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O DESEJO E A MORTE EM FERNANDO PESSOA(S) Boa viagem!Boa viagem! A vida é isto. (Álvaro de Campos) O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê Nem ver quando se pensa. (Alberto Caeiro) Aguardo, equânime, o que não conheço, Meu futuro e o de tudo. No fim tudo será silêncio, salvo Onde o mar banhar nada (Ricardo Reis)

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O DESEJO E A MORTE EM FERNANDO PESSOA(S)   

 

 

 

Boa viagem!Boa viagem! A vida é isto.  

(Álvaro de Campos)  

O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, 

Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê Nem ver quando se pensa. 

 (Alberto Caeiro) 

 Aguardo, equânime, o que não conheço, 

Meu futuro e o de tudo. No fim tudo será silêncio, salvo 

Onde o mar banhar nada  

(Ricardo Reis)   

          

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ABERTURA  Um dia, escrevi um pequeno poema que intitulei Pessoa’s Last words, no qual ficcionava aquelas que, poderiam ter sido,  as  últimas  palavras  proferidas  por  Fernando Pessoa,  numa  cama do hospital  de  São Luís,  em Lisboa, onde  todos  os  seus  “eus”,  no  dia  30  de  Novembro  de 1935, morreram sós. Era assim: Dêem­me  os  óculos/Para  ver  a  morte/Encará­la  de perto/E  tocar­lhe a alma/Num abraço  forte/Para  toda a vida.  Ficção pura,  naturalmente. No  entanto,  e  sob  a  capa do seu  heterónimo  Alberto  Caeiro,  julga‐se  que  este pequeno  poema  tenha  sido  o  último  a  ser  ditado  pelo poeta no dia da sua morte: É  talvez  o  último  dia  da  minha  vida/Saudei  o  sol, levantando  a  mão  direita/Mas  não  o  saudei  dizendo­lhe adeus./Fiz sinal de o gostar de ver ainda, mais nada. Na realidade, desconhecem‐se quais teriam sido as suas últimas e exactas palavras embora se saiba que a última frase  que  escreveu,  na  véspera  da  sua  morte,  tendo ficado registada para a eternidade na primeira língua em que o poeta escreveu, a  inglesa, constituirá, porventura, a  maior  dúvida  desde  sempre  presente  no  universo pessoal de cada ser humano:  I know not what  tomorrou will bring. Inadvertidamente,  (mas  não  será  este  o  verdadeiro advérbio  de  modo  da  vida?)  reparei  que  conjugara naquele  meu  curto  poema,  dois  temas  pouco  tratados, assim o julgava, na sua obra e vida: o desejo e a morte. Pessoa  foi  sempre  um  caminhante  solitário  que  vivia intensamente, mas só por dentro de si mesmo, pelo que tudo o que lhe era exterior e acontecia fora de si, pouco ou nada lhe interessava, prendia ou sequer reparava. Era ainda  uma  criança  de  cinco  anos  quando  o  primeiro contacto  com  a  mais  dura  das  realidades,  a  morte, aconteceu.  

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Primeiro  o  pai,  com  tuberculose  e  no  ano  seguinte,  o irmão.  Talvez,  como  mecanismo  emocional  de substituição,  tenha  criado  nesse  momento  o  seu primeiro  heterónimo:  Chevalier  de  Pas.  Provavelmente, ter‐se‐á  iniciado também aí, por  força do  impacto desse momento  dramatico,  o  tal  ponto  de  reunião  de  uma pequena humanidade  como Pessoa  se  autodefiniu numa carta  a  Adolfo  Casais  Monteiro,  no  próprio  ano  da  sua morte,  e  achando‐se  por  isso  “tão  louco  como Shakespeare  fora”. Um  ser  literário muito  para  além do normal,  de  excepção  e  verdadeiramente  único,  vários génios  num  só  corpo,  assim  foi  Pessoa,  que,  aliás,  num dos seus muitos aforismos defendeu a não existência da noção  de  normalidade  e  que,  por  isso,  todos  os  homens são excepções a uma regra que não existe. Numa vertiginosa sucessão de máscaras, de enigmas e de verdades, mais de setenta personagens habitaram aquela magra  esfinge  de  bigodinho,  um  paradoxo  vivo  sempre torturado  interiormente,  cuja  verdadeira  biografia  é  a sua própria obra. “Um vulcão”, como lhe chamou António Quadros.  Mas  o  próprio  Pessoa,  num  dos  seus  poemas,  tenta explicar a  complexidade da  sua Heteronímia e a génese do seu processo criativo:  Não  sei  quantas  almas  tenho./Cada  momento mudei./Continuamente  me  estranho./Nunca  me  vi  nem achei./De  tanto  ser,  só  tenho  alma./Quem  tem  alma  não tem  calma./Quem  vê  é  só  o  que  vê,/Quem  sente  não  é quem  é,/Atento  ao  que  sou  e  vejo,/Torno­me  eles  e  não eu./Cada  meu  sonho  ou  desejo/É  do  que  nasce  e  não meu./Sou  minha  própria  paisagem,/Assisto  à  minha passagem,/Diverso,  móbil  e  só,/Não  sei  sentir­me  onde estou./Por  isso,  alheio,  vou  lendo/Como  páginas,  meu ser/O  que  segue  não  prevendo,/O  que  passou  a esquecer./Noto  à  margem  do  que  li/O  que  julguei  que senti./Releio  e  digo:  «Fui  eu?»/Deus  sabe,  porque  o escreveu.  

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E  num  outro  poema  acrescenta  a  mesma  ideia  já expressa no fim deste, envolvendo‐o com uma aura mais esotérica: Emissário  de  um  rei  desconhecido/Eu  cumpro informes  instruções do além,/E as bruscas  frases que aos meus  lábios  vêm/Soam­me  a  um  outro  e  anómalo sentido... Mas, quanto aos temas da morte e do desejo que relações se  conseguem  estabelecer  com  Pessoa?  Quanto  ao primeiro  são  inúmeras  as  referências  expressas  na  sua obra,  depreendendo‐se  algum  temor  e  respeito  pelo último momento da nossa vida, mas não se pode afirmar que  Pessoa  vivesse  obcecado  com  a  ideia  da  morte. Digamos  que  pensava  subtilmente  nela  quando  a desdramatiza em tom de brincadeira, Morrer é só não ser visto.  Ou,  quando  com  paciente  resignação  impregnada de  alguma  frustração,  desabafa,  Assim  vivo  já  morto numa espera/Num intento adiado que se adia. Quanto ao desejo: Não tenho ambições nem desejos, dizia ele.  Ora,  se  olharmos  as  diferentes  faces  do  desejo, constatamos que quanto ao desejo sexual, pouco ou nada se  manifesta,  desvalorizando‐o  até  como  algo  de acidental e patológico, O amor é que é essencial/ O sexo é só  um  acidente./Pode  ser  igual/ou  diferente./O  homem não  é  um  animal:/É  uma  carne  inteligente/Embora  às vezes  doente;  mas,  já  no  que  se  refere  ao  desejo  de reconhecimento,  aqui  e  ali  ele  assoma  em  jeito  de desabafo; o desejo da riqueza material, não, este de todo não existe; e, por fim, o duplamente prosaico e ambicioso desejo  de...  ser  feliz,  também  nunca,  de modo  algum,  e até pelo  contrario, Cada dia  da minha  vida  é  o  dia mais infeliz da minha vida.  Talvez,  porque  a  diferença  entre  desejo  e  prazer  seja quase  sempre  imperceptível,  as  suas  expressões  desta sensação, estejam também ausentes da sua vida e da sua obra. 

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Toda a nossa arte deve ser reduzir ao mínimo o doloroso elemento  dos  prazeres,  escreveu  referindo‐se  àquilo  a que chamava, um epicurismo feito de abdicações. Porém,  no  âmbito  daquele  seu  conjunto  de  poemas conhecido por Poesia Inglesa, Pessoa no soneto a seguir transcrito,  joga  com  os  conceitos  de  prazer  e  de  gozo, brincando com as palavras, através das diferenças entre o real e o imaginário: Nunca  o  gozo  se  goza  na  medida/em  que  a  saudade  o deseja  ter  gozado/nem  dela  a  força,  a  imagem querida/que  recorde  em mente  o  prazer  passado/Mas  o gozo  foi  gozo  ao  ser  gozado/e  voltou  a  ser  gozo  em pensamento/gozo foi, antes do gozo acabado/gozo ainda, lembrado  em  sofrimento/Mas  ai!tudo  isto  inútil,  pois prazer/está  só  no  prazer,  não  no  pensar,/o  reflectir­se peca  em  refazer/O  só  reflexo  que  o  real  destrói./Quanto mais pensamos para provar/não dever pensar, mais gozo se foi. E,  numa  outra  expressão  naturalista,  plena  de simplicidade  ingénua  e  generosa,  estabelece  uma analogia  entre  a  felicidade  vísivel  na  natureza  e  a ansiedade dos seus desejos por beijos de uma mulher: O sol  feliz está a brihar/o campo é verde e contente/mas tenho o peito  a  ansiar/Por algo que  está ausente/Anseia por  ti  somente/anseia  por  beijos  teus/não  importa  se  és fiel/A isto/o que importa és tu somente. Ou  manifestando‐se  através  de  desejo  muito  puro  e inocente como o que é expresso nesta quadra:  Loura de olhos dormentes/Que são azuis e amarelos/Se as minhas mãos fossem pentes/Penteavam­te os cabelos. Mas  a  primeira  manifestação  da  ligação  desejo/morte em  Pessoa  encontramo‐la  quando,  ainda  adolescente, vindo a Portugal de férias em 1901, escreveu um poema juvenil  intitulado  “Quando  ela  Passa”,  no  qual, curiosamente,  manifesta  já  uma  ligação,  um  pouco mórbida  até,  entre  o  desejo  romântico  por  uma  jovem 

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adolescente e a morte desta, terminando, pasme‐se, com o epitáfio escrito para a  sua sepultura: Quando  eu  me  sento  à  janela/P'los  vidros  qu'a  neve embaça/Vejo  a  doce  imagem  d'ela/Quando  passa... passa.…  passa.../N'esta  escuridão  tristonha/Duma travessa  sombria/Quando  aparece  risonha/Brilha  mais qu'a  luz  do  dia./Quando  está  noite  ceifada/E  contemplo imagem sua/Que rompe a treva fechada/Como um reflexo da  lua,/Penso  ver  o  seu  semblante/Com  funda melancolia/Qu'o  lábio  embriagante/Não  conheceu  a alegria/E  vejo  curvado  à  dor/Todo  o  seu  primeiro encanto/Comunica­mo  o  palor/As  faces,  aos  olhos pranto./Todos os dias passava/Por aquela estreita  rua/E o palor que m'aterrava/Cada vez mais  s'acentua/Um dia já  não  passou/O  outro  também  já  não/A  sua  ausência cavou/Ferida  no  meu  coração/Na  manhã  do  outro dia/Com  o  olhar  amortecido/Fúnebre  cortejo  via/E  o coração dolorido/Lançou­me em pesar profundo/Lançou­me a mágoa seu véu:/Menos um ser n'este mundo/E mais um  anjo  no  céu./Depois  o  carro  funério/Esse  carro d'amargura/Entrou lá no cemitério/Eis ali a sepultura: 

Epitáfio.  

Cristãos! Aqui jaz no pó da sepultura/Uma jovem filha da melancolia/O seu viver foi repleto d'amargura/Seu rir foi pranto,  dor  sua  alegria./Quando  eu  me  sento  à janela/P'los  vidros  qu'a  neve  embaça/Julgo  ver  imagem dela/Que já não passa... não passa. 

