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FAUSTON NEGREIROS
A MERENDA ESCOLAR E SEU POTENCIAL EM FACE DA
SEGURANÇA ALIMENTAR EM GUARIBAS - PI
Fortaleza – CE 2009
S Negreiros, Fauston A merenda escolar e seu potencial em face da
segurança alimentar em Guaribas-PI. / Fauston Negreiros -- Teresina, 2009.
143f. : il Dissertação (mestrado em Educação Brasileira) –
Universidade Federal do Ceará. Orientador: Prof. Dr. José Arimatea Barros Bezerra. 1. Educação - Currículo. 2. Segurança alimentar.
3. Merenda escolar. I. Bezerra, José Arimatea Barros – Orient. II. Título. CDD –
FAUSTON NEGREIROS
A MERENDA ESCOLAR E SEU POTENCIAL EM FACE DA
SEGURANÇA ALIMENTAR EM GUARIBAS - PI
Relatório de Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Educação Área de Concentração: Currículo e Ensino Orientador: Prof. Dr. José Arimatea Barros Bezerra
Fortaleza – CE
2009
FAUSTON NEGREIROS
A MERENDA ESCOLAR E SEU POTENCIAL EM FACE DA
SEGURANÇA ALIMENTAR EM GUARIBAS - PI
Trabalho apresentado em: 21/01/2009
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________ Prof. Dr. José Arimatea Barros Bezerra - (UFC)
Presidente da Banca
_________________________________________________________ Profª. Drª. Maria de Lourdes Peixoto Brandão
Examinadora (UFC)
_________________________________________________________ Profª. Drª. Elza Maria Franco Braga
Examinadora (UFC)
_________________________________________________________ Profª. Drª. Helena Alves de Carvalho Sampaio
Examinadora (UECE)
_________________________________________________________ Profª. Drª. Maria Socorro Lucena Lima
Examinadora (UECE)
“O que o mundo social fez, o mundo
social pode desfazer.”
Pierre Bourdieu
DEDICATÓRIA
À Helenita Gomes de Negreiros, vozinha, pelo
açúcar, fermento e afeto, indispensáveis ao meu
preparo.
AGRADECIMENTOS
Ao professor José Arimatea Barros Bezerra pela orientação e motivação contínua que me impulsionaram à conclusão deste trabalho. À professora Maria de Lourdes Peixoto Brandão, por oferecer os instrumentos necessários à resolução de inquietações da pesquisa e assim favorecer o meu crescimento. Aos meus pais, Luiz Gonzaga e Gema Galgani de Negreiros, que apesar de distantes fisicamente nunca soltaram as minhas mãos. Aos sujeitos da pesquisa, cuja contribuição foi imprescindível para que este trabalho se tornasse um fato e cuja participação se fundamenta como primeiro elemento transformador. Por permitirem a troca de conhecimentos para o desenvolvimento de ações futuras. Ao Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da Faculdade de Educação da UFC e ao Núcleo de Educação, Currículo e Ensino por terem contribuído para meu amadurecimento acadêmico. À tia Lourdinha Nunes pelo incentivo implacável e crença constante em meu potencial. À amiga Ana Valéria Lopes Lemos, que me ajudou a editar essa dissertação e os problemas do dia-a-dia. À Ana Lourdes Lucena, pela amizade fiel e leal que tanto me ajudou a crescer durante o mestrado, adoçando o amargo e salgando o insípido. À Samara Mendes pela “co-orientação”, pela amizade, pelos conselhos e pelos temperos da companhia. À Natércia Mendes e Samara Alves, grandes amigas, por mais uma parceria de sucesso, conjugando bons pratos, bons livros e relevantes artigos. A Cleilson Nogueira pelo apoio moral em momentos significativos para a conclusão deste trabalho. A Mauro Furtado, amigo das urgências e emergências, da ciência e paciência, toda a gratidão. A Delite Barros e Carla Andrea, profissionais amigas e amigas profissionais por todo o carinho, confiança e cumplicidade. Ao Instituto Dom Barreto, em nome da Prof.ª Márcia Rangel, pelo incentivo constante e por subsidiar meu crescimento profissional e pessoal. A todos aqueles que acreditaram em mim, por meio de contribuições para este estudo, em especial ao povo cearense pela acolhida calorosa. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (CAPES), durante o ano de 2008 pela concessão de financiamento para essa pesquisa.
RESUMO
Estudo sobre a análise do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) como um instrumento com potencial de desenvolvimento social e promotor da qualidade de vida frente à situação de fome presente no município de Guaribas – PI. Buscou-se mapear o universo da produção agrícola familiar do município, identificando os alimentos que podem integrar os cardápios da merenda escolar; e apresentar as práticas alimentares da população do município situando sua construção sócio-histórico-cultural; O método utilizado foi qualitativo, História Oral, com abordagem de pesquisa definida como exploratório-explicativa, no qual foram necessários grupos de participantes contemplados por moradores de Guaribas, pais de alunos, técnicos responsáveis pela merenda escolar e pela análise das potencialidades da região geográfica. Estudos acerca das teorias do currículo, dos conceitos sócio-antropológicos de comida e alimento, produção agrícola e situação de fome, aspectos culturais do sertão piauiense e práticas alimentares no espaço escolar, representaram o suporte teórico da investigação. A análise dos dados sucedeu conforme orientações da Hermenêutica de Profundidade, através da qual se dá uma ênfase ao processo de interpretação, possibilitando a compreensão das formas simbólicas enquanto campo-objeto e também campo-sujeito. Por meio desse estudo, constata-se que as formas de utilização do PNAE – política educacional – poderiam constituir potencial elemento de estímulo à agricultura familiar local e superação da fome, podendo garantir segurança alimentar. No entanto, isso não ocorre, em sua plenitude, na operacionalização daquele Programa junto ao município de Guaribas – PI. Palavras-Chaves: merenda escolar; segurança alimentar e nutricional; Piauí; Guaribas.
