À mesa em Portugal
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À mesa em Portugal como no BrasilA aventura da pesca do bacalhau nas águas geladas
O painel de azulejOs da pesca dO bacalhau,
aO ladO, lOcalizadO na vila pOrtuguesa
dO tOcha, freguesia de cantanhede,
próxima a cOimbra, simbOliza a aventura
lusitana, desde O séculO xv, de pescar em
águas a muitOs quilômetrOs aO nOrte dO
territóriO O ingrediente dO pratO naciOnal
— a bacalhoada à portuguesa. desde a
era dOs descObrimentOs O bacalhau nãO
pOde faltar na mesa dOs pOrtugueses. O
nOme dO pescadO esteve durante muitOs
anOs entre as primeiras denOminações
atribuídas aO cOntinente americanO. é farta
a dOcumentaçãO dO estadO pOrtuguês
em que, referindO-se à américa dO nOrte,
aparece cOmO terra dO bacalhau O atual
canadá. Os pOrtugueses, na rOta dO
bacalhau, chegaram em 1472 à imensa ilha
canadense da terra nOva — 20 anOs antes,
pOrtantO, de cristóvãO cOlOmbO descObrir
Oficialmente a américa. pOrtugueses
enfrentam até hOje as águas geladas dO
canadá, grOenlândia e nOruega para pescar
O bacalhau.
por Fábio Caldeira Ferraz
portugal
Portugal é o único país cujo ingrediente prin-
cipal do prato nacional, a célebre Bacalhoa-
da à Portuguesa, precisa ser pescado e sal-
gado a muitas milhas ao norte da sua costa
atlântica. Contraria assim Portugal a lógica segundo
a qual os pratos nacionais são sempre baseados —
como na cozinha libanesa — em produtos facilmente
encontrados dentro das fronteiras do país. E torna
evidente a vocação marítima da nação que embarcou
nas caravelas, no final da Idade Média, e deu mundos
ao mundo. Também na Espanha o bacalhau tem lugar
de honra na gastronomia, como o clássico Bacalao a
Vizcaína ou a Bilbaína, tipicamente de Bilbao, capital
do País Basco, ou na Itália, onde, em Roma, às sextas-
-feiras, é dia de saborear, no almoço, o Baccalà ai Ceci,
o bacalhau com grãos-de-bico. O primeiro é acompa-
nhado de fatias de pimentão. O outro tem o tomate
como principal elemento do molho, semelhante ao
usado nas massas. Mas em nenhum dos dois países o
bacalhau é o prato nacional.
Identificar entre nós esses e outros traços da cul-
tura portuguesa, mais de 500 anos após o épico de-
sembarque de Pedro Álvares Cabral, em Porto Seguro,
na Bahia, é um empreendimento arriscado, notada-
mente se o autor os persegue no campo da gastrono-
mia. Talvez, a esta altura, estabelecer o exato limite no
que se refere às coisas de comer e beber entre os dois
d. afOnsO henriques (1108-1185), O cOnquistadOr, fOi O fundadOr e O
primeirO rei de pOrtugal — mais antigO país da eurOpa cOm frOnteiras
cOnsOlidadas. O mOnarca enfrentOu Os exércitOs da própria mãe,
dª teresa, filha dO imperadOr alfOnsO vi de castela e león, na memOrável
batalha de sãO mamede, a 24 de junhO de 1128, juntO aO castelO de
guimarães, para tOrnar independente da galícia O entãO cOndadO
pOrtucalense. e, pOr issO, guimarães, regiãO dO minhO, é cOnsiderada
O berçO de pOrtugal. fundadOr da pátria lusitana há quase 900 anOs,
d. afOnsO henriques, que nasceu e mOrreu em cOimbra, estendeu
Os dOmíniOs pOrtugueses até O sul dO país e inspiraria, pOr meiO das
cOnquistas, as dinastias que O sucederam a lançar pOrtugal em busca
de nOvOs mundOs. um dOs maiOres símbOlOs dO espíritO desbravadOr
lusitanO é a bacalhoada à portuguesa, cujO ingrediente principal só
é encOntradO nas águas geladas dO atlânticO nOrte.
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Produtos vindos de todo o Império enriqueceram a
cozinha portuguesa
O bacalhau é salgadO e vendidO sem cabeça. e, pOr issO,
em tOm de brincadeira, aqui e em pOrtugal, muitOs duvidam
que O peixe tenha uma.
países seja apenas isso, traçar uma fronteira — uma
linha imaginária a separar Estados, como nos ensina
a Geografia Política. Obviamente estão a História e
os indicadores atuais sobre alimentação de ambos os
países a nos evidenciar elementos próprios de parte
a parte. Não ao ponto de negar os evidentes elos en-
tre os dois povos, que se
materializa, por exemplo,
no pendor por refogar.
Pelo contrário. Embora
aparentemente distintos,
nesses elementos tam-
bém estamos todos.