Quatro  anos  depois  do  poema  Quando  ela  passa  atrás referido,  no  ano  de  1905,  de  regresso  definitivo  a Portugal,  Pessoa  começa  a  escrever  poesia  sob  o pseudónimo  de Alexander    Search  sobre  o  qual  um dia afirmou  que  “  fosse  qual  fosse  a  idade  em  que  morreu, foram demais os dias que viveu”. Curiosamente, o próprio Alexander  Search,  no  poema,  A  história  de  Salomão Cansado, sintetizou assim a vida deste anti‐herói: nasceu 

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e  morreu  e  entre  o  que  passou/ele  se  aborreceu  e  de  si zombou/Trabalhou,  cansou,  andou  e  sofreu/mas  na  sua vida  nada  é  encontrado/que  dois  simples  factos:  viveu  e morreu. Pessoa  tinha  18  anos  e  muitas  hormonas  à  solta, naturalmente,  mas  como  confessou  um  dia  (em  25  de Julho de 1907) “namoradas é coisa que não tenho e é um dos  meus  ideais  (outro  era  encontrar  um  amigo verdadeiro.  A  verdade,  porém,  é  que  sofro”.  Talvez  por isso  tenha  mais  tarde  escrito  no  famoso  poema Tabacaria  que  se  casasse  com  a  filha  da  minha lavadeira/talvez fosse feliz . E este parece ter mesmo sido um  episódio  verdadeiro(?).  Ou,  então,  que  tenha imaginado  aquela  genial  e  pungente  história  de  um namoro  à  distancia,  retratada  na  carta  da  Corcunda  ao Serralheiro  onde,  mais  uma  vez,  combina  no  mesmo texto o platónico desejo de amor de uma  jovem mulher de  19  anos,  fisicamente  deformada  e  vivendo  solitária, com a eminência do seu fatal e precoce destino:  Senhor António: 

O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda  vez  porque  estou  tuberculosa,  mas  eu  quero escrever­lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo. O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas  não  sabe  a  valer.  Tem­me  visto  à  janela  quando  o senhor  passa  para  a  oficina  e  eu  olho  para  si,  porque  o espero  a  chegar,  e  sei  a  hora  que  o  senhor  chega.  Deve sempre  ter  pensado  sem  importância  na  corcunda  do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em  si.  Sei  que  o  senhor  tem  uma  amante,  que  é  aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho  ciúmes  de  si  porque  não  tenho  direito  a  ter  nada, nem mesmo  ciúmes.  Eu  gosto  de  si  porque  gosto  de  si,  e tenho  pena  de  não  ser  outra mulher,  com  outro  corpo  e outro  feitio,  e  poder  ir  à  rua  e  falar  consigo ainda que o 

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senhor  me  não  desse  razão  de  nada,  mas  eu  estimava conhecê­lo  de  falar  (….)  Eu  gostava  de morrer  depois  de lhe  falar  a  primeira  vez  mas  nunca  terei  coragem  nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de  si, mas  tenho medo que  se  o  senhor soubesse  não  se  importasse  nada,  e  eu  tenho  pena  já  de saber  que  isso  é  absolutamente  certo  antes  de  saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber. Eu sou  corcunda  desde  a  nascença  e  sempre  riram  de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por  causa  da  doença,  para  ter  grandes  raivas.  Tenho dezanove  anos  e  nunca  sei  para  que  é  que  cheguei  a  ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor. (….)Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já  assim,  e  até  tenho  que  estar  em  cima  de  um  estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações  e  revistas  de modas  que  emprestam  à minha mãe,  e  estou  sempre  a  pensar  noutra  coisa,  tanto  que quando me  perguntam  como  era  aquela  saia  ou  quem  é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem  ser  e que  eu não posso deixar que me  entrem na  cabeça  e me  dêem alegria  para  eu  depois ainda  por  cima  ter  vontade  de  chorar.  Depois  todos  me desculpam,  e  acham  que  sou  tonta,  mas  não  me  julgam parva,  porque  ninguém  julga  isso,  e  eu  chego  a  não  ter pena  da  desculpa,  porque  assim  não  tenho  que  explicar porque  é  que  estive  distraída.  Ainda  me  lembro  daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para  o  azul  escuro  que  costuma  ser.  O  senhor  ia  que parecia  o  próprio  dia  que  estava  lindo  e  eu  nunca  tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter 

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com  ela  mas  com  outra  qualquer,  porque  eu  não  pensei senão em si, e  foi por  isso que  invejei  toda a gente, o que não  percebo mas  o  certo  é  que  é  verdade. Não  é  por  ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não  me  posso  mexer,  e  assim  estou  como  se  fosse paralítica, o que é uma maçada para  todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar­me e a ter que me aceitar que o  senhor não  imagina. Eu às vezes dá­me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas  eu  que  figura  teria  a  cair  da  janela?  Até  quem  me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver­me  na  rua  como  uma macaca,  com  as  pernas  à  vela  e  a corcunda  a  sair  pela  blusa  e  toda  a  gente  a  querer  ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque  a  gente  é  como  é  e  não  como  tinha  vontade  de ser.(…) 

O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o  que  é  a  gente  ter  nascido  e  não  ser  gente,  e  ver  nos jornais  o  que  as  pessoas  fazem,  e  uns  são  ministros  e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros  estão  na  vida  da  sociedade  e  casam  e  têm baptizados  e  estão  doentes  e  fazem­lhe  operações  os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e  ali,  e  outros  roubam  e  outros  queixam­se,  e  uns  fazem grandes  crimes  e  há  artigos  assinados  por  outros  e retratos  e  anúncios  com  os  nomes  dos  homens  que  vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água. Se o senhor soubesse  isto  tudo era  capaz de vez  em quando me dizer adeus  da  rua,  e  eu  gostava  de  se  lhe  poder  pedir  isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que  tenho de viver, mas eu  ia mais  feliz  lá 

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para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.(…) 

Adeus  senhor António,  eu não  tenho  senão dias de vida e escrevo  esta  carta  só  para  a  guardar  no  peito  como  se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever  a  si.  Eu  desejo  que  o  senhor  tenha  todas  as felicidades  que  possa  desejar  e  que  nunca  saiba  de  mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais. 

Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida. 

Aí tem e estou a chorar. 

Maria José“ 

 Mas o poema, onde porventura melhor se casa a relação amor/prazer/morte,  talvez  seja um da  série dedicada  a Lídia,  uma  das  suas  (poucas)  heroínas  inventadas  a quem  dedicou  alguns  dos  seus  raros  poemas  de  amor pela  voz  de  Ricardo  Reis,  que  neste  poema  chama  aos seus  ingénuos  amantes Pagãos  inocentes  da decadência, evocando a tranquilidade no amor em vez do fogo que os desejos ateiam às paixões : Vem  sentar­te  comigo,  Lídia,  à  beira  do rio./Sossegadamente  fitemos  o  seu  curso  e aprendamos/Que  a  vida  passa,  e  não  estamos  de  mãos enlaçadas/(Enlacemos  as  mãos)./Depois  pensemos, crianças adultas, que a vida/Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,/Vai para um mar muito longe, para ao pé do  Fado,/Mais  longe  que  os  deuses./Desenlacemos  as mãos,  porque  não  vale  a  pena  cansarmo­nos./Quer gozemos,  quer  não  gozemos,  passamos  como  o  rio./Mais vale  saber  passar  silenciosamente/E  sem  desassossegos grandes./Sem  amores,  nem  ódios,  nem  paixões  que levantam a voz,/Nem  invejas que dão movimento demais aos olhos,/Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre 

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correria,/E  sempre  iria  ter  ao  mar./Amemo­nos tranquilamente, pensando que podíamos,/Se quiséssemos, trocar  beijos  e  abraços  e  caricias,/Mas  que  mais  vale estarmos sentados ao pé um do outro/Ouvindo correr o rio e  vendo­o./Colhamos  flores,  pega  tu  nelas  e  deixa­as/No colo,  e  que  o  seu  perfume  suavize  o  momento  —/Este momento  em  que  sossegadamente  não  cremos  em nada,/ Pagãos  inocentes da decadência./Ao menos,  se  for sombra  antes,  lembrar­te­ás  de  mim  depois/Sem  que  a minha  lembrança  te  arda  ou  te  fira  ou  te mova,/Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos/Nem fomos mais do que crianças./E se antes do que eu levares o óbolo ao  barqueiro  sombrio,  /Eu  nada  terei  que  sofrer  ao lembrar­me de ti,/Ser­me­ás suave à memória lembrando­te assim — à beira­rio,/Pagã triste e com flores no regaço  Fernando  Pessoa,  como  já  notámos  atrás,  tem consciência  que  a  sua  escrita  o  transcende  tendo porventura  até  origem  divina,  isto  é,  seria  inspirada pelos  deuses  ou  como  ele  chega  a  confessar: Deus  sabe porque o escreveu, ou um carácter mediúnico  através de alguém que lhe dita o que ele escreve ou simplesmente o utiliza  como  veículo  de  escrita.  Ou  poderá  ser  mesmo uma missão que alguém  lhe destinou e que ele,  através da escrita, tem de cumprir, tal como ele próprio confessa sentindo‐se o Emissário de um rei desconhecido a cumprir instruções de além. Mas  uma  constante  na  sua  vida  e  obra,  essa  muita humana  e  um  pouco  doentia,  era  a  sua  permanente insatisfação com tudo e principalmente consigo próprio, situação  bem  conhecida  e  enquadrável  no  foro patológico  das  perturbações  de  personalidade,  tão genialmente expressa no poema:     Se estou só quero não estar/se  não  estou  quero  estar  só/enfim  quero  sempre estar/da maneira que não estou. Pessoa, ele próprio, num prenúncio de desejo: Passageira que  viajarás  tantas  vezes  no  mesmo  compartimento 

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comigo/no  comboio  suburbano/chegaste  a  interessar­te por  mim?  Ou  vendo‐se  mesmo,  numa  das  raras manifestações  de  auto‐estima,  como  um  objecto  de desejo: Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga (...) Ou ainda neste poema surpreendente sobre a memoria e o  desejo: Usas  um  vestido/que  é  uma  lembrança/para  o meu  coração  (...)ou  o  desejo  de  regressar  à  infância: Desejo  físico  da  alma  de  se  encontrar  ali  outra  vez/por uma  viajem  metafísica  e  carnal,  e  o  cansaço  reforçado pela  insatisfação  dos  desejos:    Porque  eu  desejo impossivelmente  o  possível/porque  quero  tudo,  ou  um pouco mais se puder ser/ou até se não puder ser.  Mas  como  analisar  a  obra  de  um  poeta  que  já  por  si  e pela  sua  própria  natureza,  senão  não  seria  poeta,  é sempre um fingidor? Na esteira, aliás, do seu heterónimo Álvaro de Campos que escreveu precisamente  O poeta é um  fingidor/consegue  até  fingir  que  é  dor/  a  dor  que deveras sente. E no poema Dactilografia vamos encontrar uma  espécie  de  confusão  entre  o  sonho  e  a  realidade, entre a vida e a morte: Todos temos duas vidas/ (...)/ Na outra somos nós/na outra vivemos/ nesta morremos que é o que viver quer dizer. Mas  aqui  Pessoa  vai mais  longe  alargando  o  âmbito  do fingimento muito para além da poesia e, no  fundo, para toda  a  sua  obra  quando  escreve  em  tom  de  desabafo: Dizem  que  finjo  ou  minto/tudo  o  que  escrevo.  Não/eu simplesmente sinto com a imaginação. E  quando  aborda  o  tema  da  morte  será  que  Pessoa também finge que se sente morto em vida ou que como ele diz, começou a morrer muito antes de ter vivido? Não sei mas  sinto morto/o ser vivo que  tenho/nasci  como um aborto/salvo  a  hora  e  o  tamanho  ou  cansado  de  viver, antecipando  José  Gomes  Ferreira  que  achava  que  viver sempre  também  cansa,  também  expressou  desejo semelhante  com  os  versos  Só  quero  dormir  uma morte 

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que  seja  encarando  a  morte  como  uma  forma  de finalmente descansar e fugir ao cansaço da vida ou, com algum  sarcasmo  ousado  e  blasfemo Pus  o meu  Deus  no prego (...) e hoje sou apenas um suicida tarado/um desejo de  dormir  que  ainda  vive  ou  então  com  mais  e  mais metáforas,  tais como, a morte é a curva da estrada ou a enorme gare onde Deus manda.  Mas  também  encontramos  em  Pessoa,  ele  prório, poemas onde concilia os temas do amor e da morte como por exemplo este: A morte chega cedo,/Pois breve é toda vida/O  instante  é  o  arremedo/De  uma  coisa  perdida./O amor  foi  começado,/O  ideal  não  acabou,/E  quem  tenha alcançado/Não  sabe  o  que  alcançou/E  a  tudo  isto  a morte/Risca por não estar certo/No caderno da sorte/Que Deus deixou aberto./As coisas que errei na vida/São as que acharei  na  morte,/Porque  a  vida  é  dividida/Entre  quem sou  e  a  sorte./As  coisas  que  a  Sorte  deu/Levou­as  ela consigo,/Mas  as  coisas  que  sou  eu/Guardei­as  todas comigo./E  por  isso  os  erros meus,/Sendo  a má  sorte  que tive,/Terei que os buscar nos cues/Quando a morte tire os véus/À inconsciência em que estive.  A morte  do  seu  grande  amigo  Sá Carneiro não poderia, naturalmente, deixar de ser evocada, referindo‐se Pessoa a  esta,  como  a  ida  que  afinal  é  um  regresso  ou interrogando‐se  mesmo  sobre  a  falta  de  sentido  da morte.  Por vezes, escorrem da sua escrita grossas gotas de cepticismo metaforizado reduzindo a  importância da vida  a  uma  mera  passagem  para  a  morte:  Considero  a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Em carta dirigida a Armando Cortes Rodrigues escreveu em  intimo  desabafo: O  Sá­Carneiro  suicidou­se  em Paris no  dia  26  de  Abril.  Não  tenho  cabeça  para  lhe  escrever mas  não  quero  deixar  de  lhe  comunicar  isto.  Claro  está que  a  causa  do  suicídio  foi  o  temperamento  dele  que 

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fatalmente  o  levaria  àquilo  (...)  ele  suicidou­se  com estricnina. Uma morte horrorosa (...)  Naturalmente,  Pessoa  acabaria  por  escrever  sobre  esta morte que  tanto o marcou  com o poema SÁ CARNEIRO publicado  na  revista  Orpheu: Nunca  supus  que  isto  que chamam  morte/Tivesse/qualquer  espécie  de sentido.../Cada um de nós, aqui aparecido,/Onde manda a lei  e  a  falsa  sorte,/Tem  só  uma  demora  de passagem/Entre um comboio e outro, entroncamento    Chamado  o mundo,  ou  a  vida,  ou  o momento;/Mas,  seja como  for  segue  a  viagem./Passei,  embora  num  comboio expresso/Seguisses, e adiante do em que vou;/No términus de  tudo,  ao  fim  lá  estou/Nessa  ida  que  afinal  é  um regresso./Porque  na  enorme  gare  onde  Deus manda/Grandes acolhimentos se darão/Para cada prolixo coração/Que com seu próprio ser vive em demanda./Hoje, falho  de  ti,  sou  dois  a  sós/Há  almas  pares,  as  que conheceram/Onde  os  seres  são  almas./Como  éramos  só um,  falando!  Nós/Éramos  como  um  diálogo  numa alma./Não  sei  se  dormes  [...]  calma,/Sei  que,  falho  de  ti, estou  um  a  sós./É  como  se  esperasse  eternamente/A  tua vida  certa  e  conhecida/Aí  em  baixo,  no  café  Arcada  —/Quase  no  extremo  deste  [...]/Aí  onde  escreveste  aqueles versos/Do  trapézio,  doriu­nos  [...]/Aquilo  tudo  que  dizes no  «Orpheu»./Ah,  meu  maior  amigo,  nunca  mais/Na paisagem  sepulta  desta  vida/Encontrarei  uma  alma  tão querida/Às coisas que em meu ser são as reais.[...] Não  mais,  não  mais,  e  desde  que  saíste/Desta  prisão fechada  que  é  o  mundo,/Meu  coração  é  inerte  e infecundo/E o que sou é um sonho que está triste./Porque há em nós, por mais que consigamos/Ser nós mesmos a sós sem  nostalgia,/Um  desejo  de  termos  companhia  —/O amigo como esse que a falar amamos.  Só um homem ultra‐sensível poderia  ter escrito a outro homem este hino ao amor da amizade. 

