista Concilium. Petrópolis: Vozes, 1983, nº 189, p. 91.
40Aqui estou tomando a Eucaristia ou Ceia do Senhor como ritual cristão decorrente da última refeição que Cristo teve com seus discípulos, não levando em consideração as múltiplas diferenças apresentadas entre Catolicismo Romano e confissões protestantes, como: transubstanciação (católicos), consubstanciação (luteranos), presença mística (presbiterianos), memorial (batistas) etc. 41 COWIE, Peter, op. cit., p. 161.
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Block (Max von Sydow), fotografia de Gunnar Fischer
Ao se deparar com o real sentido do amor, da religião e da vida, por meio da
família dos artistas mambembes, Block, mais uma vez, está diante da Morte para
retomar o jogo de xadrez. Ao longo do diálogo, a Morte percebe a transformação
ocorrida no cavaleiro, pois está eufórico, confiante e feliz. Block não revela a
descoberta da felicidade.
O artista, para Bergman, representado pela família de Jof, tem um papel
social que no mundo contemporâneo se manifesta na criatividade e na função sacrificial.
Block tornara-se indiferente ao próximo e à vida comunitária, como confessa no
segundo encontro com a Morte. Agora, a partir da vida despreocupada dos artistas,
descobre o caminho para a vida feliz e fará tudo para proteger Mia, Jof e Mikael.
Block (Max von Sydow) e a Morte, fotografia de Gunnar Fischer
19
A Morte solicita ao cavaleiro para mexer uma das peças do tabuleiro, pois
está apressada. Aqui é oportuno um comentário sobre a relação entre morte-rapidez.
Segundo Thomas42, em algumas comunidades ágrafas, o animal rápido traz consigo a
morte, enquanto o mais lento é o anunciador da vida. Ambos são enviados
simultaneamente a Terra por um demiurgo. Ocorre que, de acordo com a lógica
humana, receber a rapidez é obter a vida e acolher a lentidão é admitir a morte. Em O
Sétimo Selo, a Morte também está apressada, pronta para tragar a próxima vítima.
7 A MORTE E SUA CEIFA
Block e seus companheiros iniciam a jornada pela floresta. No caminho, o
ferreiro vê sua esposa com Skat. Na conversa entre Lisa e o marido, o escudeiro
antecipa cada desculpa dela e no final do diálogo olha lentamente aos céus e profere a
frase: “Deus, por que criou as mulheres?”. Lisa pede ao esposo para matar o ator,
porque ele é uma farsa: “não é nada, tem barba falsa, dentes falsos, falas decoradas e é
vazio feito uma caixa”. Skat aproxima-se de Lisa e do esposo e pede para matá-lo. Jöns
argumenta que esta é uma estratégia para confundir o ferreiro, o que em si, já é uma
vitória. O marido traído diz que não pode matá-lo sem reação. No confronto, o ator é
salvo pela mágica, quando finge praticar o suicídio com um punhal. O ator levanta-se
todo feliz, dizendo para si: “foi uma performance brilhante, sou um ótimo ator.” Tira a
barba postiça e busca uma árvore para passar a noite refugiando-se dos fantasmas. A
morte o traga, ao derrubar a árvore na qual buscara abrigo.
Skat, ao seduzir a mulher do ferreiro, revela um donjuanismo típico do
estádio estético kierkegaardiano43. Em seu jogo sedutor, pisca para Lisa durante o
espetáculo da trupe. Ele não está preocupado com a vida familiar, própria do estádio
ético. Apenas, quando a Morte começa a serrar a árvore na qual buscara abrigo, é que
Skat suplica para não morrer, pois tem família. A Morte, como um padre, repreende o
ator com severidade, mandando que tivesse vergonha. Em momento algum de sua
existência deu qualquer importância à vida familiar. A mulher do ferreiro se deslumbra
com a apresentação do ator, mesmo que para os outros presentes tenha sido um fracasso.
Lisa, ao reencontrar o marido na floresta, desqualifica o amante, asseverando ser tudo 42 THOMAS, Louis-Vicent. Antropología de la muerte. México, D.F: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 107.43 Para Kierkegaard Don Giovanni é o herói estético porque vive tudo no instante. Viver e amar para ele são tudo a mesma coisa, sem complicações morais ou intelectuais; tudo é o momento e o momento se repete ao infinito, pois, enquanto o amor psíquico dura no tempo, o sensual se dissolve com ele (CANTONI, 1949, p. 39).
