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A Modernidade A abordagem da Modernidade de Walter Benjamin visa à elaboração de uma espécie de Psicanálise da Civilização moderna com o intuito de promover a cura de um estado neurótico da cultura, próprio da Contemporaneidade. A estética de Walter Benjamin (1892-1940) é feita de narrativas, imagens e citações que iluminam, entre alamedas sombrias, as figuras do herói, do poeta, do passante. E a cidade é o grande palco onde se desenrola o drama da sua modernidade alegórica. A aplicação de um método alegórico na análise da modernidade tem a vantagem de mostrar o que se esconde entre as dobras deste tempo de tantas criações. O filósofo alemão Walter Benjamin seguiu várias trilhas em suas abordagens da modernidade. O sentido alegórico, entretanto, aparece nas variadas leituras que ele faz da arte, da poesia e da cidade que se anunciava entre luzes e sombras no século XIX. O poeta e a cidade de Paris estão entrelaçados em um conjunto alegórico de versos, logradouros e fatos que revelam a paixão e a melancolia da vida. Anota Benjamin: “O gênio de Baudelaire, que encontra o seu alimento na melancolia, é um gênio alegórico.” Vez por outra os argumentos do filósofo encontram em Freud uma base onde assentar. Isso acontece com a categoria freudiana da melancolia. Benjamin associou a melancolia à expressão alegórica. A melancolia surge como conseqüência de uma perda objetal; caracteriza-se pela depressão e culmina na perda da capacidade de amar. O mundo torna-se vazio. Mas o alegórico transforma esse estado de coisas num engenho de criação. É por isso que este filósofo consegue ser alegórico e solar. Em um momento é dominado pelas tristezas dos embates perdidos, em outro encontra as iluminuras da vida. Walter Benjamin é alegórico quando recria as figuras do conspirador, do passante e do flâneur. Este último um personagem de pouca ou nenhuma nitidez. Afinal, quem é este que anda no meio da multidão e não pertence a ela? Ele faz parte da engrenagem capitalista, mas procura esquivar-se na incessante busca do seu refúgio. Alegoria, do grego allegoria, significa dizer o outro; é antes um modo de interpretar que vai além das coisas e dos fatos. O filósofo tem uma concepção

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A Modernidade

A abordagem da Modernidade de Walter Benjamin visa à elaboração de uma espécie de Psicanálise da Civilização moderna com o intuito de promover a cura de um estado neurótico da cultura, próprio da Contemporaneidade.

A estética de Walter Benjamin (1892-1940) é feita de narrativas, imagens e citações que iluminam, entre alamedas sombrias, as figuras do herói, do poeta, do passante. E a cidade é o grande palco onde se desenrola o drama da sua modernidade alegórica.

A aplicação de um método alegórico na análise da modernidade tem a vantagem de mostrar o que se esconde entre as dobras deste tempo de tantas criações. O filósofo alemão Walter Benjamin seguiu várias trilhas em suas abordagens da modernidade. O sentido alegórico, entretanto, aparece nas variadas leituras que ele faz da arte, da poesia e da cidade que se anunciava entre luzes e sombras no século XIX.

O poeta e a cidade de Paris estão entrelaçados em um conjunto alegórico de versos, logradouros e fatos que revelam a paixão e a melancolia da vida. Anota Benjamin: “O gênio de Baudelaire, que encontra o seu alimento na melancolia, é um gênio alegórico.”

Vez por outra os argumentos do filósofo encontram em Freud uma base onde assentar. Isso acontece com a categoria freudiana da melancolia. Benjamin associou a melancolia à expressão alegórica. A melancolia surge como conseqüência de uma perda objetal; caracteriza-se pela depressão e culmina na perda da capacidade de amar. O mundo torna-se vazio. Mas o alegórico transforma esse estado de coisas num engenho de criação. É por isso que este filósofo consegue ser alegórico e solar. Em um momento é dominado pelas tristezas dos embates perdidos, em outro encontra as iluminuras da vida.

Walter Benjamin é alegórico quando recria as figuras do conspirador, do passante e do flâneur. Este último um personagem de pouca ou nenhuma nitidez. Afinal, quem é este que anda no meio da multidão e não pertence a ela? Ele faz parte da engrenagem capitalista, mas procura esquivar-se na incessante busca do seu refúgio.

Alegoria, do grego allegoria, significa dizer o outro; é antes um modo de interpretar que vai além das coisas e dos fatos. O filósofo tem uma concepção muito particular deste conceito: “as alegorias estão para o reino do pensamento assim como as ruínas estão para o reino das coisas”.