ABSTRACT
It is a study about The National Program for Free School Meal (NPFSM) as an instrument with the potential for social development and promotion of the quality of life in the midst of hunger present in the town of Guaribas-PI. It is an effort to map out the universe of family agricultural production at the town, identifying the foods that can be integrated into the menu of school meal; and to present the eating practices of the population of the town situating its social-historical and cultural construction. The method utilized was qualitative, Oral History, with the research approach defined as explorative-explanative, in which it was necessary groups of participants contemplated by the residents of Guaribas, the parents of the students, technicians responsible for school meal and through the analysis of the potentialities of the geographical region. These are the studies around the curriculum theory, the social-anthropological concepts of food and nourishment, agricultural production and the situation of hunger, cultural aspects of the dry regions of Piauí and the eating practices in school spaces, which represent the theoretical base of the investigation. The analysis of the data was done according to the orientations of the Depth Hermeneutics, through which it was given the emphasis on the process of the interpretation, making possible the comprehension of the symbolic forms as field-object and also field-subject. Through this study, we can establish that the ways of the utilization of the NPFSM- educational policy- can constitute the potential element of the stimulus to the local and family agriculture and for the overcoming of hunger, enabling to guarantee food security. However, this does not happen, in its plenitude, in the operationalization of the Program for the town of Guaribas-PI. Key Words: school meal; food and nutritional security; Piauí; Guaribas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 10
CAP. 1 – “COZER O PIAUÍ E DESCASCAR GUARIBAS” – O ESTADO E O MUNICÍPIO EM SUAS CARACTERÍSTICAS E PECULIARIDADES ............................. 19
1.1 Comer, comer, comer... Terra à vista! – As práticas alimentares e os alimentos
transportados pela armada de Pedro Álvares de Cabral ................................................................ 19
1.2 Piauí: berço da humanidade ou o caldeirão do inferno?........................................................... 22
1.3 O fim do mundo, uma imensidão quase desconhecida, ou seja, o Piauí ................................. 23
1.4 Descansa a fome no Piauí em berço esplêndido, eternamente? .............................................. 27
1.5 O estado do Piauí: uma caracterização histórica ..................................................................... 29
1.6 E por falar no Piauí, Guaribas como anda você? ..................................................................... 35
1.6.1 Um pouco além/ mais da história local ................................................................................ 37
1.7 Comer hoje no Piauí é... .......................................................................................................... 40
CAP. 2 - GUARIBAS À MODA DA CASA: HÁBITOS ALIMENTARES E SITUAÇÃO DE FOME ..................................................................................................................................... 41 2.1 Bolo de Milho com coco, e sua receita como metáfora para expressar as práticas
alimentares de Guaribas – PI ......................................................................................................... 42
2.1.1 Duas xícaras de chá de massa de milho; duas xícaras de chá de leite; três ovos ................. 43
2.1.2 Uma xícara e meia de chá de açúcar; meia xícara de chá de óleo; uma colher de
sobremesa de fermento em pó ....................................................................................................... 46
2.1.3 Uma xícara de chá de coco ralado ......................................................................................... 49
2.1.4 Modo de preparo: em uma panela, misture a massa de milho, leite, o açúcar e o óleo ........ 55
2.1.5 Leve ao fogo por 5 minutos; desligue o fogo e deixe esfriar ............................................... 59
2.1.6 Quando já estiver frio, junte o coco, as gemas, as claras batidas em neve e o fermento ...... 62
2.1.6.1 Despeje a massa em uma forma untada e enfarinhada ..................................................... 62
2.1.6.2 E leve ao forno na temperatura média ou baixa por cerca de 45 minutos. Para servir
polvilhe com coco ralado ............................................................................................................... 66
2.1.7 Rendimento: 10 pedaços; ou 8 pessoas ................................................................................. 59
2.1.8 Tempo de preparo: 1 hora e 10 minutos ................................................................................ 77
2.2 Comer e não comer. A segurança alimentar em Guaribas, alguém determina? ...................... 81
CAP. 3 – O SABOROSO E O INSÍPIDO NA ESCOLA: DISCUTINDO OS TEMPEROS DO PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR ............... 82 3.1 A data de fabricação ................................................................................................................ 84
3.2 COMPOSIÇÃO QUÍMICA: escolha de cardápios e aceitabilidade ...................................... 88
3.3 A EMBALAGEM: como os atores vêem a merenda escolar .................................................. 91
3.4 PRESERVAR EM LOCAL AREJADO: operacionalização das propriedades do PNAE ...... 96
3.5 PRAZO DE VALIDADE: aspectos da funcionalidade do PNAE .......................................... 100
CAP. 4 - O CONTEÚDO DO PNAE: POSSIBILIDADES DE USUFRUTO DE SEU PESO LÍQUIDO .......................................................................................................................... 116 4.1 O PNAE como indutor de segurança alimentar e nutricional ................................................. 118
4.2 Necessidade de políticas públicas mais eficazes. .................................................................... 120
4.3 A Merenda educadora .............................................................................................................. 124
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 130 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 132 APÊNDICES ................................................................................................................................ 138
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INTRODUÇÃO
A presente dissertação de mestrado está organizada em introdução, quatro
capítulos, conclusão e seis anexos. A introdução discorre acerca dos anseios pessoais para a
realização do estudo, a relevância social e acadêmica desta temática, uma breve discussão
sobre a segurança alimentar no Brasil, sob o foco prospectivo das ações desenvolvidas, e a
demarcação dos pressupostos teóricos e metodológicos que guiaram a pesquisa.
O objetivo principal foi de analisar o PNAE como um instrumento potencial de
desenvolvimento social e promotor da qualidade de vida frente à situação de fome presente no
município de Guaribas - PI. Desdobrou-se esta meta em outras mais: mapear o universo da
produção agrícola familiar do município, identificando os alimentos que podem integrar os
cardápios da merenda escolar; apresentar as práticas alimentares da população do município
situando sua construção sócio-histórico-cultural; identificar as formas de utilização do PNAE
– como política educacional – como um potencial elemento de estímulo à agricultura familiar
local e superação de fome/ garantia de segurança alimentar.
Quando se procura discutir a construção de um fenômeno ou de alguns hábitos
culturais de uma civilização, como a alimentação, logo se remete aos aspectos históricos e
geográficos, que, por conseguinte, construíram novas subjetividades. Apesar de ser bastante
discutida a ascensão de novos sujeitos que se constroem ao longo das gerações, verifica-se
que certos fenômenos ou alguns problemas sociais, se perpetuam, persistem e se repetem de
maneira plenamente funesta à sociedade, como é o caso da fome, da miséria e da pobreza.
Comer é cultura? Sim, comer é cultura. A prática alimentar está permeada por
diversas manifestações culturais, dentre elas o gosto por um determinado alimento, a sua
escolha em determinado momento (horário) de consumo, o modo específico de consumir e
preparar o alimento, os instrumentos utilizados para o seu consumo, e preparo onde e com
quem se come, são indubitavelmente, práticas culturais.
A proposta de pesquisar as relações entre o Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE), a vivência da fome e a promoção da segurança alimentar partiu de
inquietações surgidas em um estudo anterior, realizado no município de Guaribas, Piauí.