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nele falso. Ela desiste da aventura amorosa e volta à segurança da vida conjugal,
prometendo fazer tudo aquilo de que o esposo gosta.
Na floresta, no meio da noite, Block e seus amigos encontram os soldados e
monges que irão executar a jovem acusada de bruxaria. O cavaleiro aproxima-se da
carroça, na qual a bruxa está enjaulada e lhe faz algumas indagações.
Block levanta-se e pergunta a um soldado por que quebrara as mãos da
moça. O militar responde não a ter machucado, mas que indagasse ao padre (apontando
para um homem de hábito preto). Quando vira, nota a Morte diante dele pela quarta vez.
A Morte angustia mais ainda o cavaleiro, pois o relembra de que em seus
múltiplos questionamentos só tem como resposta o silêncio. Jöns fala para seu patrão
que havia planejado matar os soldados para salvar a jovem. O escudeiro dá água à moça
e o cavaleiro põe algo em sua boca para aliviar a dor. Block toma a cabeça da “bruxa”
em suas mãos e percebe o semblante de terror. A fogueira já arde. Block e Jöns olham
atemorizados para a moça e discutem:Jöns: O que ela vê? Pode me dizer?Block: Já não sente dor.Jöns: Não me respondeu. Quem cuida dela? Um anjo, o diabo, Deus ou apenas o vazio?Block: O vazio não pode ser.Jöns: Veja os olhos dela. Ela está descobrindo algo. O vazio sob a lua.Block: Não (chorando)!Jöns: Estamos impotentes, pois vemos o que ela vê e tememos o mesmo. Pobre criança. Não posso suportar! (retira-se).
Nesses diálogos que envolvem a execução da jovem acusada por manter
relações sexuais com o Diabo, há em Bergman a ironia de que o mal protege o mal,
enquanto Deus deixa os que creem nele à mercê dos infortúnios da vida, sem intervir.
Na discussão entre o cavaleiro e o escudeiro sobre o que vê a jovem, naquele momento
crucial, Block insiste que “o vazio não pode ser”. O angustiado cavaleiro recusa-se a
aceitar a finitude do ser. Neste momento, ocorre a ruptura maior entre o Deus dogmático
e o homem, pois Block e Jöns não aceitam mais incondicionalmente a vontade de Deus.
Os dois guardam a consciência de serem eles mesmos, ainda que suas opções filosóficas
sejam opostas - um materialista e o outro atormentado pelas grandes questões
espirituais.
Vemos nestes confrontos, conforme sublinha Cowie, que cada personagem
está acompanhada de sua antítese44. Enquanto Block é idealista e romântico, seu
44 COWIE, Peter, op. cit., p. 155.
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escudeiro Jöns é racional e cínico. Jof e Mia encarnam a força do amor, já Lisa despreza
o marido Plog, pois foge com o primeiro ator que passa pela vila. Assim como as
personagens, as temáticas aparecem num esquema de antagonismos, pois a morte se
opõe à vida; a fé ao agnosticismo; a inocência à corrupção; a luz às trevas; a comédia à
tragédia; a esperança ao desespero e o amor à infidelidade.
Block e seus amigos acampam na floresta, a fim de passarem a noite. Mia
acalenta Mikael ao lado do marido. Jöns diz que o calor ainda os aquece na noite fria e
logo amanhecerá. O ferreiro pressente o inevitável. O escudeiro, em tom irônico, diz
que talvez seja o Juízo Final. O cavaleiro, sentado próximo ao tabuleiro de xadrez, um
pouco absorto e pensativo, espera a retomada da partida com a Morte. Raval aproxima-
se do acampamento, sedento e tomado pelos sintomas da peste. Ele brada, pois não quer
morrer e clama por piedade. Há nas palavras uma dúvida atroz, pois ao morrer não sabe
o que acontecerá. Solicita apenas conforto. A jovem muda tenta ajudá-lo, mas é barrada
por Jöns, pois entende não haver mais alternativa. De fato, Raval estrebucha e cai
morto. A Morte aparece a Block e retomam o jogo.
