A Montagem Da Pulsão e o Quadro Do Fantasma
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Correio da APPOA 242 jan/2015
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Os 100 anos de "Pulses e seus destinos"
Temtica A montagem da pulso e o quadro do fantasma Andr Oliveira Costa
Atravs de dois textos de Freud, Pulso e destinos da pulso (1915) e Uma
criana batida (1919), proponho pensar uma articulao entre dois conceitos
fundamentais da psicanlise: pulso e fantasma. O ponto de partida que a pulso
age como uma fora constante e desenfreada exercida pelo corpo em busca de
satisfao, enquanto que o fantasma funciona como uma tela protetora que
enquadra e delimita essa exigncia, tornando possvel a relao do sujeito com o
Outro. Como ponto em comum, a perda do primeiro objeto que produziu satisfao:
o objeto a. A pulso surge como efeito dessa falta atravs dos orifcios do corpo
e o fantasma vem servir como uma amarrao pela via de representaes de um
real inapreensvel.
No texto Pulses e seus destinos, Freud parece ter clara a ideia de que a
posio primordial do sujeito a da atividade, isto , a pulso buscando
incontrolavelmente sua satisfao atravs dos objetos. Nesse sentido, ele afirma:
No parece ocorrer um masoquismo originrio que no tenha surgido do sadismo
de acordo com a forma descrita (1915/2013, pg. 38). Cabe ao sujeito proteger-se da
pulso atravs de diques morais. Apenas em 1920, como contraposio, a pulso de
morte e o masoquismo originrio vo questionar esse princpio hedonista da
condio humana.
A forma a qual Freud se refere naquela citao segue a seguinte estrutura:
(A) o sadismo a dominao do sujeito sobre o objeto,
(B) o masoquismo do retorno do sadismo ao prprio sujeito e
(C) o sadomasoquismo o objeto se transformando em sujeito.
A partir disso, a montagem da pulso se estrutura como uma gramtica,
conjugando-se na voz ativa, voz passiva e voz reflexiva. No caso da pulso oral, por
exemplo, temos:
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(a) voz ativa = comer Eu como um objeto
(b) voz passiva = ser comido Eu sou comido pelo Outro
(c) voz reflexiva = se fazer ser comido Eu me fao ser comido pelo
Outro
Alm disso, na medida em que a pulso um processo que tem uma meta,
Freud apresenta quatro diferentes destinos para alcan-la:
(1) reverso em seu contrrio,
(2) retorno em direo prpria pessoa,
(3) o recalque e
(4) a sublimao.
Tomamos os dois primeiros destinos para situar os tempos do sujeito no
circuito pulsional, isto , na montagem da pulso. A (1) reverso de uma pulso em
seu contrrio se faz de duas formas:
(I) a mudana da atividade para a passividade
(II) a reverso de seu contedo.
A primeira pode ser encontrada na reverso dos pares opostos (por exemplo,
sadismo/masoquismo, olhar/ser olhado). Ela caracteriza o movimento prprio da
pulso, pois estabelece suas diferentes posies: ativa, passiva e reflexiva. Para
compreender o movimento entre as posies de atividade e de passividade,
tomemos o exemplo do par pulsional olhar/ser olhado. Tambm nele, Freud
diferencia as trs posies da pulso:
(a) o olhar uma atividade dirigida a um objeto estranho;
(b) o objeto desinvestido e o olhar dirigido para a prpria pessoa;
assim, temos a mudana da atividade para a passividade e a posio
passa a de ser olhado;
(c) como consequncia dessa mudana de posio, o objeto estranho
passa a ser o sujeito da ao, para quem a pessoa se exibe a fim de
ser olhada. a posio reflexiva da pulso.