Nesse estudo, apresentou-se a necessidade de se “[...] desenvolver a aprendizagem de novas
formas de ação por parte daqueles que vivenciam o fenômeno da fome.” (NEGREIROS,
2003, p. 54). Assim, é proposta deste estudo analisar o PNAE como um instrumento com
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potencial de desenvolvimento social e promotor da qualidade de vida frente à situação de
fome presente no município de Guaribas, Piauí, considerando o fomento de ações nos espaços
educacionais.
O tema da segurança alimentar, muito em voga nos últimos anos, em especial no
que diz respeito às medidas do atual Governo Federal para assegurar o direito de todos os
sujeitos terem acesso a uma alimentação segura e compatível com suas necessidades vitais,
tem provocado discussões por estudiosos, e engajadas no tema, em especial pelo fato de o
problema da fome ter persistido ao longo das décadas, perpetuando e promovendo a
reprodução da inferioridade social.
A relevância desta investigação está na proposta de descrever e analisar uma
política alimentar que pode subsidiar a construção de novos instrumentos/políticas para atuar
diante da realidade que se perpetuou no decorrer de décadas no município de Guaribas.
Instrumento que, possivelmente, poderá ser considerado em futuras pesquisas de caráter
interventivo e, principalmente, no que diz respeito ao desenvolvimento de políticas públicas e
ações pedagógicas, tendo em vista o enfrentamento das desigualdades sociais, com maior
eficácia.
A fome é um tema constante atualmente nos diversos meios de comunicação,
onde tem sido alvo de controvérsias no que concerne à tentativa de sua erradicação. Isso se
deve à postura do atual Governo Federal, que foi a de implantar um programa – Programa
Fome Zero, que atualmente engloba, dentre outros, o Programa Bolsa Família – que visa
garantir a segurança alimentar da população brasileira. Este foi criado para combater a fome e
suas causas estruturais, que geram a exclusão social, garantindo que todas as famílias tenham
condições de se alimentar dignamente e de forma permanente, com quantidade e qualidade
adequadas.
Apesar do extraordinário avanço científico e tecnológico, a civilização moderna
não superou o drama da fome. Ao contrário, por mais paradoxal que possa parecer, as
condições de vida da maioria da população dos países subdesenvolvidos têm se deteriorado
nas últimas décadas. Milhões de seres humanos vivem em estado de pobreza absoluta, pois
sua renda é tão baixa que ficam impedidos de uma alimentação mínima diária satisfatória,
condenados, portanto, a uma crônica subnutrição.
Valente (2002) afirma que o Brasil tem os meios e o conhecimento técnico
necessários para erradicar a fome. Para que esses objetivos sejam atingidos, faz-se necessário
um planejamento prévio, uma vez que a fome não é só efeito, mas também causa da miséria,
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pois atrofia o corpo, reduz a capacidade de aprendizado, estreita a esperança e definha o
futuro. Essa afirmação reforça as idéias de Castro (1960), ao apontar que com a perpetuação
da desigualdade e as pressões de mercado, aliadas à inexistência ou descontinuidade de
projetos públicos para tentar solucionar o problema, ele vem aumentando de proporção em
grandes regiões do Brasil, em especial no Nordeste.
Dados coletados pelo IBGE (2000) classificaram o município de Guaribas
(situado na mesorregião do Sudoeste piauiense e na microrregião de São Raimundo Nonato)
como o mais miserável do país. Além de apresentar um elevado índice de desnutrição, a
situação da população ainda se agrava com a falta d’água (escassez de chuvas), de
saneamento básico, de ofertas de trabalho e pelo funcionamento precário dos serviços de
saúde (NEGREIROS, 2003). Por esse motivo, escolheu-se como localidade para a realização
desta pesquisa o município de Guaribas, devido ainda ao reconhecimento e à divulgação em
âmbito nacional da presença latente do problema da fome. Isto tudo se alia à proximidade
geográfica – o pesquisador é ex-residente da aludida microrregião de investigação – e aos
interesses municipal, estadual e nacional, de promoção de pesquisas interventivas
preocupadas com a realidade social, que auxiliem na construção de políticas públicas
funcionais e específicas. É significativo destacar que o pesquisador já desenvolveu estudos
anteriores envolvendo temáticas relacionadas às práticas alimentares e às vivências e
experiências da fome (NEGREIROS, 2003). Esses trabalhos também foram norteadores para
a elaboração da atual pesquisa.
O primeiro capítulo relaciona as características históricas, sociais, econômicas e
culturais do estado do Piauí, traçando comportamentos e costumes, historicamente
construídos, apreendidos e reproduzidos. Em especial algumas das concepções apresentadas
frente ao estado em momentos distintos de sua história, da conquista do território no século
XVI, o apogeu da economia pecuária, até as indicações atuais sobre do Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), que desponta uma de suas cidades, Guaribas, como a mais
miserável da nação. Oportunamente, a localidade também é situada histórica e culturalmente.
No segundo capítulo, é exposta a constituição sócio-histórico-cultural das práticas
alimentares da população do município de Guaribas – PI, explicitando as situações de fome
apresentadas no decorrer das últimas décadas. Destacam-se, as mudanças ocorridas nestas
práticas mediante transformação no espaço físico-geográfico da cidade, como no âmbito
econômico.
Já nos capítulos posteriores, terceiro e quarto, discute-se acerca das práticas
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alimentares indicadas nas diretrizes e leis do Programa Nacional de Alimentação Escolar, o
PNAE, junto ao município de Guaribas – PI sob a gestão de seus responsáveis junto aos
Conselhos de Alimentação Escolar (CAE). Sobretudo, foi o intento mapear o universo da
produção agrícola familiar do município, identificando os alimentos que podem integrar os
cardápios da merenda escolar; e subsequente oportunizar a identificação de formas de
utilização do PNAE como um potencial elemento de estímulo à agricultura familiar local e
superação de fome/ garantia de segurança alimentar.
Finalmente, ressalta-se que nos capítulos dois, três e quatro, os sujeitos que
participaram desta pesquisa tiveram seus nomes preservados, ao mesmo tempo que sugeriram
um prato de comida de maior apreciação ao paladar como palavra de auto-denominação. Em
anexo, encontram-se os instrumentos – roteiros de entrevistas – utilizados para a coleta dos
dados, e algumas imagens do município de Guaribas – PI, espaço geográfico em que foi
ensejada a pesquisa.
• O referencial teórico-metodológico
Para desenvolver este estudo recorreu-se à pesquisa qualitativa, escolha que se
fundamenta na compreensão de que “as principais características dos métodos qualitativos são
a imersão do pesquisador no contexto e a perspectiva interpretativa de condução da pesquisa”.