Quando da execução da jovem acusada de bruxaria, Jöns fala ao seu patrão
que ela não vê nada e ninguém a conforta. Block protesta, pois não admite o vazio e a
finidade do ser, pois sua crença religiosa se pauta numa vida no Além. No momento da
derrota para a Morte, por meio do xeque-mate, o cavaleiro a ela indaga se tem segredos.
A resposta é simplesmente “não tenho segredo algum” e “não sei de nada”. Portanto, a
Morte, ao responder isto, para Bergman, ela não sabe de nada e introduz o homem no
mundo do nada. Heidegger foi um dos poucos filósofos a tentar elaborar uma noção de
nada. Para o Pensador alemão, em primeiro lugar, a ideia de nada sugere que todos são
finitos. O conceito de finitude implica uma espécie de limitação e de nulidade de cada
ser. Depois, são finitos em razão do último instante do ser – a morte45.
Mia, Jof e Mikael fogem pela floresta sob forte temporal. Mia diz não se
tratar de chuva, mas a Morte, que os tinha visto e agora iria tragá-los. Jof observa se
tratar do Anjo da Destruição46 passando sobre eles.
8 O CAVALEIRO RETORNA AO LAR VINDO DAS CRUZADAS
45 HEIDEGGER. Martin. Ser e tempo (parte II). Petrópolis: Vozes, 2004, p. 22.46Este Anjo Destruidor faz lembrar o episódio da visita da morte aos primogênitos de todo o Egito, quando Faraó relutou em libertar o povo hebreu , impedindo que retornasse à sua terra, conforme consta do livro de Êxodo 12:29-33.
22
Block, após longa jornada, chega a sua casa acompanhado de seu escudeiro,
a jovem muda, Plog e Lisa. No castelo, está apenas Karin. O reencontro de Block com a
esposa é marcado pela frieza, pois a distância e o tempo os afastaram. A princípio, não
há nenhum toque, apenas olham um ao outro tentando encontrar vestígios do passado
que os aproximem. A mulher afirma que todos foram embora, temendo a peste, apenas
ela ficou, pois tinha sido informada do retorno do marido. Os cônjuges estão diante um
do outro e agora apresentam rostos de ternura e dialogam:Karin: Não me conhece mais? Você também mudou (aproxima-se um pouco mais e sorri). Agora vejo que é você. Em algum lugar nos seus olhos, em algum lugar do seu rosto, escondido e assustado está o menino que deixei há tantos anos.Block: Tudo terminou e estou cansado.Karin: Se arrepende de sua viagem (assustada)?Block: Não me arrependo de nada, mas estou um pouco cansado.Karin: Vejo que está (afagando com profunda ternura o rosto longo e ossudo do marido).Block: Estes são meus amigos (virando-se aponta).Karin: Mande-os sentar, prepararei o café.
Sentados à mesa, Karin procede à leitura do texto do Apocalipse, lido no
início do filme sobre abertura do sétimo selo. A esposa do cavaleiro, como ressalta
Marini, funciona como elemento de continuidade temporal47, que retoma o texto bíblico,
o qual havia sido abandonado ao longo do filme48. A leitura é interrompida por alguém
batendo à porta. Jöns vai verificar. A mulher reinicia a narrativa do texto sagrado. O
escudeiro retorna. Indagado, por Block, quem era, Jöns responde que não viu ninguém.
Novamente, a mulher recomeça a ler a mensagem escatológica. Todos ainda estão
próximos à mesa, quando olham para a chegada da Morte. A moça muda é a única
pessoa na casa que a olha com fascinação.
Block conviveu com a proximidade da morte ao longo dos dez anos de
combate nas Cruzadas. No retorno para sua residência, joga e perde a decisiva partida
de xadrez com a temível adversária. Depois de cansativa jornada, enfim chega a casa.