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PRIMEIRO ACTO  1ª cena – Pessoa, jovem e tímido   Uma  grande  timidez,  uma  veia  idealista  sim  mas resignada, A minha  vida  é  um  sonho  imenso  (…)Deixem­me  chorar,  algum medo,  uma  certa  ausência  de  desejo, pouca  ou  nenhuma  ambição,    e  uma  enorme  “falta  de vontade” para se afirmar, marcavam‐lhe indelevelmente a constituição do seu espírito, todo feito de “hesitação e dúvida”  e  de  uma  certa  ambivalência  alternada  entre  o sono, o sonho e a realidade da vida:  Temos  todos que vivemos/Uma vida que é vivida/e outra vida que é pensada/E a única vida que temos/é essa que é dividida/entre a verdadeira e a errada. Ou  entre  uma  dualidade  dificil  de  discernir  repartida pelo seu verdadeiro EU e o seu EGO: Entre o  sono  e o  sonho,/entre mim e o que  em mim/ é o quem eu me suponho,/Corre um rio sem fim. Aos 19 anos de idade, na página do seu diário intimo do dia  25  de  Junho  de  1907,  escreveu:  sou  tímido  e  tenho repugnância  em  dar  a  conhecer  as  minhas  angústias  e amigas ou namoradas é coisa que não tenho e é outro dos meus ideais.   Pouco ou nada se sabe sobre os aspectos mais intímos da vida  de  Pessoa  o  que  tem  levantado  algum  tipo  de interrogações  especulativas  nem  sempre  respeitosas. Dada a natureza um pouco assexuada que ressalta da sua vida e obra pode perguntar‐se se Pessoa seria hetero ou homossexual? Teria alguma vez tido relações sexuais? Se sim,  como  terá  sido  a  sua  iniciação?  Na  época  era costume  ir  às    casas de putas. Terá Pessoa  frequentado alguma vez  as  chamadas  “casas de passe”? Ou  será que Pessoa permaneceu virgem até à sua morte? Num poema de 1914, Pessoa reflecte, pela voz de Ricardo reis, sobre 

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o  sentimento  do  amor  considerando‐o  uma  maçada  e preferindo‐o na sua vertente onírica:  Amar  é maçador, mas  é  talvez preferível  a  não amar.  (O sonho,  porém,  substitui  tudo).  Nele  pode  haver  toda  a noção  do  esforço  sem  o  esforço  real.  Dentro  do  sonho posso entrar em batalhas sem risco de ter morto ou de ser ferido. Posso raciocinar, sem que tenha em vista chegar a uma verdade, a que nunca chegue; sem querer resolver um problema,  que  nunca  resolvo;  (...)  Posso  amar  sem  me recusarem  nem me  trairem,  nem me  aborrecerem.  Posso mudar de amada e ela será sempre a mesma. E se quiser que me traia e se me esquive, tenho às ordens que isso me aconteça,  e  sempre  como  eu  quero,  sempre  como  eu  o gozo.  Em  sonho  posso  viver  as  maiores  angústias,  as maiores torturas, as maiores vitórias. Posso viver tudo isso tal  como  se  fosse da vida; depende apenas do meu poder em tornar o  sonho vivido, nítido,  real.  Isso exige estudo e paciência interior. Mas, como qualquer ser humano a necessidade de amar e  de  ser  amado  vivia  nele  e  por  vezes  assomava  à superfície,  como  neste  desabafo  em  que  se  reclamava, Órfão  da  Fortuna,  tenho  como  todos  os  orfãos,  a necessidade de ser o objecto da afeição de alguêm. Porém, nem sempre quando se ama se é retribuído e há que aceitar, Uma vez amei, julguei que me amariam,/mas não fui amado./Não fui amado pela única  razão­/Porque não  tinha  que  ser,  ou  o  amor  que  se  recebe  não corresponde exactamente ao que se idealizava, Não sei se é amor que tens ou amor que  finges,/O que me dás./Dás­mo.Tanto me basta. Independentemente  da  adesão  do  amor  à  realidade  da sua  vida,  um  facto  inquestionável  é  que  na  sua  obra, Pessoa  expressou de maneira  brilhante  as  contradições de quem ama, como se constata nos seguintes extractos de diferentes poemas: 

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Amo como o amor ama./Não sei razão para amar­te mais que amar­te/que queres que te diga mais que te amo/se o que quero dizer­te é que te amo. (…) Ninguém a outro ama, senão que ama/O que de si há nele ou é suposto/ (…) Porque  quem  ama  nunca  sabe  o  que  ama/Nem  sabe porque ama, nem o que é amar…  E, por fim, que dizer deste …Gostava de gostar de gostar.  De  um modo  geral,  para  Pessoa  nada  era  ou  podia  ser positivo, o seu carácter auto‐cêntrico, o seu desejo de ser completo,  como ele  dizia,  aquilo  porque  sempre  se  luta com esforço e angústia” e o seu sentido da vida: “ter uma acção sobre a humanidade e o intenso desejo de melhorar o  estado de Portugal”,  o que  colidia  frontalmente  com a grande  instabilidade  pessoal  da  sua  vida  (em  15  anos, entre  1905  e  1920,  viveu  em  15  casas  diferentes  em Lisboa) e a sua costela fatalista tantas vezes invocada de “seja como o Destino quiser” ou “o castelo maldito de  ter que viver”. O  seu  desajustamento  face  aos  padrões  “normais”  de vida  faziam‐no  reflectir  sobre  si próprio, Não  sei.  Falta­me um sentido, um tacto/Para a vida, para o amor, para a glória, e consequentemente, a sofrer por tal inadaptação, Dói­me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. E um plano de vida, será que tinha? E o que é um plano de  vida?  Valerá  apena  fazer  algum?  Não  será  mesmo verdade, como diz o provérbio, que quando um homem faz  planos,  Deus  se  ri?  Pessoa  já  porventura  teria absorvido  essa  sabedoria,  porque  tinha  apenas  como objectivo essa coisa humilde a que chamava estabilidade financeira,  ou  seja,  segundo  as  suas  próprias  contas, cerca  de  sessenta  dólares  por  mês  e  uma  casa  com bastante  espaço  para  arrumar  todos  os  papéis  e  livros, 

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na devida ordem e onde pudesse viver sozinho, porque, como ele dizia, estar só era “ser livre e triste num sossego perto  da  resignação”.  Mas,  para  ninguém  é  fácil  viver sempre  só,  daí  o desabafo  “de  vez  em quando aborreço­me de não andar  senão comigo”. Mas a  solidão não será uma  condição  indissociável  da  produção  literária,  uma inevitabilidade associada ao génio? Escrever não é em si mesmo  um puro  acto  solitário  de  prazer  e  dor?  Pessoa tinha consciência da sua singularidade ainda que esta o fizesse  também  sofrer  e,  em  momentos  mais  difíceis, confortava‐se  com  a  ideia  de  se  encontrar  à  frente  dos seus  contemporâneos  pensando  “  a  minha  crise  não  é crise para eu me lamentar, é a de se encontrar só quem se adianta demais aos companheiros de viagem”.  A  solidão  era  também  uma  sua  opção  de  vida  e  dos heterónimos que dentro dele viviam, como por exemplo, escreveu  Álvaro  de  Campos,  mataforizando  mais  uma vez  com  a  morte,  no  último  verso  do  poema  Lisbon revisited:  “ e enquanto  tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho”.  Pessoa  sabia  bem  do  valor  da  sua  obra  e,  por  vezes, brincava  consigo próprio  com uma  fina  ironia narcísica como,  quando  dizia,  esperar  um  dia  ganhar  o  prémio Nobel, em carta de 13 de Janeiro dirigida a Adolfo Casais Monteiro,  ou  quando  num  excepcional  texto  sobre poética  publicado  na  revista  Águia,  em  Abril  de  1912, deixou  antever  nas  entrelinhas  o  seu  desejo  de  ser considerado um super Camões: (…)E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta  ou  poetas  supremos,  desta  corrente,  e  da  nossa terra,  porque  fatalmente  o  Grande  Poeta,  que  este movimento  gerará,  deslocará  para  segundo  plano  a figura,  até  agora  primacial,  de  Camões.(…)  ou  ainda, quando  se  mima  e  auto‐aprecia,  numa  carta  dirigida  a Cortes  Rodrigues,  a  19  de  Janeiro  de  1915,  na  qual  se pode ler: “Amo‐me por ter escrito: Ah! Poder ser tu, sendo 

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eu!/Ter  a  tua  alegre  inconsciência/  e  a  consciência disso!...” Também  na  serie  de  poemas  designados  por  Pauis,  no quarto poema desta  série datado de 4 de Novembro de 1914, Pessoa volta a  combinar o desejo do amor com o desejo  da morte  como  a  fatal  inevitabilidade  depois  do primeiro  desaparecer  numa  permanente  relação  de causa e efeito:  Como  a  noite  é  longa!/Toda  a  noite  é  assim.../Senta­te, ama  perto/Do  leito  onde  esperto./Vem  pr'ao  pé  de mim.../Amei tanta coisa.../Hoje nada existe./Aqui ao pé da cama/Canta­me,  minha  ama,/Uma  canção  triste./Era uma  princesa/Que  amou...  Já  não  sei.../Como  estou esquecido!/Canta­me  ao  ouvido/E  adormecerei...7Que  é feito  de  tudo?/Que  fiz  eu  de  mim?/Deixa­me dormir,/Dormir a sorrir/E seja isto o fim.  De novo, o dormir, como uma metáfora da morte e de um fim tranquilo sorrindo, que volta a reafirmar no Livro do Dessassossego através da comparação de o amor ser um sono que chega para o pouco ser que se é. Analogia várias vezes retomada em toda a sua obra como é o caso deste poema de Ricardo Reis, pela voz heroína de Lídia: O sono é bom pois despertamos dele/Para saber que é bom. Se a morte  é  sono/Despertaremos  dela;/ Se  não,  e  não  é sono,/Conquanto  em  nós  é  nosso  a  refusemos/Enquanto em  nossos  corpos  condenados/Dura,  do  carcereiro,/A licença  indecisa/Lídia,  a  vida  mais  vil  antes  que  a morte,/Que  desconheço,  quero;  e  as  flores  colho/Que  te entrego, votives/De um pequeno destino. Também, na série de poemas que designou por poemas dramáticos escreveu a confissão da sua incapacidade de se  entregar  a  alguêm:  Não  me  concebo  amando  nem dizendo/a  alguêm  eu  te  amo  sem  que  me  conceba/com uma alma que não é minha.  

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Contudo,  Pessoa  também  escreveu  cartas  de  amor, àquela  mulher  que  foi  a  única  das  suas  namoradas conhecidas,  Ófelia,  cartas  um  pouco  lamechas,  algo desinteressantes,  rídiculas  até  em  certos  passos,  como aliás, todas as cartas de amor o são!   