(KAPLAN; DUCHON, 1998, apud DIAS, 2007).
Acrescenta-se, ainda, que esta abordagem de pesquisa define-se como
exploratório-explicativa, a partir do referencial formulado por Santos (2000). Porque
explorar é tipicamente fazer a primeira aproximação de um tema e visa a criar maior familiaridade em relação a um fato, fenômeno ou processo. Quase sempre se busca essa familiaridade, prospecção de materiais que possam informar ao pesquisador a real importância do problema, o estágio em que se encontram as informações já disponíveis a respeito do assunto, e até mesmo revelar ao pesquisador novas fontes de informações (SANTOS, 2000, p.26).
Por ser exploratório-explicativa, esta pesquisa busca analisar o processo de
implementação do PNAE em Guaribas – PI, tendo como parâmetros de análise a produção
acadêmica já existente sobre práticas alimentares, currículo escolar, segurança alimentar e
políticas públicas de alimentação e nutrição. Portanto, implica considerar o PNAE, como
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política sócio-educacional e potencial elemento de estímulo à agricultura familiar local e
superação de fome com sua contribuição para o aumento dos níveis de segurança alimentar
nas famílias envolvidas, com práticas alimentares existentes no município de Guaribas–PI.
O referencial teórico norteador se pauta na Sociologia de Bourdieu (Habitus,
Capital Cultural, Capital Simbólico, Campo) e nas Teorias Críticas sobre Currículo,
dialogando com a produção sobre políticas públicas de alimentação e nutrição, e a produção
sócio-antropológica acerca da alimentação.
Para a realização deste estudo foi necessário agrupar três grupos gerados a partir
dos perfis de sujeitos de pesquisa. Nessa introdução, consta uma breve apresentação desses
grupos, sendo que serão pormenorizados e articulados concomitantemente com os respectivos
referenciais norteadores para a presente abordagem teórica.
Os sujeitos da pesquisa foram selecionados com base em amostras não-
probabilísticas intencionais, visto que estes foram escolhidos conforme os objetivos da
pesquisa. De acordo com Moura (1998, p. 60), “[...] as amostras intencionais se utilizam de
pessoas que, na opinião do pesquisador, possuem, a priori, as características específicas que
ele deseja ver refletidas em sua amostra”.
O primeiro grupo de sujeitos da pesquisa é composto por seis moradores da zona
urbana e/ou rural do município de Guaribas – PI, com no mínimo de 40 (quarenta) anos, que
sempre residiram na localidade e que tenham como principal meio de subsistência a
agricultura. A coleta de dados junto a este grupo visou obter informações acerca da
construção das práticas alimentares da população local de baixa renda, optando-se por
participantes nessa faixa etária, com o intuito de que estes tenham registrado vivências das
possíveis modificações nos hábitos alimentares, produção agrícola, assim como da situação de
fome presente na localidade.
Para auxiliar na discussão dos dados coletados sobre práticas alimentares junto a
este grupo de sujeitos, foram utilizados os estudos de Câmara-Cascudo (2004); Santos (2005);
Levi-Strauss (2004); Damatta (1986); Maciel (2004). Por outro lado, sob uma perspectiva
complementar, foram usadas concepções e estudos fomentados nas obras de Castro (1959)
sobre a fome.
Não obstante, foram utilizados os estudos que abordam os aspectos culturais do
sertão piauiense, no âmbito da História e da Geografia do Piauí, tais como: IBGE (Censo
Demográfico) e Fundação CEPRO, com dados acerca da realidade sócio-política da realidade
piauiense; Costa (2006) que discute sobre as especificidades da escola do sertão piauiense;
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Araújo (1991) que apresenta discussões em torno do Estado piauiense e o desenvolvimento
sócio-político-econômico. Recorreu-se, ainda, a textos literários piauienses: Ataliba, o
vaqueiro, de Francisco Gil Castelo Branco; Trinta e Dois, de Fontes Ibiapina, nos quais se
recolheu as percepções acerca das especificidades sócio-histórico-culturais do sertanejo
piauiense que estão no ideal representativo e de representação do cidadão piauiense
interiorano e de baixa renda.
Para a obtenção de dados acerca da integração de alimentos produzidos no
município de Guaribas na merenda escolar, foi composto o segundo grupo de sujeitos desta
pesquisa: a nutricionista e a coordenadora do Conselho de Alimentação Escolar da Secretaria
Estadual de Educação do Piauí (SEDUC/PI); Nutricionista responsável pela compra da
merenda escolar no município de Guaribas; e seis pais de alunos das escolas públicas do
município de Guaribas – PI, cuja principal renda é a agricultura familiar. Com a entrevista
desses sujeitos visou-se evidenciar os usos e as possibilidades de integração de alimentos
produzidos no município de Guaribas à merenda escolar.
As análises das informações obtidas deste grupo de sujeitos foram realizadas a
partir de estudos acerca das políticas educacionais e suas articulações em redes locais e
nacionais, formuladas por Martins (1994); Pereira (2001); e Pinto (2000); sobretudo
enfocando aspectos das relações de poder, regulação social e controle democrático,
financiamento da educação.
Sobre questões relacionadas às políticas de alimentação escolar e suas implicações
junto aos hábitos alimentares locais (BEZERRA, 2002) e com as especificidades das
comunidades piauienses, em especial àquelas relacionadas às áreas do sertão sudeste do Piauí,
fez-se uso como norteadores da prática de pesquisa os estudos de Negreiros (2003). Destarte,
quanto aos aspectos vinculados à preservação e valorização das formas e hábitos alimentares
locais diante dos aspectos relacionados ao patrimônio cultural, como aduz MALUF (2003),
sobretudo evidenciando as devidas ressalvas quanto à concepção de que nem todos os
alimentos são saudáveis, ou seja, existem casos que o aprimoramento alimentar é
indispensável.
Ainda com intuito de estabelecer articulações com uma perspectiva de Segurança
Alimentar recorreu-se ao Art.4º da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional
(LOSAN). Enquanto que ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, tem-se a Lei das
Licitações e Contratos da Administração Pública (lei 8.666, de 21 de julho de 1993),
complementada pela Medida provisória n°2.026, de 1° de julho de 2000; as cartilhas e
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manuais de instruções sobre o Programa, elaborados e publicados pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FUNDEF) e MDS.