Para Freud, normalmente a finalidade ativa da pulso anterior sua
finalidade passiva. O prazer da produo de dor pelo sdico, por exemplo, uma
posio anterior ao prazer de sofrer dor no masoquismo. Mas, apenas no caso da
pulso escpica h uma fase preliminar passiva e anterior primeira, que ativa:
que a pulso de olhar autoertica no incio de sua atividade, ou seja, ainda que
tendo um objeto, ela o encontra no prprio corpo. S mais tarde ela conduzida
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(pela via da comparao) a trocar esse objeto por um que seja anlogo no corpo
alheio (fase a) (Freud, 1915/2013, p. 41).
Foi pela pulso escpica que Freud situou pela primeira vez a condio de
passividade original do sujeito. No circuito pulsional o olhar do Outro deve ser
anterior ao surgimento do sujeito. Antes de o sujeito ser ativo, antes de ele olhar
para um objeto alheio, h uma fase preliminar passiva de ser objeto do olhar do
Outro: contemplar objeto alheio (prazer ativo de olhar) = o prprio objeto
contemplado por uma outra pessoa (prazer de mostrar/exibicionismo) (Freud,
1915/2013, p. 45). O Outro toma o corpo do sujeito como objeto de seu olhar. Esse
Outro que olha condio para o sujeito se posicionar como algum que olha
ativamente um objeto.
Como a montagem da pulso se estrutura nas vozes ativa, passiva e
reflexiva, o sujeito no aparece nos dois primeiros momentos, mas apenas no
movimento completo do circuito pulsional. O surgimento do sujeito, ento, se realiza
para alm da polaridade atividade-passividade, mas na possibilidade de bascular
entre uma posio e outra, sem se fixar em nenhuma delas.
E a partir dessa temporalidade pulsional possvel pensar as posies de
gozo do sujeito. Assim, Freud retoma o segundo destino da pulso: (II) a mudana
de contedo, do amor para o dio. Freud expande a ambivalncia amor versus dio
para outras oposies. Como a ambivalncia amor versus dio no primordial,
pois o amor a expresso de toda a corrente sexual, esse par pulsional no se
organiza atravs de uma, mas de trs formas:
(i) amor/dio versus indiferena
(ii) prazer desprazer
(iii) amar ser amado
O primeiro par antittico a primeira oposio que nos lana fase psquica
primordial de indiferenciao entre eu e outro. A primeira polaridade se coloca entre
sujeito (eu) versus objeto (mundo externo). No incio, o eu est alheio existncia
do outro. Tudo que lhe satisfaz sentido como prprio e o mundo externo coincide
com o que lhe desagradvel, que no lhe d prazer. O eu, porm, vai comeando
a reconhecer e registrar estmulos prazerosos tambm provindos do lado do
outro/mundo externo. E assim, sob o domnio do princpio do prazer, ele acaba
introjetando para si o que lhe agradvel e expelindo para fora o que lhe causa
desprazer.
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A segunda forma de oposio do par antittico amor versus dio se mostra
associada ao jogo de prazer desprazer. O eu vai registar o prazer que lhe foi
causado por um objeto e, de acordo com seus desejos, ele se pe a reencontr-lo.
O dio, por sua vez, associado a tudo que lhe causa ou causou desprazer. Diante
dessas condies, o eu ativamente provoca uma situao real para trazer os objetos
amados para mais perto de si, pois lhe causam prazer, ou para afastar os objetos
odiados, pois lhe causa desprazer.
A terceira expresso da ambivalncia entre amor versus dio se mostra na
forma amar ser amado. Tomando esse ltimo movimento do destino da pulso
que faz com que ela se transforme em seu contrrio, segue-se o que vimos a
respeito dos trs tempos da montagem pulsional. A ambivalncia amar ser
amado, ento, se expressa nas formas amar (voz ativa), ser amado (voz passiva)
e se fazer ser amado (voz reflexiva). E, a partir disso, Freud correlaciona as
posies de atividade e passividade com as posies sexuais masculina e feminina,
respectivamente. O sujeito surge apenas no terceiro tempo, na medida em que ele
no est fixado em nenhuma posio, mas pode gozar em qualquer lugar na relao
que ele estabelece com o Outro.