Bebezinho do Nininho­ninho  Oh! Venho  só  quevê  pâ  dizê  ó  Bebezinho  que  gotei  da 

catinha dela. Oh! E também tive munta pena de não tá ó pé do Bebé pâ 

le dá jinhos. Oh! O Nininho é pequinininho! Hoje  o  Nininho  não  vai  a  Belém  porque,  como  não 

sabia se havia carros, combinei tá aqui às seis o’as. Amanhã,  a  não  sê  qu’o  Nininho  não  possa  é  que  sai 

daqui pelas cinco e meia (isto é a meia das cinco e meia). Amanhã o Bebé espera pelo Nininho,  sim? Em Belém, 

sim? Sim? Jinhos, jinhos e mais jinhos  Fernando  

Comentários? Mas, também é nestas cartas que podemos encontrar  algumas  afirmações  que  permitem compreender melhor as suas inseguranças e dúvidas em matéria  de  amor  e  de  relações  conjugais:  Se  casar,  não casarei  senão  consigo.  Resta  saber  se  o  casamento,  o  lar são  coisas  que  se  coadunam  comigo  e  a  minha  vida  de pensamento.  Também  Álvaro  de  campos  um  dia  gritou: Queriam­me casado,  fútil,  quotidiano  e  tributável?  E  se  contradisse: Até amaria o lar, desde que o não tivesse. Ao  mesmo  tempo,  a  consciência  de  que  tudo  é impermanente  e  passageiro,  pode  ler‐se  na  carta  de ruptura  que  também  escreveu  a  Ofélia:  Se  a  vida  que  é 

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tudo, passa por fim, como não hã­de passar o amor e a dor e todas as coisas que não são mais que partes da vida (…) É  ainda  noutra  carta  também  dirigida  a  Ofélia  em 29/11/1920  que  escreveu:  Quanto  a  mim…O  amor passou.  Mas  conservo­lhe  uma  afeição  inalterável  e  não esquecerei  nunca  –  nunca  creia  –  nem  a  sua  figurinha engraçada  e  os  seus  modos  de  pequenina,  nem  a  sua ternura, a sua dedicação, a sua índole adorável. Mas a angústia (o famoso le mal de vivre tão francês) está nele sempre presente. Também em carta datada de 14 de Março de 1916 dirigida ao seu grande amigo Mário de Sá Carneiro,  Pessoa  escreve:  Estou  hoje  no  fundo  de  uma depressão sem fundo (…) num daqueles dias em que nunca tive  futuro  (…)  Há  barcos  para  muitos  portos,  mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça”. Continua  depois  num  tom  tão  intimista  quanto  genial: Em  dias  da  alma  como  hoje  eu  sinto  bem,  em  toda  a consciência  do  meu  corpo,  que  sou  a  criança  triste  em quem  a  vida  bateu.  Puseram­me  a  um  canto  de  onde  se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às  nove  horas  e  dez  da  noite,  a minha  vida  sabe  a  valer isto. (…) No  jardim  que  entrevejo  pelas  janelas  caladas  do  meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos  de  onde  pendem;  estão  enrolados  muito  alto,  e assim  nem  a  ideia  de  mim  fugido  pode,  na  minha imaginação,  ter  balouços  para  esquecer  a  hora.  Pouco mais  ou  menos  isto,  mas  sem  estilo,  é  o  meu  estado  de alma neste momento (…) Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as cousas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que  sinto.  Mas  você  sentirá  bem  que  esta  tragédia irrepresentável  é  de  uma  realidade  de  cabide  ou  de chávena —  cheia  de  aqui  e  de  agora,  e  passando­se  na minha alma como o verde nas folhas. 

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Foi  por  isto  que  o  Príncipe  não  reinou.  Esta  frase  é inteiramente  absurda.  Mas  neste  momento  sinto  que  as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar. Pode ser que  se não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo­a, me demore a  copiá­la à máquina, para  inserir frases e esgares dela no «Livro do Desassossego». Mas isso nada  roubará  à  sinceridade  com  que  a  escrevo,  nem  à dolorosa inevitabilidade com que a sinto. (…)                              

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  ENTREACTO  Cena Única ‐ Pessoa Zen? A Veia Esotérica e Mediúnica.   Na  pele  e  pela  voz  de  António  Mora,  um  dos  seus heterónimos  menos  conhecidos,  numa  espécie  de niilismo  transcendental  de  óbvias  influências  budistas (Tudo é Maya) Pessoa afirma que a vida não tem sentido nenhum, que a beleza não existe e que tudo é ilusão. Tudo é criação e toda a criação é ilusão.  Também, numa outra das suas muitas reflexões pessoais seguindo  a  mesma  linha  de  pensamento,  chegou  a escrever evocando até o espírito de Buda: Os verdadeiros grandes da humanidade são os que amaram sem lhe tocar, de cima, de onde se pode amar sem pertencer, porque nós só  amamos  por  engano  a  nós  próprios.  Considerar  tudo como uma ilusão e tratá­lo como tal (…) Mais  tarde,  em  Álvaro  de  Campos  desenvolve‐se  essa veia  nihilista  e  de  certo  modo  abúlica  na  forma  como inicia  o  famoso  poema  Lisbon  revisited  e  no  qual estabelece a relação entre a falta de vontade de viver e a inevitabilidade da morte:  Não:  não  quero  nada/Já  disse  que  não  quero  nada./Não me venham com conclusões./A única conclusão é morrer. Sabe‐se  que  Pessoa  contactou  com  a  doutrina  budista através  de  várias  fontes,  a  mais  forte  das  quais  talvez tenha  sido  a  tradução  que  efectuou  do  livro  A  Voz  do Silêncio,  da  teosofista  Madame  Blavatsky  e  que consubstancia  os  ensinamento  absorvidos  por  ela  ao longo  de  uma  vivência  de  três  anos  num  convento  de monges  budistas  no  Tibete.  Alguns  dos  principais princípios de vida e filosofia budistas manifestam‐se em diversas partes da sua obra e particularmente na poesia do  seu  heterónimo  Ricardo  Reis,  a  sua  parte mais  zen, 

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como o viver aqui e agora ou o carpe diem: Cada dia sem gozo não foi teu:/Foi só durares nele.  O mesmo Ricardo Reis que indo ainda mais longe nos dá a fórmula mágica para atingir a suprema compreensão e sabedoria  da  vida:  Sábio  é  o  que  se  contenta  com  o espectáculo  do  mundo,/E  ao  beber  nem  recorda/Que  já bebeu  na  vida,/Para  quem  tudo  é  novo/E  imarcescível sempre.  (Pessoa  utiliza  no  final  deste  poema  um  dos adjectivos  mais  incríveis  e  desconhecido  da  língua portuguesa e ao qual Mário Henrique Leiria dedica uma das  suas  estórias  do  seu  livro  Contos  do  Gin  Tonic: imarcescível!!) E também, Alberto Caeiro, assume num escrito de nítida inspiração budista, no Guardador de Rebanhos que: Não tenho  ambições  nem  desejos/Ser  poeta  não  é  uma ambição minha/É a minha maneira de estar sozinho. Pessoa  desenvolveu  também  uma  vertente  esotérica  e mediúnica  que  quase  a  brincar  descreve  os  seus primórdios  numa  carta  escrita  à  sua  tia  favorita  Anica. Conta ele que sentiu, numa dessas manifestações, a crise mental  que  Sá  Carneiro  atravessou  em  Paris  e  que antecedeu  a  sua  morte  tendo  caido  sobre  ele  “uma depressão  vinda  do  exterior”  que  nesse  momento  não soube  explicar.  Nessa  carta  confessou  ainda  que  “a escrita  automática  que  sentia  era  também  uma manifestação  legítima  de  “mediunidade  escrevente” além da manifestação de “Visão Astral” e “Visão Etérica”. Igual explicação seria por ele dada também para explicar a  génese  criativa  da  série  de  poemas  O  Guardador  de Rebanhos que  terá escrito de pé durante uma noite  até ao  amanhecer.  Essa  sua  natureza  curiosa  pelo esoterismo  fê‐lo  conhecer  um  dos  magos  da  época, Alester  Crowley,  e  envolver‐se  com  este  num  episódio estranho  relacionado  com  a  mistificação  encenada  da morte deste na Boca do Inferno, em Cascais, no dia 25 de Setembro. Morte encenada?morte real? Suicídio? Blague? Acto publicitário? Ainda hoje não se sabe qual a verdade 

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e  foi  assim  que  o  próprio  Fernando  pessoa  numa entrevista da época se referia ao caso:  —  Não —  diz­nos  Fernando  Pessoa —  não  há  o  que  v. chama  "notícias"  do Crowley. Quer  o  secretário  dele,  que está  em  Inglaterra,  quer  um  íntimo amigo  dele,  que  está na  Alemanha,  continuam  a  revelar­se,  quando  me escrevem, desorientados com o caso. Parecem, na verdade, não  estar  absolutamente  convencidos  do  suicídio,  mas também  parecem  não  saber  de  que  é  que  hão­de  estar convencidos.  Do  que  não  tenho  dúvidas,  pelo  tom  das cartas, é que,  se Crowley está vivo algures, um e outro (e são  os  seus  mais  íntimos),  lhe  ignoram  por  completo  o paradeiro. E você, o que pensa? — Não penso, que é o mais cómodo. A princípio, ao verificar a absoluta autenticidade da carta e a estranheza da sua data e assinatura ("Sol em Balança" e "Tu  Li  Yu",  respectivamente),  acreditei  em  absoluto  no suicídio;  claramente  o  disse,  porque  o  acreditava,  na Investigação  Criminal.  Hoje  reconheço  falhas  lógicas  no argumento  que  me  serviu  para  essa  conclusão.  A  data astrológica, provando que a carta foi escrita depois das 6 horas  da  tarde  do  dia  23  de  Setembro,  não  prova,  na verdade, que Crowley se houvesse suicidado em seguida; e o facto, que me pareceu sinistro, de Crowley assinar com o nome  chinês,  de  que  ele  uma  vez me  disse  ser  "uma  das suas  incarnações  anteriores",  não  prova  nada,  pois  ele pode bem ter­me mentido, com um propósito antecipado e sabendo as conclusões que eu viria a tirar, ao dar­me, aliás no  acaso  de  uma  conversa,  essa  informação  sobre  o  seu passado longínquo. O próprio Pessoa, numa Nota Biográfica,  escrita por ele mesmo,  confirma  ter  sido  iniciado  na  Ordem  dos Templários  e  que  o  seu  grande  objectivo  de  vida  é  ter sempre  na  memória  o  mártir  Jacques  de  Molay,  grão‐mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a 

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parte, os seus três assassinos—a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania. 

 2º ACTO  1ª cena – A Morte e o Desejo   Já vimos que Pessoa não se considerava um homem feliz embora  a  sua  ideia  de  felicidade  fosse  bastante despojada e simples: um livro policial de Conan Doyle ou de Arthur Morrison, para lhe pegarem na consciência ao colo  como  ele  dizia,  um  cigarro  de  45  ao  pacote  e  uma chávena de café, eis a sua Santíssima Trindade do prazer. Mas,  recuando no  tempo,  o primeiro  texto  literário que publica é um fragmento fantástico e simbolista do futuro Livro  do  Desassossego  que  intitula  A  Floresta  do Alheamento e que começa com a frase Sei que despertei e ainda  durmo  que  poderia  constituir‐se  como  uma perfeita metáfora da  sua  vida  e  obra.  É neste  texto que encontramos algumas das suas primeiras referências aos temas do amor e do desejo ainda que numa aura onírica: A nossa vida era toda a vida…o nosso amor era o perfume do  amor…vivíamos  horas  impossíveis  cheias  de  sermos nós…E  isto  porque  sabíamos,  com  toda  a  carne  da  nossa carne, que não éramos uma realidade… Para depois logo a seguir,  como  sempre,  de  novo  o  tema  da morte:  (…)  E assim  corremos  (?)  a  nossa  vida,  tão  atentos separadamente a corrê­la que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um,  dentro  de  si,  o  mero  eco  do  seu  próprio  ser…  Para depois  terminar  com  uma  recusa  muito  zen  e repetidamente  glosada  na  sua  obra: Não  choremos,  não odiemos, não desejemos…Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol  de  linho  fino  o  perfil  hirto  e  morto  da  nossa imperfeição.  

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De novo o  tema da Morte a  impor‐se no primeiro verso de  um  longo  poema  da  sua  fase  inglesa,  Antinous  :  the boy lay dead ... embora estes poemas em inglês, Antinous e  Epithalamium,  sejam  também  profundamente marcados por um grande erotismo havendo até quem os tivesse apelidado de obscenos (António Quadros ?).   No poema  Epitalãmio,  o  tema  da morte  e  do  desejo,  neste caso,  entre  noivos,  é  tratado  de  forma magistral  e  sem qualquer espécie de mau gosto:   Afastai nas janelas a cortina breve/Que menos que à luz a vista  só  proscreve!/Olhai  o  vasto  campo,  como  jaz luminoso/Sob  o  azul  poderoso/E  limpo,  e  como  aquece numa  ardência  leve/Que  na  vista  se  inscreve!/Já  a  noiva acordou.  Ah  como  tremer  sente/O  coração  dormente!/Os seios  dela  arrepanham­se  por  dentro  numa  frieza  de medo/Mais  sentido  por  crescido  nela,/E  que  serão  por outras  mãos  que  não  as  suas  tocados/E  terão  lábios chupando os bicos em botão./Ah, ideia das mãos do noivo já/A tocar  lá onde as mãos dela tímidas mal tocam,/E os pensamentos  contraem­se­lhe  até  ser  indistintos./Do corpo  está  consciente  mas  continua  deitada./Vagamente deixa os olhos sentir que se abrem./Numa névoa franjada cada  coisa/Se  ergue,  e  o  dia  actual  é  veramente claro/Menos ao seu sentir de medo./Como mancha de cor a  luz  pousa  na  palpebrada  vista/E  ela  quase  detesta  a inescapável luz.  Sobre  este  conjunto  de  poemas  escreveu  Teresa  Rita Lopes, no seu livro de 1990, Pessoa por Conhecer. Textos para um Novo Mapa:   Os cinco poemas que  formam este volume, muito embora cada  um  deles  seja  independente  face  aos  restantes considerados  individualmente  e  no  seu  conjunto,  são ligados,  contudo,  pela  circunstância  de  serem  ou  de representarem estádios da psicologia histórica. Expressam 

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cinco  conceitos  do  mundo,  considerados  através  da emoção  sexual,  e  são  portanto  «weltanschauugen»  no respeitante ao instintivo. 