Como sujeitos do terceiro grupo temos: Presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais da cidade, o Secretario Municipal de Agricultura; dois Técnicos do
Serviço de Aprendizagem Rural (SENAR) – agrônomo e médico veterinário; Presidente do
Conselho de Segurança Alimentar (CONSEA/PI). As informações provenientes destes
sujeitos foram agregadas àquelas do segundo grupo acima. Da interlocução com estes sujeitos
objetivou-se obter uma descrição sobre a utilização do PNAE como um potencial elemento de
estímulo à agricultura familiar local.
Os dados empíricos provenientes dos participantes do momento da pesquisa
citado acima foram discutidos e confrontados com as concepções de Direitos Humanos
articulada por Bobbio (1992), que discute que a participação ativa e informada dos titulares de
direitos pode ser descrita como um princípio básico dos direitos humanos, bem como a
necessidade de inclusão dos marginalizados nas estratégias para a promoção da realização dos
seus direitos humanos.
As concepções apresentadas acerca da produção agrícola familiar e circulação de
alimentos advindas dos discursos dos referidos sujeitos foram defrontadas com estudos de
Menasche (2007). Destarte, foi prioridade articular essa categoria de análise com aquelas
apresentadas acerca das políticas educacionais e segurança alimentar relatadas anteriormente.
Entre os participantes da pesquisa a coleta dos dados foi realizada através de um
roteiro temático (semi-estruturado) de entrevista (em anexo), utilizando-se como categorias:
práticas alimentares; e, produção agrícola do município. Destarte, vale destacar que
questionários, guias de observação e imagens farão parte dos instrumentos e procedimentos
técnicos a serem utilizados.
Utilizou-se o roteiro de entrevistas para explorar a visão dos pais de alunos da
rede escolar oficial acerca da importância do PNAE, conforme o objeto de estudo
estabelecido. Este instrumento de coleta, segundo Minayo (1994) constitui um instrumento
para orientar uma “conversa com finalidade” que é a entrevista, devendo ser o facilitador de
abertura, de ampliação e de aprofundamento da comunicação. Essa parte da elaboração do
roteiro e suas qualidades consistem em enumerar de forma mais abrangente possível as
questões que o pesquisador quer abordar no campo, a partir de suas hipóteses ou pressupostos,
advindos, obviamente, da definição do aludido objeto de investigação (Minayo, 1995, p.121).
O roteiro de entrevistas foi composto por perguntas norteadoras que tiveram o objetivo de
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ajudar a desenvolver o diálogo a respeito dos hábitos alimentares, das estratégias adotadas
para a convivência com as situações de escassez de alimentos, das técnicas de cultivo de
alimento e outras formas de obtenção de alimentos.
Para a coleta de dados por meio das entrevistas usou-se como referência a técnica
da História Oral, subsidiada, também, pela compreensão de Memória, segundo Lang et al
(2001); Le Goff (1996); Bosi (2003); Ferreira e Amado (1996) que se caracteriza pelo registro
da história de vida de indivíduos que, ao focalizar suas memórias pessoais, constroem,
paralelamente, uma visão mais concreta da dinâmica de funcionamento e das várias etapas da
trajetória do grupo social ao qual pertence.
Os sujeitos-participantes relataram livremente suas experiências acerca das
temáticas sugeridas, sendo estes relatos registrados feitos em meio eletrônico de áudio, sendo,
portanto, um instrumento fundamental para compreensão e reconstrução parcial de História de
Vida dos referidos sujeitos. Com isso, seguiram-se então as postulações orientadoras de
Thompson (1992) e Halbwachs (2004), que fazem referência às rediscussões sobre as fontes
históricas, bem como quanto à construção e preservação da memória, respectivamente.
Utilizou-se os estudos de Certeau (1994; 1996) referenciando-se a partir de suas
pesquisas os conceitos de práticas sociais, cotidianas, e a idéia de construção do cotidiano,
reinvenção de hábitos/ estratégias de sobrevivência dentro de uma determinada realidade
local, cultural. Articulando-se este autor com a perspectiva de Bourdieu (capital cultural,
social e simbólico, habitus).
Para obtenção de informações junto aos integrantes dos Grupos II e III foram
utilizadas entrevistas semi-estruturadas com perguntas direcionadas às respectivas
competências dos participantes (em anexo). A elaboração destas entrevistas foi orientada
pelos dados obtidos via documental (centros de pesquisa; fontes documentais; registros
institucionais) e pelos relatos de história de vida dos participantes do grupo I.
• Procedimento de análise dos dados
Nos participantes do Grupo I, foram selecionados aqueles com expressivo
conhecimento acerca dos indivíduos a eles vinculados no ambiente familiar, o que facilitou,
com isso, a aquisição e registro de informações
As sessões de coletas foram transcritos, mantendo no texto todas as informações
constantes da gravação. Posteriormente foram fichadas por categorias de análise.
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Depois de colhidos, os dados foram transcritos, categorizados e examinados
através da técnica da Hermenêutica de Profundidade (THOMPSON, 1998), que evidencia o
objeto de análise como construção simbólica significativa, que necessita ser interpretado.
Neste referencial, dá-se uma ênfase ao processo de interpretação, que possibilita a
compreensão das formas simbólicas enquanto campo-objeto e também campo-sujeito. Diante
disso são atentados, com rigor, categorias de estudo que primam pela construção e
preservação da memória e história imóvel, ou seja, diz respeito às permanências de alguns
aspectos sócio-históricos ao longo dos anos e das gerações (LE GOFF, 1996).
A partir dos princípios da Hermenêutica de Profundidade, interpretação da doxa,
análise sócio-histórica, análise formal ou discursiva, e re-interpretação, foram pautadas as
análises das categorias que emergiram no decorrer do presente estudo. No capítulo II, as
categorias, com o intento de contemplar os princípios de análise já expostos, organizou-se as
categorias a partir de uma receita de bolo, em nosso caso, o bolo de milho, no qual as etapas
de seu preparo constituíram nos procedimentos de preparo do referido prato.
O capítulo III seguiu uma lógica semelhante. As categorias, de forma
analogamente organizadas de acordo a ilustração dos caracteres de um produto alimentício
ofertado em um supermercado ou qualquer espaço onde a alimentação pode ser
comercializada: data de fabricação; composição química; embalagem; preservar em local
arejado; e prazo de validade. Estratégia utilizada, em especial para fomentar uma maior gama
de análises e representações em torno das categorias emergidas.
No capítulo IV as categorias de análise dos dados emergiram das considerações
efetuadas nos capítulos anteriores, impulsionando para uma apreciação mais concisa em torno
do PNAE.
Destaca-se que os relatos dos sujeitos-participantes desta pesquisa tiveram seus
nomes ocultados, assim foram preservados o seu anonimato. Com isso, fez-se uso de palavras
de auto-denominação, no qual os entrevistados escolheram o prato/ comida que mais lhes
proporciona prazer ao palato, com a finalidade de que este substituísse seus legítimos nomes.
