A MOBILIZAÇÃO COLABORATIVA E A TEORIA DA PROPRIEDADE DO BEM INTANGÍVEL_Tese_Sérgio Amadeu da...

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A MOBILIZAÇÃO COLABORATIVA E A TEORIA DA PROPRIEDADE DO BEM INTANGÍVEL. SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA Doutorado em Ciência Política USP - SÃO PAULO 2005 "Esta tese de doutorado foi defendida no dia 31 de outubro de 2005 no Departamento de Ciência Política da USP. Participaram da Banca o orientador da tese, Prof. Dr. Claudio Vouga (USP) e os doutores: Wagner Meira (Ciência da Computação UFMG), Marcelo Zuffo (LSI Poli USP), Cicero Araujo (Ciência Política USP) e Gabriel Cohn (Ciência Política USP). É uma tese sobre a teoria da propriedade, ramo fundamental da ciência política. O objeto de estudo foi a comunidade do software livre e o compartilhamento do conhecimento tecnológico. A Tese defendida por Sérgio Amadeu da Silveira foi aprovada com louvor e distinção." ÍNDICE AGRADECIMENTOS RESUMO INTRODUÇÃO CAPÍTULO I - Sociedade em rede e a relevância do software como linguagem básica CAPÍTULO II - O modelo de propriedade de bens intangíveis e o desenvolvimento do software proprietário CAPÍTULO III - A emergência do desenvolvimento compartilhado CAPÍTULO IV - O terreno do confronto entre forças do compartilhamento e do bloqueio ao conhecimento tecnológico CAPÍTULO V - A teoria da propriedade, monopólios de algoritmos e o cenário informacional CAPÍTULO VI - Elementos para uma teoria da propriedade de bens não-escassos CAPÍTULO VII - Comunidades tecnológicas, movimentos sócio-técnicos e esfera pública CONCLUSÃO - Política pós-capitalista, sustentabilidade econômica e bens anti-rivais BIBLIOGRAFIA SITES ANEXOS

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  • A MOBILIZAO COLABORATIVA E A TEORIA DA PROPRIEDADE DOBEM INTANGVEL.

    SRGIO AMADEU DA SILVEIRA

    Doutorado em Cincia Poltica

    USP - SO PAULO2005

    "Esta tese de doutorado foi defendida no dia 31 de outubro de 2005 no Departamento de Cincia Polticada USP. Participaram da Banca o orientador da tese, Prof. Dr. Claudio Vouga (USP) e os doutores:Wagner Meira (Cincia da Computao UFMG), Marcelo Zuffo (LSI Poli USP), Cicero Araujo(Cincia Poltica USP) e Gabriel Cohn (Cincia Poltica USP). uma tese sobre a teoria da propriedade,ramo fundamental da cincia poltica. O objeto de estudo foi a comunidade do software livre e ocompartilhamento do conhecimento tecnolgico. A Tese defendida por Srgio Amadeu da Silveira foi aprovada com louvor e distino."

    NDICE AGRADECIMENTOS RESUMO INTRODUO CAPTULO I - Sociedade em rede e a relevncia do software como linguagem

    bsica CAPTULO II - O modelo de propriedade de bens intangveis e o

    desenvolvimento do software proprietrio CAPTULO III - A emergncia do desenvolvimento compartilhado CAPTULO IV - O terreno do confronto entre foras do compartilhamento e do

    bloqueio ao conhecimento tecnolgico CAPTULO V - A teoria da propriedade, monoplios de algoritmos e o cenrio

    informacional CAPTULO VI - Elementos para uma teoria da propriedade de bens

    no-escassos CAPTULO VII - Comunidades tecnolgicas, movimentos scio-tcnicos e

    esfera pblica CONCLUSO - Poltica ps-capitalista, sustentabilidade econmica e bens

    anti-rivais BIBLIOGRAFIA SITES ANEXOS

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos que me ajudaram na pesquisa, redao e no debate sobre este temaque tanto me fascina. Agradeo principalmente ao meu orientador Prof. Claudio Vougapor sua pacincia, perseverana e orientao clara quando tudo parecia demasiadamenteconfuso. Ao Prof. Pedro Rezende devo a descoberta do fio condutor desta tese e muitostextos que me presenteou. Ao amigo Renato Martini tenho uma enorme dvida peloslongos momentos de debate sobre pontos centrais deste trabalho e pela importantecrtica que realizou. Aos Professores Ccero Arajo e Marcelo Zuffo agradeo pelasponderaes e crticas que tanto me auxiliaram a tornar mais consistente esta tese. Prof.a Maureen O'Sullivan agradeo pela hosptalidade na Inglaterra e pelosesclarecimentos sobre sobre as idias de James Tully. antroploga Gabriella Colemansou grato pelo envio de suas pesquisas. Agradeo ao hacker Mako Hill por ter meapresentado Gabriella Coleman e por me esclarecer sobre o funcionamento dacomunidade Debian nos Estados Unidos. A Joo Cassino, Thaisa Weidle e Maria Lciada Silveira, minha irm, devo muitas horas de debates, apoio na pesquisa e na revisodos textos. Agradeo o apoio e os esclarecimentos sobre temas tecnolgicos eespecficos das comunidades de colaborao que me forma prestados pelos amigosEvandro Oliveira, Emerson Luis, Carlos Cecconi e Edgard Piccino. Devo Julia Codo,Lia Ribeiro, Patrcia Cornils, Denise Direito, Adriana Fetter e a Mauricio AugustoCoelho, o apoio concreto e a pronta disposio para me socorrer seja com revises,traduo e constantes impresses de verses. A Mrio Ripper e a Marcos Dantasagradeo pelas importantes sugestes bibliogrficas. Agradeo a toda a comunidade desoftware livre que me permitiu entender este complexo mecanismo da colaborao.Agradeo especialmente a Mrio Teza, Eduardo Maan, Marcelo Tosatti, RubenQueiroz, Wagner Meira, Ricardo Bimbo, Marcelo Tompson, Marcelo Marques, Gobbi,Claudio Prado, Marcelo Branco e Djalma Valois. Por fim, sou imensamente grato Prof.a Clara Etiene que revisou esta tese em tempo exguo, mas com rigor e humor.

    RESUMO

    A tese trata da teoria poltica da propriedade de bens imateriais na sociedadeinformacional. realizada a anlise do movimento de desenvolvimento e uso desoftware aberto e no-proprietrio, conhecido como movimento de software livre e seuembate com os beneficirios do modelo hegemnico de propriedade de software. A teseexplora os elementos da colaborao scio-tcnica que permitiram a construo dentroda economia capitalista de bolses de "economia da doao". descrita a expanso docompartilhamento do conhecimento tecnolgico e seu choque com o paradigmatradicional da propriedade, o que levou a constituio de um novo tipo de politizaoque supera a tradicional dicotomia entre esquerda e direita. A ausncia de escassez,caracterstica essencial do processo de gerao e desenvolvimento de bens intangveisou imateriais, reordena os processos redistributivos de riqueza e, a partir das prticascolaborativas, permitem transformar o tema da justa distribuio da propriedade emuma questo de liberdade.

    PALAVRAS-CHAVE: teoria poltica, teoria da propriedade, sociedade informacional,bens imateriais, software livre, comunidades virtuais, redes de compartilhamento,conhecimento tecnolgico.

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  • ABSTRACT

    The thesis is concerned with the immaterial goods property policy in the informationalsociety. It is carried out an analysis of the non-proprietary and open source softwaredevelopment and use movement, known as free software movement and its clash withthe gainers of the proprietary software hegemoniac model. The thesis explores theelements of social-technical collaboration that allowed the formation within thecapitalist economy of areas of "donation economy". It is described the expansion of thetechnological knowledge sharing and its shock with the traditional paradigm ofpropriety, that led to the constitution of a new type of politicization that overcomes thetraditional dichotomy between left and right. The absence of scarceness, essentialdistinguishing mark of the immaterial or intangible goods generation and developmentprocess, rearrenges the wealth redistribution processes and, as from the collaborativepractices, allows to transform the subject of the fair distribution of propriety in afreedom matter.

    KEYWORDS: political theory, property theory, intellectual property, informationsociety, immaterial goods, free software, virtual communities, sharing nets, informationand communication theory.

    INTRODUO

    Esta tese trata do problema da formulao de uma teoria poltica da propriedade de bensimateriais no contexto de uma sociedade informacional e em rede. Seu objeto de anlise o movimento de desenvolvimento e uso de software aberto e no-proprietrio,conhecido como movimento de software livre e seu embate com os beneficirios domodelo hegemnico de propriedade de software. A unidade de anlise foi a rede decomunidades de software livre e aberto. Foram recolhidos os seus argumentos,observada sua ao, organizao e, principalmente, seu modelo de propriedade de bensno-materiais.

    Para investigar com mais profundidade as aes e objetivos da rede deste movimentotcnico-politico, o foco foi colocado na comunidade Debian1, que desenvolve edistribui uma verso do sistema operacional GNU/Linux2. Esta opo deu-se aps umintenso rastreamento dos grupos e comunidades de colaborao, sejam dedesenvolvimento ou de debates. Para entender bem o modelo colaborativo e livre dedesenvolvimento de softwares, como bem intangvel tpico, foi necessrio reconstruir atrajetria histrica do desenvolvimento das tecnologias da informao e observar aconstruo do modelo hegemnico de propriedade de software, baseado nos princpiosdos bens tangveis.

    A pesquisa partiu de duas hipteses que nasceram da teoria liberal de propriedade. Essashipteses foram lanadas no terreno das evidncias empricas e permitiram concentraras buscas e apurar os olhares a fim de confirm-las, alter-las ou descart-las, parcial ouintegralmente. A descrio adotada visa sustentar a abordagem terica realizada. Ouseja, o objetivo do mtodo foi sustentar a teoria sobre evidncias empiricamenteobservveis nos seus contextos histricos.

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  • A hiptese principal foi construida a partir da afirmao muito cara s inmerascorrentes da teoria liberal de que: a liberdade e a igualdade participam de um conflitoirreconcilivel. No centro desta questo est a propriedade, sua justificao edistribuio. A idia de propriedade remete-nos idia de bens, sejam materiais ouimateriais. A igualdade apenas como condio de um indivduo possuir direitos iguais h muito tempo partilhada pelas correntes liberais. O conceito de igualdade aqui tratado substantivo e diz respeito equidade diante da propriedade de bens. O filsofo inglsJohn Locke atribuia ao termo "propriedade" a idia genrica de posse sobre a vida, aliberdade e os bens. Todavia, a igualdade em relao aos bens tem sido historicamenteconsiderada antagnica defesa da liberdade social.

    Hayek, um dos principais crticos da idia de igualdade, considerava que a f na justiasocial, ou na distribuio equitativa da propriedade dos bens, conduziria a sociedade aum sistema totalitrio. A primeira hiptese desta tese nasceu do enfoque hayekiano, umacrtica liberal profunda idia da justia distributiva. A viso hayekiana advoga oantagonismo entre a defesa da propriedade -- entendida como defesa da liberdade-- e adefesa da igualdade -- entendida como a distribuio justa de bens.