O  primeiro  poema,  Antinous,  representa  o  conceito grego  do  mundo  sexual.  Como  todos  os  conceitos primitivos,  é  substancialmente  perverso;  como  todos  os conceitos  inocentes,  a  emoção  manifestada  é propositadamente  não­primitiva;  a  fim  de  permitir  que surja como conceito inocente, desenvolve­se o conceito até se tornar uma metafísica, mas, como se trata de inocência, a  metafísica  acrescenta­se  a,  sem  se  inserir  dentro  da substância do tema principal. 

O  segundo  poema,  Epithalamium,  representa  o conceito romano do mundo sexual. É brutal, como todas as emoções  coloniais,  animalesco,  como  todas  as  coisas naturais,  quando  são  secundárias,  como  eram  para homens  tais  como  os  romanos,  que  eram  animais  a dirigirem  um  estado.  Neste  poema  não  há  nenhuma metafísica. Neste poema não poderia haver perversidade. O cenário, como no poema Antinous, não se relaciona com o  tema.  Um  vulgar  casamento  cristão  fornece  o  cenário; contra  este  pouco  imaginativo  cenário  negro  faz­se destacar o  instinto romano como um monstro nu nascido do mundo. (…)  E, novamente associado ao  tema do desejo,  agora entre os  deuses,  a  evocação  dos  deuses  como  negação  da morte  e  ideia  de  transmutação.  Tal  como  no  poema “Iniciação” ele afirma: Neófito não há morte (…) mas uma passagem para além utilizando muitas outras metáforas de morte tal como “Noite”, “Estalagem do Assombro” ou “Funda Caverna”.  Não  dormes  sob  os  ciprestes,/Pois  não  há  sono  no mundo(......)./O corpo é a sombra das vestes/Que encobrem teu ser profundo./Vem a noite, que é a morte/E a sombra acabou  sem  ser./Vais  na  noite  só  recorte,/Igual  a  ti  sem 

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querer./Mas  na  Estalagem  do  Assombro/Tiram­te  os Anjos  a  capa./Segues  sem  capa  no  ombro,/Com  o  pouco que  te  tapa./Então  Arcanjos  da  Estrada/Despem­te  e deixam­te nu./Não tens vestes, não tens nada:/Tens só teu corpo,  que  és  tu./Por  fim,  na  funda  caverna,/Os  Deuses despem­te mais./Teu  corpo  cessa,  alma  externa,/Mas  vês que  são  teus  iguais......./A  sombra  das  tuas  vestes/Ficou entre  nós  na  Sorte./Não  estás  morto,  entre ciprestes./....../Neófito, não há morte.  Também a morte de Sidónio Pais de quem Pessoa foi um confesso admirador, foi motivo inspirador para o poema, À  Memória  do  Presidente­Rei  Sidónio  Pais,  onde  se mistura a morte do político com o desejo do seu regresso tal D.Sebastião:  Longe  da  fama  e  das  espadas,/Alheio  às  turbas  ele dorme./Em  torno  há  claustros  ou  arcadas?/Só  a  noite enorme./Porque para ele, já virado/Para o lado onde está só Deus,/São mais que Sombra e que Passado/A terra e os céus./Ali o gesto, a astúcia, a lida,/São já para ele, sem as ver,/Vácuo  de  acção,  sombra  perdida,/Sopro  sem ser(….)/No  mistério  onde  a  Morte  some/Aquilo  a  que  a alma chama a vida,/Que resta dele a nós — só o nome/E a fé perdida? /Se  Deus  o  havia  de  levar,/Para  que  foi  que  no­lo trouxe/Cavaleiro leal, do olhar/Altivo e doce?/Soldado­rei que  oculta  sorte/Como  em  braços  da  Pátria  ergueu,/E passou  como o  vento norte/Sob o  ermo  céu./Mas a  alma acesa  não  aceita/Essa  morte  absoluta,  o  nada/De  quem foi Pátria, e fé eleita,/E ungida espada./Se o amor crê que a Morte mente/Quando  a  quem  quer  leva  de  novo/Quão mais crê o Rei ainda existente/O amor de um povo!/Quem ele foi sabe­o a Sorte,/Sabe­o o Mistério e a sua lei/A Vida fê­lo herói, e a Morte/O sagrou Rei!/Não é com fé que nós não  cremos/Que  ele  não  morra  inteiramente./Ah, sobrevive!  Inda  o  teremos/Em  nossa  frente.(…)/Nada 

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sabemos do que oculta/O véu igual de noite e dia,/Mesmo ante a Morte a Fé exulta:/Chora e confia.(…)/Tenhamos fé porque  ele  foi./Deus  não  quer  mal  a  quem  o  deu./Não passa  como  o  vento  o  herói/Sob  o  ermo  céu./E  amanhã, quando  queira  a  Sorte,/Quando  findar  a expiação,/Ressurrecto  da  falsa  morte!/Ele  já  não.(…)Pra que  deu  Deus  a  confiança/A  quem  não  ia  dar  o bem?/Morgado da nossa esperança,/A Morte o tem!(…)/ E no  ar  de  bruma  que  estremece/(Clarim  longínquo matinal)/O DESEJADO enfim regresse/A Portugal.  Mas seria Fernando uma pessoa mórbida? É verdade que matou os seus heterónimos e escreveu alguns epitáfios a começar  pelo  de  Alexander  Search:  Aqui  jaz  Alexander Search/Que  Deus  e  os  homens  deixaram  só  (…)  Andava pelos  vinte  anos  quando  morreu/estas  foram  as  suas últimas palavras:/Deus, a Natureza e o homem, malditos sejam. Pessoa podia não ser mórbido mas era mesmo um novelo embrulhado para o lado de dentro. Há um soneto, não assinado nem datado, intitulado Post­mortem,  num  dos  milhares  de  papeis  que  deixou,  que quase parece uma brincadeira com a sua própria morte e talvez  por  isso  ele  tenha  riscado  por  cima,  num  risco transversal e oblíquo, a palavra Nonsense:  Quando  eu  morrer  ao  meu  corpo  frio  e  exangue/Não deitem  nem  à  terra  e  às  vendas(?)  vis  o  leguem/Nem  às feras  cruéis  que  sempre me  perseguem/o  deêm,  pois  que então  será  falto  de  sangue/Não me queimem e  as  cinzas ao  vento  agreste  entreguem/Não  me  deixem  dormir  à sombra  desse  mangue/Ao  cemitério  triste  o  meu  corpo neguem/ofereçam­me à ciência, à rude anatomia.      

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 2ª Cena ‐ O Ideal Estético como Prazer e Desejo   Na crítica em jeito de ensaio que escreveu sobre o  livro “Canções”  de  António  Botto,  Pessoa  desenvolve  noções de ideal estético e de oralidade subjacentes aos conceitos de prazer e de desejo sexual sobre os quais, a poesia e a vida de Botto, davam à época “pano para mangas”.  António  Botto  é  o  único  português,  dos  que conhecidamente escrevem, a quem a designação de esteta se pode aplicar sem dissonância. Com um perfeito instinto ele  segue o  ideal  a  que  se  tem  chamado  estético,  e  que  é uma  das  formas,  se  bem  que  a  ínfima,  do  ideal  helénico. Segue­o, porém, a par de com o instinto, com uma perfeita inteligência,  porque  os  ideais  gregos,  como  são intelectuais,  não  podem  ser  seguidos inconscientemente.(…) Nasce o ideal da nossa consciência da imperfeição da vida. (…)Duas ideias centrais governam a inspiração do poeta, e lhe  servem  de  metafísica  e  de  moral.  São  as  ideias  de beleza  física  e  de  prazer.  A  análise  do  conteúdo  dessas duas  ideias,  tais  quais  se  nos  apresentam nas  «Canções», revelará  o  esteta  inequivocamente.  No  modo  como apresenta  a  primeira  delas,  o  poeta  afasta­se  de  toda  a espécie  de  moralidade;  no  modo  como  apresenta  a segunda, de toda a espécie de imoralidade. Das três formas, que podemos conceber, da beleza física — a graça, a força e a perfeição — , o corpo feminino tem só a  primeira,  porque  não  pode  ter  a  beleza  da  força  sem quebra  da  sua  feminilidade,  isto  é,  sem  perda  do  seu carácter próprio; o corpo masculino pode, sem quebra da sua masculinidade, reunir a graça e a força; a perfeição só aos corpos dos deuses, se existem, é dado tê­la. Um homem, se se guiar pelo instinto sexual, e não pelo instinto estético, cantará,  como  poeta,  só  o  corpo  feminino.  Essa  atitude 

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representa  uma  preocupação  exclusivamente  moral.  O instinto sexual, normalmente tendente para o sexo oposto, é o mais rudimentar dos instintos morais. A sexualidade é uma ética animal, a primeira e a mais instintiva das éticas. Como,  porém,  o  esteta  canta  a  beleza  sem  preocupação ética,  segue  que  a  cantará  onde  mais  a  encontre,  e  não onde  sugestões  externas  à  estética,  como  a  sugestão sexual,  o  façam  procurá­la.  Como  se  guia,  pois,  só  pela beleza,  o  esteta  canta  de  preferência  o  corpo masculino, por ser o corpo humano que mais elementos de beleza, dos poucos que há, pode acumular.(…) Disse eu que António Botto se afasta de toda a moralidade no modo por que canta a beleza física, e que se afasta de toda  a  imoralidade  no modo  por  que  canta  o  prazer.  De que modo  canta  ele  o  prazer?  Que modo  há­de  cantar  o prazer que,  sem ser moral  (porque  se o  fosse,  estaríamos fora do caso estético), se afaste da imoralidade? Para com o prazer há três atitudes possíveis — aceitá­lo, rejeitá­lo,  aceitá­lo  com  moderação.  A  cada  uma  destas atitudes  correspondem  graus  vários  de  moralidade  e  de imoralidade,  porque  pode  haver moralidade  no modo  de aceitar o prazer, e  imoralidade na maneiras de rejeitá­lo. Aqui,  porém,  trata­se  de  quem  aceita  o  prazer,  e  só  o prazer;  não  temos  portanto  que  considerar  as  outras hipóteses. Aceite  o  prazer,  e  só  o  prazer,  de  que modo  pode  ele  ser aceite?  Pode  ser  aceite  como  alegria,  ou  como  forma  da alegria,  e  é  esta  a  maneira  moral,  porque  é  natural,  de aceitar  o  prazer.  Pode  ser  aceite  como  excitação,  como, por assim dizer, a única forma agradável da dor, pois que toda a excitação — tomada a palavra no sentido vulgar, e não  no  fisiológico  —  tem  um  fundo  de  dor;  e  é  esta  a maneira  imoral,  porque  é  a  antinatural,  de  aceitar  o prazer.  Pode,  finalmente,  ser  aceite  simplesmente  como prazer,  como,  em  sua  essência,  nem  alegre  nem  triste, porém a única coisa que pode encher o vácuo absurdo da existência. Deste conceito de prazer não se pode dizer que 

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seja  moral  nem  imoral,  logo  que  se  não  esqueça  que  se está  considerando  o  prazer  só,  isolando­o  de  qualquer outro elemento da vida. Quem  leia  com  atenção  normal  o  livro  «Canções»,  não tardará  que  veja,  é  este  último  o  conceito  que  António Botto  forma  do  prazer,  que  é  neste  sentido  de compreendê­lo  que  ele  o  canta.  «Canções»  é  um  hino  ao prazer,  porém  não  ao  prazer  como  alegria,  nem  como raiva, senão simplesmente como prazer. O prazer, como o poeta o  canta,  nem  serve de despertar a alegria da  vida, nem  de  ministrar  um  antídoto  a  uma  dor  substancial constante;  serve apenas de encher um vácuo espiritual, a ser  conceito  de  vida  a  quem  não  tem  nenhum.  Há  neste livro, sim, a intuição do fundo trágico do ideal helénico, do fundo trágico de todo o prazer que sabe que não tem além. Essa  intuição, porém, se é do que é trágico, não é trágica em si. Este prazer não tem a cor da alegria, nem a da dor. «A  alegria»  disse  Nietzsche,  «quer  eternidade,  quer profunda  eternidade».  Não  é,  nem  nunca  foi  assim:  a alegria  não  quer  nada,  e  é  por  isso  que  é  alegria.  A  dor, essa, é o contrário da alegria, como a concebia Nietzsche: quer  acabar,  quer  não  ser.  O  prazer,  porém,  quando  o concebemos  fora  da  relação  essencial  com  a  alegria  ou com  a  dor,  como  concebe  o  autor  deste  livro,  esse,  sim, quer  eternidade;  porém  quer  a  eternidade  num  só momento.(…)  Artistas  tem  havido  muitos  em  Portugal; estetas só o autor das «Canções». Em jeito de espírito de contradição, viria a seguir Alvaro de  Campos,  numa  carta  endereçada  a  José  Pacheco, criticá‐lo pela mania de julgar que as coisas se provam e negando a existência de qualquer  ideal estético na obra de Botto. Enfim...      