De ambos os países
pode se dizer, de pronto,
serem diametralmente
opostas algumas preferências. Portugal mantém-se
há séculos um voraz consumidor de frutos do mar.
São predominantes no cotidiano do país Ibérico os
moluscos e os peixes — com destaques para o baca-
lhau e outros pescados salgados. Longe da costa, e em
menor escala, suínos e aves são relevantes na rotina
gastronômica, assim como novilhos, cordeiros, cabri-
tos e a caça de faisão, lebre, perdiz e javali. O Brasil,
por sua vez, ao longo da história paulatinamente foi
cedendo à mesa maior espaço à carne bovina e, mais
recentemente ao frango.
Não foi o peixe a prosperar junto aos paladares no
Novo Mundo português por muitos motivos. As levas
iniciais de bovinos, trazidas a
partir de 1530, de Cabo Verde,
arquipélago a oeste do conti-
nente africano, tinham a fun-
ção de meio de transporte e
força de tração ou motriz para
apoiar os trabalhos agrícolas
nas recém-criadas vilas coloniais. Os dois pólos de
receptação dos animais, São Vicente, em São Paulo, e
Salvador, na Bahia, com o crescimento do rebanho e,
principalmente, com a expansão da cultura de cana-
-de-açúcar, no entanto, passaram a irradiar sertão
adentro, nos anos seguintes, o gado e os vaqueiros. Os
territórios que viriam a se tornar as regiões Nordeste
e Centro-Oeste já abrigavam, no início do século XVII,
as pecuárias de corte e de leite. Distantes do litoral e
sem a estrutura necessária para praticar a pesca com
uma escala considerável nos rios, mestiços e portu-
gueses passaram a recorrer cada vez mais à carne bo-
vina e de outros animais criados pelas famílias serta-
nejas para fins de subsistência — como porcos e aves.
Enquanto Portugal fi-
gura hoje como o maior
consumidor de bacalhau
do mundo, com uma impor-
tação anual de cerca de 60
mil toneladas, a pecuária
fez do Brasil o detentor do
maior rebanho mundial,
principal exportador e o
terceiro maior consumidor.
Entre as carnes, a bovina responde por, aproximada-
mente, 40% do mercado interno. Os peixes equivalem
a apenas 5%, mesmo sendo nossa uma das mais exten-
sas faixas litorâneas do mundo e nossa a maior reser-
va de água doce. Esse percentual seria ainda menor
não fosse a influência católica, que tem no pescado
o alimento adequado das sextas-feiras e dias santos.
São evidentes também as divergências quanto aos
pendores para bebidas alcoólicas entre as nacionali-
dades. O vinho segue mais apreciado lá, e a cerveja
uma paixão nacional por aqui.
Há certamente os pontos de convergências entre
os paladares. Têm origem portuguesa os doces à base
de ovos, como os deliciosos
Fios de Ovos e Chuviscos, bas-
tante apreciados na região de
Campos, no norte fluminense.
Também é lusitano o Toucinho
do Céu, que mistura magistral-
mente ovos e amêndoas, e as
mais variadas compotas. É português, sim, senhor, o
mais antigo restaurante brasileiro, o tradicionalíssi-
mo Leite [página ao lado], símbolo da boa gastrono-
mia de Pernambuco, com endereço na Praça Joaquim
Nabuco, quase às margens do Rio Capibaribe. O Leite,
às vésperas de completar 130 anos, continua sendo o
orgulho da grande comunidade portuguesa de Recife
e uma referência gastronômica no País.
portugal
51GOURMET
É Portugal falando para o mundo O leite é o mais antigo restaurante do brasil
recife
azulejOs da fachada dO leite, na praça jOaquim
nabucO, nO recife, fOram restauradOs durante a
última refOrma dO restaurante. também a calçada
recebeu as pedras pOrtuguesas.
diz muito sobre portugueses e brasileiros ser lusitano
o mais antigo dos restaurantes do país, o leite, no
coração do recife histórico, às vésperas de completar
130 anos. austero e imponente como um solar português,
com azulejaria lusitana à meia parede na vasta fachada que
ocupa o quarteirão mais nobre da praça joaquim nabuco,
célebre abolicionista pernambucano, freqüentador assíduo
do restaurante, o tradicionalíssimo leite, fundado em 1882,
testemunhou a ascensão e queda de modismos da alta socie-
dade pernambucana — e de suas intrigas políticas e sociais.
foi após almoçar no leite, em 26 de julho de 1930, que seria
assassinado pelo desafeto joão dantas o então governador
paraibano joão pessoa, ao chegar, uma quadra adiante, à
confeitaria glória, na esquina das ruas nova e palma. O lei-
te, instituição secular dos gourmands da metrópole fundada
por maurício de nassau (1604-1679), pratica uma cozinha
lusitana com naturais concessões afrancesadas na ementa,
bem como às influências dos ingredientes e temperos nor-
destinos. um sincretismo que se tornou fórmula de sucesso.
