A Mídia Em Campanha - Revista de História

3
A mídia em campanha Na defesa de interesses políticos e disseminando preconceitos, imprensa ajudou a construir o massacre anunciado em Canudos Dawid Danilo Bartelt 1/12/2014 “Há bons seis meses que por todo o centro desta e da Província da Bahia, chegado, (diz elle,) do Ceará, infesta um aventureiro santarrão que se apelida por Antonio dos Mares: o que, a vista dos aparentes e mentirosos milagres que dizem ter ele feito, tem dado lugar a que o povo o trate por S. Antonio dos Mares”. Publicada em novembro de 1874 em O Rabudo, um pequeno semanal editado em Estância, no Sergipe, esta foi, ao que se sabe, a primeira menção da imprensa brasileira a Antônio Conselheiro. Nos 23 anos seguintes, o personagem se tornaria a peça principal do grande acontecimento “Canudos”, que foi também um evento midiático nacional. “Opinião pública” era algo muito limitado nos primeiros anos republicanos. Cerca de 85% da população eram de analfabetos e a mídia se restringia basicamente a veículos impressos (as rádios viriam a transmitir com regularidade no país apenas a partir de 1922). Isso significa que os iletrados, os escravos e boa parte da população rural ficavam à margem das notícias da imprensa, embora também incluídos na discussão pública através da cultura oral. Para o pequeno grupo de indivíduos letrados existia uma grande variedade de jornais e revistas, de diferentes orientações ideológicas. Desde 1894 nos jornais baianos, e de forma rapidamente crescente nos jornais da capital nacional e de São Paulo, Canudos e Conselheiro não apenas provocaram notícias nas páginas principais como viraram título de colunas e motivo para versos de carnaval, sátiras e anúncios comerciais – como o desta loja de calçados de Salvador, já em 1897: “Por pessoas, recentemente chegadas de Canudos, ouvimos o seguinte: Que no último ataque, um grupo de valentes soldados, depois de ter esgotado a munição, lembrou‐se de correr a pontapés os conselheiristas, confiados na resistência do calçado que foi comprado na popular casa O Monumento. Que feliz ideia!”. Num tempo em que fotografias impressas em jornais eram raridade, o retrato desenhado do Conselheiro tinha valor de mercado – a figura de barba longa, túnica, sandálias e bengala era reconhecível mesmo sem o nome ao lado. Era já um signo, no sentido expresso por um oficial do Exército, em 1896: “Antonio Maciel, Antonio Conselheiro e Bom Jesus são três nomes distintos, mas, que um só deles basta para exprimir e concretizar o inimigo do regime atual, o pregador contra os princípios sacrossantos da lei, do trabalho e da moralidade”. Mais do que uma “revolta” contra a República, Canudos foi um acontecimento útil para dois diferentes conflitos de poder nos tumultuados primeiros anos do regime. Com sua enorme capacidade de atração popular, o tamanho do seu mercado e seu potencial bélico, o arraial do Conselheiro desequilibrou os poderes políticos na Bahia, há tempos tensionados pela disputa entre o governador Luís Vianna e o dono das terras daquela região, José Gonçalves, aliado ao Barão de Geremoabo. Enquanto isso, na capital nacional, Canudos virava fator decisivo para outra competição acirrada: a luta entre os oligárquico‐liberais, representando a elite cafeeira paulista, e os “jacobinos”, influenciados pelo pensamento desenvolvimentista‐ditadorial de forte base militar. Vencer essa guerra era uma questão de sobrevivência política para o governo do paulistano Prudente de Morais. Era por isso, e não por constituir uma ameaça real à República, que o arraial tinha de ser completamente aniquilado. A função “crítica” da imprensa se esgotava na defesa de posições partidárias dos proprietários, e

description

xxx

Transcript of A Mídia Em Campanha - Revista de História

  • 13/03/2015 AmdiaemcampanhaRevistadeHistria

    http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/amidiaemcampanha 1/3

    A mdia em campanhaNa defesa de interesses polticos e disseminando preconceitos, imprensaajudou a construir o massacre anunciado em Canudos