    Assim, a pesquisa partiu da hiptese de que o movimento de software livre, sua ao eproduo permitiria constatar a possibilidade de superar este antagonismo. Ou seja, acontraposio entre liberdade e igualdade pode ser superada na sociedade em rede.Imediatamente sobressai a segunda hiptese: ao dissolver essa contraposio tambmperderia sentido o enquadramento poltico erguido historicamente em torno dapropriedade material, tornando completamente plida a fora explicativa da divisopoltica entre esquerda e direita.

    A terceira hiptese pode ser considerada uma rota de explicao das duas primeiras, ditode modo direto, as caractersticas econmicas inerentes aos bens imateriais e a naturezadas redes informacionais destroaram os fundamentos da teoria hegemnica dapropriedade, exigindo sua superao.

    No captulo I, foi apresentada a sociedade da informao como uma sociedade em rede,cuja principal caracterstica a hiper-comunicao. O captulo busca demonstrar que ossoftwares tornaram-se intermedirios da inteligncia e da fala, estando crescentementepresentes no mundo da vida. tambm retrabalhada a tese de Lawrence Lessig de queno ciberespao o cdigo (software) a lei. Do ponto de vista social, o software passou adesempenhar o papel de uma linguagem bsica, indispensvel para todos os quepassaram a se comunicar e a depender das redes de computadores.

    O Captulo II trata do modelo hegemnico de propriedade de softwares, cdigos eprotocolos de comunicao. As principais caractersticas do licenciamento de uso desoftware e o processo pelo qual esta forma de propriedade de algoritmo tornou-sehegemnica so levantadas. O captulo seguinte explora o surgimento do modelocolaborativo de desenvolvimento de software, conhecido como software livre, que sebaseia no compartilhamento do conhecimento tecnolgico. A licena de tipo viral,conhecida como General Public Licence (GPL), tem suas caractersticas principaisapresentadas junto ao modelo descentralizado e no-proprietrio de desenvolvimento desoftware.

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  • O avano na descrio da reao dos beneficirios do modelo hegemnico depropriedade de software e suas estratgias para conter o avano das prticascolaborativas so tratados no captulo IV. Essa descrio fundamental para entender opapel do Estado para a manuteno do modelo hegemnico de propriedade na sociedadeem rede, bem como, para observar a politizao do movimento de software livre.

    No captulo V analisado o argumento central que legitima a propriedade de bensintangveis na sociedade em rede. A idia de que somente o modelo de softwareproprietrio pode gerar desenvolvimento, criatividade e inovao ideolgica e semfundamento emprico. O estmulo da propriedade pode ter gerado inovao, mas omodelo compartilhado tem gerado inovaes de impacto colossal. O exemplo da criaoda web esclarecedor. Por outro lado, o desenvolvimento compartilhado de bensintangveis obriga-nos a rever a teoria da propriedade e encontrar quais foram seusfundamentos e objetivos.

    A propriedade das idias distinta da propriedade das coisas. Esta a principalabordagem do captulo VI. A natureza da rede e dos bens no-escassos nos conduz paradiscutirmos os objetivos da autoria e da propriedade neste cenrio informacional. preciso compreender que a teoria da propriedade at ento ergueu-se sobre a paisagemda escassez e do homo economicus moldado pelo doutrina liberal. A intelignciadistribuida e o homem criador e em busca do reconhecimento reconfiguram totalmentenossa forma de pensar a propriedade das idias em uma sociedade em rede.

    A anlise do movimento de compartilhamento tecnolgico, realizada no captulo VII,permite observar que as comunidades de software livre so embries de novas relaesde propriedade que se manifestam na emergncia de uma nova esfera pblica: a esferapblica inicialmente hacker3. Tambm possvel notar que na sociedade em rede atransparncia dos cdigos, protocolos e softwares uma exigncia fundamental paraque o ciberespao possa ser considerado uma esfera pblica, a partir da perspectivahabermasiana. Um dos exemplos mais categricos da transparncia dos cdigos queviabiliza o desenvolvimento colaborativo e a gift economy o da comunidade Debian.Por isso, a comunidade e sua ao analisada, permitindo vislumbrar a partir dela omovimento geral das comunidades de software livre que se chocam na prtica contra omodelo de propriedade hegemnico.

    A tese conclui que o movimento de colaborao scio-tcnica do software livreconstruiu dentro da economia capitalista bolses de "economia da doao", que sechocam contra o paradigma tradicional da propriedade, sendo levados a um novo tipo depolitizao. A nova poltica de reivindicar e praticar a liberdade de continuar criando ecompartilhando os cdigos contra os ataques dos representantes do modelo proprietriono se resume esquerda e reconfigura o terreno poltico, lanando unidades entreliberais e socialistas. Supera a definio esquerda/direita e rearranja o cenrio poltico,exatamente pelo fato dos bens intangveis serem no-escassos e possibilitarem agregarmais valor a um software aberto quanto maior for a comunidade em torno de seudesenvolvimento. Uma estrutura econmico-social crescentemente baseada em bensintangveis permite superar a principal objeo hayekiana s prticas distributivas.Enfim, a tese conclui que na sociedade em rede, o compartilhamento do conhecimentotecnolgico permite transformar o tema da justa distribuio da propriedade em umaquesto de liberdade.

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  • CAPTULO 1

    Sociedade em rede e a relevncia do software como linguagembsica.

    "Veja, Willem, ele admite que no conhece a lei e ao mesmo tempo afirma que inocente". ( ... )

    "-- Ah, sim -- disse o inspetor, que j estava perto da porta. -- O senhor me entendeumal. claro que o senhor est detido, mas isso no deve impedi-lo de exercer suaprofisso. Tampouco deve ficar tolhido no seu modo de vida habitual."

    (Franz Kafka, O Processo)

    Norberto Bobbio escreveu que "o problema fundamental do Estado constitucionalmoderno, que se desenvolve como anttese do Estado absoluto, o problema dos limitesdo poder estatal" (BOBBIO, 1997: 11). O problema fundamental dos Estadoscontemporneos na era da informao ser cada vez mais o problema dos limites dapropriedade privada sobre o conhecimento. Isso porque as profundas alteraes nocapitalismo, a partir de meados do sculo XX, elevaram a cincia e o conhecimentotecnolgico condio de fora produtiva direta. (GORZ: 29) As denominadastecnologias da informao e comunicao penetraram no cotidiano da administrao doshomens e das coisas. (LASTRES & FERRAZ, 1999: 27-55) O crescente podercomputacional e de processamento de informaes permitiu que pesquisadoresalargassem e, em muitos casos, arrebentassem os limites do conhecimento sobre agerao da vida, decodificando o genoma humano e buscando aplicar imediatamente asdescobertas recentes. O conhecimento adquiriu status supremo. Termos como"sociedade do conhecimento" e "sociedade da informao" passaram a ser empregadospopularmente. Surgem cursos e uma variada gama de publicaes sobre as tcnicas degesto do conhecimento e a percepo de que as organizaes no conseguem absorvero conhecimento tcito e formaliz-lo em um processo denominado de intelignciaorganizacional.

    Quanto mais o conhecimento produzido, fruto do aprofundamento da diviso dotrabalho mundializado e da ultra especializao de funes, mais prolifera a ignorncia.Maior conhecimento e maior ignorncia, essa uma essncia da atualidade. Acapacidade de assimilar, gerenciar e criar conhecimentos so atuais fontes evidentes depoder poltico, econmico e cultural. O controle usual e comum das fontes deconhecimento se d pela negao do acesso a seu contedo ou a sua essncia. Estecontrole praticamente impossvel sem as tecnologias do segredo ou sem a ao doaparato jurdico-repressivo dos Estados e suas legislaes. Impor concepes, portantoideologias, a respeito de como gerado e difundido o conhecimento a partir da opiniopblica no suficiente. Tem sido necessrio a materializao do bloqueio distribuio do conhecimento no enrijecimento das legislaes das sociedadestecnodependentes.

    Toda sociedade histrica tecnodependente, ou seja, em cada momento histrico associedades utilizam instrumentos, tangveis ou intangveis, materiais ou simblicos,para intermediar seu convvio com a natureza, com outros grupos humanos e entre osmembros do corpo social. As tcnicas ou "as formas de fazer" que podem ser

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  • reprodutveis em escala so chamadas de tecnologias. A partir do momento que umconjunto de tcnicas so criadas e incorporadas nas prticas sociais e, principalmente,nos usos e nos processos de reproduo do poder, dificilmente podem ser abandonadas.Em geral, so superadas por outras tecnologias. Esta dependncia da tecnologia umacaracterstica bsica do uso da inteligncia humana para viver melhor ou para dominar.Por isso, as tecnologias nunca so socialmente neutras. Quanto mais conflitiva edividida em grupos, camadas ou classes, mais as tecnologias so voltadas asnecessidades dos agrupamentos que as produz.

    Isso no quer dizer que a tecnologia comanda a sociedade, mas sim que a tecnologia,criao social, definida na disputa entre grupos que definem o dia-a-dia da sociedade e utilizada por esses grupos em seu processo de manuteno ou expanso de direitos epoderes. Istvn Mzaros alertou-nos da falcia das solues tecnolgicas para a soluode problemas sociais (MZAROS, 2004: 118-142), denunciando esta manobraideolgica e de certa modo fruto da intensa reificao dos nossos contextos. Por outrolado, preciso propor que quanto mais tecnolgica uma sociedade, no sentido de maisdependente de tecnologias, mais ideolgica ela se torna. Ideologia que se mistura e seconfunde com racionalidade, percepo j captada por Marcuse. (HABERMAS, 1993:45-50)

    A guerra fria, a partir dos anos 50, intensificou a tecnodependncia das duas naeslderes do confronto entre sistemas capitalista e socialista, os Estados Unidos e a entoUnio das Repblicas Socialistas Soviticas. Esta corrida tecnolgica e ideolgicaresultou em saltos cientficos, tecnolgicos e no processo de invenes e inovaes. Avelocidade para se obter os melhores equipamentos, as armas mais destrutivas e ossistemas de lanamento de missis mais certeiros ocorriam em paralelo s necessidadesde um dos sistemas, o capitalista, intensificar os espaos para a reproduo do capital,que s possvel em uma constante expanso das necessidades de consumo.(WALLERSTEIN, 1999: 47)

    A disputa ideolgica entre os sistemas dava-se no mesmo terreno. A superioridade deum sobre o outro seria dada pela capacidade de um gerar mais progresso que o outro. A"fora do exemplo" sovitico levou Yuri Gagarin ao espao e a Laika ao infinito. Acorrida espacial, expresso mxima da aventura tecnolgica humana, nos anos 50,estava sendo ganha pelos vermelhos que avisaram ao mundo que "a terra era azul". Areao norte-americana foi profunda e teve no seu comando o ento presidenteEisenhower que reordenou a pesquisa e os gastos com a tecnocincia ( SILVEIRA,2001: 21-22).