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 3º ACTO  O ELENCO PRINCIPAL   Se  atentarmos agora nos heterónimos mais  conhecidos, constatamos,  por  exemplo,  que  Álvaro  de  Campos aborda  o  momento  da  morte  do  seu  mestre  Alberto Caeiro,  considerando  ter sido uma das angústias da sua vida  não  ter  podido  estar  ao  lado  de  Caeiro  nesse “fatídico  dia”,  pois  encontrava‐se  em  Inglaterra. Inconsolável,  lamentou  ainda  a  ausência  do  próprio Ricardo Reis, por estar no Brasil e do próprio Fernando Pessoa que até se encontrava em Lisboa mas era como se não estivesse, pois como uma vez escreveu “o Fernando Pessoa  sente as  coisas mas não  se mexe, nem mesmo por dentro”. Mas esta não foi a primeira nem a única vez em que Álvaro  de  Campos  se  referiu  a  Pessoa.  A  propósito do poema “Chuva Oblíqua afirmou que nele Pessoa terá feito  a  “verdadeira  fotografia  da  sua  própria  alma”  e ainda que Fernando tinha “a vantagem de viver mais nas ideias do que em si mesmo.” Ricardo Reis encarava a vida e a morte com naturalidade mas  também  reflectia  nelas  e  quando  falava  da  morte parece  que  antecipava  ser  enterrado  vivo  (a  húmida terra  imposta).  Envelhecer  e  correr  parecem  ser  para Reis  a  súmula  e  o  sentido  da  vida.  Pelo  contrario,  para Alberto  Caeiro  não  existe  envelhecer  e  a  morte acontecerá com toda a naturalidade. Por sua vez António Mora  é  o  neopaganista  e  antes  de  “  O  Regresso  dos Deuses”  o  seu  desejo  é  tornar‐se  DEUS.  Em  Bernardo Soares o seu desejo é sonhar e é nos sonhos que os seus desejos  se  expressam  porque  fora  dos  sonhos  nada existe  nem sequer ele. Até conseguir chegar ao supremo grau do sonho que consiste em construir romances para si próprio, criando personagens, vivendo com todas elas 

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ao mesmo  tempo e  sendo  “todas essas almas  conjunta e interactivamente”.   ÁLVARO DE CAMPOS, o Tenor, dixit:  Não  sou  nada/Nunca  serei  nada/Não  posso  querer  ser nada/À  parte  isso,  tenho  em  mim  todos  os  sonhos  do mundo. É assim que começa o  famoso poema Tabacaria de  Álvaro  de  Campos  e  que  evidencia  bem  o  ser  único que Pessoa era. Lá mais para a frente desse longo poema aborda‐se o tema da Morte, da transitoriedade de tudo e de  todos, do ciclo  infinito e  recorrente da existência, de tudo o que aparece desaparece, do princípio e do fim de todas as coisas, no eterno ciclo de Samsara: “  Mas  o  dono  da  Tabacaria  chegou  à  porta  e  ficou  à porta/Olho­o com o desconforto da cabeça mal voltada/ e com o desconforto da alma mal entendendo/Ele morrerá e eu morrerei/Ele deixará a tabuleta e eu deixarei versos/A certa  altura  morrerá  a  tabuleta  também  e  os  versos também/Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a  tabuleta/e  a  linguagem  em  que  foram  escritos  os versos/morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. O  mesmo  Álvaro  de  Campos  que  definitivo  e peremptório  haveria  de  afirmar  no  poema  de  1923 Lisbon revisited que a única conclusão era morrer e que, enquanto  tarda  o  Abismo  e  o  silêncio,  queria  estar sozinho.  Talvez  por  isto  seja  em  Álvaro  de  Campos  que  mais abundam  as  abordagens  da  morte  quer  em  teoria:  Quando  eu  morrer/Quando  me  for  ignobilmente  como toda a gente.../Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar  de  frente  quer  como  figura  literária principalmente,  sob  a  forma  de  metáforas,  tais  como, comboio,  avó  carinhosa,  madrinha  disfarçada  ou  sorriso humano de Deus. 

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Na  Ode  Triunfal  profetiza  de  forma  óbvia  e  havemos todos de morrer, mas ao mesmo  tempo manifesta medo da morte no grito desesperado de: “ A morte, a morte, a morte entre mim e a vida! Ou  a  ideia  de  suicídio  como  uma  forma  de  antecipar  a morte e  suas  consequências:  se  te queres matar,  porque não  te  queres  matar?  Mas  depois  falta‐lhe  coragem!  Se ousasse matar­me também me mataria! A morte,  em  teoria  e  como  figura  literária:  não  saudar como eu a morte em literatura, e antevendo a morte num jeito  fatalista  num  poema  dedicado  a  Caeiro...  ou enfrentando‐a  directamente:  Agora  que  os  dedos  da morte à roda da minha garganta...  ou usando a morte de uma  criança  como  pretexto  para  falar  da  sua  própria morte e da  injustiça que dela resulta: Dêem­me água de Vidago que eu quero esquecer a vida! Até  no  famoso  poema  Tabacaria  se  constata  mais  uma referencia à morte e à sua inevitabilidade: Ele morrerá e eu  morrerei/ele  deixará  a  tabuleta  e  eu  deixarei  versos (...)/morrerá  depois  o  planeta  girante  onde  tudo  isto  se deu. O sentimento de solidão e isolamento por força da morte dos  entes queridos  e das  suas  referências  familiares no excepcional  poema, No  tempo  em que  festejavam  o  dia dos meus  anos:  (...) O  que  eu  sou  hoje/é  terem morrido todos/é estar eu sobrevivente a mim como um fósforo frio. No  poema  Passagem  das  horas  deseja,  ir  ser  selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos e deixando‐se resvalar um pouco para a falsa modéstia. Noutro poema lamentou‐se,  se morrer  não  falto  e  ninguém  diria/desde ontem a cidade mudou. E sempre mas sempre a analogia entre  o  dormir  e  a  morte:  No  fim  de  tudo  dormir  . Contudo,  e  agora  céptico,  no  seu  poema  insónia  duvida que mesmo na morte consiga descansar: Não durmo nem espero dormir/Nem na morte espero dormir. No poema Diluente, Álvaro de Campos a partir de um fait divers  trágico  de  uma  alegada  vizinha  filosofa  sobre  o 

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esquecimento  de  quem  morre  e  da  necessidade imperativa da vida ter de continuar terminando com um pedido deveras  insólito  e  quase propagandístico  de  um produto  de  grande  consumo  que  ainda  hoje  podemos encontrar em qualquer supermercado:  A vizinha do número quatorze ria hoje da porta De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno. Ria naturalmente com a alma na cara. Está certo: é a vida. A dor não dura porque a dor não dura. Está certo. Repito: está certo. Mas o meu coração não está certo. O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo da vida.  Cá está a lição, ó alma da gente! Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu, Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim? Estou só no mundo, como um peão de cair. Posso morrer como o orvalho seca. Por uma arte natural de natureza solar, Posso morrer à vontade da deslembrança, Posso morrer como ninguém... Mas isto dói, Isto é indecente para quem tem coração... Isto... Sim, isto fica­me nas goelas como uma sanduíche com 

lágrimas... Gloria? Amor? O anseio de uma alma humana? Apoteose ás avessas... Dêem­me Agua de Vidago, que eu quero esquecer a Vida! 

  Mas o poema mais dramático de Pessoa, aparentemente perto da sua própria morte física, assinado por Álvaro de Campos e no qual faz um mea culpa, cheio de remorsos, 

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por ter abandonado o seu Mestre Alberto Caeiro, chama‐se A PARTIDA e é assim:  Agora que os dedos da Morte à roda da minha garganta Sensivelmente começam a pressão definitiva... E que tomo consciência exorbitando os meus olhos, Olho p'ra trás de mim, reparo pelo passado fora Vejo quem fui, e sobretudo quem não fui Considero lucidamente o meu passado misto E acho que houve um erro Ou em eu viver ou em eu viver assim.  Será sempre que quando a Morte me entra no quarto E fecha a porta a chave por dentro, E a coisa é definitiva, inabalável, Sem Cour de cassation para o meu destino findo, Será sempre que, quando a meia­noite soa na vida Uma exasperação de calma, uma lucidez indesejada Acorda como uma coisa anterior à infância no meu partir? Último arranco, extenuante clarão, de chama que a seguir 

se apaga Frio esplendor do fogo de artifício antes da cinza 

completa, Trovão máximo sobre as nossas cabeças, por onde Se sabe que a trovoada, por estar [...], decresceu.  Viro­me para o passado. Sinto­me ferir na carne. Olho com essa espécie de alegria da lucidez completa Para a falência instintiva que houve na minha vida Vão apagar o último candeeiro Na rua amanhecente de minha Alma! Sinal de [..] O último candeeiro que apagam! Mas antes que eu veja a verdade, pressinto­a Antes que a conheça, amo­a. Viro­me para trás, para o passado, não [visiono? ]; 

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Olho e o passado é uma espécie de futuro para mim.  Mestre, Alberto Caeiro, que eu conheci no princípio E a quem depois abandonei como um espantalho reles, Hoje reconheço o erro, e choro dentro de mim, Choro com a alegria de ver a lucidez com que choro E embandeiro em arco à minha morte e à minha falência 

sem fim, Embandeiro em arco a descobri­la, só a saber quem ela é. Ergo­me em fim das almofadas quase cómodas E volto ao meu remorso sadio.  O  alegado  medo  da  morte,  sempre,  como  já  vimos:  A morte, a morte! Ah como a  temo ou, A dor da certeza da morte ou ainda, Todos, oh mestre, têm horror à morte... “A morte,  a  morte,  a  morte  entre  mim  e  a  vida!”  é  uma constante em Álvaro de Campos, a profecia óbvia de “ e havemos todos de morrer” encontrada na Ode Triunfal e a ameaça de ficar a conhecer a verdade que eventualmente se  esconde  atrás  da  morte,  como  nestes  dois  poemas deste heterónimo:  Quando  eu  morrer,/Quando  me  for,  ignobilmente,  como toda a gente,/Por aquele caminho cuja  ideia se não pode encarar de frente,/Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar,  não  assomaríamos/Para  aquele  porto  que  o capitão  do  Navio  não  conhece,/Seja  por  esta  hora condigna  dos  tédios  que  tive,/Por  esta  hora  mística  e espiritual e antiquíssima,/Por esta hora em que talvez, há muito mais  tempo do que parece,/Platão  sonhando viu a ideia  de  Deus/Esculpir  corpo  e  existência  nitidamente plausível./Dentro  do  seu  pensamento  exteriorizado  como um  campo./Seja  por  esta  hora  que  me  leveis  a enterrar,/Por  esta  hora  que  eu  não  sei  como  viver,/Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,/Por esta hora  cuja  misericórdia  é  torturada  e  excessiva,/Cujas sombras  vêm  de  qualquer  outra  coisa  que  não  as 

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coisas,/Cuja  passagem  não  roça  vestes  no  chão  da  Vida Sensível/Nem  deixa  perfume  nos  caminhos  do Olhar./Cruza as mãos  sobre o  joelho,  ó  companheira que eu não tenho nem quero ter./Cruza as mãos sobre o joelho e olha­me em silêncio/A esta hora em que eu não posso ver que  tu  me  olhas,/Olha­me  em  silêncio  e  em  segredo  e pergunta  a  ti  própria/  ­Tu  que me  conheces — quem eu sou... 

 E neste outro grande poema onde encontramos algumas das  mais  criativas  metáforas  da  morte,  como  por exemplo,  comboio,  avó  carinhosa,  madrinha  disfarçada ou sorriso humano de Deus: 

 Não há abismos! Nada é sinistro! Não há mistério verdadeiro! Não há mistério ou verdade! Não há Deus, nem vida, nem alma distante da vida! Tu, tu mestre Caeiro, tu é que tinhas razão! Mas ainda não viste tudo; tudo é mais ainda! Alegre cantaste a alegria de tudo, Mas sem pensá­lo tu sentias Que é porque a alegria de tudo é essencialmente inevitável. Como cantaras alegre a morte futura  Se a puderas pensar como morte, Se deveras sentiras a noite e o acabamento? Não, não: tu sabias Não com teu pensamento, mas com teu corpo inteiro, Com todos os teus sentidos tão acordados ao mundo Que não há nada que morra, que não há coisa que cesse, Que cada momento não passa nunca, Que a flor colhida fica sempre na haste, Que o beijo dado é eterno, Que na essência e universo das coisas Tudo é alegria e sol 

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E só no erro e no olhar há dor e dúvida e sombra. Embandeira em canto e rosas!  E da estação de província, do apeadeiro campestre, — Lá vem o comboio! Com lenços agitados, com olhos que brilham eternos Saudemos em ouro e flores a morte que chega!  Não, não enganas! Avó carinhosa de terra já grávida! Madrinha disfarçada dos sentimentos expressos!  E o comboio entra na curva, mais lento, e vai parar... E com grande explosão de todas as minhas esperanças Meu coração universo Inclui a ouro todos os sóis, Borda­se a prata todas as estrelas, Entumesce­se em flores e verduras, E a morte que chega conclui que a já conhecem E no seu rosto grave desabrocha 

O sorriso humano de Deus!  Ligado  à morte  encontra‐se  sempre  o  tema do  suicídio. Todo este genial poema é uma reflexão sobre a morte do indivíduo e suas consequências:  Se te queres matar, porque não te queres matar? Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida, Se ousasse matar­me, também me mataria... Ah, se ousares, ousa! De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas A que chamamos o mundo? A cinematografia das horas representadas Por actores de convenções e poses determinadas, O circo policromo do nosso dinamismo sem fim? De que te serve o teu mundo interior que desconheces? Talvez, matando­te, o conheças finalmente... 