    Dawid Danilo Bartelt

    1/12/2014H bons seis meses que por todo o centro desta e da Provncia da Bahia, chegado, (diz elle,) doCear, infesta um aventureiro santarro que se apelida por Antonio dos Mares: o que, a vista dosaparentes e mentirosos milagres que dizem ter ele feito, tem dado lugar a que o povo o tratepor S. Antonio dos Mares. Publicada em novembro de 1874 em O Rabudo, um pequeno semanaleditado em Estncia, no Sergipe, esta foi, ao que se sabe, a primeira meno da imprensabrasileira a Antnio Conselheiro. Nos 23 anos seguintes, o personagem se tornaria a peaprincipal do grande acontecimento Canudos, que foi tambm um evento miditico nacional.Opinio pblica era algo muito limitado nos primeiros anos republicanos. Cerca de 85% dapopulao eram de analfabetos e a mdia se restringia basicamente a veculos impressos (asrdios viriam a transmitir com regularidade no pas apenas a partir de 1922). Isso significa que osiletrados, os escravos e boa parte da populao rural ficavam margem das notcias daimprensa, embora tambm includos na discusso pblica atravs da cultura oral.Para o pequeno grupo de indivduos letrados existia uma grande variedade de jornais e revistas,de diferentes orientaes ideolgicas. Desde 1894 nos jornais baianos, e de forma rapidamentecrescente nos jornais da capital nacional e de So Paulo, Canudos e Conselheiro no apenasprovocaram notcias nas pginas principais como viraram ttulo de colunas e motivo para versosde carnaval, stiras e anncios comerciais como o desta loja de calados de Salvador, j em1897: Por pessoas, recentemente chegadas de Canudos, ouvimos o seguinte: Que no ltimoataque, um grupo de valentes soldados, depois de ter esgotado a munio, lembrouse de correra pontaps os conselheiristas, confiados na resistncia do calado que foi comprado na popularcasa O Monumento. Que feliz ideia!.Num tempo em que fotografias impressas em jornais eram raridade, o retrato desenhado doConselheiro tinha valor de mercado a figura de barba longa, tnica, sandlias e bengala erareconhecvel mesmo sem o nome ao lado. Era j um signo, no sentido expresso por um oficial doExrcito, em 1896: Antonio Maciel, Antonio Conselheiro e Bom Jesus so trs nomes distintos,mas, que um s deles basta para exprimir e concretizar o inimigo do regime atual, o pregadorcontra os princpios sacrossantos da lei, do trabalho e da moralidade.Mais do que uma revolta contra a Repblica, Canudos foi um acontecimento til para doisdiferentes conflitos de poder nos tumultuados primeiros anos do regime. Com sua enormecapacidade de atrao popular, o tamanho do seu mercado e seu potencial blico, o arraial doConselheiro desequilibrou os poderes polticos na Bahia, h tempos tensionados pela disputaentre o governador Lus Vianna e o dono das terras daquela regio, Jos Gonalves, aliado aoBaro de Geremoabo. Enquanto isso, na capital nacional, Canudos virava fator decisivo paraoutra competio acirrada: a luta entre os oligrquicoliberais, representando a elite cafeeirapaulista, e os jacobinos, influenciados pelo pensamento desenvolvimentistaditadorial de fortebase militar. Vencer essa guerra era uma questo de sobrevivncia poltica para o governo dopaulistano Prudente de Morais. Era por isso, e no por constituir uma ameaa real Repblica,que o arraial tinha de ser completamente aniquilado.A funo crtica da imprensa se esgotava na defesa de posies partidrias dos proprietrios, e