    Esta corrida tecnolgica em busca da expanso do poder dos sistemas em luta teveinmeras consequncias geopolticas, culturais e scio-econmicas. O impacto daproposta do presidente Ronald Reagan de se criar um escudo aeroespacial impenetrvelaos missis inimigos ficou conhecido como projeto Guerra nas Estrelas. Quandoanunciado, deixou evidente que nos anos 80 do sculo XX, a corrida tecnolgica tinhasido revertida e estava sendo vencida pelo capitalismo e sua maior potncia, os EstadosUnidos. A Perestroika e a Glassnost no pareciam capazes de reaproximar o competidorsocialista do primeiro colocado, bem distante na corrida tcnico-cientfica. A potnciacapitalista tinha demonstrado sua superioridade.

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  • Richard Barbrook faz uma anlise bastante original e instigante desse desfecho. Paraele, naquele momento histrico, os capitalistas conservadores (e vencedores) estavamantes de tudo interessados em provar que as tecnologias da informao forariam aprivatizao e a desregulamentao de toda a atividade econmica. Ou seja, Barbrookcaptou que naquele momento a promessa de um "futuro ps-Fordista era o retorno aopassado liberal". Mas o mais instigante a constatao de que o neoliberalismonorte-americano, erguido do solapamento do welfare state, propunha-se combinar demodo competente e vitorioso o progresso econmico centrado nas novas tecnologiascom a imobilidade social.

    Se no perodo fordista, as camadas dominantes da sociedade eram formadas porgerentes e administradores de grandes corporaes, Barbrook prope que a crisecapitalista nos anos 70 levou os intelectuais da direita a buscarem onde estariam osnovos dirigentes. Eles teriam sido encontrados nos digerati, ou seja, nos capitalistasespeculadores, cientistas inovadores, hackers, astros da mdia e idelogos neoliberais.Esses conformariam a nova aristocracia.

    A diferena encontrada por Barbrook nestas novas manifestaes de conservadorismocapitalista das anteriores, estaria em uma certa ideologia que ele denominou decaliforniana, que mascarava o desejo de dominao antes claramente evidenciado. Oestado da Califrnia, no oeste norte-americano, foi a regio com a maior incidncia emtermos numricos e qualitativos dos principais inventos que conformam as tecnologiasessenciais em uso no final do sculo XX e incio do sculo XXI. Os portadores destaideologia disseminam a idia de que as invenes dos digeratis beneficiaro a todos emtodos os cantos do planeta.

    A ideologia californiana resgataria a crena e a fantasia presentes nas obras de ficodesde o sculo XIX, em que uma vanguarda de cientistas conseguiriam inventarsolues tecnolgicas para os problemas cruciais da humanidade. Barbrook consideraesta ideologia uma herdeira direta do pensamento que vincula que a emancipaopoltica, social e cultural somente seria alcanada por intermdio do progressoeconmico. Suas origens podem ser encontradas nos escritos de Henri de Saint-Simon.

    Claude Henri de Rouvroy, Comte de Saint-Simon (1760 - 1825) nasceu em Paris e foiconsiderado por Engels o fundador do socialismo francs (ENGELS, 1975: 126-127).Durkheim o apresentava como o verdadeiro pai da sociologia e iniciador do positivismo(ARON, 1987: 347-349). Saint-Simon acreditava que a agricultura era a base do poderda aristocracia e do clero. A modernizao da economia levaria transferncia deriqueza e poder daqueles para as novas profisses, tais como os cientistas e industriaisempreendedores. Barbrook esclarece que para Sant-Simon a nova elite modernizadorateria a tarefa histrica de libertar os cidados menos afortunados da pobreza e daignorncia. Isso seria obtido por meio da produo industrial que geraria a abundnciaeconmica necessria expanso de uma vida feliz para todos. A conduo desteprocesso seria da minoria iluminada e "a poltica deveria ser agora nada mais do que acincia de proporcionar s pessoas tantos bens materiais e tanta satisfao moral quantofosse possvel" (BARBROOK).

    O iderio de Sant-Simon influenciou profundamente os socialistas que buscavam nocrescimento econmico o caminho da emancipao poltico-cultural dos povos. A idiade f inquebrantvel nas propriedades benficas do progresso e da afluncia, dele

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  • advinda, uma das marcas do marxismo e pode ser encontrada claramente nos discursosjacobinos, leninistas e stalinistas. "O desenvolvimento econmico havia se tornado umfim em si" (BARBROOK). O partido de vanguarda leninista, de certo modo, cumpririaa misso destacada por Saint-Simon para a minoria esclarecida: o de conduzir as massaspara o encontro de suas reais necessidades. Stalin chegou a anunciar a inferioridade docapitalismo ao anunciar os resultados econmicos obtidos na Unio Sovitica (STALIN:88).

    O que Barbrook resgata em sua argumentao que, durante a Guerra Fria, soviticos enorte-americanos sustentavam a superioridade de seus sistemas com base nos avanostecnolgicos ou no chamado progresso scio-tcnico. O colapso da Unio Sovitica noeliminou a influncia de Saint-Simon nem do pensamento autoritrio stalinista sobre osintelectuais da direita norte-americana. Para Barbrook, "ao contrrio, a misso globaldos EUA havia sido confirmada pela sua vitria sobre o seu rival totalitrio. Segundoum apologista, o neoliberalismo americano agora a realizao do 'fim da histria'hegeliano. (...) Para os proponentes da ideologia californiana, a suposio narcisista estprovada pelo domnio americano sobre o que h de mais avanado na modernidadeeconmica: a Internet." (BARBROOK)

    A relao proposta entre o totalitarismo stalinista e a vanguarda neoliberal, fundindo demaneira criativa o pensamento autoritrio de Saint-Simon e sua doutrina de progressosalvador com o que Barbrook denominou de "celebrao contempornea doneoliberalismo", tem na expanso das novas tecnologias seu elemento consolidador.Aps tantos sacrifcios para vencer o sistema sovitico, os dirigentes norte-americanosno poderiam abrir mo de conduzir as massas e de reivindicar a condio de minoriaesclarecida, o equivalente do partido de vanguarda, que tem como misso encontrar ocaminho da civilizao utpica. A medida do progresso j foi a quantidade de toneladasde ao e, agora, os digerati a consideram como a posse de computadores, telefonescelulares e laptops.

    Barbrook sustenta que a apropriao conservadora do stalinismo vem dominando asdiscusses sobre a Internet e que a rede mundial de computadores estaria conformandouma nova utopia: a sociedade da informao. "Nos anos 60, o exrcito americanofinanciou a inveno da Internet para lutar nas guerras nucleares. Desde os anos 70, osmercados financeiros utilizaram as redes de computadores para impor a sua hegemoniasobre todo o planeta" (BARBROOK).

    Sem dvida, possvel constatar a enorme influncia da ideologia californiana, aimportncia crucial da guerra fria e do complexo industrial-militar, bem como, dasverbas e do financiamento do Departamento de Estado norte-americano, nas origens daInternet. Por outro lado, sua conformao inicial e seu desenvolvimento no pode sersimplificada somente aos interesses militares. Apesar de corroborar nesse mesmosentido ao afirmar que " a Internet nasceu da improvvel interseo da big science, dapesquisa militar e da cultura libertria" (CASTELLS, 2003: 19), a anlise realizada pelosocilogo Manuel Castells mais elaborada e possui maior fora explicativa.

    Castells apontou que, no final do sulo XX, a fuso de trs processos independentesinauguraram uma nova estrutura social predominantemente baseada em redes. Forameles: 1- exigncias de uma economia flexvel e globalizada; 2- demandas da sociedadepor valores da liberdade individual e da comunicao aberta; 3- avanos extraordinrios

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  • na computao e nas telecomunicaes possibilitados pela revoluo microeletrnica.(CASTELLS, 2003: 8)

    O socilogo espanhol utilizou o conceito de sociedade em rede para caracterizar asprofundas mudanas que as tecnologias da informao estariam provocando nasprincipais atividades humanas, indo da economia at a gesto do poder. Este conceitonasceu de um esforo em melhor definir as intensas transformaes de uma civilizaocada vez mais tecnodependente. Sem dvida, a sociedade em rede a formaoconcreta de uma sociedade informacional. A revoluo informacional trouxe asociedade informacional. E a sociedade informacional pode ser a expresso de umasociedade ps-industrial (WEBSTER, 1995: 30) ou pode ser vista como organizadora denovos laos entre produo material e servios, ao invs de ter substitudo "a produopela infomao" (LOJKINE, 1999: 23).

    A intensidade das mudanas notvel. Para Castells, a tecnologia da informao hojeo que a eletricidade foi para a Era Industrial(CASTELLS, 2003: 8). quaseimprovvel que seramos capazes hoje de pensar o sistema financeiro nacional semcomputadores e redes. quase impossvel pensarmos o sistema financeiro internacionalsem o uso da comunicao mediada por computadores. Tambm no conseguiremosmais organizar as principais atividades do Estado, tais como o seu sistema dearrecadao, de previdncia e de sade prescindindo das redes informacionais.Igualmente a cultura e as prticas coletivas esto sendo profundamente afetadas, quantomais as novas tecnologias da informao e comunicao so absorvidas pelos grupossociais. Comunidades virtuais, chats, fruns, blogs vo ganhando espaos expressivosno cotidiano de milhes de pessoas das elites e das camadas mdias do planeta. SurgemONGs que reivindicam o direito das camadas pauperizadas terem acesso aoscomputadores em rede e a ONU declara formalmente a necessidade de incluirdigitalmente as populaes de todos os Continentes. Por se tratar de tecnologias dainteligncia (LVY, 1993: 53-54), sua disseminao indica impactos bem maiores doque a eletrificao ou o uso das novas energias no ltimo quarto do sculo XIX. Oselementos empricos indicam que um novo paradigma est se estruturando.

    A partir dos anos 80, economistas importantes como Dosi e Freeman passaram atrabalhar com o conceito de paradigma tecno-econmico que permite clarificar oentendimento sobre as transformaes estruturais que as sociedades vivenciam. Esteconceito permite-nos observar as inovaes tcnicas, organizacionais e institucionaisque alteram a economia e o comportamento das sociedades, sendo que trs so osfatores chaves que definem o ncleo de cada paradigma: "amplas possibilidades deaplicao, demanda crescente e queda persistente do seu custo unitrio". ( LASTRES &ALBAGLI, 1999: 31-33)

    Assim, o que poderia caracterizar este novo paradigma do ponto de vista econmicoseria a transferncia de uma economia baseada em insumos baratos de energia paraoutra baseada em insumos baratos de informao gerados a partir dos avanos damicroeletrnica e das telecomunicaes. Nesse sentido, Joseph Nye afirmou que aatual revoluo da informao baseia-se nos rpidos avanos tecnolgicos docomputador, das comunicaes e do software que, por sua vez, conduziram aextraordinrias redues no custo do processamento e da transmisso dainformao(NYE, 2002: 84). Os economistas Carl Shapiro e Hal R. Varian constataramque h uma diferena essencial entre a velha e a nova economia: a velha economia

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  • industrial era movida pelas economias de escala; a nova economia da informao movida pela economia de redes (SHAPIRO & VARIAN, 1999: 204).

