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167 R. bras. de Dir. Público – RBDP | Belo Horizonte, ano 18, n. 70, p. 167-201, jul./set. 2020 A moralidade administrativa e sua percepção no Supremo Tribunal Federal Martinho Rodrigues Vasconcelos Neto Advogado. Especialista em Direito Público, com experiência em representação de município e empresas públicas. Atualmente compõe o quadro de associados permanentes do escritório Moacy Leal Advogados Associados e exerce as funções de Ouvidor Setorial de Segurança Pública do Estado do Piauí, Gestor de Contratos e Convênios e Gerente de Gestão do Sistema Único de Segurança Pública na Secretaria Estadual de Segurança do Estado do Piauí. Resumo: A intenção do presente trabalho é a verificação do entendimento conceitual da moralidade administrativa extraído das decisões do Supremo Tribunal Federal por meio da pesquisa e análise dos acórdãos de tal corte. Em paralelo tentar-se-á extrair e analisar qual o arcabouço teórico utilizado para a cristalização do citado conceito confrontando a interpretação doutrinária encontrada e a interpretação pessoal do Ministro(a) prolator do decisum, tentar verificar um conceito geral acerca do princípio constitucional no âmbito do STF. Palavras-chave: Direito Administrativo. Direito Público. Princípios Constitucionais da Administração. Princípio da Moralidade. Moralidade administrativa. Artigo 37 da Constituição Federal de 1988. Sumário: 1 Introdução – 2 A moral – 3 A moralidade administrativa – 4 A moralidade administrativa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – 5 Conclusão – Referências 1 Introdução A concepção de moral por si só é bastante complexa. Remete-nos a conceitos filosóficos amplamente debatidos. Tal conceito torna-se ainda mais complexo quando, ao nos depararmos com ele cristalizado em uma norma jurídica, lembramos que a moral faz parte do mundo jurídico, mas não apenas se limita a este. Crescente na dificuldade da acepção do termo “moral”, temos o princípio da Moralidade Administrativa, consagrado no art. 37, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF). Neste ponto o conceito se dilui em uma norma genérica, posto que o conceito de princípio jurídico defendido por Marçal Justen Filho (2014) aborda justamente a abstração e generalidade dos princípios cristalizado em normas jurídicas, afeitos a darem margem ao intérprete da norma frente ao caso real “a escolha da melhor solução possível”. Diante do grau de complexidade aplicado ao conceito de Moralidade Administrativa enquanto norma principiológica, é muito natural buscar o tribunal cujo maior ofício é analisar e interpretar a constituição, ou, no vernáculo exibido no artigo 102 da CF

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167R. bras. de Dir. Público – RBDP | Belo Horizonte, ano 18, n. 70, p. 167-201, jul./set. 2020

A moralidade administrativa e sua percepção no Supremo Tribunal Federal

Martinho Rodrigues Vasconcelos NetoAdvogado. Especialista em Direito Público, com experiência em representação de município e empresas públicas. Atualmente compõe o quadro de associados permanentes do escritório Moacy Leal Advogados Associados e exerce as funções de Ouvidor Setorial de Segurança Pública do Estado do Piauí, Gestor de Contratos e Convênios e Gerente de Gestão do Sistema Único de Segurança Pública na Secretaria Estadual de Segurança do Estado do Piauí.

Resumo: A intenção do presente trabalho é a verificação do entendimento conceitual da moralidade administrativa extraído das decisões do Supremo Tribunal Federal por meio da pesquisa e análise dos acórdãos de tal corte. Em paralelo tentar-se-á extrair e analisar qual o arcabouço teórico utilizado para a cristalização do citado conceito confrontando a interpretação doutrinária encontrada e a interpretação pessoal do Ministro(a) prolator do decisum, tentar verificar um conceito geral acerca do princípio constitucional no âmbito do STF.

Palavras-chave: Direito Administrativo. Direito Público. Princípios Constitucionais da Administração. Princípio da Moralidade. Moralidade administrativa. Artigo 37 da Constituição Federal de 1988.

Sumário: 1 Introdução – 2 A moral – 3 A moralidade administrativa – 4 A moralidade administrativa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – 5 Conclusão – Referências

1 Introdução

A concepção de moral por si só é bastante complexa. Remete-nos a conceitos

filosóficos amplamente debatidos. Tal conceito torna-se ainda mais complexo quando,

ao nos depararmos com ele cristalizado em uma norma jurídica, lembramos que a

moral faz parte do mundo jurídico, mas não apenas se limita a este.

Crescente na dificuldade da acepção do termo “moral”, temos o princípio da

Moralidade Administrativa, consagrado no art. 37, caput, da Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988 (CF). Neste ponto o conceito se dilui em uma norma

genérica, posto que o conceito de princípio jurídico defendido por Marçal Justen Filho

(2014) aborda justamente a abstração e generalidade dos princípios cristalizado em

normas jurídicas, afeitos a darem margem ao intérprete da norma frente ao caso

real “a escolha da melhor solução possível”.

Diante do grau de complexidade aplicado ao conceito de Moralidade Administrativa

enquanto norma principiológica, é muito natural buscar o tribunal cujo maior ofício

é analisar e interpretar a constituição, ou, no vernáculo exibido no artigo 102 da CF

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“precipuamente, a guarda da Constituição”, a interpretação e aplicação prática de

conceito tão abrangente, o Supremo Tribunal Federal (STF).

Desta forma, apresentamos, logo após um escorço sobre as bases do aludido

princípio, a forma como a moralidade administrativa é abordada pelo STF

2 A moral

2.1 A moral e a filosofia

A moral, comumente abordada pela Filosofia, é, em linhas bastante gerais, o

conjunto de regras que avaliam, geram e dinamizam as condutas sociais de um grupo

de pessoas em um determinado tempo e espaço, sendo criada por este mesmo

conjunto de pessoas. Estas regras geram um códex local, não necessariamente

escrito, sobre as condutas consideradas certas (aceitáveis) ou erradas (inaceitáveis)

por aquela sociedade, ao passo que preexistem punições sociais para determinadas

condutas em uma graduação respectiva a “qualidade moral” da infração.

Segundo o autor Paul Klainman (2013, p.75) na análise do comportamento

moral duas perguntas são recorrentes: O que torna uma ação certa? Que coisas

são boas e quais são más?

Na obra do filósofo inglês Jeremy Bentham intitulada de “Uma introdução aos

princípios da moral e da legislação” (1789), fortemente influenciado pelos textos

de David Hume sobre moral, encontramos a ideia de que ação moralmente aceita

é aquela à qual tendencia trazer e oferecer felicidade. Este conceito é a base de

uma corrente ética filosófica conhecida como Utilitarismo. Nas palavras do próprio

Jeremy Bentham:

Por princípio de utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou a comprometer a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um indivíduo particular, mas também de qualquer ato ou medida de governo (BENTHAM, 1789, p. 10)

Em 1861, John Stuart Mill publicou uma nova visão sobre o utilitarismo de

Jeremy Bentham em uma obra em forma de ensaio, originalmente intitulada de

“Utilitarianism”, publicado no Fraser’s Magazine. Neste texto Mill aprimorou e ampliou

as ideias de Betham, trazendo vários enfoques relevantes e questões filosóficas

com densidade considerável, entretanto faremos um recorte do texto que se propõe

à investigação da natureza da justiça frente ao códice da moral na visão Utilitarista.

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Neste recorte, o filósofo questiona se a felicidade proposta pelo Utilitarismo

pode entrar em conflito com o conceito de justiça. Em intrincada argumentação, Mill

conclui que a justiça, apesar de a priori parecer um obstáculo ao utilitarismo, posto

que a felicidade poderia advir de condutas dadas como injustas, não chega a ser

uma barreira intransponível à ética utilitarista.

Mais à frente apresenta uma reflexão sobre o que consideraríamos condutas

injustas. Pedro Galvão (2005, p. 30), em nota de introdução à uma tradução da

citada obra de Mill as elenca como:

(i) violar os direitos legais das pessoas, (ii) violar os direitos morais das pessoas, (iii) não dar a cada pessoa aquilo que ela merece, (iv) violar os compromissos que assumimos prante os outros, (v) favorecer algumas pessoas de uma forma indevidamente parcial, (vi) desrespeitar as exigências de igualdade.

Por fim apresentamos a conclusão do Filósofo sobre a natureza da Justiça

(MILL, 2005, p. 85):

Parece-me que este aspecto do caso – um direito de uma pessoa correlativo a uma obrigação moral – constitui a diferença específica que distingue a justiça da generosidade ou da benevolência. A justiça implica algo que, além de ser certo fazer e errado não fazer, uma pessoa individual pode exigir de nós enquanto seu direito moral. (5.15)

Entretanto a moral e a justiça baseada no prisma do homem singular é adequada

a produção de norma jurídica? Ou mesmo o Utilitarismo e seus ideias de justiça

diante da norma moral são suficientes para a transmutação de um sistema jurídico

eficiente? Ainda: o Direito é uma instituição moral devendo prestar-se à justiça?

Considerando que a produção e a normatização jurídica são um desiderato

eminentemente científico, Hans Kelsen (1979, p. 17), em sua canônica obra

Reine Rechtslehre (Teoria Pura do Direito) buscou desvencilhar a ciência jurídica de

qualquer outra ciência, desta feita, afastando-a de qualquer conteúdo eminentemente

psicológico, sociológico, ético e até mesmo da teoria política. Em suas palavras:

De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo facto de estas ciências se referirem a objectos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo, não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objecto.

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Segundo Kelsen (2009, p. 100) a conduta humana (ser) só é significativa,

do ponto de vista jurídico, quando coincide com uma norma válida (dever ser). Da

relevância passa-se então para o crivo de positividade ou negatividade. A conduta

é negativa quando confronta a norma, e passa a ser positiva quando coincide com

a norma. Tergiversar desta aparente limitação coloca a norma jurídica em uma

instabilidade diante do sistema moral que quem a observa. O conceito de moral pode

vir a torna-se relativo, precarizando a estrutura científica da norma, do mesmo modo

a percepção de justiça. Não determina-se aqui a ausência de percepção moral da

norma. Ela pode ser mensurada, conquanto também releve-se o valor relativo desta

percepção quanto aos sistemas morais e éticos prismados.

Neste atual ponto de percepção, poderíamos nos precipitar em afirmar que a

moral, dentro do ordenamento positivista de Kelsen, poderia afastar a interpretação

considerada na vertente utilitarista.

Entretanto, antes de chegarmos a uma conclusão, devemos observar o

pós-positivismo jurídico, principalmente na figura do Sr. Ronald Dworkin.

Em seu livro O Império do Direito, Dworkin (2003, p. 120) considera que as

normas jurídicas e as regras morais são elementos de um mesmo ordenamento

jurídico. Ainda afirmou que quando o magistrado se depara com o caso concreto,

necessariamente ele interpreta a legislação, mesmo em que pese a tomada de

decisão adstrita à lei.

Em sua obra “A Justiça de Toga” (2010) Dworkin reafirma:

Até o momento, minha argumentação não contestou a ideia tradicional de que ‘moral’ e ‘direito’ designam domínios de pensamento em princípio diferenciados, mesmo que talvez sejam interdependentes em diferentes sentidos. Afirmo agora que essa idéia tradicional, que nos estimula a estabelecer relações entre dois domínios intelectuais diferentes, é insatisfatória. Seria melhor atuar com uma topografia intelectual distinta: poderíamos tratar o direito como um segmento da moral, não como algo separado dela. Compreendemos a teoria política dessa maneira: como parte da moral compreendida em termos mais gerais, porém diferenciadas, com sua substância específica, uma vez que aplicável a estruturas institucionais diferenciadas. Poderíamos tratar a teoria jurídica como uma parte especial da moral política, caracterizada por um novo refinamento das estruturas institucionais.