  • 13/03/2015 AmdiaemcampanhaRevistadeHistria

    http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/amidiaemcampanha 2/3

    no em prol da defesa de princpios constitucionais ou democrticos. Em Salvador, com umapopulao total de 200 mil habitantes (a grande maioria no alfabetizada), circulavam cincograndes jornais. O Dirio da Bahia e o Estado da Bahia eram gonalvistas, enquanto o Correio deNotcias, o Jornal de Notcias e (com restries) o Dirio de Notcias apoiavam o governadorVianna. Depois que os seguidores do Conselheiro derrotaram as primeiras duas expedies depoliciais e soldados contra eles, os jornais da oposio se engajaram numa produo de medo.Intensificaram a estratgia de criminalizao aplicada desde 1893, ano da fundao do arraial,desencadeando uma verdadeira campanha, com a publicao de documentos na sua grandemaioria falsos para comprovar repetidos ataques de canudenses a fazendas da regio.Levantavam a suspeita de que o governador fazia de Conselheiro um aliado, usandoo paradesestabilizar a regio controlada por seus adversrios.A partir de maro de 1897, no entanto, os dois campos polticos baianos viramse encurraladosjuntos por um forte discurso vindo dos jornais do Rio e de So Paulo. As notcias da derrota daterceira expedio e da morte de seu lder, o famoso heri coronel Moreira Csar, causarampnico nas capitais. No sul, os jornais reforaram o discurso da conspirao monarquista, jintroduzido pela imprensa jacobina. Agora se via toda a Bahia caracterizada como redutomonarquista afinal, naquele estado no houvera um movimento republicano antes de 1889 e ospolticos do Imprio transformaramse em republicanos pelas circunstncias nacionais. Mas averdade que o movimento monarquista dos anos 1890 era insignificante fora do Rio e de SoPaulo. A acusao de monarquismo era parte do discurso dos bacharis liberais e dos jovensoficiais jacobinos, que visavam instalar uma ditadura modernizadora e positivista no Brasil.O Nordeste, regio de primazia econmica do primeiro ciclo colonial, e Salvador, capital daColnia, estavam em decadncia econmica e poltica. E os discursos miditicos sobre a guerrade Canudos reforaram a imagem da Bahia e do Norte (o termo Nordeste ainda se usavapouco) enquanto espaos de coronelismo e violncia brbara (dos jagunos), incapazes de semodernizarem: S se fala em Canudos hoje em dia,/ De norte a sul, pelo pas inteiro.../ E oglorioso nome da Bahia/ Amarrado ao de Antonio Conselheiro!, rimava o Jornal de Notcias.Os lugares do evento miditico Canudos foram as capitais no litoral, mas a principal novidadeda cobertura da imprensa nacional estava no serto. Inauguravase a figura do correspondentede guerra, escrevendo reportagens ao vivo que levavam de 10 a 30 dias para serempublicadas, aps passarem pela censura militar rigorosa, ser transportadas a p ou por jegue atMonte Santo e ento transmitidas por telgrafo a Salvador (ou de trem, pela estao ferroviriade Queimadas), de onde enfim seguiam para o sul. Na poca, ainda desconhecido do pblico forado seu estado natal, o engenheiro Euclides da Cunha se tornaria o mais famoso dessescorrespondentes de guerra.Quando Euclides chega a Canudos, o discurso miditico, construdo de forma intensiva, diria, aolongo de um ano, j havia produzido seu efeito final, e mortal: o governo do presidentePrudente de Morais decidira destruir Canudos a todo custo. Morreram milhares de famliassertanejas, numa das maiores chacinas da histria brasileira. Mas os relatos de Euclides e de seuscolegas ao menos contriburam para uma mudana na percepo dos canudenses pela opiniopblica. Enquanto durante a guerra foram considerados inimigos da nao, depois de mortosforam simbolicamente reincludos. Os inimigos se tornam irmos e so considerados vtimas pormuitos.J no foi a imprensa a protagonista desta mudana de perspectiva. O debate se transferiu paratratados cientficos, como o de Nina Rodrigues em 1897, panfletos polticos, uma srie decrnicas publicadas em livro por oficiais e civis participantes da guerra e livros romanceados,como Os Jagunos, de Afonso Arinos, e O Rei dos Jagunos, de Manuel Benicio, correspondentedo dirio carioca Jornal de Commercio. Os Sertes, de Euclides, foi publicado cinco anos depoisdo fecho da guerra.

  • 13/03/2015 AmdiaemcampanhaRevistadeHistria

    http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/amidiaemcampanha 3/3

    Assim como Canudos propicia debates at hoje, continua atual a discusso em torno do papel damdia no Brasil enquanto formadora de opinies sobre como a nao deve tratar os que seencontram nas suas periferias social, econmica e cultural.Dawid Danilo Bartelt doutor em Histria pela Universidade Livre de Berlim, diretor doescritrio Brasil da Fundao Heinrich Bll e autor de Serto, Repblica e Nao (EdUSP, 2009).Saiba mais:GALVO, Walnice Nogueira. No Calor da Hora. A Guerra de Canudos nos Jornais, 4 expedio.3. ed. So Paulo: tica, 1994.LEVINE, Robert. O Serto Prometido. O Massacre de Canudos. So Paulo: Edusp, 1995.LIMA, Nsia Trindade. Um Serto Chamado Brasil. 2. ed. So Paulo: Hucitec, 2013.