Em Benjamin há sempre um outro sentido. O seu herói é poeta; o seu poeta, esgrimista. Ele próprio seria um marxista alegórico. Admirador de Brecht e do seu teatro político, e também de Kafka, um denunciador dos sistemas burocráticos totalitários. Onde paira o seu pensamento, embora fraco, é sem receio.

Benjamin vê uma oposição entre a arte clássica, na qual prevalecia o símbolo como ideal de beleza, e a alegoria barroca que exprime a finitude da condição humana. A alegoria distingue-se do símbolo, pois toma a realidade representada elemento a elemento e não no seu conjunto.

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A vida moderna provocou mudanças no modo de percepção do indivíduo. Baseado nessas mudanças ele desenvolveu alguns conceitos, entre eles: o declínio da aura, o choque, a distração e a experiência. Na verdade, os conceitos encontram-se entrelaçados pelas circunstâncias, e estas são determinadas pelo advento de uma nova realidade sociocultural, e, sobretudo, tecnológica.

A arte e a vida social encontram a sua perfeita tradução no cinema. Nele a análise sobre o que é original e o que é cópia, leitmotiv do ensaio A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, muda de figura. No cinema, arte industrial por excelência, não há propriamente uma criação original da qual se retiram cópias, por isso toda cópia pode ser considerada original. Obviamente, um produtor pode ter para exibição uma única cópia, assim como pode contar com uma centena delas; a depender das suas circunstâncias materiais.

Ele observa ainda semelhantes percepções de choque entre o espectador do cinema e aquele provocado pela vida na cidade moderna. E associa o “inconsciente ótico”, que é acessível pela câmara cinematográfica, aos movimentos do “inconsciente pulsional”, analisado por Freud na Psicopatologia da vida cotidiana. O autor, seguindo à sua maneira, as análises de Freud, aponta para as mudanças ocorridas na estrutura da psique do homem moderno. A perspicácia da análise benjaminiana está em observar as mudanças de percepção do indivíduo ocorridas com o desenvolvimento do capitalismo e o advento das novas técnicas.

O cinema, sendo uma técnica de montagem, possui semelhança com os processos mentais. Hoje, a sensibilidade do espectador – diga-se, a sua percepção – deve aparar os choques de uma realidade altamente complexa, saturada de informações. Se a hipótese de Benjamin está correta, então um processo similar acontece na percepção das imagens em movimento que a arte cinematográfica oferece aos seus espectadores.

Cito um exemplo: o espectador sai de casa para assistir a um filme. No cinema ele depara-se com a reprodução estetizada dessa mesma realidade em que vive. Digamos, para citar um exemplo concreto, que se trate de um filme que contenha cenas de violência urbana. As reações, logicamente, não são as mesmas numa gama de espectadores tão variada. Mas há no imaginário social o sentido de que a violência é um dos grandes males do mundo contemporâneo, e deve ser contida. Isso revela a experiência do choque.

O cinema torna-se o lugar privilegiado da recepção coletiva, mas não é o único. “Na realidade, a pintura não pode ser objeto de uma recepção coletiva, como foi sempre o caso da arquitetura, como antes foi o caso da epopéia, e como hoje é o caso do cinema.” Ele observa que embora algumas formas de arte tenham existido durante alguns séculos e depois deixado de existir, a exemplo da epopéia, a história da arquitetura é mais longa que a de qualquer outra arte. “A arquitetura jamais deixou de existir.” Os edifícios, que acompanham a humanidade desde a sua pré-história, comportam uma dupla forma de recepção: pelo uso e pela percepção.

O pensador alemão descende de uma época extremada, tendo ele próprio praticado o seu gesto extremo – o suicídio. Tentava escapar do nazismo, deixando a França, então ocupada, rumo à Espanha, mas o seu destino foi selado na fronteira, em Port Bou. Benjamin interrompia a desesperada busca da

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liberdade com uma dose de morfina. O ocidente perdia um dos mais talentosos pensadores: lúcido, porém enigmático; filósofo das causas perdidas; crente, descrente, único, vário.

Curiosamente, ele havia abordado o tema do suicídio no ensaio sobre a modernidade. “Esse suicido não é renúncia, mas paixão heróica. É a conquista da modernidade no campo das paixões.” O suicídio tornou-se mais uma entre as alegorias de Walter Benjamin. Aliás, uma alegoria de difícil tradução. Por que a modernidade deve estar “sob o signo do suicídio”?

A sua modernidade heróica aproxima-se da antiguidade. No lugar do herói antigo, capaz dos feitos extraordinários, ele põe o poeta, figura emblemática das lutas modernas. Mas, comparativamente, não há equivalência; o poeta é apenas um representante do herói. A modernidade pode ser considerada uma época dramática, irônica, produtiva ou destruidora. Mas o sentido trágico, propriamente, só pertence aos gregos antigos. Entre estes houve gestos heróicos e suicidas, como o de Édipo. Contudo, o enigma da Esfinge moderna é bem outro. É preciso perspicácia para decifrá-lo. E Benjamin pode ser considerado um dos maiores decifradores de enigmas da modernidade.