    Castells definiu as redes como estruturas capazes de expanso ilimitada, integradoras denovos ns, desde que esses consigam seguir os mesmos cdigos de comunicao desua rede. Tambm props que uma estrutura social com base em redes um sistemaaberto altamente dinmico suscetvel de inovao sem ameaas ao seu equilbrio.(CASTELLS, 1999: 498) Em sntese, a rede um conjunto conectado de ns e umaprtica humana muito antiga. Ao contrrio de outras formas de organizaohierarquizadas, a rede tem sua grande vantagem advinda da flexibilidade eadaptabilidade. Ao mesmo tempo, sua maior dificuldade estaria na coordenao defunes e na concentrao de recursos para o cumprimento de metas especficas.

    De um lado esta transformao, claramente sentida por inmeros cientistas sociais, temlevado a uma reflexo sobre as novas dificuldades na relao espao-local eespao-global. Jess Martn-Barbero expe a existncia de "uma mudana nascategorias com que pensamos o espao, pois, ao transformar o sentido do lugar nomundo, as tecnologias da informao e da comunicao satlites, informtica,televiso esto fazendo com que um mundo to intercomunicado se torneindubitavelmente cada dia mais opaco. Opacidade que remete, de um lado, ao fato deque a nica dimenso realmente mundial at agora o mercado, que mais do que unir,busca unificar (Milton Santos). E atualmente o que est unificado em nvel mundial no uma vontade de liberdade, mas sim de domnio, no o desejo de cooperao, mas ode competitividade. Por outro lado, a opacidade remete densidade e compreensoinformativa que introduzem a virtualidade e a velocidade em um espao-mundo feito deredes e fluxos e no de elementos materiais. Um mundo assim configurado debilitaradicalmente as fronteiras do nacional e do local, ao mesmo tempo que converte essesterritrios em pontos de acesso e transmisso, de ativao e transformao do sentido docomunicar" (MARTN-BARBERO, 2003: 58).

    De outro lado, necessrio reconhecer que a Internet a maior expresso da revoluoinformacional e da sociedade em rede. Se para MacLuhan? "o meio a mensagem", paraCastells "a rede a mensagem". A Internet est reconfigurando o conjunto dasatividades produtivas. No somente as grandes empresas usam a rede para se comunicarinternamente e com seu pblico-consumidor como tambm pequenos empreendimentobuscam manter e avanar suas posies no mercado utilizando sites e tcnicas decomrcio eletrnico. Sistemas logsticos complexos podem ser encontrados ao lado deesforos de movimento sociais que assumiram o ciberespao como seu canal decomunicao privilegiado. A Internet est distribuindo a "fora da informao por todoo domnio da atividade humana (CASTELLS, 2003: 7).

    Este o ponto essencial deste primeiro captulo: se a sociedade da informao baseadana expanso das redes informacionais e se estas so constitudas de mquinas deprocessar informaes (computadores e outros hardwares) conectadas umas s outras,isso implica em observar que dadas as caractersticas do fenmeno, a sociedade em rede uma sociedade da hiper-comunicao, ou a sociedade do uso intensivo dacomunicao. A sociedade em rede crescentemente uma sociedade baseada emintermedirios tecnolgicos, em protocolos e softwares.

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  • A Internet expandiu-se utilizando o conceito de rede das redes. Este conceito vital parase entender a dimenso planetria que a rede foi atingindo quanto mais a Guerra Friaperdia sentido e a vitria capitalista concretizava-se. Em 1973, Robert Kahn e Vint Cerfescrevem o artigo que delineou a arquitetura bsica da Internet como uma rede de redes.Isso s seria vivel se fosse definido um ou alguns protocolos de comunicao queassegurassem que uma rede de computadores entendesse os dados enviados por umaoutra. Com este objetivo, no mesmo ano, realizado em Stanford um seminrioreunindo Vint Cerf, Gerard Lelann e Robert Metcalfe, entre outros, quando lanado oprotocolo de controle de transmisso (TCP). Este protocolo incrementado e divididoem duas partes: uma responsvel por dividir as informaes em pacotes e outra emlocalizar os endereos de destino dos pacotes. Cerf, John Postel e Croker criam, em1978, o TCP/IP.

    Vrios protocolos de comunicao em rede existiam e existem. Alguns soproprietrios, desenvolvidos no interior de empresas e para utiliz-los necessrio pagarroyalties ou licenas. A Internet possui uma suite de protocolos, essenciais ao seufuncionamento, conhecido como TCP/IP. Esta suite, chamada por alguns de alma daInternet, desenvolvida e mantida coletivamente de modo no-proprietrio. Acomunicao em rede no pode existir sem protocolos de comunicao, assim comocomputadores e mquinas de processar no funcionam sem softwares.

    Um protocolo indica aos servidores de rede e a seus roteadores como eles devem secomunicar. Portanto, ele especifica o formato dos dados e um conjunto de regras paraque estes sejam encaminhados em cada um dos estgios de tratamento definidos peloprotocolo. Trata-se de um processo de comunicao. Comunicao exige linguagemcomum.

    Por exemplo, nestes primeiros cinco anos do sculo XXI, a maior parte da Internetutiliza ainda o chamado protocolo IPv4, a verso que popularizou a Internet em todo omundo, dada a sua facilidade de implementao. Por outro lado, desde a dcada de 90, aIETF (Internet Engeneering Task Force), um dos mecanismos colaborativos dedefinio de padres da rede mundial de computadores, publicou uma srie dedocumentos descrevendo como seria a nova verso do IPv4, o chamado IPNGWG (IPNext Generation Working Group) popularizado como protocolo IPv6. Os documentosque historicamente definem os protocolos e padres da Internet so conhecidos comoRFCs (Request for Comments). Apesar do seu nome em portugus, Pedido deComentrios, quando uma RFC lanada, ela j foi discutida exaustivamente entre osgrupos de tcnicos. As principais RFCs sobre o IPv6 so a RFC 1883 e a RFC 1884.

    Nascido para solucionar o problema da propalada escassez de endereos que ocrescimento da Internet sobre o IPv4 acarretaria e tambm para freiar o crescimentovertiginoso de tabelas de rotas, o padro IPV6 traz possibilidades de segurana que noexistem na sua verso anterior e acaba propiciando maiores possibilidades de controledos fluxos na rede mundial.

    "As especificaes do IPv6 definiram dois mecanismos de segurana: a autenticao decabealho (authentication header, [RFC1826]) ou autenticao IP, e a segurana doencapsulamento IP (encrypted security payload, [RFC1827]).

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  • A autenticao de cabealho assegura ao destinatrio que os dados IP so realmente doremetente indicado no endereo de origem, e que o contedo foi entregue semmodificaes. A autenticao utiliza um algoritmo chamado MD5 (Message Digest 5),especificado em [RFC1828].

    A segurana do encapsulamento IP permite a autenticao dos dados encapsulados nopacote IP, atravs do algoritmo de criptografia DES (Data Encryption Standard) comchaves de 56 bits, definida em [RFC1829].

    Os algoritmos de autenticao e criptografia citados acima utilizam o conceito deassociao de segurana entre o transmissor e o receptor. Assim, o transmissor e oreceptor devem concordar com uma chave secreta e com outros parmetros relacionados segurana, conhecidos apenas pelos membros da associao. Para gerenciar as chavesprovavelmente ser utilizado o IKMP (Internet Key Management Protocol),desenvolvido pelo grupo de trabalho em Seguranca IP." (SILVA)

    As especificaes de cada protocolo podem ser realizadas por tcnicos de altacapacidade, entretanto, elas trazem consigo uma srie de questes a respeito de seusimpactos sociais. A primeira delas sobre o quanto a sociedade est estimulada ehabilitada a decidir sobre temas cruciais que se apresentam com uma roupagem tcnica,mas embutem definies que so de contedo totalmente poltico e social e quepermitem mais ou menos privacidade, maior ou menor liberdade, muita ou poucasegurana, entre outros desafios. A segunda , se na ausncia de entendimento eparticipao social, a forma atual de deciso a que melhor assegura a liberdade e ademocracia da rede e da comunicao mediada por computador. Terceira, como evitarque ditaduras polticas, tecnocracias e mega-corporaes utilizem sua capacidadetcnica e organizacional para dominar os padres e ditar atravs deles oscomportamentos futuros da sociedade em rede1.

    O professor de Direito Constitucional Americano da Universidade de Stanford,Lawrence Lessig, afirmou que no ciberespao o cdigo a lei, ou seja, os protocolos esoftwares esto definindo direitos e deveres dos cidados, permitindo ou negandoacessos, limitando ou ampliando possibilidades de interaes, espaos e o fazer. Lessigalerta que a ausncia de governos no ciberespao no seria a garantia de liberdade doscidados nem dos consumidores, pois sua arquitetura no necessariamente neutra oublindada manipulao. (LESSIG, 1999: 5-8)

    O ponto central da tese de Lessig est na construo dos cdigos que dominam ociberespao e as aes no seu interior, uma vez que pode restringir e moldar a ao daspessoas na rede em uma escala e intensidade muito superior s obtidas pelas leisaprovadas pelos parlamentos. Condutas sociais so ditadas pelas linhas de cdigoescritas pelos programadores de software, tal como os legisladores. A diferena que osparlamentares fazem leis de maneira pblica e a criao de cdigos no est sendotransparente. Os cdigos trazem as ideias e os ideais de engenheiros de software, demaisprogramadores e, principalmente, dos donos das companhias que os desenvolvem.

    Esse um dos motivos que leva Lessig a defender o movimento de cdigo aberto eno-proprietrio. Lessig propugna que as leis do ciberespao no podem ser obscuras eopacas. Sua tradio constitucionalista e a defesa dos princpios federalistas daConstituio norte-americana o conduzem a levantar a necessidade de freios e

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  • contra-freios. Suas preocupaes maiores esto nos efeitos perversos da propriedadeintelectual no ciberespao, na garantia da liberdade de opinio, da privacidade doscidados.

    Em um Estado de Direito a transparncia do processo jurdico uma das bases daliberdade nas sociedades modernas. Todos podem saber quais as leis vigentes e atmesmo os processos judiciais. As punies no podem existir sem os devidosprocedimentos legais, que so pblicos e trasnparentes. Como saber o que est dentro deum cdigo fechado? Como ter garantias que o cdigo tem em suas linhas o tratamentoigual para todos que o utilizam? Atos jurdicos tornam-se perigosamente complexos eininteligveis se forem determinados em cdigos computacionais?