Por fim os dados coletados foram articulados com o referencial teórico da
Sociologia da Educação de Pierre Bourdieu, assim como com os principais eixos teóricos
citados anteriormente acerca das políticas educacionais; práticas alimentares; situação de
fome; segurança alimentar; merenda escolar; agricultura familiar.
19
CAP. 1 – “COZER O PIAUÍ E DESCASCAR GUARIBAS” – O ESTADO
E O MUNICÍPIO EM SUAS CARACTERÍSTICAS E PECULIARIDADES
“No Piauí nasceu Mãe de ‘mim’ e de vocês (Na serra da Capivara) ‘Mim’ quem fala é índio
A língua que falava os "Jês" Beija-flor (RJ) - Samba Enredo 1996.
Tendo em vista o propósito deste capítulo, discute-se inicialmente as relações
subjetivas constituídas em meio às práticas alimentares que permeavam as primeiras ações
educativas no estado do Piauí tendo como meta destacar e fomentar reflexões em torno dos
comportamentos e costumes piauienses, historicamente construídos, apreendidos e
reproduzidos conforme imposições estabelecidas segundo princípios que se respaldam no
conceito de habitus, desenvolvido por Bourdieu.
1.1 Comer, comer, comer... Terra à vista! – As práticas alimentares e os alimentos transportados pela armada de Pedro Álvares de Cabral
As cozinhas locais, regionais, nacionais e internacionais são produtos da
miscigenação cultural, fazendo com que as culinárias revelem vestígios das trocas culturais.
Hoje, os estudos sobre a comida e a alimentação invadem as Ciências Humanas a partir da premissa de que a formação do gosto alimentar não se dá, exclusivamente, pelo seu aspecto nutricional, biológico. O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. A historicidade da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais como espelho de uma época e que marcaram uma época. Neste sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come como se come e com quem se come. Enfim, este é o lugar da alimentação na História (Santos, 2005, p. 2).
20
Nessa lógica supracitada, compreender uma história de “inabilidades alimentares”
(grifo do autor) vivenciadas no território brasileiro – mais especificamente naquele da região
do Piauí – remete-se, logo em seguida a questionamentos sobre as mais antigas e pioneiras
formas de alimentação que foram fomentadas junto ao Brasil. Assim, como esse se trata de
um país que sofreu substancialmente momentos de dependência de Portugal durante seu
período de colonização.
A primeira vez que o território brasileiro foi explorado por outros povos, como os
portugueses, data-se historicamente que foi efetuado por Pedro Álvares Cabral. Todavia,
como aduz Serrão (1968) “é quase certo que a região já fora abordada por nautas portugueses,
e que a viagem de Cabral não foi de ‘descobrimento’ mas de reconhecimento” (p. 102 – 103).
Essas nuances históricas soam, em especial, como indicativos de que a concepção
vigente por alguns historiadores de que as “Caravelas do Descobrimento”, assim como foram
chamadas, constituíram-se de agentes literalmente exploradores. Em meio que agiram de
maneira a desprezar os valores, hábitos alimentares e manifestações culturais apresentados
pelos nativos (índios). E assim, impondo como legítimas suas próprias aspirações e
julgamentos sociais, plenamente convergentes com aqueles padrões sugeridos – ou impostos,
como citou Bourdieu – pelas classes mais abastadas da alta corte portuguesa. Por conseguinte,
assim sucedeu, e não era para menos, com as práticas alimentares.
A partir de análises da Carta de Pero Vaz de Caminha, articulação promovida por
Paula (1992), constata-se a carta enquanto um documento ímpar da literatura de viagens.
Descreve, verifica e explica uma página da História de Portugal, com um vigor e talento,
acompanhados e simplicidade e enaltecendo as qualidades do povo português, quando em
contato com culturas e etnias totalmente diversas.
A Carta registra as mais variadas informações da terra descoberta nos seguintes
aspectos: morfologia, fauna, flora, humana, alimentação, crenças, habitação, religião e outras.
A importância em se analisar o estudo dos mantimentos trazidos a bordo de uma
nau quinhentista, caracteriza-se como sendo de suma importância. Afinal, como afirmou
Paula (1992), ocorria uma preocupação latente frente à quantidade de alimentos, seu potencial
de conservação diante de longas viagens marítimas, sua tolerância a mudanças de temperatura
entre continentes com climas tão diferenciados. Estas características podem ser contempladas
nos alimentos citados, da própria Carta, a seguir: carnes, pescados secos e salgados, legumes,
favas, manteiga, mel, açúcar, biscoito, trigo, vinho, azeite, sal.
Contudo, é perceptível a ausência das verduras e dos citrinos, logo faltam as
21
vitaminas B e C. Sabe-se muito bem que as vitaminas, quando não ingeridas durante algum
tempo, levam ao aparecimento de doenças específicas graves, que acabam por matar se os
nutrientes em causa não são de novo fornecidos ao organismo humano em tempo adequado.
De acordo com Paula (1992), “a armada de Vera Cruz demorou 44 dias a pisar terras do Novo
Mundo, sem enfermos” (p.36). Uma consequência disso seria a descrição por parte de Vaz de
Caminha acerca da presença significativa de doentes com a chegada das caravelas no litoral
brasileiro.
É importante destacar que as aludidas preocupações dos portugueses frente às
comidas armazenadas e a forma de preparo e consumo de seus alimentos – o fogão era
posicionado de forma estratégica no barco, que por vezes poderia, inclusive, mudar de local
neste espaço – se constituíram como ações pioneiras no transporte e na locação logística dos
alimentos para longas viagens além de escalas estratégicas.
As referidas práticas denotam uma perspectiva já discutida por Carneiro (2003),
onde efetua uma revelação da cozinha como um microcosmo da sociedade, com todo o
significado simbólico na construção de regras e sistemas alimentares, impregnada de cultura.
No livro, o autor, dentre outros, sugere aos historiadores direções no campo da História da
Alimentação, segundo as perspectivas das Ciências Humanas, que possam revelar a estrutura
da vida cotidiana a partir do universo da comida.
Com essas discussões até aqui apresentadas, constatam-se alguns indicativos da
reprodução da inferioridade social no Brasil desde os tempos mais remotos. Destarte, percebe-
se que aspectos de imposição, postulados ainda em períodos de Brasil Colônia, perduram, e
ganham força. Com isso, o que acaba sendo mais preocupante é que algumas dessas
atividades efetuadas ganham uma roupagem de ações educativas, ou de libertadores, de
geradoras de autonomia quando são desenvolvidas através de espaços ou sujeitos respaldados
com a dimensão da educação, enquanto um instrumento de ascensão social.