Diz o autor no ensaio sobre a modernidade: “Os poetas encontram na rua o lixo da sociedade e a partir dele fazem sua crítica heróica.” A sociedade, como sabemos, produz diversos lixos – morais e materiais. Como os poetas o encontram na rua, pressupõe-se à primeira vista que seja um lixo material: sobras, sobejos, restos, dejetos. Mas, como nada disso pode existir sem a cumplicidade imoral dos homens em sociedade, ambos os sentidos estão sobrepostos.

O declínio da aura não é arbitrário, mas condicionado socialmente. Obedecendo a esta lógica, o conceito de aura vem acompanhado de outro que indica o seu fim. A obra de arte possuía uma aura mágica; na modernidade passa a ter uma aura estética. No primeiro regime prevalecia a face humanizada do mundo, que transformou-se em desumanização alegórica. Antes o ritual - religioso, mítico - determinava a forma de percepção da obra de arte. Benjamin define o conceito de aura como “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja”. E sugere que o espectador observe uma cadeia de montanhas no horizonte. Mas a definição em si mesma não é esclarecedora. Em outras ocasiões ela vai aparecer de forma mais convincente, sobretudo quando ele associa o declínio da aura à reprodução dos objetos de arte. Este declínio é conseqüência dos movimentos de massa surgidos no capitalismo. As massas têm obsessão pela reprodução dos fatos e dos objetos. Nada resiste a este desejo de retirar do objeto o seu invólucro e destruir a sua aura.

Na contemplação de uma obra de arte tradicional, que possui o sentido de unicidade e singularidade, o espectador se recolhe. O recolhimento é a atitude estética própria dos que se propõem a interagir com um objeto artístico dessa natureza.

No contemporâneo, os objetos estéticos provocam a distração e a dispersão. Diante de uma tela de cinema as massas entregam-se a uma deleitosa distração. Por isso, segundo Benjamin, elas podem ter um comportamento retrógrado diante de uma tela de Picasso e progressista diante de um filme de Chaplin. “A reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a relação da massa com a arte.”

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A arte cinematográfica é, na sua origem, desprovida de aura. Ela pressupõe a existência de cópias, sem as quais não há filmes, nem a exibição dos mesmos. O filme pode ser considerado uma obra de arte sem original, pois este é um negativo, seqüência de imagens invertidas que serão reorganizadas numa sala escura.

Este processo era considerado positivo, na concepção de Walter Benjamin, então um pensador marxista, embora com pontos de vista muito particulares sobre esta doutrina. A reprodução modificava o papel social da arte, que passava de uma fruição individual-pequeno-burguesa à possibilidade de uma fruição coletiva. A fotografia, enquanto técnica de reprodução de imagens figurativas, superava toda imitação artesanal. Este processo culminava com a destruição da aura. Esta conclusão a que chegou o filósofo, entretanto, não veio a se confirmar. Hoje, uma tela de Leonardo da Vinci ou outro pintor do passado, ao ser reproduzida fartamente, parece ganhar uma nova aura e fazer renascer a cada dia a admiração de novos admiradores.

Tomando outros exemplos do nosso contemporâneo, verificamos que essa relação das massas com as novas tecnologias passa por mudanças radicais. Como conseqüência lógica há grandes mudanças nas formas de percepção. A rigor, os computadores não são produtos massivos, mas interativos. Nos programas de internet, o usuário dispõe de um leque de opções que vai seguindo ao sabor do seu interesse imediato.

Este processo de navegação é chamado de hipertexto. Este possibilita novas formas de ler, escrever e criar onde desaparece a noção antiga de original: não se fala em primeiro texto, segundo texto, etc, pois o hipertexto pressupõe a simultaneidade. Pierre Lévy, no livro As tecnologias da inteligência, o descreve como uma metáfora da mente humana e da sociedade. O hipertexto seria algo que pensa por nós.

“Quem pensa? Uma imensa rede loucamente complicada, que pensa de forma múltipla, cada nó da qual é por sua vez um entrelace indiscernível de partes heterogêneas, e assim por diante em uma descida fractal sem fim. (...) Quando deixamos de manter a consciência individual no centro, descobrimos uma nova paisagem cognitiva, mais complexa, mais rica.”

No que se refere à criação, apesar de muitos artistas se utilizarem de programas de computadores na realização do seu trabalho, os resultados não podem ser avaliados de maneira uniforme nas diversas artes.