    "Pam Samuelson voltou ao mesmo ponto, ao recordar os membros da Association ofComputing Machinery de sua responsabilidade social como programadores: "Osprogramadores podem no perceb-lo, mas os programas de computador so regimesreguladores construdos de forma privada. Naqueles sistemas de controle, algumasatividades so autorizadas, enquanto que outras so proibidas por meios tcnicos (...)Cdigo como cdigo pode ser 'um meio eficiente de regulao', mas nem sempre produztimos resultados do ponto de vista social." (LYMAN)

    Um software pode ser apresentado em linguagem que os homens entendam, ocdigo-fonte, e em linguagem de mquina, binria, ou seja, em sua forma executvel.Software, segundo a definio corrente, pode ser entendido como uma sequncia deinstrues a serem seguidas ou executadas na manipulao, redirecionamento oumodificao de um dado (informao) ou acontecimento. Estas instrues sointerpretadas e executadas por um processador. O software um programa que pode serexecutado por qualquer dispositivo (celulares, computadores, aparelhos eletrnicos) quetenha capacidade de processar informaes.

    Quando algum utiliza uma urna eletrnica para votar, deseja que sua inteno de votoseja respeitada e seu voto confirmado no resultado final do processo. Tambm podeesperar que ningum possa saber em quem votou, para evitar presses, peseguies econstrangimentos. A democracia defende-se por meio do anonimato. Mas, umprogramador ao escrever o software eleitoral pode inserir instrues que altere avontade popular. Como saber se isto no ir ocorrer? Auditando cada linha docdigo-fonte do software que ser compilado e transformado em uma matriz executvelpara ser embarcada nas urnas. A identificao do eleitor e do voto dado, para posteriorconferncia pode ser simplesmente realizada por meio de rotinas inseridas no softwarede votao, sem que ningum perceba. Todavia a auditabilidade impedida quando osoftware fechado e protegido, ou seja, seu cdigo-fonte no aberto.

    Para saber quem tinha votado contra a cassao do ex-senador Luiz Estevo, na sessosecreta do dia 28 de junho de 2000, o senador Antonio Carlos Magalhes articulou adiretora do Prodasen, rgo de informtica do Senado, para obter a lista pretendida2.Foram introduzidas linhas de cdigo no sistema de votao do painel que permitiamidentificar os votantes. No processo de investigao realizado posteriormente, um"laudo tcnico elaborado por especialistas da Unicamp apontou 18 possibilidades defraude no painel eletrnico do Senado, que contabiliza os votos dos parlamentaresdurante as sesses da Casa."3 Longe da fico, as dificuldades do debate pblico sobretemas permeados pela tecnologia j se apresentam, de maneira escandalosa ou discreta,

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  • mas exigem a reflexo da sociedade. Por motivo semelhante, Lessig corretamenteconsidera que o controle das atividades humanas pertence esfera do interesse pblico.Se o cdigo est cumprindo esta funo sua gesto deve ser social e exercida da formademocrtica, o que reintroduz a importncia da transparncia. (LESSIG, 1999: 107-108)

    No descartvel a hiptese de que assistimos na sociedade em rede a uma fortetendncia ao fortalecimento da "razo instrumental" e reduo das possibilidadesemancipatrias de uma ao comunicativa, o que soa como completamentecontraditrio quando o objeto em foco uma sociedade intensamente voltada comunicao. O problema crucial est na ausncia de competncias comunicativas nacompreenso e domnio de uma linguagem cada vez mais utilizada como intermediriada inteligncia humana: o software. A ao comunicativa est fundada na interao e narazo, ou seja, no intercmbio comunicativo entre atores, onde a questo da linguagem central, uma vez que "os atores sociais so vistos como entidades capazes de usarlinguagem em contextos comunicativos, em exercerem competncias comunicativas."(COHN, 1993: 64)

    Como instrumentos de regulao da comunicao humana e das permisses e limitaesno ciberespao, tanto os softwares quanto os protocolos podem ser entendidos como asnovas legislaes. Entretanto, eles tm o papel de intermedirio da inteligncia humanaem uma sociedade cada vez mais dependente da comunicao mediada por computador.As pessoas usam os softwares para se comunicarem com outras pessoas. Sem eles issono seria possvel, pois a comunicao em rede feita sobre a infra-estrutura baseadaem computadores. Assim, pelas caractersticas da sociedade em rede, softwares eprotocolos adquirem o papel de linguagem no-natural, bsica e essencial.

    Pierre Lvy definiu a escrita como uma tecnologia da inteligncia (LVY, 1993: 87).Trata-se de um instrumento que permite portar pensamentos. Ao ser aplicada em umsuporte, seja de papel seja o CD, a escrita supera os limites territoriais e temporais daoralidade. O pensamento expresso pela fala pode ser transportado e vencer quaisquerdistncias. Para entender o que est escrito preciso dominar a lngua e a linguagemque a escrita se disps a portar. Um protocolo de comunicao em rede ou um sistemaoperacional de um computador tambm so instrumentos de comunicao, mas quepermitem carregar no somente a linguagem que foi escrita, mas tambm a prpria falae sua imagem. A comunicao mediada por computador permite a fuso de textos, sonse imagens.

    O cdigo fonte da escrita ocidental o alfabeto. O seu domnio e aprendizado chamado de alfabetizao. Este cdigo um meio de portar sentimentos, decries,sensaes, enfim todo tipo de pensamentos, simples ou complexos. Ao contrrio daescrita em que, para us-la necessariamente preciso dominar o alfabeto e as regras deuma lngua, a comunicao mediada por computador exige do humano a habilidade parautilizar um conjunto de comandos, em geral iconizados, que se d aos computadores. Adefinio deste conjunto limitado de ordens que permite a comunicao do humanocom a mquina e atravs da mquina com uma rede, e atravs de seus protocolos comoutro humano que utiliza uma mquina contendo um software.

    Ao contrrio da escrita o software e os protocolos permitem a comunicao humanasem que saibamos o seu cdigo fonte. Ao mesmo tempo que este fato permite apopularizao da comunicao em rede, engendra um novo tipo de linguagem mais

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  • limitadora do pensamento que as prprias linguagens naturais. Na aula inaugural dacadeira de semiologia literria do Colgio de Frana, realizada em janeiro de 1977,Roland Barthes afirmou:

    "Alguns esperam de ns, intelectuais, que nos agitemos a todo momento contra o Poder;mas nossa verdadeira guerra est alhures: ela contra os poderes, e no um combatefcil: pois, plural no espao social, o poder , simetricamente, prpetuo no tempohistrico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; faam umarevoluo para destru-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no novo estado decoisas. A razo dessa resistncia e dessa ubiquidade que o poder o parasita de umorganismo trans-social, ligado histria inteira do homem, e no somente a sua histriapoltica, histrica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidadehumana, : a linguagem -- ou para ser mais preciso, sua expresso obrigatria: a lngua.A linguagem uma legislao, a lngua seu cdigo. No vemos o poder que reside nalngua, porque esquecemos que toda a lngua uma classificao, e que toda aclassificao opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartio e cominao.Jakobson mostrou que um idioma se define menos pelo que ele pemite dizer, do que poraquilo que ele obriga a dizer." (BARTHES, 2002: 11-13)

    Softwares so linguagens essenciais de uma sociedade em rede, da qual noconhecemos sua gramtica, mas mesmo assim podemos utiliz-los. Os seusdesenvolvedores, aqueles que escrevem seus cdigos-fonte, tm um poder social derelevncia crescente. Definem nos cdigos fonte nossas possibilidades de comunicao,o "como podemos dizer" e, em alguns casos, "o que podemos dizer". Noam Chomskyem seus estudos lingsticos concluiu que a lngua (natural) no somente pelas frasesque existem mas pelas possibilidades de cri-las a partir de um conjunto de regrasconstituem a gramtica. A criatividade do pensamento governada pelas regras dagramtica. Ao contrrio da lngua que pode ser assim definida como um conjuntoinfinito de frases e que tem sua gramtica aberta e interiorizada pelos falantes, alinguagem artificial dos softwares e protocolos pode ser fechada e com uma gramtica(como conjunto de regras) desconhecida daqueles que a utilizam. Isto porque seucdigo-fonte pode ser fechado.

    Ao contrrio das lnguas naturais que so construdas pelo conjunto de interaessociais, muitos softwares e protocolos de grande uso social so desenvolvidos de modoproprietrio. muito conhecida a expresso que aparece nas telas de computador queusam o sistema operacional windows: "Este programa realizou uma operao ilegal eser fechado. Se o problema persistir , entre em contato com o revendedor". Com essamensagem, a empresa desenvolvedora desta soluo, informa ao usurio sobre aimpossibilidade de se fazer algo que o cdigo daquele software no autoriza. Na maioriadas vezes as pessoas no conseguem saber o que elas no poderiam ou deveriam terfeito. As decises sobre permisses do que fazer ou no fazer so tomadas pela empresaproprietria do software e por seus programadores.

    Yan Hacking, ao discutir a importncia do estudo da linguagem para a filosofia,levantou um ponto fundamental escrito por Hobbes: "o uso habitual da fala trasferir odiscurso mental para o discurso verbal, ou o fluxo de nossos pensamentos para um fluxode palavras" (Leviat, 1.4). Ele certamente tinha uma teoria plausvel. Em cada um dens h um fluxo de pensamentos. Este pr-lingustico, mas til ser capaz deexpress-los em palavras. difcil lembrar de raciocnios complexos sem verbaliz-los

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  • e no possvel comunicar pensamentos ou raciocnios sem a linguagem. Podemosconcordar com a astuta contra-observao de Berkeley, cerca de sessenta anos maistarde, de que "a comunicao das idias representadas por palavras no o principal enico fim da linguagem, como se supe geralmente. H outros fins, como o de despertaruma certa emoo, incitar ou dissuadir de uma ao, levar a mente a uma disposioparticular" (Princpios do Conhecimento Humano, seo 20). Isso mostra apenas que acomunicao de pensamentos no o nico fim da linguagem, e o prprio Berkeley trazuma evocao eloquente do cenrio hobbesiano quando fala que a linguagem despertaem voc os pensamentos j presentes em mim." (HACKING, 1999: 23-24)

    Mas, e se no houver uma palavra para expressar um pensamento? Pode-se criar umapalavra ou simplesmente o pensamento ficar restrito e no expresso. A linguagem temesse poder de limitar ou explicitar "discursos verbais", sentimentos e sensaes. Decerto modo, as linguagens podem ser mais ou menos capazes de moldar a forma desentir e de pensar. Ela tambm conforma os pensamentos. Como as evidncias indicamque a inteligncia no pode ser contida por qualquer linguagem natural durante muitotempo, as linguagens so constantemente alteradas e enriquecidas. No caso daslinguagens bsicas da comunicao mediada por computador, temos o mesmofenmeno. Estas linguagens podem bloquear ou expandir as possibilidades decomunicar pensamentos j traduzidos nas lnguas naturais. Seu poder est naspossibilidades de criao e dizem respeito tambm liberdade de expresso ecomunicao.