Imbricado no aspecto moral da norma, segue a exegética do filósofo afirmando

que a argumentação jurídica adequada é aquela que enleva tal moral diante das

práticas vigentes em certa sociedade, sendo a teoria da justiça parte inafastável

de tal argumentação.

O conceito de moral, fronteado à formação dos conceitos e concepções jurídicas

elencadas, pode nos servir de observatório inicial visando a percepção da “moralidade

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administrativa” apresentada no problema do presente trabalho, principalmente no

conceito de uma conduta perpetrada por um ato administrativo frente a um princípio

abstrato. Entretanto esta não é a única ótica possível, como passamos a ver adiante,

o princípio pode extravasar a percepção estritamente jurídica no aspecto político,

sendo o tema do próximo tópico.

2.2 A moral e a política

Nos textos do italiano Norberto Bobbio organizados por José Fernández Santillán

(2003) na Obra “Norberto Bobbio: O Filósofo e a Política” temos a reflexão deste

sobre a moral, mais especificamente no texto intitulado “A Política”.1

Nesse excerto o Filósofo debate-se com uma questão clássica; seria a moral

do político (aqui ampliamos o entendimento para agente público) a mesma da

população? Nas palavras de Bobbio (2003, p. 146):

No fim das contas, estamos diante do problema que geralmente se coloca nos termos da seguinte pergunta: uma conduta considerada obrigatória em moral será igualmente obrigatória em política (ou melhor, para a pessoa que efetua uma ação política, uma ação no âmbito da esfera política ou do exercício do poder político)?2 Ou, ao contrário, o que é lícito em política também é lícito em moral? Dito de outra forma: podem ocorrer ações morais que sejam não políticas ou apolíticas, e ações políticas que sejam não morais ou amorais?

Utilizando-se da máxima de Maquiavel, Bobbio reflete que já foi plausível uma

teoria que elevasse a possibilidade da dualidade moral entre a população, ou “homem

comum” e o político, afirmado inclusive que “em virtude do interesse coletivo, o

político pode fazer o que não é permitido ao indivíduo” (2003). Entretanto esta visão

de condição excepcional dada à moral política acabaria por expor um forte contraste

frente a conduta almejada desta classe pela população à ostentada e justificada por

esta mesma classe, utilizando-se da apologia dos meios pelos fins. Nasce então

duas grandes vertentes para a justificação desta “dualidade”.

A primeira, segundo o Filósofo, “é a que explica e justifica o contraste a partir

da diferença entre regra e exceção” (2003. p.148). Portanto não seriam duas

morais, a política e a “comum”, mas sim a única moral pairando sobre todos e o

político (agente público) podendo apenas excetuar-se desta quando deparar-se em

1 Originalmente publicado em: “La Politica”, em vários autores, La Società contemporânea, v.I, Turim, Utet, 1987, p. 567-587

2 É exatamente essa ampliação do conceito político, o da ação política, que nos leva a ampliação do conceito de político para agente público.

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uma situação excepcional no qual “é lícito o que de modo geral está proibido não

só para os Estados, mas também para os indivíduos”.

A segunda vertente, ainda na visão de Bobbio (2003. p.149), em contraste com

a anterior, divide-se sim em duas análises morais baseadas em critérios distintos de

avaliação os quais medem a bondade e a maldade das ações por diferentes vieses.

Didaticamente o Filósofo nos apresenta tal síntese:

Em termos mais simples, toda ação pode ser avaliada com base em princípios dados, como por exemplo as regras da moral universal, sendo julgada boa se os respeita e má se os viola. Mas pode ser avaliada a partis das consequências, sendo considerada como boa se tem êxito e má se fracassa. No primeiro caso, a ação é qualificada com base em alguma coisa que se situa antes dela mesma; no segundo, com base em algo que vem depois.

Divergindo aqui da conclusão de Bobbio (2003. p. 150), que no texto acredita

ser a dualidade moral “explicação mais clara e justificação mais convincente do

contraste entre moral e política” e levando em consideração o ideário de Stuart

Mill, entendemos a “moral política” mais próxima da justiça do que da maldade ou

bondade, já que deve, a ação “política”, se afastar da benevolência, sob pena de

criar um sistema baseado no “favor do rei”, ou, em recorte à nossa realidade, “no

favor e benevolência do “coronel”, justiça esta sempre almejada com enfoque no

bem estar voltado a interesse público.

As ideias apresentadas por Bobbio têm um caráter exegético quanto ao contexto

da formação da moral administrativa no âmbito da política, explicitando o problema

do conceito aliado às condutas de agentes políticos frente a um sistema moral

complexo, conforme apresenta-se no tópico posterior.

Talvez a visão deste tópico levantado pelo Filósofo em muito se assemelha

a visão de um agente político moderno que, buscando uma explicação para sua

exacerbação de poder público, tenta justificar-se por uma “singularidade” de seu

ato frente a moralidade administrativa.

2.3 A moral no Direito Administrativo – surgimento

Segundo Emerson Garcia e Rogério Pacheco (2014, p. 132) a doutrina é uníssona

em atribuir o impulso inicial da moralidade administrativa aos estudos do professor

de direito em Toulouse (1883-1929) Maurice Hauriou, sobre a jurisprudência do

Conselho de Estado na França (Le Conseil d’État), uma espécie de “suprema corte”

administrativa francesa.

Nestes estudos Hauriou pôde constatar toda a evolução do tratamento da citada

corte, cuja percepção evolucionou de uma total ausência de controle da atividade

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administrativa do Estado, característica do Acient Régime em que o Rei nunca erra,

até a cristalização da punição ao agente público pelo abuso de poder (détournement

de pouvoir).

Emerson Garcia e Rogério Pacheco (2014. p.133) citando Hauriou (1927, p.

435 e s.) em sua obra “Droit Administrtif et de Droit Public” destacam o seguinte

trecho, qual caracteriza a exegese da figura “moralidade administrativa”:

O recurso por excesso de poder é uma via de nulidade que outorga o Conselho de Estado o poder de anular uma decisão executória, se ela contém um excesso de poder formal da autoridade que tomou a decisão (incompetência, violação das formas, desvio de poder, violação da lei), e que, por ele mesmo, tende a impedir o procedimento executório de ação direta.

Foi este recurso, o por excesso de poder, que fez Hauriou desenvolver a ideia

de que o Estado não é um ente autocentrado, mas um organismo que deve pautar

suas ações para um fim comum em prol do interesse público e, para que este

desiderato seja preservado, deve-se construir mecanismos que não só anulem atos

que discrepem da visão comunitária do interesse público, mas também ordenamento

legal que materialize tais impedimentos.

Evoluindo no mesmo texto, Hauriou chega à seguinte conclusão:

A conformidade da ação administrativa, seja com o objeto da boa administração (desvio de poder), seja com as prescrições da legalidade (violação da lei) [...] não se reduz a legalidade, como se tem dito, pois o objetivo da função administrativa é determinado muito menos pela lei que pela moralidade administrativa.

Podemos concluir que o modelo de Hauriou foi, mesmo criticado posterior-

mente por Marcel Waline e também por Marcel Waline nas obras homônimas Droit

Administratif, de tanta relevância que ainda é utilizado pelo Conselho de Estado

Francês hodiernamente, mesmo que apenas adstrito sob a epígrafe do exame da

legalidade, o que pode servir de módulo de utilização para o direito brasileiro, já

que o sistema de princípios da Administração Pública englobam tanto a moralidade

quanto a legalidade.

3 A moralidade administrativa

3.1 Delimitação

Encontramos, no item anterior, o embrião da moralidade administrativa tomando

forma. Pois bem, nesta segunda fase é salutar delimitar um conceito ou, evitando

o determinismo, uma percepção do que é a moralidade administrativa.

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Cabe ressaltar que a percepção pessoal deste autor, pelas visões supra

apresentadas, é de que a moralidade administrativa é algo que se intersecta à

legalidade, entretanto os conceitos não se tornam sinônimos. Observe que a

legalidade administrativa é adstrita à produção de uma norma, sua validade e

posterior obediência (ou não) à esta mesma norma, sendo esta a medida utilizada

para auferira-la. Entretanto a norma pode ser construída de sorte que se torne imoral

ou mesmo amoral. Pode-se perguntar o leitor; “cabe ao Direito hodierno espaço para

tratar de ato legislativo moral, imoral ou amoral”? Segundo Robert Alexy (2008) o

sistema pós-positivista percebe a abertura valorativa do sistema. Nesta corrente

os valores permeiam o sistema tanto no momento da confecção da norma como

durante sua aplicação. Karl Larens (1997, p. 406) afirma que até mesmo as regras,

mais ainda as que contenham conceitos jurídicos indeterminados, necessitam de

um juízo de valor prévio do magistrado para a sua concreção. É este o instrumento

que permite identificar os princípios norteados por um sistema valorativo. Ricardo

Vieira e Guilherme Pereira (2011) em artigo na Revista de Informação Legislativa,

aclararam didaticamente a situação:

Impende trazer à baila o entendimento de Dworkin (2006, p. 11) de que a leitura moral (axiológica) da Constituição evidentemente “não é adequada para a interpretação de tudo quanto uma constituição contém”. As Constituições são permeadas por normas-regra e nor-mas-princípio. Para as regras é que o autor afirma não ser adequada a leitura moral, uma vez que não há que se falar em análise valorativa de uma norma-regra como a que especifica a idade mínima para a elegibilidade de um Presidente em trinta e cinco anos. Nesse caso a leitura moral já foi feita pelo legislador. As normas-regra constitucionais caracterizam-se por serem fechadas, casuísticas, com reduzido grau de abstração. Quando da criação dessas regras, pelo Constituinte, é que se analisam e ponderam os valores sociais envolvidos. Com as regras, a verificação valorativa se dá previamente. Não cabe, em regra, ao intérprete essa aferição, porque todos os critérios para subsunção do caso concreto foram objetivamente delineados pelo legislador. Mais à frente será demonstrado que, por exceção, também é possível a leitura valorativa das regras. Por hora, essa ideia geral de que a leitura moral não se faz necessária à interpretação das regras é bem-vinda. Então, a ampliação valorativa da aplicação do direito ou a interpretação moral da Constituição (Dworkin) restringe-se, em regra, às normas abertas e com maior abstração denominadas princípios ou normas-princípio. Nesse cenário, há a inclusão, nos textos constitucionais contemporâneos, “de vários standards morais, na forma de princípios, valores e direitos fundamentais, já que tais standards realizam uma plasmação jurídica de conteúdos de natureza moral nos ordenamentos jurídicos hodiernos” (MAIA, p. 10). (Sem grifos no original)

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Bobbio (2003, p. 151) afirma que a questão da produção da norma está

imbricada à política em uma relação de interdependência entre a criação de novas

leis e a delimitação desta produção por leis já vigentes, mas também abrasa a ideia

de que, estando a produção legislativa de certa forma subordinada à ética política,

anteriormente abordada, a produção de uma lei que confronte a moralidade não

seria fato esdrúxulo. Na atual conjuntura brasileira termos vários casos práticos,

por exemplo. Desta forma poderíamos ter uma legislação perfeita em termos legais,

entretanto imperfeita no campo da moral administrativa.