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Talvez, acabando, comeces... E de qualquer forma, se te cansa seres, Ah, cansa­te nobremente, E não cantes, como eu, a vida por bebedeira, Não saúdes como eu a morte em literatura!  Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... Sem ti correrá tudo sem ti. Talvez seja pior para outros existires que matares­te... Talvez peses mais durando, que deixando de durar...  A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado De que te chorem? Descansa: pouco te chorarão... O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, Quando não são de coisas nossas, Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a 

morte, Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...  Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda Do mistério e da falta da tua vida falada... Depois o horror do caixão visível e material, E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali. Depois a família a velar, inconsolável e contando 

anedotas, Lamentando a pena de teres morrido, E tu mera causa ocasional daquela carpidação, Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que 

calculas... Muito mais morto aqui que calculas, Mesmo que estejas muito mais vivo além...  Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova, E depois o princípio da morte da tua memória. Há primeiro em todos um alívio 

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Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido... Depois a conversa aligeira­se quotidianamente, E a vida de todos os dias retoma o seu dia...  Depois, lentamente esqueceste. Só és lembrado em duas datas, aniversariamente: Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que 

morreste; Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada. Duas vezes no ano pensam em ti. Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram, E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.  Encara­te a frio, e encara a frio o que somos... Se queres matar­te, mata­te... Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!... Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?  Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera As seivas, e a circulação do sangue, e o amor? Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?  Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem, Não vês que não tens importância absolutamente 

nenhuma?  És importante para ti, porque é a ti que te sentes. És tudo para ti, porque para ti és o universo, E o próprio universo e os outros Satélites da tua subjectividade objectiva. És importante para ti porque só tu és importante para ti. E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?  Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido? Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, Para que chames desconhecido a qualquer coisa em 

especial? 

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 Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida? Se assim a amas materialmente, ama­a ainda mais 

materialmente: Torna­te parte carnal da terra e das coisas! Dispersa­te, sistema físico­químico De células nocturnamente conscientes Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos, Pelo grande cobertor não­cobrindo­nada das aparências, Pela relva e a erva da proliferação dos seres, Pela névoa atómica das coisas, Pelas paredes turbilhonantes Do vácuo dinâmico do mundo...  Mas a morte em teoria e como figura literária, verdadeira fatalidade  inevitável,  é  bem expressa naquela  antevisão da  morte  dedicada  ao  seu  mestre  Alberto  Caeiro  e, intitulada  precisamente,  Ode  Mortal.  Este  poema  é  um longo  estertor  mortal  equivalente  a  uma  verdadeira expiração,  ao  fechar  dos  olhos  e  ao  parar  do  coração, como se fosse o último suspiro:  Tu, Caeiro meu mestre, qualquer que seja o corpo Com que vestes agora, distante ou próximo, a essência Da tua alma universal localizada, Do teu corpo divino intelectual...  Viste com a tua cegueira perfeita, sabes o não ver... Porque o que viste com os teus dedos materiais e 

admiráveis Foi a face sensível e não a face fisiognomónica das coisas Foi a realidade, e não o real. É à luz que ela é visível, E ela só é visível porque há luz, Porque a verdade que é tudo é só a verdade que há em tudo E a verdade que há em tudo é a verdade que o excede!  

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Ah, sem receio! Ah, sem angústia! Ah, sem cansaço antecipado da marcha Nem cadáver velado pelo próprio cadáver na alma Nas noites em que o vento assobia no mundo deserto E a casa onde durmo é um túmulo de tudo, Nem o sentir­se muito importante sentindo­se cadáver, Nem a consciência de não ter consciência dentro de tábuas 

e chumbo, Nem nada... Olho o céu do dia, espelha o céu da noite E este universo esférico e côncavo Vejo­o como um espelho dentro do qual vivemos, Limitado porque é a parte de dentro Mas com estrelas e o sol rasgando o visível Por fora, para o convexo que é infinito... E aí, no Verdadeiro, Tirarei os astros e a vida da algibeira como um presente ao 

Certo, Lerei a Vida de novo, como numa carta guardada E então, com luz melhor, perceberei a letra e saberei.  O cais está cheio de gente a ver­me partir. Mas o cais é à minha volta e eu encho o navio — E o navio é cama, caixão, sepultura — E eu não sei o que 

sou pois já não estou ali...  E eu, que cantei A civilização moderna, aliás igual à antiga, As coisas do meu tempo só porque esse tempo foi meu, As máquinas, os motores, (...) Vou em diagonal a tudo para cima. Passo pelos interstícios de tudo, E como um pó sem ser rompo o invólucro E partirei, globe­trottrer do Divino, Quantas vezes, quem sabe?, regressando ao mesmo ponto 

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(Quem anda de noite que sabe do andar e da noite?), Levarei na sacola o conjunto do visto — O céu e de estrelas, e o sol em todos os modos, E todas as estações e as suas maneiras de cores, E os campos, e as serras, e as terras que cessam em praias E o mar para além, e o para além do mar que há além.  E de repente se abrirá a Última Porta das coisas, E Deus, como um Homem, me aparecerá por fim. E será o Inesperado que eu esperava — O Desconhecido que eu conheci sempre — O único que eu sempre conheci, E (...)  Gritai de alegria, gritai comigo, gritai, Coisas cheias, sobre­cheias, Que sois minha vida turbilhonante... Eu vou sair da esfera oca Não por uma estrela, mas pela luz de um estrela — Vou para o espaço real... Que o espaço cá dentro é espaço por estar fechado E só parece infinito por estar fechado muito longe — Muito longe em pensá­lo.  A minha mão está já no puxador­luz. Vou abrir com um gesto largo, Com um gesto autêntico e mágico A porta para o Convexo, A janela para o Informe, A razão para o maravilhoso definitivo.  Vou poder circum­navegar por fora este dentro Que tem as estrelas no fim, vou ter o céu Por baixo do sobrado curvo — Tecto da cave das coisas reais, Da abóbada nocturna da morte e da vida...  

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Vou partir para FORA, Para o Arredor Infinito, Para a circunferência exterior, metafísica, Para a luz por fora da noite, 

Para  a  Vida­morte  por  fora  da  morte­Vida.  

 ALBERTO CAEIRO, o Baixo, dixit:   Se,  depois  de  eu  morrer,  quiserem  escrever  a  minha biografia,/Não  há  nada  mais  simples./Tem  só  duas datas—a da minha nascença  e  a  da minha morte./Entre uma  e  outra  coisa  todos  os  dias  são meus./  Sou  fácil  de definir./Vi  como  um  danado./Amei  as  coisas  sem sentimentalidade  nenhuma./Nunca  tive  um  desejo  que não pudesse  realizar,  porque nunca  ceguei./Mesmo ouvir nunca  foi  para  mim  senão  um  acompanhamento  de ver./Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas  das  outras;/Compreendi  isto  com  os  olhos,  nunca com o pensamento./Compreender  isto com o pensamento seria achá­las todas iguais./Um dia deu­me o sono como a qualquer criança./Fechei os olhos e dormi./Além disso, fui o único poeta da Natureza. De  uma  natureza  simples  até  na morte,  Alberto  Caeiro comparava a injustiça como uma forma de morte: (…) Haver  injustiça é  como haver morte./Eu nunca daria um  passo  para  alterar/Aquilo  a  que  chamam a  injustiça do  mundo./Mil  passos  que  desse  para  isso/Eram  só  mil passos./Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda./E  um  sobreiro  não  ter  nascido  pinheiro  ou carvalho.(...)  Alem destas são inúmeras também neste heterónimo as referencias ao tema da Morte, por exemplo, com o poema Quando eu morrer filhinho...  

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 Quando  eu  morrer,  filhinho,/Seja  eu  a  criança,  o  mais pequeno./Pega­me  tu  ao  colo/E  leva­me  para  dentro  da tua casa./Despe o meu ser cansado e humano/E deita­me na  tua cama./E conta­me histórias,  caso eu acorde,/Para eu  tornar  a  adormecer./E  dá­me  sonhos  teus  para  eu brincar/Até que nasça qualquer dia/Que tu sabes qual é.   Ou, com o poema: Se eu morrer novo/Sem poder publicar livro nenhum,/Sem ver a cara que têm os meus versos em letra  impressa/Peço que,  se  se  quiserem  ralar por minha causa,/Que não  se  ralem./Se assim aconteceu, assim está certo./Mesmo  que  os  meus  versos  nunca  sejam impressos,/Eles lá terão a sua beleza, se forem belos./Mas eles não podem ser belos e  ficar por  imprimir,/Porque as raízes  podem  estar  debaixo  da  terra/Mas  as  flores florescem  ao  ar  livre  e  à  vista./Tem  que  ser  assim  por força.  Nada  o  pode  impedir./Se  eu  morrer  muito  novo, oiçam isto:Nunca fui senão uma criança que brincava./Fui gentio como o sol e a água,/De uma religião universal que só  os  homens  não  têm./Fui  feliz  porque  não  pedi  coisa nenhuma,/Nem  procurei  achar  nada,/Nem  achei  que houvesse  mais  explicação/Que  a  palavra  explicação  não ter  sentido  nenhum./Não  desejei  senão  estar  ao  sol  ou  à chuva  —/Ao  sol  quando  havia  sol/E  à  chuva  quando estava  chovendo/(E  nunca  a  outra  coisa),/Sentir  calor  e frio  e  vento,/E  não  ir mais  longe./Uma  vez  amei,  julguei que  me  amariam,/Mas  não  fui  amado./Não  fui  amado pela  única  grande  razão  —/Porque  não  tinha  que ser./Consolei­me  voltando  ao  sol  e  à  chuva,/E  sentando­me outra vez à porta de casa./Os campos, afinal, não são tão  verdes  para  os  que  são  amados/Como para  os  que  o não são./Sentir é estar distraído.  Ou  ainda  com  este  outro  poema:  Quando  vier  a Primavera,/Se  eu  já  estiver  morto,/As  flores  florirão  da mesma maneira/E as árvores não serão menos verdes que 

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na  Primavera  passada./A  realidade  não  precisa  de mim./Sinto  uma  alegria  enorme/Ao  pensar  que  a minha morte  não  tem  importância  nenhuma./Se  soubesse  que amanhã  morria/E  a  Primavera  era  depois  de amanhã,/Morreria  contente,  porque  ela  era  depois  de amanhã./Se  esse  é  o  seu  tempo,  quando  havia  ela  de  vir senão no seu tempo?/Gosto que tudo seja real e que tudo esteja  certo;/E  gosto  porque  assim  seria,  mesmo  que  eu não  gostasse./Por  isso,  se  morrer  agora,  morro contente,/Porque  tudo  é  real  e  tudo  está  certo./Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem./Se quiserem, podem  dançar  e  cantar  à  roda  dele./Não  tenho preferências para quando já não puder ter preferências/O que for, quando for, é que será o que é.    RICARDO REIS, o Barítono, dixit:   Em  Ricardo  Reis  encontramos  algumas  das  mais incríveis  metáforas  da  morte,  levares  o  óbolo  ao barqueiro sombrio ou então num confronto com a razão (...)  e  a morte  chega/Terei  razão,  se  a  alguém a  razão  é dada/quando  me  a  morte  conturbar  a  mente/eu  já  não veja mais ou com a consciência (...) o resto passa/ e teme a morte/só  nada  teme  ou  sofre  a  visão  clara/e  inútil  do universo A  fatalidade  é,  em Ricardo  reis,  uma  segunda  natureza, fortemente influenciado por leituras de filosofia oriental particularmente  budistas  ou  das  traduções  que  Pessoa fez de madame Blavatski, A Voz do  silêncio...,  como por exemplo: O  que  te  acontecer  aceita.  Os  deuses  nunca  se rebelam; ou Ao que nada espera tudo o que vem é grato; ou ainda Segue o teu destino/rega as tuas plantas/ama as tuas  rosas numa assunção  fatalista de que  a  justiça não 

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existe e tudo depende do destino que ele considera ser a vida e a morte do que somos nós. Nesta  mesma  onda  filosófica  quase  de  nihlismo transcendental afirma: A vida não tem sentido nenhum. A beleza não existe. Tudo é  ilusão. Tudo é  criação e  toda a criação é ilusão. Tudo é Maya. Mas  também  Ricardo  Reis  recusa  e  receia  a  morte quando  afirma  preferir  a  vida  mais  vil  à  morte  que desconhece.   BERNARDO SOARES, o Contra‐alto, dixit:   Por  fim,  em  Bernardo  Soares  e  no  seu  genial  Livro  do Desassossego,  o  tema  da  morte  é  igualmente incontornável e está sempre presente como no pungente lamento de Virá o dia em que não seja mais visto  (...) ou no paradoxal  abandono mais  vale  escrever do que ousar viver, ainda que viver não seja mais que comprar bananas ao sol, enquanto o sol dura e há bananas que vender. Não pretendendo ser um classificador de coisas Bernardo Soares  confessava  não  poder  deixar  de  pensar  que  as realidades  da  morte  e  do  desejo  pertenciam  também àquele  género  de  classificações  incógnitas,  de  coisas  da alma  e  da  consciência  que  estão  nos  interstícios  do conhecimento. Em  Bernardo  Soares  encontramos  também  uma tentativa de relacionar as realidades da vida e da morte com o conceito de Deus, avançando por vezes na defesa da  metempsicose  e  sugerindo  até  uma  ideia  muito oriental  de  encontrar  prazer  na  morte  ou  na equiparação,  aparentemente  contraditória  nos  seus termos, entre a vida e a morte quando afirma,  lapidar e convicto,  num  texto  fundamental  para  a  compreensão desta temática que Somos morte! 