No Brasil, as relações entre as práticas de inculcação alimentar iniciaram-se da
forma aludida acima durante o descobrimento. Como se sabe, o país hoje em dia é
classificado como pertencente àquele grupo dos “Países em Desenvolvimento”, terminologia
outrora utilizada como “subdesenvolvido”. Esta classificação deve-se, em especial aos
números alarmantes de pessoas em situação de pobreza e fome que contam no Brasil, que de
acordo com a Fundação Getúlio Vargas relata 55 milhões de pessoas passando fome no
Brasil.
E esses números podem ainda ser visto de maneira mais significativa quando os
22
mesmos dados evidenciam o Piauí como o estado onde mais é presente a fome no país. Até
que ponto essa condição se deve a que fatores, exclusivamente climáticos, ou estruturalmente
políticos?
1.2 Piauí: berço da humanidade ou o caldeirão do inferno?
Onde fica o Piauí mesmo? Sempre que alguém efetuar essa pergunta, responda
prontamente: está localizado na região Nordeste do Brasil! Fato que necessariamente todo
brasileiro que cursou a terceira série do Ensino Fundamental deveria saber, mas, volta e meia,
um questionamento como este, surge em meio a um diálogo entre grupos de estudantes e/ ou é
apresentado de maneira “divertida” e plenamente permeada de preconceito em espaços
diversificados da mídia nacional. O discurso científico, enquanto questionador, precisa estar
presente de uma perspicácia e de uma autonomia legítimos, e acima de tudo, não-ingênuos.
Essa representação sobre o estado surgiu por quê? Reproduz-se por quê? Mantém-se por quê?
Afinal, o fato de o Piauí ser o estado mais pobre da nação, segundo indicativos do
IBGE (2007) é motivo suficiente para enclausurá-lo no esquecimento em nosso discurso
social, político e acadêmico? A resposta, sem sombra de dúvidas é: Não! Mas, faz-se
indispensável serem promovidas reflexões sobre as potencialidades desta aludida localidade
do território brasileiro, bem como avaliar criticamente estas potencialidades, e sobretudo,
desvendar que fatos históricos permearam, construíram e, ainda hoje mantém esses status ao
Piauí.
Com isso, verificar a luz da ótica educacional da cultura brasileira, perspectivas
de gênese e manutenção de realidades que fizeram e fazem parte das preocupações do povo
piauiense, constitui nossa intenção ao discutir a situação de fome e pobreza.
Vale ressaltar, que o estado apresenta inúmeras potencialidades, possui história e,
por conseguinte, possui uma subjetividade própria. E por isso, existem duas, e não apenas
uma concepção acerca do Piauí. De um lado o estado é concebido como um lugar inóspito e
hostil, como um “caldeirão de quentura, um inferno de quente” (Costa, 2006) e /ou como uma
analogia ao “fim do mundo” (Monsenhor Chaves); e uma outra, que o classifica como um
lugar agradável, de acalento e legitimamente favorável ao crescimento e desenvolvimento
humano, como é presente no discurso de Adrião Neto (2006) “o berço do homem americano”.
23
Como aborda Bock et al (1999), é justamente em meio às contradições humanas, da
sociedade, que se encontram as explicações e pontos de transformação social. Ou seja,
identificar esses paradoxos frente ao estado do Piauí, implica identificar determinações
danosas para convertê-las.
1.3 O fim do mundo, uma imensidão quase desconhecida, ou seja, o Piauí
Nos primeiros discursos descritivos aduzidos pelas cartas de navegantes que
exploravam o território piauiense era comum que esses relatos tivessem pouca precisão
quanto às suas limitações (Costa, 2006). Uma variedade climática, em alguns períodos
oscilava de maneira bastante paradoxal, o que representava uma tarefa bastante árdua aos
desbravadores das terras, assim como àqueles que efetuaram as primeiras atividades
pedagógicas, como serão apresentadas adiante.
O Piauí fica em um território com fronteiras naturais, tendo características
próprias, o relevo, o clima e a bacia hidrográfica. Possui o território à imagem de um arco. Do
lado oriental, diversas elevações formando o Arco da Fronteira, cadeia de serras que indicam
os limites do Estado.
Apresenta certa homogeneidade a região, ainda que a longa extensão produza suas particularidades, nos diversos aspectos examinados pela geografia. Tratava-se de região de acesso difícil, que só foi conhecida dos colonizadores, no século XVII, e colonizada apenas no século seguinte (COSTA, 2006, p. 91).
Quanto ao clima ocorrem duas estações, uma com chuvas, em geral de dezembro
a maio, chamada erroneamente de “inverno”, e outra sem chuva, “verão”, de junho a
novembro, meses que variam do Sul para o Norte do estado. A média anual de precipitação
pluviométrica é de 600 mm, chegando a ser de 1.000 mm em várias partes, com a temperatura
média de 30ºC. A seca caracteriza-se pela ausência de chuvas, não no período chuvoso, mas
também pela quase total falta de precipitação pluviométrica no período normalmente sem
chuvas. Esta acontece a cada dez anos, em média podendo durar um a três anos (COSTA
2006, p. 95).
O Estado do Piauí está situado entre 2º44 e 10º52’ de latitude e entre 40º25’ e
45º59’ de longitude Ocidental, abrangendo área de 251.529,186 Km². Corresponde a 16,16%
24
da região Nordeste e 2,95% da área do Brasil, não estão incluídos nessa contagem a área
litigiosa a ser demarcada entre o Piauí e o Ceará. Pertencente ao segundo fuso horário
brasileiro. É o terceiro maior Estado nordestino e o décimo primeiro Estado brasileiro em
extensão territorial (Rodrigues, 2000).
O espaço educacional brasileiro foi construído pelos jesuítas, sobre isso não é
travado nenhum questionamento. Entretanto, no que diz respeito aos efeitos que essa
educação fomentou no Brasil e consequentemente no Piauí de hoje, proporcionando
malefícios e/ou benefícios ao atual sistema educacional.
Os jesuítas assentam, logo ao desembarcarem, os seus arraiais; fundam as suas residências ou conventos, a que chamavam “colégios”; instalam os seus centros de ação e abastecimentos ou se o quiserem, os seus quartéis, para a conquista e o domínio das almas, penetram as aldeias dos índios e, multiplicando ao longo da costa, os seus pontos principais de irradiação. (Azevedo, ano 1963 p. 502).