Apenas, Karin, o amor da juventude, o espera. A Morte, que caminhou ao lado do
cavaleiro durante todos estes anos, finalmente bate à sua porta, não fala quase nada, diz
apenas “bom dia”. A Morte não o tragou nos campos de batalha nem no meio da
floresta, mas veio buscá-lo no conforto de sua casa, quando está à mesa compartilhando
uma refeição com os amigos e a mulher amada. Block está desesperado. Como pecador
47 MARINI, Fabrizio. Ingmar Bergman: Il Settimo Sigillo. Torino: Lindau, 2002, p. 77.48 Mongelli (2009, p. 96, 99) aponta para a circularidade da estrutura narrativa de O Sétimo Selo, bem como afiança que é a leitura do livro de Apocalipse que garante a unidade do filme.
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diante de Deus, profere sua última suplica por misericórdia, pois sabe que todos estão
diante do inevitável - a morte.
Raval e Skat não tiveram a mesma sorte de Block, pois faleceram sozinhos
na escuridão da floresta. O ex-seminarista morre agonizando e suplicando por água e
conforto. O ator é ceifado pela Morte, que ignora todos os seus argumentos para a
manutenção da vida. A morte súbita e clandestina como a do viajante, do afogado e do
desconhecido, para o pensamento corrente na Idade Média não implicava uma causa
manifesta, mas o simples julgamento de Deus. Ariès acentua que “nesse mundo tão
familiarizado com a morte, a morte súbita era feia e desonrosa, fazia medo, parecia
coisa estranha e monstruosa de quem não se ousava falar”49. Assim, se poderia dizer que
a morte de Block, o indivíduo ético que retorna para casa, para a vida do matrimônio, se
deu de forma honrada, enquanto o falecimento do ladrão e do farsante ocorreu de modo
feio e desprezível.
A dança da morte, fotografia de Gunnar Fischer
8 CONCLUSÃO: A DANÇA DA MORTE
Nesse último episódio na casa de Block, a jovem muda profere as palavras
“chegou a hora”. Isto seria um milagre? Entendo que, para Bergman, se houve um ato
miraculoso, este decorreu da presença da Morte, pois Deus continua em silêncio, ante as
desesperadas súplicas do cavaleiro. A moça a acolhe com reverência absoluta. O
Cineasta, por meio das parcas palavras da jovem, procura mostrar a sensação de
abandono que o homem vive diante do Deus silencioso, como o sentimento do Cristo
agonizante, que na cruz proferiu as célebres expressões: “Deus meu, Deus meu, por que 49 ARIÈS, Philippe, op. cit., p. 12.
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me abandonaste?” e “tudo está consumado”. Conforme Gibson, enquanto no Evangelho
Cristo diz “eu sou a ressurreição e a vida” 50, o “deus” de Bergman fala simplesmente
“eu sou a Morte”51 (como se identificou ao cavaleiro no primeiro encontro).
Passado o temível temporal, num plano médio52, Jof aponta para uma colina
e fala para Mia que vê seus amigos sendo convocados a dançarem pela severa e mestra
Morte, que leva consigo seus instrumentos inseparáveis: a foice e a ampulheta. É
interessante e irônico o fato de que a Morte passara o tempo todo falando, mas nesta
cena mantém-se em silêncio. O artista conta que eles dançam solenemente rumo à
escuridão, com a chuva caindo sobre seus rostos, lavando as lágrimas salgadas53. Mia
diz: “você e suas fantasias”. Eles escaparam da “dança da morte”. A Morte havia dito ao
cavaleiro que ninguém lhe escapava, porém a carroça protegeu Mia, Jof e Mikael na
passagem do Anjo Destruidor. Enquanto Jof e sua família caminham em direção ao sol,
Block e seus amigos rumam para as trevas, bailando a dança macabra, numa das cenas
mais célebres do cinema mundial. Os artistas, para Bergman, conseguem a vitória
graças à vida consagrada ao amor.
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50Evangelho de João 11: 25.51 GIBSON, Arthur, op. cit., p. 35.52No plano médio utiliza-se o parâmetro da figura inteira que surge no enquadramento. (COSTA, 1989).53Enquanto Jof diz que Block e seus amigos dançam com a Morte rumo à escuridão e suas lágrimas são lavadas pela chuva, um pouco antes da abertura do sétimo selo no livro de Apocalipse, o Evangelista João conforta os cristãos primitivos, dizendo que “Deus enxugará toda a lágrima de seus olhos”. (Ap. 7: 17).
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