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Pessoa era um observador  incansável e subtil e do qual se  poderia  sintetizar  ao  jeito  árabe  a  sua  fonte  de inspiração  como:  Pessoa  aquele  que  vê.  Mas  é  em Bernardo Soares, que encontramos uma das explicações mais interessantes para a febre da sua escrita quando ele confessa que talvez porque a sensualidade real não tinha para  ele  interesse  de  nenhuma  espécie  –  nem  sequer mental ou de sonho – transformara o desejo naquilo que nele  criava  ritmos  verbais,  ou  seja,  as  palavras.  Numa clara analogia ou aderência às teses budistas de tomada de  consciência, de  serem os desejos uma das principais fontes  do  sofrimento  humano,  chegou  a  escrever  que pretendia  tornar  o  desejo  uma  coisa  inútil  e  inofensiva (...).    Aliás,  na  comunidade  Pessoa  são  diversos,  como atrás  vimos,  os  sinais  de  nítida  inspiração  Zen consubstanciando  aquilo  que  poderia  designar‐se  pela estética  da  indiferença.  Talvez  por  isso  tenha  deixado escapar um dia a  triste afirmação: Nunca amei ninguém ou  a  confissão  um  tanto  ou  quanto  desesperada, muito ao estilo de Álvaro de Campos: Não pertenço a nada, não desejo  nada,  não  sou  nada  ou,  em  jeito  de  indiferença metafísica  e  egoísta  desprendimento:  Não  fazer  a ninguém nem mal nem bem. Impressiona  mesmo  muito  a  constante  relação  que estabelece  entre  desejo  e  morte  quando    escreve  num tom derrotista que Amar é entregar­se (...) o amor maior é por  isso a morte,  ou o  esquecimento,  ou a  renúncia  ou, então,  num  registo  surpreendentemente  irónico  e grande  sentido  de  humor: O  meu  desejo  é  morrer,  pelo menos  temporariamente  mas  isto  como  disse  só  porque me dói a cabeça (e o universo) ou, ainda numa aspiração de fuga ou de evasão, como no grito: o meu desejo é fugir. A  pretexto  de  outras   mortes,  como  por  exemplo,  a  do seu  barbeiro,  admite  que  estas  lhe  induzem  os pensamentos  sobre  a  sua  própria morte  e  sobre  o  que dirão dele, ou como, dele se recordarão.  

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  EPITÁFIO E CLIMAX    Num dos seus últimos e mais estranhos escritos,  fausto, um  drama  em  verso  que  retrata  a  luta  entre  a inteligência  e  a  vida,  um  grandioso  monumento  de fragmentos  iniciado  em  1908  e  escrito  quase  até  à  sua morte,  Pessoa  não  consegue  resistir  à  fatal  atracção  da diabólica  personagem  e,  obviamente,  o  tema  da  morte não poderia  ser  ignorado  a  par  do  tema  conhecimento: Em frente de um livro aberto vivo e morro. Também neste poema e pela boca de uma personagem a decepção e a  frustração são evidentes (...) Eu morrerei e deixarei/neste mundo  isto apenas: uma vida/sem prazer, sem gozo,  sem amor/só  imersa  em estéril  pensamento. A realidade  é  comparada  à  morte,  ambas  como  formas opostas ao sonho: A mim a morte/mais como o horror de me  tirar  o  sonho/e  dar­me  a  realidade  que  me apavora/que como morte. Aliás,  a  personificação  do  próprio  Diabo  afirma:  Sou morte  porque  sei  que  o  infinito/é  limitado  e  assim  Deus morre em mim.  Na  pele  de  Fausto  há  um  poema  essencial,  onde  e  de novo,  o  medo  da  morte  e  a  ameaça  de  conhecer  a verdade que se esconde atrás da morte, para acabar com uma  das mais  pungentes  e  inúteis  súplicas  que  alguém pode fazer: Não me deixes morrer...  Só uma cousa me apavora A esta hora, a toda a hora: É que verei a morte frente a frente, Inevitavelmente. Ah, este horror, como poder dizer? 

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Não lhe poder fugir! Não podê­lo esquecer!  E nessa hora em que eu e a Morte Nos encontrarmos O que verei? o que saberei? O que não verei? o que não saberei? Horror! A vida é má e é má a morte, Mas quisera viver eternamente Sem saber nunca, (...) e inconsciente Isso que a morte traz e  (...)  Não me tenta o mistério Nem desejo saber O que é que vai do berço ao cemitério No ardor chamado viver. A verdade apavora­me e confrange, Perturba­me como a ninguém.  Que o tempo cesse! Que pare e fique sempre este momento! Que eu nunca me aproxime desse Horror que mata o pensamento! Envolvei­me, fechai­me dentro em vós  E que eu não morra nunca.  Odeio a vida, amarga­me e horroriza. Mas a morte — oh a morte, velada O próprio horror dentro em mim paralisa Deixando a dor funda e estagnada. Horror! Horror! O tempo, oh vidas com vida! Mistérios menores onde esquecer Se pode a mor dor indefinida, Menos horrorosos porque não sabeis dizer Esse segredo que dito deveis trazer.  

Não me deixeis morrer... 

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 Como  forma  de  sublimar  este  medo  atávico, encontramos no Fausto, a chamada filosofia do soldado, ou  seja  ,  daquele  que  sabe  que  pode  morrer  a  todo  o momento  e  que  por  isso  deve  viver  as  sensações,  viver tudo, embriagado pela vida, em cada dia viver uma vida completa como se cada dia pudesse ser o último, viver o hoje porque a morte está sempre certa. Por isso a vida é gozo, depois voltar a gozar e por fim gozar mais ainda:  

   [FRANZ]: Isto de ser soldado Tem uma filosofia obrigatória   Como o pé ao fim da perna. Hoje vivo Amanhã morto... D'aqui se conclui Que sendo o vivo vivo enquanto é vivo É morto é morto.                 OUTRO:   Tira­lhe o cangirão da mão oh Vesgo                 [FRANZ]: Ia eu dizendo — deixa o cangirão! — Que quem hoje vive e que não sabe Se amanhã viverá é viver hoje Por amanhã. Como isto de amanhã Nem é aí um dia, mas é muitos Enquanto a gente vive é ir vivendo Em cada dia como se ele fosse Uma vida completa —                             Bravo o vinho Faz a este pensar. O que diria O teu tio bêbado, oh Francisco?                 [FRANZ]:                                                    É esta A tal filosofia do soldado A qual, senhores, a pensarmos bem É a de toda a vida. E não é pouco.                 FAUSTO: 

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Dá­te o vinho razão, amigo. O homem É um soldado. E este com certeza De morrer no combate de amanhã. Portanto a tal (...) filosofia Que entre goles aí me gaguejaste É mais certa que pensas, meu amigo. É viver hoje que amanhã na vida Não há talvez — é certo — vem a morte. Bebo à saúde aqui do nosso amigo!                 TODOS: À saúde do Franz!                 [FRANZ]:                         Vá que o mereço! Mas olha lá: dá cá o cangirão Então só eu não beberei à minha?                 OUTRO: Vá que é beber­lhe bem.                                         Não é por ser Minha saúde. É só por ser vinho Minha mãe! Minha triste vida! Minha sorte!                 (Chora)                 OUTRO:         O que é isso?                 [FRANZ]:                                              O cangirão Não tem mais vinho! Caguei vida. Rei e corno! Um rei corno — isso sabe a não sei o quê! E o cangirão já não tem quase nada O rei corno e eu sem vinho.                 (cai para debaixo da mesa)                 FAUSTO: Arre que besta! Mas tem sua graça! Está abraçado ao cangirão Diz que é uma rainha.                 [FRANZ]:                                 Dá­me cá mais um gole 

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Que isto de leito e corpo de rainha Não é com quatro goles que se entende. Um rei corno — isso é grande! Alma danada Onde é que me escondeste ó cangirão?                 (de debaixo da mesa) Já o rei é corno!                 FAUSTO:                         Lá quanto a Deus Quando o sinto a amargar­me a boca muito Faço isto                 (bebe)         Tomo um gole. E vai p'ra baixo.                 TODOS: Viva Fausto! Eia, viva! viva! viva!                 FRITZ: Mas a vida rapaz?                 FAUSTO:                                 Caguei p'rá vida!                 FRITZ: Toma! É assim rapaz! Canta­me dessas! És cá dos meus, apesar de doutor...                 TODOS: Doutor? Isto Doutor? Viva o Doutor!                 FAUSTO: Morra o doutor e viva Fausto! É assim!                 TODOS: Bravo. Morra o doutor e viva Fausto!                 FRANZ: ...Revolta... Não compreendo bem Passa­me o cangirão que já te entendo. Sem mais dois goles não percebo nada.                 FAUSTO: Já percebes Estupor avinhado? Já me entendes? Isto de vida — ouve — é sentir tudo Meter o agradável num só dia Como o pé num chinelo. Deixa lá 

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O cangirão e ouve... Isto de vida É a gente gozar e após gozar Gozar mais, entendeste?                 FRANZ:                                         E depois disso?                 FAUSTO: Depois disso gozar mais ainda.  — Deixa­o lá. Só tem força p'ra beber. Não vê já mais que o olho do gargalo.                 FRITZ: Que é isso?                 FRANZ: Quero piscar o olho. Já me custa! Arre! Ou fecho ambos ou então nenhum. Bebendo mais um gole isto já passa...                 FAUSTO: Eu queria obter Uma enormidade de sensações Daquelas mais intensas que nós temos arrepio, calor, etcetra e tal... Isso como diz o matemático Elevado ao infinito e num momento Aqui é que é tentar chegar...                 UM: «Arrepio, calor, etcetra e tal» O que não se diz fica por dizer. 

 Mas,  por  fim,  quando  a morte  chega,  traz  com  ela  uma espécie de tranquila redenção:  Vejo que delirei. Nem delirando fui feliz; mas fui­o Apenas para obter esse cansaço Que não obtive outrora: desejar A morte enfim. Eis a felicidade Suprema: recear nem duvidar, 

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Mas estar de prazer e dor tão lasso A nada já sentir, longe de mim Como era antigamente: e também longe Dos homens do (...) natural Estranho! com saudade só me lembro Do meu grão tempo de infelicidade, Saudade não, e um orgulho (que é só O que dela me resta hoje) e não quero Àquele tempo regressar. Já nada quero! Caí e a queda assim me transformou! Saudosamente ainda me lembra D'ultra acordado estar, mas a queda Tirou já o desejo de voltar (Se pudesse). Deixou só um sentimento De desejar eterna quietação Ânsia cansada de não mais viver; Ambição vaga de fechar os olhos E vaga esperança de não mais abri­los. Meu cérebro esvaído não lamenta Nem sabe lamentar. Tumultuárias Ideias mistas do meu ser antigo E deste, surgem e desaparecem Sem deixar rastos à compreensão. E ainda com elas, sonhos que parecem Memórias dessa infância, dessas vozes Já deslembradas, vãs, incoerentes, Amargas, vãs desorganizações Que nem deixam sofrer. Vem pois, oh Morte! Sinto­te os passos! Grito­te! O teu seio Deve ser, suave e escutar o teu coração Como ouvir melodia estranha e vaga Que enleva até ao sono, e passa o sono. Nada, já nada posso, nada, nada... Vais­te, Vida. Sombras descem. Cego. Oh Fausto!                                  (Expira)  

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CORRE O PANO  Três dias após a sua morte, o Diário de Notícias publicou na  primeira  página  uma  notícia  intitulada  Morreu Fernando  Pessoa,  grande  poeta  de  Portugal.  Outros jornais  recordaram‐no  como  um  futurista  do  Orpheu, como  o  poeta  nacionalista  da  mensagem  e  como  um critico de rara  inteligência, mas com exepção de poucas pessoas,  quase  ninguém  fazia  a  mínima  ideia  da  sua verdadeira  grandeza  e  universalidade.  Curiosamente, uma  curta  notícia  necrológica  publicada  no  jornal lisboeta  Bandarra,  reconhecia  que  “a  obra  notável  de Pessoa era ainda  inédita” e profetizava que o  seu nome “iria crescendo à medida que o tempo fosse passando”. Num dos seus cálculos esotéricos Pessoa previa viver 68 anos  e  10 meses.  Falhou  por  21  anos.  O  padrasto,  João Miguel  Rosa,  definira‐o  como  um  “teimoso  manso”  e profissionalmente,  ele  próprio  se  considerava  um correspondente  estrangeiro  em  casas  comerciais  em regime  de  free­lancer.  Desde  criança,  tinha  pavor  às doenças  por  causa  da  loucura  da  avó  Dionísia  e  à tuberculose do pai e quando a sua mãe morre em 17 de Março Pessoa ficou mais só que nunca, tendo em Agosto escrito numa carta a um amigo que se sentia a ficar louco e  a  questionar‐se  se  não  deveria  ser  internado.  O  seu amigo Sá Carneiro, em carta de Agosto de 1915 chamou‐lhe “Pessoa, o homem‐nação – o Prometeu encerrado no seu  mundo  interior  de  génio”  e  outros  amigos vaticinavam‐lhe a futura grandeza como um dos maiores poetas portugueses como conta à mãe em carta de 1914. De facto, Pessoa não era apenas um poeta absolutamente genial  (o  que  já  em  si  seria  extraordinário)  mas  sim vários  poetas  absolutamente  geniais.  E,  no  entanto, aparentou  sempre  ser  um  homem  sem  grandes qualidades  quando,  na  realidade  era  um  universo  em expansão de qualidades, mas sem homem ou um drama em forma de gente em vez de actos.