    Em uma sociedade em rede, os protocolos e softwares so objetos de estudo dascincias sociais. Sem dvida, o software j vinha sendo estudado pela cinciaeconmica no contexto dos impactos micro e macroeconmicos das tecnologias dainformao. Mas evidente que o software como sistema tecnolgico socialmenteproduzido, como intermedirio fundamental da comunicao mediada por computador,como linguagem bsica da sociedade em rede, concentra em seu desenvolvimentodecises de grande impacto social, cultural e poltico. A linguagem bsica da sociedadeda informao pode ser privada ou pblica, fechada ou aberta, hierarquicamenteconstruda ou compartilhada, obscura ou transparente, enfim, democrtica ouautoritria. Estas so questes que esto em jogo na sociedade da informao.

    CAPTULO II

    O modelo de propriedade de bens intangveis e odesenvolvimento do software proprietrio.

    "O sucesso um pssimo professor. Induz gente brilhante a pensar que impossvelperder. Alm do mais um guia precrio do futuro. O que hoje parece um planoempresarial perfeito ou a ltima palavra em tecnologia amanh pode estar todesatualizado quanto a televiso, a vlvula ou o computador mainframe." (GATES,1995: 52)

    No incio do sculo XXI, o chamado mercado de Tecnologia da Informao eComunicao tornou-se um dos segmentos econmicos que mais crescem no planeta,cerca de 10% ao ano. (TAIT) Nele, a indstria de software j representa entre 1 e 2% doPIB dos pases ricos e, em 2001, movimentou no mundo algo em torno de US$ 300bilhes. Segundo a Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico

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  • (OCDE), o mercado mundial de software, que era de US$ 90 bilhes em 1997, atingirUS$ 900 bilhes em 2008. (ROSELINO) Os pases denominados "emdesenvolvimento" tambm avanam. A pesquisa Slicing the Knowledge-BasedEconomy (KBE) in India, China and Brasil: a Tale of Three software Industries,realizada pelo Massachussets Institute of Technology (MIT), em 2003, indicou que oBrasil o stimo mercado de software no mundo, com vendas de US$ 7,7 bilhes. Omercado da ndia estimado em US$ 7,9 bilhes e o da China em US$ 8,2 bilhes.

    Somente a empresa norte-americana de software, Microsoft Corporation, obteve umfaturamento de US$ 36,84 bilhes no ano fiscal de 2004. No mesmo perodo, acorporao logrou um lucro lquido de US$ 8,17 bilhes.1 O lucro representou poucomais de 22% do faturamento, percentual muito maior do que o obtido pela maioriaabsoluta dos empreendimentos de outros setores da economia. importante notar que olucro lquido da Microsoft foi maior do que o mercado brasileiro e o indiano desoftware e quase atingiu a dimenso do chins. O faturamento divulgado 4.78 vezesmaior que o mercado brasileiro, 4,76 vezes maior que o indiano e 4,49 vezes maior queo chins. Segundo a Microsoft, seu resultado em 2004 representou um aumento de 14%em relao aos US$ 32,19 bilhes alcanados em 2003. As razes desse sucesso podemser encontradas no modelo de negcios que a corporao disseminou pelo planeta.

    Alan Story, especialista em propriedade intelectual da Kent Law School, em Canterburyna Inglaterra, definiu o TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of IntellectualProperty Rights) como uma tentativa de promover a "Microsoft-ification"(Microsoftisao) do mundo. (STORY, 2002: 129) Story descortina o empenho daOrganizao Mundial de Comrcio em conquistar os mercados mundiais para o tipo delicenciamento de produtos que interessa a corporao norte-americana. inegvel que omodelo de desenvolvimento e comercializao de software praticado pela Microsofttornou-se hegemnico, um padro real da indstria de software proprietrio.

    Pela sua grande expresso econmica e cultural, uma vez que o sistema operacional daMicrosoft encontra-se presente em um pouco mais de 90% dos computadores pessoais(WIRED, fev. 2005: 97-101), analisaremos o processo pelo qual esta empresa tornou-sea maior expresso do modelo de propriedade de bens intangveis na sociedade dainformao, culminando na construo de um monoplio de algoritmos. Tambm seranalisada a propriedade de software baseada em licenas proprietrias de uso, tendocomo base a licena da Microsoft.

    Vamos comear por um breve relato sobre a evoluo do hardware e como determinadasmudanas em sua arquitetura viabilizaram o modelo hegemnico praticado pelaMicrosoft. Os computadores utilizavam vlvulas at 1959. Vlvulas foram substitudaspor transistores entre 1959 e 1964. Os circuitos integrados, entre 1964 e 1970, elevarama velocidade de processamento, e permitiram uma gerao de mquinas com sistemasoperacionais avanados. Em 1965, Gordon Moore, ento diretor da FairchildSemiconductor, constatou que a quantidade de transistor nos chips de silcio dobravaanualmente desde 1959. Com mais tempo de observao, concluiu que a capacidade dossemicondutores dobrava a cada 18 meses seguida da queda de seus preos. Estaconstatao passou a ser chamada de "lei de Moore". (RANGEL, 1999: 17-43)

    At os anos 70, o software era distribudo junto com o hardware. A ento chamadainformtica ainda estava muito concentrada na mquina. Os softwares eram desenhados

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  • ou programados para cada hardware. "Os computadores programveis capazes dereceber instrues externas que determinassem sua lgica de funcionamento,provocaram uma distino clara entre o equipamento (a mquina em si) e o roteiro detarefas que ela desempenha. Para identificar os componentes fsicos do sistema, comofios e conectores, adotou-se o termo hardware (palavra que, fora da informtica,costuma ser traduzida por "ferragem"), que identifica um material "duro", palpvel. Emcontraposio, o termo software passou a identificar os programas, o componente lgico(ou "macio"), intangvel, que determina mquina o que fazer. Pela primeira vez,criava-se uma ferramenta cuja a finalidade no estava definida nela mesma, mas em umconjunto de instrues a ser criada a posteriori." (RANGEL, 1999: 24)

    A diferenciao entre hardware e software alm de facilitar a programao e permitirque um programa fosse utilizado em mais de um tipo de computador foi fundamentalpara o surgimento do modelo de propriedade de software que se tornou hegemnico nosanos 80 e 90. O depoimento de Bill Gates, um dos fundadores da Microsoft, no livro AEstrada do Futuro, bastante esclarecedor:

    "Na poca, o software, assim como o hardware, tambm era caro. Tinha de ser escritoespecificamente para cada tipo de computador . E cada vez que o hardware docomputador mudava, o que acontecia regularmente, o software precisava ser quase todorefeito. Os fabricantes de computadores forneciam alguns blocos-padro de software(por exemplo bibliotecas de funes matemticas) junto com a mquina, mas a maiorparte do software tinha de ser escrita especificamente para resolver os problemasindividuais desta ou daquela empresa. Haviam alguns programas gratuitos e umaspoucas companhias vendiam software de uso geral, porm havia muito poucos pacotesque se pudessem comprar no varejo." (GATES, 1995: 24)

    O software um algoritmo. So rotinas encadeadas logicamente. Um algoritmo pode serdescrito como "um procedimento atravs de um conjunto de aes elementaresdeterminadas e com uma durao limitada no tempo."(EPSTEIN, 1986: 82) Entendidocomo linguagem no-natural bsica da sociedade da informao, o algoritmo quecompe o software no comporta a ambiguidade. Suas instrues devem ser precisaspara que o computador consiga execut-las. Os softwares so escritos em linguagem deprogramao por programadores. softwares so cdigos.

    softwares possuem um cdigo executvel e um cdigo fonte. O primeiro binrio, umconjunto de dgitos (zero e um) para ser processado pelo computador. O segundo ocdigo em que o software foi desenvolvido, ou seja, so as rotinas e instrues escritaspelo programador em uma linguagem mais legvel aos humanos. Depois de finalizado, ocdigo fonte compilado para se tornar cdigo executvel, exatamente aquele que ocomputador ir entender. Compilar traduzir a linguagem de programao para alinguagem binria, a nica que o computador pode entender.2 Esta distino importante, pois o modelo hegemnico de propriedade de software baseado no cdigofonte fechado, no transparente, como veremos posteriormente.

    Quando um software feito para um hardware especfico com arquitetura fechada ouproprietria, ele no pode ser utilizado por mquinas de outros fabricantes, uma vez queestas portam outra arquitetura. Assim, neste contexto, o elemento essencial desteprocesso o hardware. A empresa que o fabrica tem controle total sobre tudo que poderodar nele. Pode decidir se vai ou no permitir que seu hardware rode softwares de

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  • terceiros ou se ela mesma ir desenvolv-los. Esse um modelo em que a propriedadedo hardware estratgica, pois a empresa que o fabrica e que detm a patente de suaarquitetura e de seus componentes, pode evitar tecnicamente que determinadossoftwares rodem (funcionem) em sua plataforma. Mas este modelo foi sendo superado.

    "An Wang, o imigrante chins que tranformou os Laboratrios Wang no maiorfornecedor de calculadoras eletrnicas dos anos 60. Nos anos 70, ignorou o conselho detodos que o cercavam e abandonou o mercado de calculadoras pouco antes da chegadade concorrentes de baixo custo, que o teriam arruinado. Foi uma jogada brilhante. Wangreiventou sua empresa, transformando-a na principal fornecedora de mquinasprocessadoras de texto". (...) "Wang era um engenheiro visionrio. O mesmo tipo deinspirao que o levou a abandonar as calculadoras poderia t-lo conduzido ao sucessona indstria de software para PCs, nos anos 80. Mas Wang no enxergou a curvaseguinte. Desenvolveu programas excelentes, todos porm proprietrios, s funcionandoem seus processadores de texto. Sem chance nenhuma de deslanchar, portanto, depoisque surgiram os microcomputadores de uso geral, capazes de rodar inmeros programasde processamento de textos como WordStar?, WordPerfect? e MultiMate? (que alisimitavam o software de Wang). Se Wang tivesse entendido a importncia de aplicativoscompatveis, talvez no houvesse uma Microsoft." (GATES, 1995: 54-55)

    O relato sobre Wang feito por Gates permite perceber que a ruptura do modelo devinculao exclusiva entre o software e um determinado hardware teve consequnciasmicroeconmicas importantes, ou seja, fruto do avano de empreendedores detecnologia ela se disseminou e impactou decisivamente o mercado. Pode parecer notvele contraditria esta crtica de Gates ao modelo de programas "proprietrios" de SrWang. importante ressaltar que Gates referia-se principalmente fase da indstria decomputadores que trabalhava com a "arquitetura proprietria" ou "arquitetura fechada"para conectar todos os dispositivos do computador. A forma como os componentesinterligavam-se era propriedade exclusiva da empresa fabricante, portanto, secreta atodos os demais usurios. A vantagem desse modelo estava, por exemplo, noaprisionamento total dos programas e novos hardwares pela empresa fabricante docomputador. Por exemplo, o computador s reconheceria a impressora que fosse domesmo fabricante. Para programar nessa fase tecnolgica era necessrio que oprogramador conhecesse muito bem os componentes do hardware que rodaria suasoluo. Em geral, a linguagem de programao era muito prxima a "linguagem demquina", binria, uma vez que o programa era criado para uma mquina especfica.