Delimitando a moral administrativa frente a legalidade podemos sugerir que a

moralidade é decorrente da legalidade, posto que se manifesta e adensa-se quando

a norma é interpretada para a consecução de um ato administrativo, entretanto

cinge, aquela, a vontade do autor do ato, devendo este analisar não à sua vontade

ou a da Administração, mas ao fim público ao qual seu ato destina-se, mesmo que

distante da visão pessoal daquele autor.

3.2 Previsão normativa

Insta ressaltar de antemão que não existiu expressamente, nas constituições

anteriores à de 1988, o princípio da moralidade administrativa, entretanto podemos

destacar o artigo 57 da Constituição Brasileira de 1934, o artigo 85 da Constituição

de 1937, o artigo 89 da Constituição de 1946 e o artigo 84 da Constituição de

1967 os quais referenciam a “probidade administrativa”. Podemos também notar

a exigência dos “talentos e virtudes” para a assunção aos cargos públicos como

exigência no artigo 45 e 199 da Carta de 1824. Maior desta que, porém, cabe ao

artigo 7º do Decreto nº 19.398/30 que vergasta: “Salvo os que, submetidos a revisão,

contravenham o interesse público e a moralidade administrativa”.

Hodiernamente o princípio estampa-se no artigo 37 caput da Carta Magna de

1988 de forma expressa, verbis: a administração pública direta e indireta de qualquer

dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá

aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e [...].

Segundo Emerson Garcia e Rogério Pacheco (2014, p. 142), o caráter normativo

do princípio pode ser verificado em nossa carta pela possibilidade do manejo de

ação popular contra atos que ofendam a moralidade administrativa, conforme o teor

do art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal atual.

3.3 Conceito

Percebemos que apesar da temática moralidade administrativa ser abundante

nos livros que se propõe a estudar direito administrativo e suas nuances, a maioria

dos autores consultados não delimitam objetivamente um conceito.

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Maria Sylvia Di Pietro, na sua obra Direito Administrativo (2009, p. 76), por

exemplo, se restringe a afirmar que:

Sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridi-camente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a ideia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa.

Eventualmente em suas decisões os Ministros do Supremo Tribunal Federal se

valem do conceito sintetizado pelo professor da UFPR, Manoel de Oliveira Sobrinho

(1992, p. 247):

Há uma ética moral própria a ser cumprida pela Administração, o moral, no imparcial, tem substância constitucional, ficando a imparcialidade administrativa como condição imperativa na aplicação dos textos legais e sobretudo nas práticas administrativas. Fugir delas é fugir da lei, da norma-ordenança, do princípio hoje consagrado nas mais avançadas cartas constitucionais.

Dirley da Cunha (2012, p. 41), sendo um ponto fora da curva no não estabe-

lecimento de um conceito, define:

Deve-se entender por moralidade administrativa um conjunto de valores éticos que fixam um padrão de conduta que deve ser necessariamente observado pelos agentes públicos como condição para uma honesta, proba e íntegra gestão da coisa pública, de modo a impor que estes agentes atuem no desempenho de suas funções com retidão de caráter, decência, lealdade, decoro e boa-fé. Enfim, esse princípio determina o emprego da ética, da honestidade, da retidão, da probidade, da boa-fé e da lealdade com as instituições administrativas e políticas no exercício da atividade administrativa. Violá-lo macula o senso comum.

Existe, portanto, uma indefinição doutrinaria sobre o conceito objetivo da

moralidade. Existe ainda uma preocupação da doutrina em associar ou ressaltar o

princípio da legalidade frente ao princípio da moralidade pública.

4 A moralidade administrativa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

4.1 Forma de busca da jurisprudência

A principal fonte de busca será o universo de decisões composto por acórdãos,

localizados pela ferramenta de pesquisa de jurisprudência do sítio eletrônico do

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A MORALIDADE ADMINISTRATIVA E SUA PERCEPçÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Supremo Tribunal Federal com a utilização do termo “moral$ prox2 administra$” no

campo “pesquisa livre”. Tal parâmetro garante que a pesquisa seja feita considerando

a palavra moral aliada a qualquer sufixo próxima a no máximo duas palavras do

vocábulo “administra” aliada a qualquer sufixo, tudo isto segundo a ajuda de busca

disponível no sítio.

4.2 Resultados encontrados

A fim de permitir-se uma análise sintética dos resultados apurados, resolveu-se

utilizar de critérios semelhantes aos encontrados na monografia apresentada à

Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público por Lucas Rebouças

de Oliveira (2015, p. 11).

Portanto foram encontrados 125 acórdãos. Destes, apenas 116 foram

prolatados após a Constituição de 1988. Exclui-se deste número os que tratam de

Direito eleitoral, por tratarem da matéria de forma casuística, desnaturando o caráter

universal da presente pesquisa. Dos 105 restantes exclui-se os de significativo

volume, unicamente pela inviabilidade temporal de lê-los.

Dos 102 restantes, apenas 36 eram decisões plenárias, sendo estas as

que interessam ao atual escopo. Por fim, subtraímos ainda dois acórdãos por sua

temática ser voltada a possibilidade de aplicação legal, sendo o tema moralidade

administrativa apenas citado e não explicitado com profundidade.

Logo após agrupou-se os acórdãos em eixos temáticos, os quais são: Direito

Previdenciário, Direito Tributário e Financeiro, licitações contratos e concursos,

nepotismo, incidentes processuais, agentes públicos, tutela da moralidade admi-

nistrativa pelo Estado.

4.3 Moralidade administrativa nas decisões afeitas ao Direito Previdenciário

Os acórdãos analisados nesta seara foram: ADI 4.429/SP, MS 25.403/DF e

o MS 25.116/DF.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.429/SP temos a seguinte decisão,

a qual, por ser mais didática que a ementa, fora escolhida para apresentar o caso:

O Tribunal julgou parcialmente procedente a ação direta para declarar a inconstitucionalidade dos §2º e §3º do art. 2º da Lei nº 13.549, de 2009, do Estado de São Paulo, no que excluem a assunção de responsabilidade pelo Estado, e conferir interpretação conforme à Constituição ao restante da norma impugnada, proclamando que as regras não se aplicam a quem, na data da publicação da Lei, já estava em gozo de benefício ou

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já tinha cumprido, com base no regime instituído pela Lei nº 10.394, de 1970, os requisitos necessários à concessão, tudo nos termos do voto do Relator, contra os votos dos Senhores Ministros Luiz Fux, que o fazia em menor extensão, e Ayres Britto, que o fazia em maior extensão. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso. Ausentes, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello e, licenciado, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa. Falou pelo interessado, Governador do Estado de São Paulo, o Dr. Waldir Francisco Honorato Júnior, Procurador do Estado. Plenário, 14.12.2011.

O momento onde utilizou-se o vocábulo “moralidade administrativa” fora no

voto do Ministro Luiz Fux:

Num primeiro momento, parece paradoxal a responsabilidade do Estado pelo pagamento de benefícios concedidos e a conceder ou de indenização por insuficiência patrimonial. Segundo noticia o Ministério Público Federal, a declaração de constitucionalidade dos dispositivos seria inócua, pois, desde os primórdios de sua disciplina legal, a carteira de previdência dos advogados de São Paulo tem o seu patrimônio segregado. Independentemente disso, observa-se que o Estado de São Paulo jamais foi patrocinador da carteira, ou seja, jamais foi legalmente responsável por verter contribuições à mesma, razão pela qual não há como admitir, em princípio, à luz dos princípios constitucionais da razoabilidade e da moralidade administrativa, qualquer responsabilidade da Administração Pública pela cobertura de eventual déficit financeiro ou atuarial da carteira. (Sem grifos no original)

Observamos aqui uma citação ao princípio sem contextualização ou mesmo

aprofundamento do mesmo, não fica claro em que momento fere a “moral adminis-

trativa” o fato concreto vergastado.

No Mandado de Segurança 25.403/DF temos a seguinte ementa:

MANDADO DE SEGURANçA. ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ILEGITIMIDADE DO COORDENADOR-GERAL DE RECURSOS HUMANOS DO MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES. NEGATIVA DE REGISTRO A PENSÃO. PRINCÍPIO DA SE-GURANçA JURÍDICA. GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. 1. O Coordenador-Geral de Recursos Humanos do Ministério dos Transportes é parte ilegítima para figurar no pólo passivo da ação mandamental, dado que é mero executor da decisão emanada do Tribunal de Contas da União. 2. A inércia da Corte de Contas, por mais de cinco anos, a contar da pensão, consolidou afirmativamente a expectativa de pensionista quanto ao recebimento de verba de caráter alimentar. Esse aspecto temporal diz intimamente com: a) o princípio da segurança jurídica, projeção objetiva do princípio da dignidade da pessoa humana e elemento conceitual do Estado de Direito; b) a lealdade, um dos conteúdos do princípio constitucional da moralidade administrativa (caput do art. 37). São de se reconhecer, portanto, certas situações jurídicas subjetivas ante o Poder Público, mormente quando tais situações

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A MORALIDADE ADMINISTRATIVA E SUA PERCEPçÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

se formalizam por ato de qualquer das instâncias administrativas desse Poder, como se dá com o ato formal de aposentadoria. 3. A manifestação do órgão constitucional de controle externo há de se formalizar em tempo que não desborde das pautas elementares da razoabilidade. Todo o Direito Positivo é permeado por essa preocupação com o tempo enquanto figura jurídica, para que sua prolongada passagem em aberto não opere como fator de séria instabilidade intersubjetiva ou mesmo intergrupal. A própria Constituição Federal de 1988 dá conta de institutos que têm no perfazimento de um certo lapso temporal a sua própria razão de ser. Pelo que existe uma espécie de tempo constitucional médio que resume em si, objetivamente, o desejado critério da razoabilidade. Tempo que é de cinco anos (inciso XXIX do art. 7º e arts. 183 e 191 da CF; bem como art. 19 do ADCT). 4. O prazo de cinco anos é de ser aplicado aos processos de contas que tenham por objeto o exame de legalidade dos atos concessivos de aposentadorias, reformas e pensões. Transcorrido in albis o interregno qüinqüenal, a contar da pensão, é de se convocar os particulares para participarem do processo de seu interesse, a fim de desfrutar das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (inciso LV do art. 5º). 5. Segurança concedida.

O momento onde utilizou-se o vocábulo “moralidade administrativa” fora no

voto do Ministro Ayres Brito, o relator da matéria:

Pois bem, considerando o status constitucional do direito a segurança jurídica (caput do art. 52), projeção objetiva do princípio da dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1 II) e elemento conceitual do Estado de Direito, tanto quanto levando em linha de consideração a lealdade como um dos conteúdos do princípio da moralidade administrativa (caput do art. 37), faz-se imperioso o reconhecimento de certas situações jurídicas subjetivas ante o Poder Público. Mormente quando tais situações se formalizam por ato de qualquer das instancias administrativas desse Poder, como se dá com o ato formal de uma determinada pensão.

Observando o contexto do caso, onde o Ministro sustenta que um procedimento

administrativo de cognição sumaria quando ultrapassa a barreira dos cinco anos

de trâmite deve permitir oportunidade às partes à ampla defesa, inferimos que a

lealdade enlevada no excerto faz referência ao princípio da Lealdade Processual,

qual garantiria uma razoável duração do processo e esta encontrar-se-ia englobada

pela moralidade administrativa, segundo a conexão percebida.

O que pode-se novamente perceber é que o conceito de moralidade administrativa

fora ligada a uma valoração moral de um ato de forma adjetiva, sem profundidade

de interpretação ou consideração do que seria a tal moralidade e como o princípio

da lealdade, ferido, atacaria esta.