a gloriosa história do decano dos restaurantes brasilei-
ros mereceu um livro da jornalista pernambucana goretti
soares, o leite ao sabor do tempo, publicado em 2002 por
ocasião do aniversário de 120 anos do estabelecimento
— e ganhará agora uma segunda edição, organizada pela
própria autora, atendendo encomenda do proprietário do
estabelecimento, o beirão arménio ferreira diogo, de 78
anos, nascido na localidade de pinheiro de lafões, freguesia
do distrito de viseu, beira interior, ao norte de portugal. ele
está à frente do leite desde 1953. “a alma do restaurante é
o seu armênio”, afirma goretti soares, acrescentando: “ele
mantém o leite por amor e devoção.” a casa foi fundada
por outro português originário das beiras, armando manoel
leite de frança, a quem se deve o nome do restaurante. ar-
ménio ferreira diogo prepara as filhas para assumir o leite,
e, certa vez, disse a uma delas: “O leite não está aqui para
fazer dinheiro, e, sim, para fazer história”. bem haja!
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nOtável salãO dO secular tavares, um dOs restaurantes mais antigOs e nObres de
tOda a eurOpa. fundadO em 1784, à rua da misericórdia, aO chiadO, bairrO central
de lisbOa, O tavares está presente em váriOs mOmentOs da Obra dO escritOr
pOrtuguês eça de queirOz (1845-1900). O restaurante dO chiadO é cOnhecidO, em
lisbOa, cOmO O tavares ricO. e O tavares pObre é O Farta brutos, à rua da espera, nO
bairrO altO, tradiciOnal redutO cOmunista. O escritOr jOsé saramagO fOi um de
seus ilustres clientes.
Se pelos caminhos dos ingredientes mais popula-
res portugueses e brasileiros, em alguns pontos, se
distanciaram, foram reservadas às técnicas de prepa-
ro dos pratos, à capacidade de incorporação dos ele-
mentos naturais de outros povos e, sobretudo, à for-
mação cultural semelhante a condição de elementos
de coesão luso-brasileira.
Do modo lusitano de trabalhar os ingredientes
surgiu a feijoada, “o primeiro prato brasileiro”, como
classifica Luís da Câmara
Cascudo (1898-1986), em
História da Alimentação no
Brasil. “O cozido português
que originou a feijoada”,
acrescenta o antropólogo po-
tiguar, reúne “carne de vaca,
fresca e seca, paio, salsicha, presunto, toucinho, lom-
bo de porco, couve, repolho, rábanos, cenouras, bata-
tas, nabos, vagens, abóbora, feijão-branco.” Cascudo
observa que a reprodução do prato no Brasil ao longo
do tempo foi sendo modificada — caso da substituição
do feijão-branco pelo preto ou fradinho, mais “popu-
lares por aqui”, e da elimina-
ção de alguns legumes e car-
nes — contudo, sem nunca
perder de vista a “tentativa
de obter refeição única” do
cozido.
Antes do Novo Mundo,
portugueses já conheciam a
experiência da interação, ain-
da que forçada, com outros
povos. Os registros sobre a
formação do país identificam
a presença de fenícios, gre-
gos, cartagineses, romanos,
mouros, judeus e nórdicos.
Aclimatar-se aos rigores de
trópicos dominados por índios exigia flexibilidade. In-
corporar ao cotidiano, simultaneamente, índios e negros
escravizados, bania de vez qualquer desejo de ortodoxia
gastronômica. “Dentro da extrema especialização de
escravos no serviço doméstico das casas-grandes, re-
servavam-se sempre dois, às vezes três, indivíduos aos
trabalhos de cozinha”, conta-nos Gilberto Freyre (1900-
1987), na monumental obra Casa Grande & Senzala,
para logo a seguir apontar que “várias comidas portu-
guesas ou indígenas foram no Brasil modificadas pela
condimentação ou pela técnica culinária do negro.”
Vale citar também que o europeu não manifestou
quaisquer pudores ao trazer espécies de plantas e
animais de outros continentes para cá ou exportá-los
para o seu, enriquecendo a cozinha da Metrópole com
a diversidade presente no Impé-
rio. Os fatos sugerem, portanto,
uma integração gastronômica,
não apenas por conveniência,
mas por vontade própria.
Algo certamente faz um bra-
sileiro sentir como experiência
única estar em um tradicional restaurante lisboeta,
como o Tavares, a escolher um prato entre os muitos de
uma ementa secular. Não será nunca experiência inu-
sitada. Os ingredientes, o modo de preparo, os aromas,
o sabor sempre vão trazer a impressão de estar diante
de algo próximo, familiar, quase brasileiro.
Fronteiras das cozinhas de Portugal e do Brasil são
praticamente inexistentes
portugal