    O avano dos microprocessadores possibilitou o avano dos computadores pessoais eestes permitiram que o modelo de arquitetura fechada do hardware fosse superado peloaberto, ao mesmo tempo que consolidava o modelo fechado e proprietrio do software.O software estava potencialmente livre do aprisionamento a um nico tipo de mquina.Como bem explanou Castells,

    "o que caracteriza a atual revoluo tecnolgica no a centralidade de conhecimentose informao, mas a aplicao desses conhecimentos e dessa informao para a geraode conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicao da informao, emum ciclo de realimentao cumulativo entre inovao e uso". (...) "O ciclo derealimentao entre a introduo de uma nova tecnologia, seus usos e seusdesenvolvimentos em novos domnios, torna-se muito mais rpido no novo paradigmatecnolgico. Consequentemente, a difuso da tecnologia amplifica seu poder de forma

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  • infinita, medida que os usurios apropriam-se dela e a redefinem. As novastecnologias da informao no so simplesmente ferramentas a serem aplicadas, masprocessos a serem desenvolvidos." (CASTELLS, 1999: 50-51)

    A crescente autonomia do software levou ao surgimento de inmeras linguagens deprogramao que se distanciam da "linguagem de mquina". Quanto mais prxima dacompreenso dos computadores, as linguagens so chamadas de "baixo nvel"; quantomais distantes da mquina e mais prxima das lnguas naturais, chamamos delinguagem de "alto nvel". A linguagem assembly a mais prxima da mquina, seunvel de abstrao reduzido, portanto, considerada de "baixo nvel". J as linguagensCOBOL, BASIC e C, por exemplo, so linguagens de "alto nvel". Sem dvida alguma,pela sua proximidade com a humana, as linguagens de "alto nvel" permitiramdisseminar mais amplamente a programao e, consequentemente, aumentar o nmerode programadores. Tambm permitiram desenvolver mais velozmente os softwares edemocratizar ainda mais o seu desenvolvimento.

    "O objetivo da Microsoft era escrever e fornecer software para microcomputadores semse envolver diretamente na fabricao ou venda do hardware. A Microsoft licenciavasoftware a preos extremamente baixos. Acreditvamos que seria possvel ganhardinheiro apostando no volume das vendas. Adaptvamos nossas linguagens deprogramao, como por exemplo nossa verso BASIC, para cada mquina que surgia.ramos muito maleveis a todos os pedidos dos fabricantes de hardware. Noqueramos dar a ningum algum motivo para procurar outro fornecedor. A inteno erafazer com que a opo Micrososft fosse automtica. Nossa estratgia funcionou.Licenciamos linguagens de programao para praticamente todos os fabricantes demicrocomputador. Ainda que o hardware fabricado por duas empresas fosse diferente, ofato de ambos rodarem o Microsoft BASIC significava que eram de alguma formacompatveis." (GATES, 1995: 63-64)

    O empenho de Gates em reivindicar a arquitetura de hardware aberta no era o mesmona rea de software. A abertura do hardware implicava na possibilidade de outrosfabricantes adotarem aquele modelo ou linha de construo. A Apple, de Steve Jobs, noabria sua arquitetura que estava patenteada. A clonagem seria judicialmente barrada. Ainteroperabilidade entre hardwares era muito difcil sem que existisse a arquiteturaaberta ou uma padronizao seguida por todos.

    A Aplle Computer Inc. fundada em abril de 1977 acreditou e alavancou o segmento demicrocomputadores. O Apple II trazia um microprocessador Motorola 6502. A explosodas vendas do microcomputador parecia negar a famosa sentena de Ken Olsen,fundador da Digital Equipment: "no vejo por que algum haveria de ter umcomputador em casa." (RANGEL, 1999: 45) Em 1979, a Apple trazia o primeirosoftware de planilha de clculo, VisiCalc?, o que gerou um crescimento ainda maior nasvendas. Em 1980, a IBM, conhecida como Big Blue, pecebeu que microcomputadoreseram uma realidade e, principalmente, que ela estava fora deste mercado.

    "A IBM queria lanar seu microcomputador no mercado em menos de um ano. Parapoder cumprir esse cronograma, teria que abandonar o esquema tradicional, queconsistia em fabricar todo o hardware e software ela mesma. De modo que a IBMdecidiu construir seu PC com componentes j prontos, ao alcance de qualquer um. Issolevou a uma plataforma fundamentalmente aberta, fcil de ser copiada." (...)

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  • "Embora geralmente construsse seus prprios microprocessadores, a IBM decidiucomprar da Intel os microprocessadores para seu PC. Para a Microsoft, foi importante aIBM ter decidido no criar seu prprio software e licenciar o nosso sistemaoperacional." (GATES, 1995: 68)

    Como bem demonstra o relato de Gates, este o ponto importante de inflexo que vaiconsolidar a Microsoft e o seu modelo de licenciamento proprietrio de software.Exatamente no momento em que se aposta na abertura do hardware, a Microsoft tentavatornar-se um padro de fato na rea de software no crescente mercado mundial decomputadores pessoais. Sem dvida, quando um padro, uma arquitetura e um software aberto, todos tm acesso sua estrutura e ao seu contedo. A cpia ou o clone permiteexpandir o uso do que tiver qualidade em um ritmo bem mais veloz, alm de envolvermais empresas e pessoas no seu processo de inovao incremental. Esta uma evidnciana rea de hardware, mas tambm no segmento de software. Todavia, as decisesadotadas pelo gigante da tecnologia, a IBM, aliadas busca de um conjunto depequenas e mdias empresas em se tornarem monoplios de seus segmentos, bem como,os indcios de uma forte tendncia da economia da informao ser essencialmente umaeconomia de redes, levaram o modelo de licenciamento de software para o ladoproprietrio.

    "Com sua reputao, aliada deciso de usar um projeto aberto que outras empresaspoderiam copiar, a IBM tinha realmente chance de criar um padro novo e abrangentede computador pessoal. Ns queramos participar. Aceitamos, portanto, o desafio deescrever o sistema operacional. Adquirimos um trabalho anterior, desenvolvido numaempresa tambm de Seattle, e contratamos seu engenheiro-chefe, Tim Paterson. Cominmeras modificaes, o sistema transformou-se no Sistema Operacional de Disco daMicrosoft, o MS-DOS. Tim tornou-se, na verdade, o pai do MS-DOS. A IBM, nossoprimeiro licenciado, batizou sua verso de PC-DOS; as letras PC so as iniciais depersonal computer, computador pessoal." (GATES, 1995: 69).

    A Microsoft fez um contrato em que a IBM deveria usar os seus softwares, mas aMicrosoft no estaria obrigada a fornecer seu software exclusivamente para a IBM. Emuma arquitetura aberta ou padronizada de hardware, um software pode ser desenvolvidopara rodar (funcionar) sobre todo e qualquer computador que a utilize. Se verdade queum programa no roda sem um computador, desse modo tambm passou a ser verdadeque qualquer computador poderia rodar um mesmo programa.

    "Fizemos um trato que para a IBM, era fabuloso: uma taxa nica, pequena, concedia empresa o direito de usar o sistema operacional da Microsoft em tantos computadoresquantos conseguisse vender. Ou seja, a IBM tinha um incentivo para promover oMS-DOS e vend-lo a baixo preo." (...) "Nosso objetivo no era fazer dinheirodiretamente com as vendas da IBM, e sim licenciar o uso do MS-DOS a outrosfabricantes de computador que quisessem oferecer mquinas mais ou menoscompatveis com o IBM-PC. A IBM podia usar nosso software de graa, mas no tinhadireito exclusivo de uso nem controle sobre futuros aperfeioamentos. Com isso aMicrosoft se viu na posio de licenciar uma plataforma de software indstria decomputadores." (GATES, 1995: 70)

    Gates deixa claro que o padro e a arquitetura aberta para o hardware foi acompanhadodo modelo de cdigo fechado para o software. Enquanto qualquer empresa podia

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  • fabricar um computador pessoal, tal qual o modelo IBM e vender em seu mercadoregional, a Microsoft no permitia que o mesmo fosse feito com seus algoritmos. Seuobjetivo era fechar completamente o cdigo-fonte de seu software e levar o seu modelode licenas de uso para todo o crescente mercado de microcomputadores. Gatesdefendia o valor do compartilhamento nos segmentos das tecnologias da informao ecomunicao desde que no fossem da rea de software: "O padro IBM tornou-se apalataforma imitada por todos (...) Timing e marketing so ambos fatores fundamentaispara a aceitao de produtos tecnolgicos". (GATES, 1995: 71)

    A descrio da estratgia de abertura no hardware para monopolizar o software bastante evidente. Gates reconhece que o conhecimento aberto, portanto acessvel atodos, de como construir o hardware PC foi decisivo para sua consolidao como opadro de mercado dos computadores pessoais. Por outro lado, Gates interpreta de outromodo esse processo :

    "Tornou-se muito comum, entre determinado grupo de historiadores revisionistas,concluir que a IBM cometeu um erro trabalhando com a Intel e a Microsoft para criarseu PC. Argumentam que a IBM deveria ter patenteado a arquitetura de seu PC etambm que a Intel e a Microsoft acabaram levando vantagem sobre a IBM. Mas osrevisionistas no entenderam o principal. A IBM transformou-se no carro-chefe daindstria de PCs justamente porque foi capaz de canalisar uma quantidade incrvel detalentos criativos e de energia empreendedora e utiliz-los para promover suaarquitetura aberta. A IBM estabeleceu os padres." (GATES, 1995: 72)

    O modelo aberto foi quem propiciou a criativa e macia adeso dos fabricantes dehardware quela arquitetura, transformando-a em padro. Isso aconteceu tambm comos protocolos de rede. Um protocolo pode ser entendido como a "descrio formal deformatos de mensagem e as regras que duas ou mais mquinas devem seguir paraintercambiar essas mensagens"(COMER, 1998: 638) . O TCP/IP, que a suite deprotocolos essenciais da Internet, afirmou-se principalmente por ser de simplesinstalao, compatvel com o princpio de "rede das redes" e por ser aberto, noenvolvendo o pagamento de royalties para o seu uso. O interessante notar que a tticainicial da Microsoft foi defender padres abertos onde ela no dominava a tecnologia,como bem apontou Bill Gates ao se referir computao grfica no princpio dos anos80:

    "Na poca havia dois computadores pessoais no mercado com capacidade grfica: oXerox Star e Apple Lisa. Eram ambos caros, de capacidade limitada e construdos comarquitetura proprietria. As demais empresas de hardware no tinham a concesso dossistemas operacionais para fabricar equipamentos compatveis e nenhum dos dois atraiumuitas empresas interessadas em desenvolver aplicaes. A Microsoft queria um padroaberto3 e levar a capacidade grfica a qualquer computador que estivesse rodando como MS-DOS." (GATES, 1995: 75)

    Uma sociedade que utiliza intensamente a informao centralmente uma sociedade dahiper-comunicao. Essa depende de protocolos e softwares que cumprem o papel delinguagens entre redes que conectam mquinas que conectam pessoas. Esta sociedadeconectada constitui uma grande e mltipla rede. Sua economia d-se tambm em rede eos efeitos econmicos de um padro vo se alastrando pelos ns dessa mesma rede. BobMetcalfe, o criador da Ethernet4, props que o valor econmico e social de uma rede

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  • aumenta exponencialmente em relao ao nmero de pessoas conectadas. ( SHAPIRO& VARIAN, 1999: 216) Padres permitem que a rede constitua-se ou comporte-se comoquer suas normas. A comunicao depende de padres. Gates observou que:

    "s vezes, governos e comisses estabelecem padres com o objetivo de promover acompatibilidade. So chamados de padres "de direito" e tm fora de lei. Contudo, amaioria dos padres bem sucedidos so "de fato"." (...)"Os padres de fato em geral sedesenvolvem no mercado atravs de um mecanismo econmico muito semelhante aoconceito de espiral positiva que impulsiona as empresas bem-sucedidas: o sucessorefora o sucesso. Este conceito, chamado retorno positivo, explica por que os padresde fato em geral surgem quando as pessoas esto buscando compatibilidade." (GATES,1995: 65)

    Shapiro e Varian trabalham com a noo de feedback que pode ser positivo ou negativo.O feedback positivo um processo dinmico que faz a empresa forte ficar mais forte . Ofeedback negativo o seu oposto: empresas fracas ficam mais fracas. A noo defeedback apresenta-se muito evidente em processos chamados de economia de rede,onde a questo dos padres e das comunicaes entre produtos e pessoas so vitais.