No Mandado de Segurança 25.403/DF temos a seguinte ementa:

Ementa: PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAçÃO EM MAN-DADO DE SEGURANçA. ALEGAçÃO DE CONTRADIçÃO. REJEIçÃO DOS

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EMBARGOS DE DECLARAçÃO DO IMPETRANTE E ACOLHIMENTO, EM PARTE, DOS EMBARGOS DA UNIÃO. 1. Ausência de omissão, contradição e obscuridade quanto à alegada necessidade de esclarecimento sobre a extensão da ordem concedida, porquanto o acórdão impugnado, ao conceder a segurança, expressamente anulou o acórdão do Tribunal de Contas da União que negou registro ao ato de aposentadoria, sem impedir que novo julgamento seja realizado, com obrigatória observância do contraditório e da ampla defesa. 2. O termo inicial do prazo de cinco anos, após o qual será obrigatória a instauração de procedimento com ampla defesa e contraditório do ex-servidor junto ao Tribunal de Contas da União, para efeito de registro de aposentadoria, é a data de recebimento, pelo TCU, do ato concessivo de aposentadoria. Embargos de declaração da União acolhidos, portanto, para substituição da expressão “a contar da aposentadoria”, constante dos itens 3 e 5 da ementa, por “a contar do recebimento, pelo Tribunal de Contas da União, do ato concessivo de aposentadoria”, em razão de contradição com o conteúdo decisório do acórdão embargado. 3. Embargos de declaração do impetrante rejeitados. Embargos de declaração da União acolhidos, em parte, sem efeitos infringentes.

O MS acima é um desdobramento processual do anterior, portanto, nada novo

à relatar.

Analisando-os de forma sistêmica, concluiu-se que, em que pese o inquestionável

conhecimento jurídico dos Ministros, o tema “moralidade administrativa” quase

sempre é utilizado com mero adjetivo ou até mesmo como norma meramente citada,

sem maiores digressões sobre seus conceitos ou influência no dispositivo decisório

buscado para a solução do conflito. Ausente também a adequação do princípio

aos casos reais ou citação à sua carga principiológica. Ao que parece, o princípio

é apenas adjeto a uma conduta para valorá-la de acordo com um conceito ideal de

moral, sem, contudo, verticalizar o tema.

As soluções dos conflitos foram alcançadas utilizando-se de regras constitucionais

e infraconstitucionais bem como elementos processuais os quais não são escopo

do presente estudo.

Podemos concluir, portanto, que a moralidade administrativa não é vista pelos

Ministros do Supremo como elemento ou instrumento determinante para fundamentar

decisões quais abordam temas previdenciários.

4.4 Moralidade administrativa nas decisões afeitas ao Direto Tributário e Financeiro

Os acórdãos analisados nesta seara foram: ADI 3.462/PA, ADI-MC 2.661/MA

e ADI-MC 2.660/ES.

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A MORALIDADE ADMINISTRATIVA E SUA PERCEPçÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.462/PA temos a seguinte ementa:

EMENTA: AçÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO TRIBUTÁ-RIO. LEI PARAENSE N. 6.489/2002. AUTORIZAçÃO LEGISLATIVA PARA O PODER EXECUTIVO CONCEDER, POR REGULAMENTO, OS BENEFÍCIOS FISCAIS DA REMISSÃO E DA ANISTIA. PRINCÍPIOS DA SEPARAçÃO DOS PODERES E DA RESERVA ABSOLUTA DE LEI FORMAL. ART. 150, §6º DA CONSTITUIçÃO FEDERAL. AçÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. A adoção do processo legislativo decorrente do art. 150, §6º, da Constituição Federal, tende a coibir o uso desses institutos de desoneração tributária como moeda de barganha para a obtenção de vantagem pessoal pela autoridade pública, pois a fixação, pelo mesmo Poder instituidor do tributo, de requisitos objetivos para a concessão do benefício tende a mitigar arbítrio do Chefe do Poder Executivo, garantindo que qualquer pessoa física ou jurídica enquadrada nas hipóteses legalmente previstas usufrua da benesse tributária, homenageando-se aos princípios constitucionais da impessoalidade, da legalidade e da moralidade administrativas (art. 37, caput, da Constituição da República). 2. A autorização para a concessão de remissão e anistia, a ser feita “na forma prevista em regulamento” (art. 25 da Lei n. 6.489/2002), configura delegação ao Chefe do Poder Executivo em tema inafastável do Poder Legislativo. 3. Ação julgada procedente.

O momento onde utilizou-se o vocábulo “moralidade administrativa” fora no

voto da Ministra Cármen Lúcia, a relatora da matéria:

Em efeito, a adoção do processo legislativo decorrente do art. 150, §6º, da Constituição Federal, tende a coibir o uso desses institutos de desoneração tributaria corno moeda de barganha para a obtenção de vantagem pessoal pela autoridade pública, pois a fixação, pelo mesmo Poder instituidor do tributo, de requisitos objetivos para a concessão do benefício tende a mitigar indesejado arbítrio pelo Chefe do Poder Executivo, garantindo que qualquer pessoa física ou jurídica enquadrada nas hipóteses legalmente previstas usufrua da benesse tributaria, em homenagem aos princípios constitucionais da impessoalidade, da legalidade e da moralidade administrativas (art. 37, caput).

Não ficou claro nesta decisão quais valores éticos afeitos a administração

foram levados em consideração para que se estabelecesse abalizamento do risco

à moralidade administrativa.

Na Medica Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.661/MA temos

a seguinte ementa:

EMENTA: AçÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ESTADUAL QUE AUTORIZA A INCLUSÃO, NO EDITAL DE VENDA DO BANCO DO ESTADO DO MARANHÃO S/A, DA OFERTA DO DEPÓSITO DAS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DO TESOURO ESTADUAL - IMPOSSIBILIDADE - CONTRARIEDADE

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AO ART. 164, §3º DA CONSTITUIçÃO DA REPÚBLICA - AUSÊNCIA DE COMPETÊNCIA NORMATIVA DO ESTADO-MEMBRO - ALEGAçÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA - EXISTÊNCIA DE PRECEDENTE ESPECÍFICO FIRMADO PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - DEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR, COM EFICÁCIA EX TUNC. AS DISPONIBILIDADES DE CAIXA DOS ESTADOS-MEMBROS SERÃO DEPOSITADAS EM INSTITUIçõES FINANCEIRAS OFICIAIS, RESSALVADAS AS HIPÓTESES PREVISTAS EM LEI NACIONAL. - As disponibilidades de caixa dos Estados-membros, dos órgãos ou entidades que os integram e das empresas por eles controladas deverão ser depositadas em instituições financeiras oficiais, cabendo, unicamente, à União Federal, mediante lei de caráter nacional, definir as exceções autorizadas pelo art. 164, §3º da Constituição da República. - O Estado-membro não possui competência normativa, para, mediante ato legislativo próprio, estabelecer ressalvas à incidência da cláusula geral que lhe impõe a compulsória utilização de instituições financeiras oficiais, para os fins referidos no art. 164, §3º da Carta Política. O desrespeito, pelo Estado-membro, dessa reserva de competência legislativa, instituída em favor da União Federal, faz instaurar situação de inconstitucionalidade formal, que compromete a validade e a eficácia jurídicas da lei local, que, desviando-se do modelo normativo inscrito no art. 164, §3º da Lei Fundamental, vem a permitir que as disponibilidades de caixa do Poder Público estadual sejam depositadas em entidades privadas integrantes do Sistema Financeiro Nacional. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA - ENQUANTO VALOR CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO - CONDICIONA A LEGITIMIDADE E A VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS. - A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado. O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais. A ratio subjacente à cláusula de depósito compulsório, em instituições financeiras oficiais, das disponibilidades de caixa do Poder Público em geral (CF, art. 164, §3º) reflete, na concreção do seu alcance, uma exigência fundada no valor essencial da moralidade administrativa, que representa verdadeiro pressuposto de legitimação constitucional dos atos emanados do Estado. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. As exceções à regra geral constante do art. 164, §3º da Carta Política - apenas definíveis pela União Federal - hão de respeitar, igualmente, esse postulado básico, em ordem a impedir que eventuais desvios ético-jurídicos possam instituir situação de inaceitável privilégio, das quais resulte indevido favorecimento, destituído de causa

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A MORALIDADE ADMINISTRATIVA E SUA PERCEPçÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

legítima, outorgado a determinadas instituições financeiras de caráter privado. Precedente: ADI 2.600-ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE. A EFICÁCIA EX TUNC DA MEDIDA CAUTELAR NÃO SE PRESUME, POIS DEPENDE DE EXPRESSA DETERMINAçÃO CONSTANTE DA DECISÃO QUE A DEFERE, EM SEDE DE AçÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. - A medida cautelar, em ação direta de inconstitucionalidade, reveste-se, ordinariamente, de eficácia ex nunc, “operando, portanto, a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal a defere” (RTJ 124/80). Excepcionalmente, no entanto, e para que não se frustrem os seus objetivos, a medida cautelar poderá projetar-se com eficácia ex tunc, em caráter retroativo, com repercussão sobre situações pretéritas (RTJ 138/86). Para que se outorgue eficácia ex tunc ao provimento cautelar, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, impõe-se que o Supremo Tribunal Federal assim o determine, expressamente, na decisão que conceder essa medida extraordinária (RTJ 164/506-509, 508, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Situação excepcional que se verifica no caso ora em exame, apta a justificar a outorga de provimento cautelar com eficácia ex tunc.

O momento onde utilizou-se o vocábulo “moralidade administrativa” fora no voto

do Ministro Celso de Melo, o relator da matéria, aqui temos gratificante aprofundamento

no tema, do qual apresentaremos excertos mais relevantes:

É por essa razão que o princípio constitucional da moralidade admi-nistrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgri-dam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos órgãos e agentes governamentais. (...)

(...) Tenho por inegável, desse modo, que a ratio subjacente à cláusu-la de depósito compulsório, em instituições financeiras oficias, das disponibilidades de caixa do Poder Público em geral (CF, art. 164, §3º) reflete, na concreção de seu alcance, uma exigência fundada no valor essencial a moralidade administrativa, que representa, como prece-dente enfatizado, verdadeiro pressuposto de legitimação constitucio-nal dos atos emanados do Estado

Observa-se neste julgado em particular uma percepção da carga moral endereçada

à norma e a transversalidade desta no ordenamento, sendo a conclusão encontrada

no texto próxima a valoração moral da Constituição teorizada por Dworkin. Cerca-se

ainda o ministro dos conceitos e interpretações de Manoel de Oliveira Sobrinho, Lúcia

Valle Figueiredo, Celso Antônio Bandeira de Melo, Maria Di Pietro e Ricardo Lobo

Torres, ainda ressaltando precedente a ADI 2.600-ES, cujo teorias aproxima-se por

demais do acordão acimado, sendo desnecessário repetir a análise realizada posto

ser idêntica neste presente caso.

Um ponto fora da curva, estes julgados, quando enleva a moralidade adminis-

trativa ao fator decisivo da resolução da lide.

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MARTINHO RODRIGUES VASCONCELOS NETO

4.5 Moralidade administrativa nas decisões afeitas a licitações, contratos e concursos

Os acórdãos analisados quais abordam a temática de licitações e contratos

foram: Rcl. 14.151 ED/MG, Rcl. 12.758 AgR/DF, STA 89-AgR/PI, ADI 2.990/DF, ADI

3.578-MC/DF, ADI 1.998/DF e ADI 1.723-MC/RS.