A posio de gozo se instaura na montagem da pulso. Aquele que goza
pode faz-lo pela posio passiva de ser gozado, pela posio ativa de gozar ou
pela posio reflexiva de se fazer ser gozado pelo Outro. O sujeito no pode estar
fixado em nenhuma dessas posies. Ele no se resume a um nico enunciado,
mas pode circular por todos.
Alm disso, Freud identifica quatro caractersticas da pulso: (1) a fora
constante, o motor da atividade psquica; (2) a meta, sua satisfao; (3) o objeto,
meio pelo qual atinge a meta e, assim, o mais variado possvel; e (4) a fonte, sempre
de origem somtica. Como sabemos, a pulso entra em funcionamento a partir da
perda do primeiro objeto de satisfao. O fantasma, ento, aparece como uma
funo que organiza em uma realidade suportvel essa fora pulsional que situa o
sujeito na incessante busca pelo reencontro com o objeto perdido. Ele, o fantasma,
funciona como uma roupagem que emoldura a pulso, uma espcie tela na qual
projetada o circuito pulsional.
No texto Uma criana espancada, de 1919, Freud busca construir a
gnese do quadro fantasmtico atravs das posies de sadismo e de masoquismo.
A organizao do gozo vai ser estruturada pela identificao entre ser amado e
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ser batido, resultado da imbricao da satisfao pulsional com a busca por amor.
Assim, o fantasma ordena a montagem da pulso com enunciados que sustentam a
relao do sujeito com o Outro.
Freud parte da anlise do fantasma infantil de ser batido por algum,
apresentando suas concluses a respeito da histria, das transformaes e de seus
desdobramentos. Comea com as lembranas de pacientes do sexo feminino, para
depois apresentar as divergncias com o que se passa nos meninos. Apesar de
algumas diferenas, possvel formalizar esse fantasma em uma nica sequncia.
Isso quer dizer que a organizao do gozo se d conforme uma mesma estrutura
para ambos os sexos: tanto no homem como na mulher, encontram-se impulsos
masculinos e femininos, e que cada um igualmente pode muito bem ser submetido
represso e, assim, tornar-se inconsciente (Freud, 1919/2003, p. 2479).
O ttulo do texto corresponde ao enunciado da primeira etapa deste fantasma:
uma criana batida (Freud, 1919/2003, p. 2469). A criana que est sendo
espancada, nesta primeira cena, nunca o prprio sujeito, mas normalmente um
irmo ou uma irm. E o autor da agresso, por sua vez, um adulto. Decorre disto,
ento, a seguinte concluso para aquele que assiste cena: meu pai est batendo
em uma criana que eu odeio.
Esta cena no tem carter masoquista, j que o sujeito encontra-se fora dela.
Tambm no se poderia afirmar que se trata de uma cena propriamente sdica, pois
o pai quem pratica a ao. Entretanto, a presena desta outra criana figura para o
sujeito da fantasia como uma rival, na medida em que ameaa sua relao amorosa
com o pai. E a partir dessa condio, a cena se define como sdica, pois a ideia de
o pai batendo nessa odiosa criana , portanto, agradvel (Freud, 1919/2003, p.
2470). O gozo sdico surge pela posio de espectador na cena. E, na equivalncia
entre ser batido e ser amado, o sentimento associado que o meu pai no ama
essa criana, ama apenas a mim (Freud, 1919/2003, p. 2470).
Nesta primeira etapa j temos uma relao ternria, prpria da relao
edpica, na qual figuram como personagens o autor da fantasia, uma outra criana e
o pai. A segunda etapa sofre a mesma toro da montagem pulsional. a
passagem da voz ativa para a voz passiva, da posio do sadismo para a do
masoquismo. A pessoa que est batendo continua sendo a mesma, mas a que sofre
a agresso passa a ser o prprio sujeito da fantasia. Ele sai da posio de
espectadora para entrar na cena. E assim, o sujeito se sustenta no seguinte
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enunciado: estou sendo espancada pelo meu pai (Freud, 1919/2003, p. 2469). Esta
etapa formada por dois personagens. Na medida em que espancada, a criana
transforma o que era dio em amor: se o pai lhe bate porque ele a ama. Como
consequncia disso, vem o sentimento de culpa, uma das formas de masoquismo,
juntamente com as posies feminina e infantil. Tambm o menino encontra esse
gozo feminino de ser batido pelo pai.