    "Na economia da informao, o feedback positivo apareceu em uma forma nova e maisvirulenta baseada no lado da demanda do mercado, no apenas no lado da oferta. (...)Em maio de 1998, a Microsoft tinha uma capitalizao de mercado de cerca de US$ 210bilhes. Esse valor enorme no se baseia em economias de escala no desenvolvimentode software. Oh, sim, o projeto de software tem economias de escala como qualqueroutro produto da informao. Mas h diversos outros sitemas operacionais que oferecemdesempenho comparvel (ou superior) ao do Windows 95 e ao do Windows NT, e ocusto de desenvolver sistemas operacionais rivais mnimo em comparao com acapitalizao de mercado da Microsoft. O mesmo vale para aplicativos bsicos daMicrosoft. No, o domnio da Microsoft baseia-se nas economias de escala do lado dademanda. Os clientes da Microsoft valorizam os sistemas operacionais dela porque elesso amplamente utilizados, constituem o padro de fato do setor. Os sistemasoperacionais rivais no possuem massa crtica suficiente para constituir uma ameaa."(SHAPIRO & VARIAN, 1999: 211)

    Talvez a afirmao mais esclarecedora da importncia do efeito em rede e do enormepeso da compatibilidade em uma rede esteja nessa passagem: "O valor de umatecnologia nem sempre depende de ampla aceitao. Uma frigideira maravilhosa, noaderente, til mesmo que voc seja a nica pessoa no mundo a compr-la. Porm, emse tratando de comunicaes e de outros produtos envolvendo colaborao, grande partedo valor do produto vem de uma ampla disponibilidade. Podendo escolher entre umalinda caixa de correio, toda feita mo mas com uma fenda por onde s passa um nicotamanho de envelope, e uma caixa velha de papelo onde todo o mundo pode deixarcorrespondncia e recados de todo tipo e tamanho, voc escolheria a de acesso maisamplo. Voc escolheria compatibilidade." (GATES, 1995, p 64) Como veremos frente,entender a noo de compatibilidade estratgica para poder manipul-la a favor de suaampliao ou pelo seu bloqueio.

    Gates sabia que "sem o sistema operacional o computador no serve para nada. Osistema operacional a base sobre a qual so construdos todos os programasaplicativos..." (GATES, 1995: 55). Dominar o sistema operacional permitiria tentar

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  • dominar outros programas aplicativos. O sistema operacional de um computadorpoderia impedir que certos aplicativos dos concorrentes rodassem sobre ele. Ossoftwares podem ser divididos em bsicos e aplicativos. O principal software bsico osistema operacional. Uma planilha de clculo um aplicativo. Exemplificando, umaplanilha que roda sobre o sistema operacional Unix pode no rodar sobre o Windows.Com o modelo proprietrio de software e a partir do acordo com o modelo de hardwareaberto da IBM, a Microsoft viu-se na posio de licenciar uma plataforma de software indstria de computadores. Qual plataforma? A plataforma de seu sistema operacionalque se chamava DOS e posteriormente foi substituda pelo Windows, apesar de teremconvivido durante muito tempo.

    Em que se baseia este licenciamento? A licena proprietria tem caractersticas comunsque sero realadas aps a anlise da licena de uma das verses do sistema operacionalda Microsoft, parmetro do mercado de software. No ser feito aqui uma anlisejurdica das licenas, nem de sua evoluo histrica. A observao se concentrar noselementos estruturais ou essenciais do licenciamento de um software proprietrio,amplamente utilizado, para posterior comparao com o modelo licenciamento aberto eno-proprietrio. Antes importante esclarecer que a idia de licena de propriedadetem na sua origem o bloqueio ou a negao de acesso aos que no esto licenciados. Aempresa que licencia tem o monoplio daquele produto, ou seja, o monoplio dodesenvolvimento do mesmo, independente de tipos diferenciados de autorizaes eformas de pagamento pelo seu uso, como podemos observar no exemplo seguinte:

    "Nos velhos tempos, quando a Microsoft enfrentava concorrncia no mercado desistemas operacionais, ela licenciou o DOS para fabricantes de clones mediante oemprego de uma escala progressiva que dependia do nmero de mquinas que ofabricante produzia, estivesse ou no o DOS instalado nelas. Isso era chamado delicena-por-processador, porque os clientes de OEM da Microsoft pagavam royalties aela pela licena de uso do DOS com base no nmero de processadores (mquinas) quevendessem. Observe que a fixao de preos baseava-se na produo de mquinas, nono nmero de mquinas nas quais o DOS fora instalado. Isso significava que quando osfabricantes instalavam um sistema operacional na mquina antes de exped-la, a escolhanatural era o DOS, uma vez que j havia sido pago em virtude da poltica delicenciamento. O DOS teve custo incremental zero de instalao, o que o tornou muitoatraente em relao concorrncia. O Departamento de Justia (norte-americano)questionou em 1994 essa estrutura de fixao de preos e a Microsoft concordou emabandon-la." (SHAPIRO & VARIAN, 1999: 97)

    A licena de uso da verso Microsoft Windows XP Professional, o sistema operacionalmais importante do incio do sculo XXI, segue o padro histrico da empresa de Gatese chama-se genericamente de EULA (End-User License Agreement / Contrato deLicena de Usurio Final). Durante um bom tempo o Eula no era impresso e nempublicado. Isso obrigava a pessoa que adquiria o software a tomar contato com ostermos de seu uso somente na hora da instalao. Caso no concordasse com um dosartigos da licena teria um grande incoveniente para tentar receber de volta o que pagou.

    O EULA da verso Microsoft Windows XP Professional, obtida no incio de 2005, cediaao usurio do software os seguintes direitos, "desde que voc cumpra todos os termos econdies deste EULA"5:

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  • "INSTALAO E USO. Voc poder instalar, usar, acessar, exibir e executar umacpia do Produto em um nico computador, como uma estao de trabalho, um terminalou outro dispositivo ("Estao de Trabalho"). O Produto no poder ser usado por maisde dois (2) processadores ao mesmo tempo em uma nica Estao de Trabalho. Vocpoder permitir um mximo de dez (10) computadores ou outros dispositivoseletrnicos (cada um deles um "Dispositivo") para se conectar Estao de Trabalhopara utilizar os servios do Produto somente para servios de Arquivo e Impresso,Servios de Informao da Internet e acesso remoto (incluindo o compartilhamento daconexo e servios de telefonia). O nmero mximo de dez conexes inclui as conexesindiretas feitas atravs de multiplexao ("multiplexing") ou outro software ou hardwareque rene ou agrega conexes. Exceto quando permitido pelos recursos NetMeeting?,Assistncia Remota e rea de Trabalho Remota descritos abaixo, voc no poder usaro Produto para permitir que qualquer Dispositivo use, acesse, exiba ou execute outrosoftware residente na Estao de Trabalho, nem poder permitir que qualquerDispositivo use, acesse, exiba ou execute o Produto ou a interface de usurio doProduto, a menos que o Dispositivo tenha uma licena separada para o Produto."

    Como possvel notar o uso deste software limitado por esse conjunto de exignciasimpostas pelo proprietrio do cdigo fonte, empresa que detm a sua autoria. Apesar depagar pelo software, as pessoas pagam neste modelo apenas o direito de utiliz-lo sobdeterminadas condies relatadas na licena. O direito de uso exclusivo para umanica mquina e mesmo o acesso remoto a mesma limitado atividade dearquivamento, impresso e acesso Internet. Estas restries, denominadas direitos,visam claramente impedir o uso amplo e compartilhado dos recursos do software,mesmo que isso seja tecnicamente possvel. No modelo proprietrio, o usurio adquiriua licena de uso do software para uma mquina, ou seja, alugou o software ao invs deadquir-lo. O modelo proprietrio de software distinto da propriedade de benstangveis. Quando compro um veculo, posso us-lo no limite da tecnologia e das leis detrnsito, pois paguei pela sua propriedade. No modelo proprietrio hegemnico desoftware, um programa de computador ser propriedade de seu autor at o prazo que alei de direitos autorais do pas determinar (nos Estados Unidos, 95 anos).

    Alm de no permitir o uso do software sem restries, o EULA do Microsoft WindowsXP Professional exige que o usurio comunique-se com a empresa para informar queaquela cpia foi instalada. O objetivo inicial da Microsoft era ter a possibilidade detravar o software que no tivesse licena de uso, mas isso se mostrou ineficaz. Por outrolado, a licena cria obrigaes do usurio com o detentor da propriedade do softwaremesmo depois de licena ter sido legalmente paga. Observe o artigo a seguir:

    "ATIVAO OBRIGATRIA. Os direitos de licena concedidos neste EULA solimitados aos primeiros trinta (30) dias depois de voc ter instalado o Produto a menosque voc fornea as informaes necessrias para ativar a sua cpia licenciada na formadescrita durante a etapa de instalao do Produto. Voc pode ativar o Produto por meiodo uso da Internet ou telefones; tarifas podem ser aplicadas. Voc tambm precisarreativar o Produto se voc modificar o computador ou alterar o Produto. H medidastecnolgicas no Produto que so criadas para impedir o uso ilegal ou no licenciado doProduto. Voc concorda com o uso dessas medidas."

    O proprietrio do software tambm deixa claro que " proibido efetuar a engenhariareversa, descompilao ou desmontagem do Produto, exceto e somente na medida em

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  • que estas atividades sejam expressamente permi