Nos Embargos de Declaração na Reclamação 14151 ED/MG - MINAS GERAIS

temos a seguinte ementa:

Embargos de declaração na reclamação. Conversão em agravo regimental. Responsabilidade Subsidiária. Artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93. Consti-tucionalidade. ADC nº 16. Administração Pública. Dever de fiscalização. responsabilização do ente público nos casos de culpa “in eligendo” e de culpa “in vigilando”. Reexame de matéria fático-probatória. Impossi-bilidade. Agravo regimental a que se nega provimento. 1. Os embargos de declaração opostos objetivando a reforma da decisão do relator, com caráter infringente, devem ser convertidos em agravo regimental, que é o recurso cabível, por força do princípio da fungibilidade. (Precedentes: Pet 4.837-ED, rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, DJ 14.3.2011; Rcl 11.022-ED, rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, DJ 7.4.2011; AI 547.827-ED, rel. Min. DIAS TOFFOLI, 1ª Turma, DJ 9.3.2011; RE 546.525-ED, rel. Min. ELLEN GRACIE, 2ª Turma, DJ 5.4.2011). 2. A aplicação do artigo 71, §1º, da Lei n. 8.666/93, declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC nº 16, não exime a entidade da Administração Pública do dever de observar os princípios constitucionais a ela referentes, entre os quais os da legalidade e da moralidade administrativa. 3. As entidades públicas contratantes devem fiscalizar o cumprimento, por parte das empresas contratadas, das obrigações trabalhistas referentes aos empregados vinculados ao contrato celebrado. Precedente: Rcl 11985-AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 21/02/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-050 DIVULG 14-03-2013 PUBLIC 15-03-2013. 4. A comprovação de culpa efetiva da Administração Pública não se revela cognoscível na estreita via da Reclamação Constitucional, que não se presta ao reexame de matéria fático-probatória. Precedentes: Rcl 3.342/AP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; Rcl 4.272/RS, Rel. Min. Celso de Mello; Rcl. 4.733/MT, Rel. Min. Cezar Peluso; Rcl. 3.375-AgR/PI, Rel. Min. Gilmar Mendes. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.

A moralidade administrativa, no documento decisório, aparece apenas na ementa

e no voto do relator como citação de um trecho citado da ADC nº 16, qual segue:

Tal entendimento ficou evidenciado no voto da i. Min. Cármen Lúcia, proferido nos autos da ADC nº 16, ressaltando que “a aplicação do artigo 71, §1º da Lei n. 8.666/93 não exime a entidade da Administração Pública do dever de observar os princípios constitucionais a ela referentes, entre os quais os da legalidade e da moralidade administrativa”.

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A MORALIDADE ADMINISTRATIVA E SUA PERCEPçÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Não existe, no trecho citado nenhum aprofundamento acera do princípio estudado

ou de sua utilização e reflexos na carga decisória.

No Agravo Regimental na Reclamação 12758 AgR/DF - DISTRITO FEDERAL

temos a seguinte ementa:

Agravo Regimental na Reclamação. Responsabilidade Subsidiária. Artigo 71, §1º, da Lei 8.666/93. Constitucionalidade. ADC nº 16. Administração Pública. Dever de fiscalização. Responsabilização do ente público nos casos de culpa “in eligendo” e de culpa “in vigilando”. Reexame de matéria fático-probatória. Impossibilidade. Agravo regimental a que se nega provimento. 1. A aplicação do artigo 71, §1º, da Lei n. 8.666/93, declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC nº 16, não exime a entidade da Administração Pública do dever de observar os princípios constitucionais a ela referentes, entre os quais os da legalidade e da moralidade administrativa. 2. As entidades públicas contratantes devem fiscalizar o cumprimento, por parte das empresas contratadas, das obrigações trabalhistas referentes aos empregados vinculados ao contrato celebrado. Precedente: Rcl 11985-AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 21/02/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-050 DIVULG 14-03-2013 PUBLIC 15-03-2013. 3. A comprovação de culpa efetiva da Administração Pública não se revela cognoscível na estreita via da Reclamação Constitucional, que não se presta ao reexame de matéria fático-probatória. Precedentes: Rcl 3.342/AP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; Rcl 4.272/RS, Rel. Min. Celso de Mello; Rcl. 4.733/MT, Rel. Min. Cezar Peluso; Rcl. 3.375-AgR/PI, Rel. Min. Gilmar Mendes. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.

Bis in idem tudo que fora discorrido na Rcl. 14.151 ED/MG, inclusive a citação

da ADC nº 16 fora a mesma.

No Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada 89 AgR/PI - PIAUÍ

temos a seguinte ementa:

AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. TRANSPOR-TE PÚBLICO MUNICIPAL. LICITAçÃO. OBRIGATORIEDADE. OCORRÊNCIA DE GRAVE LESÃO à ORDEM PÚBLICA. 1. Ocorrência de grave lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem jurídico-constitucional. 2. Existência de precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido da impossibilidade de prestação de serviços de transporte de passageiros a título precário, sem a observância do devido procedimento licitatório. 3. Cabimento do presente pedido de suspensão, que se subsume à hipótese elencada no art. 4º, §3º e §4º, da Lei 8.437/92. 4. Agravo regimental improvido.

Não temos uma citação direta ao princípio da moralidade administrativa, mas

apenas mera referência ao art. 37 da Constituição Federal, que referencia todos os

princípios explícitos da Administração Pública.

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MARTINHO RODRIGUES VASCONCELOS NETO

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 2990/DF - DISTRITO FEDERAL

temos a seguinte ementa:

EMENTA: AçÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 3º, CAPUT E §§, DA LEI N. 9.262, DE 12 DE JANEIRO DE 1.996, DO DISTRITO FEDERAL. VENDA DE ÁREAS PÚBLICAS PASSÍVEIS DE SE TORNAREM URBANAS. TERRENOS LOCALIZADOS NOS LIMITES DA ÁREA DE PROTEçÃO AMBIENTAL - APA DA BACIA DO RIO SÃO BARTOLOMEU. PROCESSO DE PARCELAMENTO RECONHECIDO PELA AUTORIDADE PÚBLICA. VENDAS INDIVIDUAIS. AFASTAMENTO DOS PROCEDIMENTOS EXIGIDOS NA LEI N. 8.666, DE 21 DE JUNHO DE 1.993. NECESSIDADE DE COMPRO-VAçÃO. INEXIGIBILIDADE E DISPENSA DE LICITAçÃO. INVIABILIDADE DE COMPETIçÃO. ALEGAçÃO DE VIOLAçÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 37, INCISO XXI, DA CONSTITUIçÃO DO BRASIL. INOCORRÊNCIA. 1. A dispensa de licitação em geral é definida no artigo 24, da Lei n. 8.666/93; especificadamente --- nos casos de alienação, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis construídos e destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social, por órgãos ou entidades da administração pública --- no seu artigo 17, inciso I, alínea “f”. Há, no caso dos autos, inviabilidade de competição, do que decorre a inexigibilidade de licitação (art. 25 da lei). O loteamento há de ser regularizado mediante a venda do lote àquele que o estiver ocupando. Consubstancia hipótese de inexigibilidade, artigo 25. 2. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente.

O trecho do voto do Relator alusivo ao princípio da moralidade administrativa

segue:

Contudo, como se sabe, o art. 37, XXI, da Constituição federal determina que as alienações promovidas pelos órgãos da Administração Pública, em virtude do princípio da indisponibilidade do patrimônio público, devem ser efetivadas obrigatoriamente mediante processo de licitação. Não é ocioso frisar que a exigência de licitação é corolário dos princípios da igualdade perante a lei, da impessoalidade e da moralidade administrativa.

Novamente no texto onde fala-se sobre moralidade administrativa, o faz de

forma apenas alusiva, sem aprofundamento teórico, apenas como requisito genérico

de uma conduta esperada.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 1998/DF - DISTRITO FEDERAL

temos a seguinte ementa:

AçÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 6º DA LEI 9648/98 E 6º DA MEDIDA PROVISÓRIA 1819-1/99. PROGRAMAS DE PRIVATIZAçÃO DA UNIÃO, DOS ESTADOS, DO DISTRITO FEDERAL E DOS MUNICÍPIOS. INCLUSÃO DE EMPRESAS PÚBLICAS E DE SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA. LEVANTAMENTO CONTÁBIL. FIXAçÃO DE PRAZO DISTINTO DO

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A MORALIDADE ADMINISTRATIVA E SUA PERCEPçÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

PREVISTO PARA AS EMPRESAS EM GERAL. OFENSA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. AFRONTA AO §1º E INCISO II DO ARTIGO 173 DA CONSTITUI-çÃO. ALEGAçÃO IMPROCEDENTE. 1. Empresas públicas e sociedades de economia mista sujeitas a processo de privatização. Sujeição a procedimentos distintos e prazos diferenciados para a elaboração do balanço contábil em relação às empresas privadas em geral. Ofensa ao princípio da isonomia. Inexistência. O processo de privatização das empresas públicas e das sociedades de economia mista é distinto daquele realizado pelas empresas privadas quando submetidas à incorporação, fusão ou cisão, dadas as exigências peculiares do programa de desestatização e da cogente observância dos princípios moralizadores que regem os atos da administração pública, sob pena de invalidação. 2. Empresas públicas e sociedades de economia mista. Prazo diferenciado daquele previsto para as empresas privadas para apresentação de balanço contábil. Afronta ao §1º e inciso II do artigo 173 da Constituição. Alegação improcedente. A norma impugnada não procedeu à alteração do regime próprio das empresas públicas e sociedades de economia mista, limitando-se à fixação de prazo específico para a conclusão do levantamento contábil em razão do programa de desestatização. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

O trecho sobre a moralidade administrativa está no recorte abaixo:

A tese de ofensa aos princípios da moralidade, legalidade e da impes-soalidade administrativa igualmente não se sustenta. Sequer logrou o requerente fundamentar adequadamente a ação quanto a esses aspectos, dado que não é possível, a partir dos argumentos expendidos na petição inicial e do que até aqui foi deduzido, concluir que a norma em exame atente contra os princípios que regem a Administração Pública, especialmente porque no caso se cogita apenas da constitucionalidade de preceito que versa sobre o prazo de balanços das entidades com participação estatal, e não da legalidade ou conveniência das privatizações efetuadas no País. (Grifos nossos)

Algo curioso revela-se aqui, como pode-se observar até o presente momento,

muito raramente a Suprema Corte brasileira esmiúça o conceito ou a aplicabilidade

do princípio da moralidade administrativa, entretanto o i. Ministro ao cobrar com

vigor o detalhamento das razões as quais levaram o peticionante à aduzir a não

observância à aqueles. Nos parece um pedido desproporcional frente a costumeira

conduta do STF.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1723 MC/RS - RIO GRANDE DO SUL

temos a seguinte ementa:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. VEÍCULOS: INSPEçÃO. CONCESSÃO. LICITA-çÃO: EXCLUSÃO DE TRANSPORTADORAS. Lei 10.848, de 20.08.96, do Estado do Rio Grande do Sul, art. 7º. I. - O art. 7º da Lei 10.848, de 1996, do Estado do Rio Grande do Sul, exclui da licitação as transportadoras,

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MARTINHO RODRIGUES VASCONCELOS NETO

licitação que tem por finalidade a escolha de concessionária dos serviços públicos de inspeção de segurança de veículos. Inocorrência, ao primeiro exame, de relevância na argüição de inconstitucionalidade. II. - Cautelar indeferida.