Freud afirma que esta segunda etapa a nica de carter inconsciente. Seus
pacientes no se lembravam dela e por isso s pode ser identificada atravs da
construo em anlise. uma etapa marcada pela ambivalncia, pois, como afirma
Lacan, encontramos a este ou..., ou..., que fundamental na relao dual (Lacan,
1956-57/1995, p. 119). A passividade associada funo ertica leva ao
masoquismo, tempo marcado pelo gozo da posio de objeto do Outro.
A terceira etapa encerra a toro do fantasma de espancamento e se
assemelha primeira. O sujeito reduzido novamente posio terceira, a de
observador: ele apenas est olhando. Mas agora, diferentemente da primeira
etapa, uma forte excitao sexual provocada. O sujeito, que est fora da cena,
goza com a violncia do desejo de morte. A posio sdica da primeira etapa
retorna, encerrando uma estrutura impessoal: bate-se em uma criana.
A indeterminao do sujeito da frase expressa na partcula -se e mostra a
dessubjetivao desse enunciado para todas as estruturas. Por um lado, o eu torna-
se impessoal, dessubjetivado. Conforme Lacan, o sujeito fica no estado de
espectador, ou simplesmente de olho, isto , daquilo que sempre caracteriza no
limite, no ponto da ltima reduo, toda espcie de objeto (Lacan, 1956-57/1995, p.
120). Por outro, o que obtemos um sujeito que se faz representar atravs da
posio de objeto do Outro.
Assim, o eu, essa instncia conciliadora, se coloca entre as exigncias
pulsionais e o amor que apenas o Outro pode lhe oferecer. E, na medida em que a
satisfao da pulso s pode provir do campo do Outro, o eu equivale essas duas
condies: a da busca do objeto pulsional e a busca por amor. Para garantir a
satisfao da pulso, ele d prioridade ao amor do Outro e aprende a dar valor a
tudo o que vem dele. O eu, ento, aliena-se ao Outro como objeto de seu desejo.
Mas, como sabemos, o que conduz essa troca (da pulso por amor) a implacvel
exigncia pulsional por satisfao. A montagem da pulso mostra que somos
conduzidos por um nico princpio: a insistente busca por satisfao. O fantasma,
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por sua vez, a tentativa, na forma de um compromisso com o Outro, de enquadrar,
dar contornos a esse gozo impossvel de ser apreendido.
Por fim, a clnica psicanaltica nos faz ver que, entre a pulso, o eu e o Outro,
o sujeito surge apenas na condio em que no se est fixado em nenhuma
posio, mas que pode gozar em qualquer lugar na relao que ele estabelece com
o Outro. O fato de ele j ter circulado pelas outras posies permite com que
transforme um gozo perdido em saber sobre este gozo. Assim, aquele que se faz
ser batido sabe tanto sobre o gozo ativo (bater), quanto sobre o passivo (ser
batido). O gozo do sdico se desdobra no saber que ele tem sobre o gozo do
masoquista, da mesma forma como aquele que olha tambm goza atravs daquele
que olhado.
REFERNCIAS:
FREUD, S. (1915). Pulses e destinos da pulso. Belo Horizonte: Editora Autntica,
2013.
______. (1919). Pegan a un nio. Aportacin al conocimiento de la gnesis de las perversiones sexuales. Em: FREUD, S. Obras Completas. Madrid: Biblioteca Nueva,
v.3, 2003.
LACAN, J. (1956-57). O Seminrio, livro 4: A relao de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.