O trecho relativo ao princípio vergastado no presente estudo, recortado do voto

do relator, segue:

O mesmo pode ser dito relativamente ao inc. XXI do art. 37, por isso que está-se tratando desiguais com desigualdade. Finalmente, no que toca ao art. 170, IV (livre concorrência), importa dizer que esta se realiza, evidentemente, com observância dos princípios outros consagrados na Constituição, como da igualdade e da moralidade administrativa. Ora, permitir que uma participe dessa fiscalização, implica ofensa ao princípio da moralidade administrativa

Uma visão sucinta, entretanto, pertinente, fora apresentada quando ao princípio

da moralidade administrativa. De início ressalta-se a conexão entre um princípio

regulador de mercado, o da livre concorrência, com a moralidade administrativa.

No caso a restrição do mercado aberto à licitação referenciada na ementa não

teria o condão de macular a moralidade dos atos da administração, na verdade

os enlevaria, posto que restringe a possibilidade da unipessoalidade do agente

fiscalizador e fiscalizado. Observe-se que no voto o Relator individualiza a conduta

que em tese ofenderia a moralidade administrativa, entretanto não se preocupa em

estabelecer o conceito abalizar desta ao caso concreto. Apesar da conduta delimitada

e a significação da ofensa à moralidade, resta deficiente o supedâneo teórico no

corpo decisório.

Aqui observamos a maior relevância do princípio da moralidade administrativa

no exame realizada para a produção da decisão. O caso concreto no conjunto de

acórdãos elencados é analisado e pareado ao ato em si do agente público de forma

que se os meça diante da finalidade pública. Estabelece-se que a moralidade, ao

lado dos outros princípios constitucionais norteadores da administração pública, são

salvaguardas das características e finalidades da Licitação, sendo esta uma norma

defluida destes princípios, disciplinando a compra pública para o melhor resultado

possível na ótica do interesse público.

Ademais, de forma geral, em todos os julgados, a maioria dos membros do

Supremo entende que a moralidade administrativa e todos os outros princípios

elencados no art. 37 da Constituição Federal devem ser estritamente observados

no cumprimento do contrato decorrente de licitação pública, entretanto permanece

o restrito aprofundamento do tema em estudo.

Já os acórdãos ADI 4.178 – REF – MC/GO, ADI 4.125/TO, RE 190.264/RJ, RE

229.450/RJ e ADI 842-MC/DF são adstritos à matéria de concurso público.

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A MORALIDADE ADMINISTRATIVA E SUA PERCEPçÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

No Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4178

MC-REF/GO – GOIÁS, temos a seguinte ementa:

1. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Art. 16, incs. II, III, V, VIII, IX e X, da Lei nº 13.136/97, do Estado de Goiás. Concurso público. Ingresso e remoção nos serviços notarial e de registro. Edital. Pontuação. Critérios ordenados de valoração de títulos. Condições pessoais ligadas à atuação anterior na atividade. Preponderância. Inadmissibilidade. Discriminação desarrazoada. Ofensa aparente aos princípios da isonomia, impessoalidade e moralidade administrativa. Liminar concedida. Medida referendada. Para fins de concessão de liminar em ação direta, aparentam inconstitucionalidade as normas de lei que, prevendo critérios de valoração de títulos em concurso de ingresso e remoção nos serviços notariais e de registro, atribuam maior pontuação às condições pessoais ligadas à atuação anterior nessas atividades. 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Art. 16, incs. II, III, V, VIII, IX e X, da Lei nº 13.136/97, do Estado de Goiás. Concurso público. Remoção nos serviços notarial e de registro. Edital. Pontuação. Critérios ordenados de valoração de títulos. Condições pessoais ligadas à atuação anterior na atividade. Marco inicial. Data de ingresso no serviço. Interpretação conforme à Constituição. Liminar concedida para esse efeito. Medida referendada. Para fins de concessão de liminar em ação direta, devem ter por marco inicial a data de ingresso no serviço, em interpretação conforme à Constituição, as condições pessoais ligadas à atuação anterior na atividade, objeto de lei que estabelece critérios de valoração de títulos em concurso de remoção nos serviços notariais e de registro. 3. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Art. 16, inc. V, da Lei nº 13.136/97, do Estado de Goiás. Concurso público. Serviços notarial e de registro. Edital. Pontuação. Critérios ordenados de valoração de títulos. Aprovação anterior em concurso de ingresso num daqueles serviços. Título admissível. Impossibilidade, porém, de sobrevalorização e equiparação ao de aprovação em concurso para cargo de carreira jurídica. Limitação ditada por interpretação conforme à Constituição. Liminar referendada com tal ressalva. Para fins de concessão de liminar em ação direta, norma que preveja, como título em concurso para ingresso no serviço de notas ou de registro, aprovação anterior em concurso para os mesmos fins, deve ser interpretada sob a limitação de que esse título não tenha valor superior nem igual ao de aprovação em concurso para cargo de carreira jurídica.

O princípio da moralidade administrativa é abordado no seguinte trecho:

Em que pese a manifestação do douto Procurador-Geral e dos amici curiae no sentido de que se exclua apenas a expressão “ligados aos serviços notariais ou de registro”, objeto do inc. III, mantendo-se a previsão de valoração de títulos baseados nas duas hipóteses do inc. li, vislumbro risco de tratamento gravoso aos princípios constitucionais da igualdade, da impessoalidade e da moralidade administrativa.

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MARTINHO RODRIGUES VASCONCELOS NETO

A subsistência de ambos os incisos pode levar ao favorecimento dos candidatos já envolvidos com os serviços notariais e de registro, até porque hipotético acervo de conhecimento e de experiência, pressu-posto à participação em eventos e à apresentação de teses a respeito, deve ser demonstrado no teor das provas, objetivas ou discursivas, preordenadas, que são, a avaliá-lo.

Aqui temos a identificação da conduta, dar vantagem a determinado grupo de

pessoas em prova de títulos de concurso público, e a visão, pelo relator, de que a

manutenção do dispositivo que à confere é ofensiva a impessoalidade, ao passo

que a conduta personaliza um grupo ao qual unicamente teria possibilidade de

pontuar na prova de títulos do referido concurso, e de forma genérica existe ofensa

à moralidade administrativa. Percebendo que a conduta vergastada tende mais à

pessoalidade, insistimos no fato de que não temos a fundamentação da ofensa à

moralidade nem a delimitação desta frente ao caso concreto.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4125/TO – TOCANTINS, temos a

seguinte ementa:

AçÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EXPRESSÃO “CARGOS EM COMISSÃO” CONSTANTE DO CAPUT DO ART. 5º, DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 5º E DO CAPUT DO ART. 6º; DAS TABELAS II E III DO ANEXO II E DAS TABELAS I, II E III DO ANEXO III à LEI N. 1.950/08; E DAS EXPRESSõES “ATRIBUIçõES”, “DENOMINAçõES” E “ESPECIFICAçõES” DE CARGOS CONTIDAS NO ART. 8º DA LEI N. 1.950/2008. CRIAçÃO DE MILHARES DE CARGOS EM COMISSÃO. DESCUMPRIMENTO DOS ARTS. 37, INC. II E V, DA CONSTITUIçÃO DA REPÚBLICA E DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. AçÃO JULGADA PROCEDENTE. 1. A legislação brasileira não admite desistência de ação direta de inconstitucionalidade (art. 5º da Lei n. 9.868/99). Princípio da Indisponibilidade. Precedentes. 2. A ausência de aditamento da inicial noticiando as alterações promovidas pelas Leis tocantinenses ns. 2.142/2009 e 2.145/2009 não importa em prejuízo da Ação, pela ausência de comprometimento da essência das normas impugnadas. 3. O número de cargos efetivos (providos e vagos) existentes nos quadros do Poder Executivo tocantinense e o de cargos de provimento em comissão criados pela Lei n. 1.950/2008 evidencia a inobservância do princípio da proporcionalidade. 4. A obrigatoriedade de concurso público, com as exceções constitucionais, é instrumento de efetivação dos princípios da igualdade, da impessoalidade e da moralidade administrativa, garanti-dores do acesso aos cargos públicos aos cidadãos. A não submissão ao concurso público fez-se regra no Estado do Tocantins: afronta ao art. 37, inc. II, da Constituição da República. Precedentes. 5. A criação de 28.177 cargos, sendo 79 de natureza especial e 28.098 em comissão, não tem respaldo no princípio da moralidade administrativa, pressuposto de legitimação e validade constitucional dos atos estatais. 6. A criação de cargos em comissão para o exercício de atribuições técnicas e operacionais, que dispensam a confiança pessoal da autoridade pública

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no servidor nomeado, contraria o art. 37, inc. V, da Constituição da República. Precedentes. 7. A delegação de poderes ao Governador para, mediante decreto, dispor sobre “as competências, as atribuições, as denominações das unidades setoriais e as especificações dos cargos, bem como a organização e reorganização administrativa do Estado”, é inconstitucional porque permite, em última análise, sejam criados novos cargos sem a aprovação de lei. 8. Ação julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do art. 5º, caput, e parágrafo único; art. 6º; das Tabelas II e III do Anexo II e das Tabelas I, II e III do Anexo III; e das expressões “atribuições”, “denominações” e “especificações” de cargos contidas no art. 8º da Lei n. 1.950/2008. 9. Definição do prazo máximo de 12 (doze) meses, contados da data de julgamento da presente ação direta de inconstitucionalidade, para que o Estado faça a substituição de todos os servidores nomeados ou designados para ocupação dos cargos criados na forma da Lei tocantinense n. 1.950.

Aqui vale destacar situação ímpar. A ADI fora proposta por partido político de

oposição ao governo à época, aludindo a inconstitucionalidade de dispositivo legal

qual criaria mais de 35.000 (trinta e cinco mil) cargos comissionados no Estado

do Tocantins. Pois bem, ao ver-se no poder por força da cassação do Governador

atacado na ADI, o partido político qual solicitara a inconstitucionalidade, solicita a

desistência da ação. Será que o pedido de desistência, além da questão de direito

envolvida, não merecia uma maior atenção também por afrontar a moralidade?

O trecho que disserta sobre o princípio da moralidade administrativa na decisão

é o que segue:

Válido, nesse ponto, retomar o que asseverado pelo Ministro Celso Mello no julgamento da Medida Cautelar da Ação Direta de Inconstitu-cionalidade 2.661/MA, quando destacou que “o princípio da moralida-de administrativa enquanto valor, constitucional revestido de caráter ético-jurídico condiciona a legitimidade e a validade dos atos estatais. Para o eminente Ministro, acompanhado por seus pares, a atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético--jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental; que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado. O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle ju-risdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valo-res éticos que devem pautar o comportamento dos, agentes e órgãos governamentais”·(ADI 2.661- MC/MA, Tribunal Pleno, DJ 23.8.2002)

Conforme pontuei, “a moralidade administrativa é, pois, princípio jurídico que espraia num conjunto de normas, definidoras dos com-portamentos éticos do agente público, cuja atuação se volta a um fim legalmente delimitado, em conformidade com a razão de Direito

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MARTINHO RODRIGUES VASCONCELOS NETO

exposta no sistema normativo(...). O que se põe em foco, quando se cuida de moralidade administrativa, é a confiança do povo no Poder institucionalizado e a legitimidade de seu desempenho quanto à ges-tão da coisa Pública” (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Cons-titucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 191).A criação de 28.177 cargos, ·sendo 79 de natureza especial e 28.098 em comissão com as alterações promovidas pelas Leis tocantinenses n. 2.232/2009 e 2.145/2009, respectivamente, por certo não tem respaldo no princípio da moralidade administrativa, pressuposto de legitimação e validade constitucional dos atos emanados do Estado, pelo que há· de ser, por mais esse fundamento; considerada incons-titucional.

A citação inicia-se com a fala do i. Ministro Celso de Melo em outra ação, daqui podemos extrair um primeiro conceito: “o princípio da moralidade administra-tiva enquanto valor, constitucional revestido de caráter ético-jurídico condiciona a legitimidade e a validade dos atos estatais”, o seja o princípio aqui estudado é um valor, uma propriedade essencial e intrínseca do ordenamento, qual garantiria uma esperada segurança jurídica à população, aproximando-se de uma visão de valor do antropólogo Clyde Kluckhohn (1970), que o conceitua como “uma concepção do desejável explícita e implícita, característica de um indivíduo ou grupo, e que influencia a seleção dos modos, meios e fins da ação”.

A Min. Cármen Lúcia também dá profundidade ao tema do princípio da imoralidade. A alça a condição derradeira de legitimidade dos atos públicos, o qual se difunde por todo ordenamento jurídico, sendo normatizador da conduta ética esperada e necessária do administrador público. Na autocitação podemos extrair o seguinte conceito de Moralidade Administrativa: “a moralidade administrativa é, pois, princípio jurídico que espraia num conjunto de normas, definidoras dos comportamentos éticos do agente público, cuja atuação se volta a um fim legalmente delimitado, em conformidade com a razão de Direito exposta no sistema normativo” (ANTUNES,1994). Por fim ressalte-se que a moralidade administrativa tem peso relevante na tomada de decisão no julgamento desta ADI.

No Recurso Extraordinário 190264 / RJ - RIO DE JANEIRO, temo a seguinte ementa:

Administrativo. Concurso Público. Art. 77, VII, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Inconstitucionalidade. Iniciativa reservada ao chefe do Executivo para edição de leis que disponham sobre o regime jurídico dos servidores públicos. Ofensa ao princípio da separação dos poderes. Precedente RE 229.450, MAURÍCIO, julgado em 10.02.2000. Recursos conhecidos e providos.

Neste acórdão a moralidade administrativa é utilizada apenas como uma

composição gramatical na frase, com nenhuma contribuição ao presente estudo. O

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A MORALIDADE ADMINISTRATIVA E SUA PERCEPçÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

mesmo pode-se afirmar do Recurso Extraordinário 229.450/RJ, cujo tema também

é semelhante ao abordado anteriormente.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 842-MC/DF, temos a seguinte ementa:

Ação direta de inconstitucionalidade - lei n. 8.541/92 (art. 56 e pars.) - alegada ofensa ao princípio constitucional do concurso público e a regra de validade temporal das provas seletivas (CF, art. 37, II e III) - ato de efeitos concretos - inidoneidade objetiva dessa espécie jurídica para fins de controle normativo abstrato - juízo de constitucionalidade dependente da previa análise de atos estatais infraconstitucionais - inviabilidade da ação direta - não-conhecimento. - atos estatais de efeitos concretos, ainda que veiculados em texto de lei formal, não se expõem, em sede de ação direta, a jurisdição constitucional abstrata do supremo tribunal federal. A ausência de densidade normativa no conteúdo do preceito legal impugnado desqualifica-o enquanto objeto juridicamente inidôneo - para o controle normativo abstrato. - a ação direta de inconstitucionalidade não constitui sucedâneo da ação popular constitucional, destinada, esta sim, a preservar, em função de seu amplo espectro de atuação jurídico-processual, a intangibilidade do patrimônio público e a integridade do princípio da moralidade administrativa (CF, art. 5. LXXIII). - não se legitima a instauração do controle normativo abstrato quando o juízo de constitucionalidade depende, para efeito de sua prolação, do prévio cotejo entre o ato estatal impugnado e o conteúdo de outras normas jurídicas infraconstitucionais editadas pelo poder público. A ação direta não pode ser degradada em sua condição jurídica de instrumento básico de defesa objetiva da ordem normativa inscrita na constituição. A valida e adequada utilização desse meio processual exige que o exame “in abstracto” do ato estatal impugnado seja realizado exclusivamente a luz do texto constitucional. Desse modo, a inconstitucionalidade deve transparecer diretamente do texto do ato estatal impugnado. A prolação desse juízo de desvalor não pode e nem deve depender, para efeito de controle normativo abstrato, da previa analise de outras espécies jurídicas infraconstitucionais, para, somente a partir desse exame e num desdobramento exegético ulterior, efetivar-se o reconhecimento da ilegitimidade constitucional do ato questionado.

A moralidade administrativa é citada apenas na ementa, não existe nenhuma

profundidade relevante no relatório ou votos da presente ADI quais possam abalizar

qualquer análise no presente estudo. A questão é fundamentalmente a densidade

normativa de dispositivo legal.

4.6 Moralidade administrativa nas decisões afeitas a julgados sobre nepotismo

Os acórdãos aqui analisados foram: ADI 1.521/RS, RE579.951/RN, ADC 12/

DF, ADC12MC/DF, MS 23.780/MA e ADI1.521-MC/RS.

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Neste ponto do presente estudo, o leitor pôde acompanhar o posicionamento

de vários julgados quais não atacam com profundidade o tema de estudo. Na maioria

das vezes utiliza-se a Corte Suprema apenas o vocábulo “moralidade administrativa”

como adorno ou mesmo adjetivo negativo a uma conduta que, de alguma forma,

desobedece aos demais princípios expressos ou implícitos da administração pública.

Destarte, evitando a enfadonha leitura de ementas e manifestações que venham

apenas a referenciar semanticamente o princípio, doravante ater-nos-emos aos

julgados relevantes.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.521/RS traz, no momento destinado à

discussão da matéria, qual trata de dispositivo em constituição estadual que permite

a nomeação de parentes de dirigentes públicos em cargos comissionados sem a

observância dos pressupostos de nepotismo, apresentou observação feita ainda em

1997, em processo de conteúdo semelhante. Segue excerto:

É esse o contexto no qual exsurgem as leis que, em última instância, indo ao encontro do anseio popular pela afirmação definitiva da moralidade como princípio norteador das instituições públicas, atuam como diques à contenção da ancestral ambição humana. A um só tempo, mediante normas desse feitio, presta-se homenagem à justiça, na mais basilar acepção do termo, permitindo-se a quem de direito alcançar o patamar pelo qual pagou o preço do esforço, da dedicação e da competência. Por outro lado, usando da cartilha dos diletantes do Neoliberalismo, tão em voga nas altas esferas dirigentes do País, cabe lembrar que o mérito é a fórmula eficiente para chegar-se à qualidade total desejada aos serviços públicos, ditos essenciais. Ora, como é possível compatibilizar tais assertivas com a possibilidade de nomeação de parentes próximos para ocupar importantes – e até estratégicos – cargos de direção nas repartições públicas comandadas pelo protetor? (Sem grifos no original)

Nota-se uma interpretação valorativa dada ao princípio. Aproximando-se à uma

carga teórica pós-positivista, o Ministro apresenta a moralidade administrativa como

propulsor da legislação qual contingência a ambição humana, colocando, por meio

de uma barreira aceita pela sociedade como justa, empecilho a privilégios por parte

de detentores de funções públicas. Mais a frente na mesma referência, afirma que a

atuação legislativa frente a moralidade, no caso, é preservadora da própria res pública.

Em que pese a ausência de aprofundamento teórico, observa-se que o princípio

da moralidade, aliado à isonomia e impessoalidade, teve relevância significativa na

valoração da conduta e fora utilizado como fundamento para a decisão.

O Recurso Extraordinário 579.951/RN, no voto do Ministro Relator quando

este cita a discussão de medida liminar do mesmo processo, apresenta uma série

de conceitos e observações relacionadas ao aprofundamento do tema “moralidade

administrativa:

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Essa moralidade não é elemento do ato administrativo, como ressalta GORDILLO, mas compõe-se dos valores éticos compartilhados cultural-mente pela comunidade e que fazem parte, por isso, da ordem jurídica vigente.

A indeterminação semântica dos princípios da moralidade e da impes-soalidade não podem ser um obstáculo à determinação da regra da proibição ao nepotismo. Como bem anota GARCÍA DE ENTERRIA, na estrutura de todo conceito indeterminado é identificável ‘um núcleo fixo’ (Begriffkern) ou ‘zona de certeza’, que é configurada por dados prévios e seguros, dos quais pode ser extraída uma regra aplicável ao caso. A vedação ao nepotismo é regra constitucional que está na zona de certeza dos princípios da moralidade e da impessoalidade.

Esta fala, da lavra do Ministro Gilmar Mendes, nos permite entender que

por ser uma norma complexa, densa e indeterminada, o conceito de moralidade

administrativa pode ter em sua acepção uma carga de indeterminação, entretanto,

a fim de se fugir da relativização do conceito e da impossibilidade de falseamento

do conceito para exclusão de condutas, admitiu-se, segundo a doutrina de Garcia de

Enterria, um núcleo fixo do qual pode-se aplicar de imediato em situações concretas.

Mesmo sem explicitar tal núcleo, esta manifestação do Ministro nos faz tender

a acreditar que o Supremo já detém, mesmo que de forma quase “inconsciente”, um

conceito fixo do que é uma conduta que fere a moralidade administrativa, talvez assim

explique-se a quantidade de citações apenas ao vocábulo “moralidade administrativa”.

Na mesma decisão, o Ministro Relator cuida de citar a Ministra Cármen Lúcia

em seu livro Princípios Constitucionais da Administração Pública. (Belo Horizonte:

Del Rey, 1994. pp. 213-214) em trecho que apresenta um conceito acerca da

funcionalidade da moralidade administrativa:

O princípio da moralidade administrativa tem uma primazia sobre os outros princípios constitucionalmente formulados, por constituir-se, em sua exigência, de elemento interno a fornecer a substância válida do comportamento público. Toda atuação administrativa parte deste princípio e a ele se volta. Os demais princípios constitucionais, expressos ou implícitos, somente podem ter a sua leitura correta no sentido de admitir a moralidade como parte integrante do seu conteúdo. Assim, o que se exige, no sistema de Estado Democrático de Direito no presente, é a legalidade moral, vale dizer, a legalidade legítima da conduta administrativa.

De posse desta carga teoria o Relator apresenta sua visão. Inicialmente falando

dos princípios de uma forma geral para, logo após, apresentar sua visão sobre o

princípio hora estudado:

É que os princípios constitucionais, longe de configurarem meras reco-mendações de caráter moral ou ético, consubstanciam regras jurídicas

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de caráter prescritivo, hierarquicamente superiores às demais e “posi-tivamente vinculantes”, como ensina Gomes Canotilho. [...]

Ora, tendo em conta a expressiva densidade axiológica e a elevada carga normativa que encerram os princípios abrigados no caput do art. 37 da Constituição, não há como deixar de concluir que a proibição do nepotismo independe de norma secundária que obste formalmente essa reprovável conduta. Para o expurgo de tal prática, que lamenta-velmente resiste incólume em alguns “bolsões” de atraso institucional que ainda existem no País, basta contrastar as circunstâncias de cada caso concreto com o que se contém no referido dispositivo constitu-cional. [...]Desse modo, admitir que apenas ao Legislativo ou ao Executivo é dado exaurir, mediante ato formal, todo o conteúdo dos princípios consti-tucionais em questão, seria mitigar os efeitos dos postulados da su-premacia, unidade e harmonização da Constituição, subvertendo-se a hierarquia entre a Lei Maior e ordem jurídica em geral, “como se a Carta Magna fosse formada por um conjunto de cláusulas vazias e o legislador ou o administrador pudessem livremente dispor a respeito de seu conteúdo”. [...]Esses princípios, dentre os quais destaco o da moralidade e o da im-pessoalidade, exigem que o agente público paute a sua conduta por padrões éticos que têm corno fim último lograr a consecução do bem comum, seja qual for a esfera de poder ou o nível político-administrati-vo da Federação em que atue.

Observe a defesa do Ministro a aplicação direta dos princípios constitucionais,

de forma que não seria necessária uma norma que o materializasse em uma conduta

específica para que este fosse aplicado e cobrado juridicamente.

Na delimitação do conceito de moralidade administrativa o Ministro afirma que

a moralidade é a percepção da conduta frente à necessidade do alcance da conduta

na concussão do bem comum.

Poderíamos então aduzir que a moralidade administrativa está voltada a um

comportamento/conduta ético/a que extravasa o egoísmo pessoal do agente público?

Continuando o raciocínio apresentado no acordão, chegamos a base teórica

do raciocínio do Relator:

De fato, em se tratando de gestão dares publica, como ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a atuação do administrador, ainda que, em muitos casos, esteja em consonância com o sentido literal da lei, caso se revele ofensiva à moral, aos bons costumes, ao poder-dever de probidade, às idéias de justiça e eqüidade e ao senso comum de ho-nestidade, estará em evidente confronto com o princípio da moralida-de administrativa. Afinal, como diziam os antigos romanos, non omne quod licet honestum est.3

3 Nem tudo que é lícito, é honesto.

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Sim, porque como ensina Humberto Ávila, “o princípio da oralidade administrativa estabelece um estado de confiabilidade, honestidade, estabilidade e continuidade nas relações entre o poder público e o par-ticular, para cuja promoção são necessários comportamentos sérios, motivados, leais e contínuos”.

Conclui, por fim, pela autoaplicabilidade dos princípios constitucionais:

Como se vê, as restrições impostas à atuação do administrador público pelo princípio da moralidade e demais postulados contidos no referido dispositivo da Constituição são auto-aplicáveis, visto que trazem em si carga de normatividade apta a produzir efeitos jurídicos, permitindo, em conseqüência, ao Judiciário exercer o controle dos os atos que vulnerem os valores fundantes do texto constitucional.

O tema fora dado como de repercussão geral com a fixação da seguinte tese:

A vedação ao nepotismo não exige a edição de lei formal para coibir a prática, dado que essa proibição decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal. Obs: Redação da tese aprovada nos termos do item 2 da Ata da 12ª Sessão Administrativa do STF, realizada em 09/12/2015.

Na Ação Direta de Constitucionalidade 12/DF, encontramos um aprofundamento

teórico, ausente no voto do relator, no voto do Ministro Celso de Melo:

Sabemos todos que a atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consa-gração constitucional do princípio da moralidade administrativa, que se qualifica como valor constitucional impregnado de substrato ético e erigido à condição de vetor fundamental no processo de poder, con-dicionando, de modo estrito, o exercício, pelo Estado e por seus agen-tes, da autoridade que lhes foi outorgada pelo ordenamento normativo. Esse postulado, que rege a atuação do Poder Público, confere substân-cia e dá expressão a uma pauta de valores éticos, nos quais se funda a própria ordem positiva do Estado. [...]

É por essa razão que o princípio constitucional da moralidade adminis-trativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle de todos os atos do poder público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos órgãos e dos agentes governamentais, não importando em que instância de poder eles se situem.A prática do nepotismo, tal como corretamente repelida pela Resolu-ção CNJ nº 07/2005, traduz a própria antítese da pauta de valores cujo substrato constitucional repousa no postulado da moralidade adminis-trativa, que não tolera - porque incompatível com o espírito republicano

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e com a essência da ordem democrática – o exercício do poder “pro domo sua”.4

Podemos extrair que o Ministro fixa a moralidade como padrões éticos-jurídicos

vinculados a atividade estatal inclusive como seu fundamento impregnado no

ordenamento jurídico vigente. Afirma também que o princípio em estudo é fator de

controle dos padrões éticos das atividades estatais. Por fim individualiza uma conduta

ético-juridicamente reprovável, o nepotismo, como ofensiva ao princípio e devendo

ser controlada juridicamente com base no mesmo.

Nos demais acórdãos não vemos nenhuma inovação ou aprofundamento qual

pudesse ser destacado e contribuísse para nosso estudo.

Fato é que o tema “nepotismo” traz consigo enorme carga ético-jurídica, sendo

a moralidade e a impessoalidade os princípios mais adensados na fundamentação

dos votos apresentados. Destarte a ofensa à moralidade normativa é fator prepon-

derante para a carga decisória, sendo quase um fiel da balança, para onde pende

as declarações de conformidade ou não das normas e condutas com os preceitos

principiológicos da Constituição Federal.

4.7 Moralidade Administrativa nas decisões afeitas à moralidade dos agentes públicos

Os acórdãos aqui analisados foram: RE 146.331 – Edv /SP, ADI 2.979/ES,

MS 23.981/DF, ADI 769-MC/MA e ADI 380 – MC/DF.

No Embargo de Divergência no Recurso Extraordinário 146.331, temos apenas a

citação do termo “moralidade administrativa”. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade

2.979/ES existe apenas uma frase do voto do relator que diz que a conduta em

nada ofende o princípio da moralidade administrativa. Na Ação Direta de Inconstitu-

cionalidade 769-MC/MA o relator coloca a moralidade administrativa como objeto

de preservação da ação popular, sem nenhum aprofundamento.

No mandado de Segurança 23.981/DF afirma o Ministério Público Federal - MPF,

em uma citação deste pela Ministra Ellen Gracie, que a concessão de diária para

comparecimento de solenidade de posse de autoridade por servidor de tribunal em

nada ofende a moralidade administrativa, sem aprofundamento relevante.

Não encontramos qualquer relevância didática ou teórica no referenciamento ao

princípio da moralidade administrativa nos casos agrupados aqui, portanto insta-nos

afirmar que tal princípio é apenas tangente ao tema.

4 Em causa própria.

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4.8 Moralidade Administrativa nas questões processuais

Os acórdãos aqui analisados foram: ACO 622-QO/RJ, Pet. 3.923-QO/SP, AO693/

AC e ADI 769 – MC/MA.

Na Questão de Ordem na Ação Cível Originária 622/RJ, e também de forma

bastante semelhante na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade

69/MA, temos a moralidade administrativa utilizada como elemento processual de

atração da competência do STJ. Destacamos no voto do Ministro Ilmar Galvão uma

classificação do objeto abarcado pela moralidade administrativa:

Não me convenço, portanto, seja o autor popular substituto processual, também pedindo as vênias de estilo ao eminente Ministro Pertence para não concluir, como Sua Excelência, seja a ação popular instrumento pelo qual se defende direito do Estado; antes, o direito que se postula, naquela, é direito do cidadão e também da sociedade. Tanto assim parece ser que ela se presta à defesa da moralidade administrativa, que não é patrimônio estatal, mas social e político do conjunto dos cidadãos que tem o direito de viver em sociedade segundo padrões éticos e valores de Justiça nos quais crê.

Já na Questão de Ordem na Petição 3.923/SP, apesar de extenso voto sobre

a probidade, em nada se aprofundou a moralidade administrativa, aqui a questão

versava sobre foro de prerrogativa de função.

Nos casos analisados, o princípio da moralidade pública é declinado como

um interesse jurídico dos cidadãos na manutenção da justiça social na sociedade,

entretanto não são apresentados de forma a ser elemento essencial das decisões

citadas.

5 Conclusão

Nos deparamos com os seguintes achados. Inicialmente a percepção da

moralidade administrativa pelos Ministros do STF é de sua suma importância,

espraia-se por todo o ordenamento jurídico brasileiro, inclusive infraconstitucional,

e estabelece condutas necessárias à administração pública.

Entretanto, deve-se observar que não existe um rol preestabelecido de condutas

que ensejam, necessariamente, uma afronta à moralidade administrativa, mas

sim comportamentos analisados casa a caso frente a moral e ética fronteada aos

pressupostos republicanos e coadunados à manutenção do interesse público nos

atos e fatos administrativos.

Deve-se notar ainda que é percebido pelos Ministros um núcleo fixo do princípio

do qual pode-se aplicar de imediato em situações concretas independente de uma

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norma regulamentadora. Nesta espécie o entendimento fora aflorado e firmado

em discussão sobre nepotismo, onde a discussão sobre o princípio em estudo é

adensada de forma atípica. Explico. Normalmente os Ministros do Supremo se referem

ao princípio textualmente, sem carga semântica equivalente à aludida importância

a este. Já nos acórdãos cujo tema é nepotismo, arvoram-se as teses e referências

bibliográficas. Estas, entretanto, em sua maioria interpretativas. Pouco se extrai

dos autores clássicos da filosofia jurídica mesmo que como ponto de partida para

o raciocínio declinado.

Entretanto, de forma geral, não se delimita o conceito de moralidade adminis-

trativa, utilizando-a como um adjetivo ou aproveitando-se da condição vaga de seu

conceito para colocá-la como normativa genérica validadora de suas opiniões, não

nos parecendo que haja um esforço, mesmo que didático, para definir tal princípio.

Longe de imaginar-se a imposição logica de uma regra disjuntiva, segundo o

conceito que Dworkin (2002) lecionou, mas sim, já demonstrando o anseio do autor

deste texto como solução para o problema apresentado, propõe-se a não utilização

descriminada de um princípio como expressão adjetiva.

Irretocáveis os julgados sobre improbidade, inclusive o de repercussão geral,

quais realmente analisam a conduta e acolhem os princípios constitucionais como

o ponto inicial ou de alta relevância na formatação lógica da resolução do conflito

judicial. Essa conduta se aproxima muito do que fora tomado por Dworkin (Idem,

ibidem) como exemplo de argumentação baseada em princípios quando cita o

caso Riggs vs. Palmer, julgado no tribunal de New York em 1889, onde tomou-se a

decisão que o réu não herdaria os bens de sua vítima, mesmo sendo esta herança,

em tese, legal.

Não há de que se falar em falta de qualidade dos julgados, mas sim da ausência

de densidade teórica na aplicação do princípio da moralidade. Esse empobrecimento

é dissonante da mais alta corte do pais. Neste ponto apenas um esforço exegético de

cada um dos Ministro do Supremo Tribunal Federal, realizando uma autoconscientização

crítica poderia alterar tal panorama.

Administrative morality and its perception in the Supreme Federal Court

Abstract: The intention of the present work is the verification of the conceptual understanding of the administrative morality extracted from the decisions of the Federal Supreme Court through the investigation and analysis of the judgments of such court. In parallel, it will be attempted to extract and analyze the theoretical framework used for the crystallization of the said concept by confronting the doctrinal interpretation found try to verify a concept on the constitutional principle within the scope of the Supreme Court.

Keywords: Administrative Law. Public Law. Constitutional Principles of Administration. Principle of Morality. Admirative Morality. Article 37 of the Brazilian Federal Constitution.

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A MORALIDADE ADMINISTRATIVA E SUA PERCEPçÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

VASCONCELOS NETO, Martinho Rodrigues. A moralidade administrativa e sua percepção no Supremo Tribunal Federal. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 18, n. 70, p. 167-201, jul./set. 2020.

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