A eficácia da ação pedagógica jesuítica no Brasil deve-se ao cuidado rigoroso
com o preparo dos mestres instrutores; e a uniformização desta ação. Os conteúdos que eram
trabalhados pelos jesuítas estavam muito bem fundamentados de acordo com as regras
codificadas no “Ratio Studiorum”, que constituía-se em:
Studia Inferiora, esta reunia as disciplinas de letras humanas, de grau médio, com duração de três anos e constituído por gramática, humanidades e retórica, forma o alicerce de toda estrutura de ensino e se baseia exclusivamente na literatura clássica greco-latina. Filosofia e ciências (ou curso de artes), também com duração de três anos, tem por finalidade formar o filósofo e oferecer as disciplinas de lógica, metafísica e filosofia moral. O outro grupo de disciplinas que constituía o método jesuítico era nomeado de Studia Superiora, que baseva-se no estudo da teologia e ciências sagradas, com duração de quatro anos. A Studia superiora visava à formação de novos sacerdotes integrantes da Companhia de Jesus (ARANHA 1996, p.92).
De fato, a educação jesuítica, com seus fundamentos clássicos, alcançou outros
tempos e conseguiu manter as suas bases praticamente intactas. Mas uma grande falha
percebida neste método foi onde muitos buscaram apoio para lutarem contra. O fato de este
ensino manter uma separação entre a escola e vida, na grande vontade de retornar aos
clássicos, fez com que “os companheiros de Jesus” esquecessem as inovações de seu tempo.
No Piauí a ação jesuítica não ocorreu como em outros pontos do Brasil, dois fatos
podem ser apontados para explicar a inexpressiva atuação dos jesuítas na Educação do Piauí:
um primeiro diz respeito à tardia fixação da Ordem em território piauiense. Havendo chegado
ao Brasil em 1549, só na segunda metade do século XVIII se estabelecem no Piauí, movidos
25
por interesses pecuniários: as fazendas de gado. É verdade que antes já haviam transitado pelo
Piauí – corredor de passagem entre Pernambuco e o Maranhão – sem, entretanto aqui se
fixarem.
Por outro lado, outro fato também significativo, que correspondeu à
orientação da Ordem em relação às atividades desenvolvidas na colônia, notadamente, a partir da implantação do “Ratio Studiorum”. Sabe-se que os propósitos que animaram D. João III em 1549 a enviar os Jesuítas ao Brasil com o aval de Simão Rodrigues então superior da Ordem em Portugal, e que inspiraram o plano educacional de Nóbrega tinha duplo objetivo: o aliciamento do indígena para possibilitar a colonização; e o preparo de uma elite para exercer as funções públicas da colônia (BRITO 1996, p.14).
Os primeiros jesuítas em terras piauienses foram os Padres Francisco Pinto e Luís
Figueira, em janeiro de 1607, chegaram de Pernambuco para evangelizar no Maranhão. O
Padre Francisco Pinto foi morto pelos índios Tacarijus. Os jesuítas voltaram incursionar pelo
território piauiense, em 1711, com a chegada do Padre Manoel Gonzaga e seu companheiro
Manoel da Costa, que vieram tomar posse e administrar as fazendas que Domingos Mafrense
deixou em testamento para a Companhia de Jesus. (Adrião Neto 2006, p.207).
Com a administração das fazendas absorvia por completo os jesuítas, não lhes
restou tempo para exercer suas atividades educacionais e culturais. E somente vinte e sete
anos depois de sua chegada, é que acontece o inicio de suas atividades.
De acordo com Brito (1996, p. 13) somente em 1733 ocorre substancialmente uma
preocupação com a educação do povo com a conquista no referido ano do alvará de
funcionamento de ensino que se denominaria “Externato Hospício da Companhia de Jesus”. O
estabelecimento, entretanto não logrou funcionar em virtude das dificuldades encontradas
para sua instalação decorrente dentre outras coisas da pobreza do meio, da dispersão
demográfica dos núcleos populacionais, muitos distantes uns dos outros, e das precárias
condições de comunicação e acesso entre as Capitanias. Frustrada a organização do
“Externato Hospício”, fazem os inacianos outra tentativa, em 1749 e organizam no Distrito da
Mocha, hoje cidade de Oeiras, o Seminário do Rio Parnaíba. (BRITO, 1996).
O autor supracitado ainda aduz que
A fixação dos jesuítas no Piauí ocorre no último período de sua atuação, quando a Ordem enfatiza a criação de Seminários. Daí a criação do Seminário do Rio Parnaíba, em lugar de uma escola de ler e escrever ou de um colégio e o fracasso da iniciativa em face das condições adversas do meio para a implantação daquela instituição. (p. 18)
26
Como é discutido por Rodrigues (2000) e Brito (1996) a educação jesuítica no
Piauí enfrentou alguns percalços, dentre eles o enfrentamento de realidades desfavoráveis,
como a fome e a pobreza. Em muitos espaços educacionais, as práticas alimentares fazem-se
presentes. Elas irão manifestar, mais uma vez, aspectos culturais de uma localidade, com isso,
a situação de fome também pode ser característico de uma região, ao ponto de ser possível se
constituir uma Geografia da Fome, em meio que se mapeiem áreas que mais sofram que esse
fato tão funesto como apresentou Castro, (1961) em seus estudos sobre a fome no Brasil.
As práticas alimentares nesse período eram de uma homogeneidade peculiar nas
principais localidades exploradas pelos historiadores, aonde os jesuítas conduziam suas
atividades pedagógicas, sobretudo, concomitante às suas ações inculcadoras eles vivenciavam
os hábitos locais de alimentação, ao mesmo tempo em que impunham outros de seus hábitos,
advindos de suas vivências e cultura anteriores.
Como se sabe, o recorte do estado do Piauí deveu-se aos modos de produção local
de agricultura e pecuária. Com isso, um personagem que surge é o do vaqueiro, típico da
região até os dias atuais, no qual seus hábitos e estratégias alimentares foram parâmetros para
muitos daqueles que pela região do estado passaram. Vale ainda destacar que o nome do
referido estado tem origem nos piaus, peixes abundantes nos rios da localidade, que era
utilizado como fonte de alimentação local, muitas vezes em meio aos espaços pedagógicos –
de práticas jesuíticas – durante este recorte histórico em estudo.
Os vaqueiros piauienses tinham a responsabilidade de cuidar do gado, cabendo-
lhe uma cabeça para cada quatro que criassem (Costa, 2006). A alimentação básica era a carne
de vaca assada em espeto, pois não havia sequer panelas para que cozinhassem, bem como os
laticínios. Disse Matias Augusto de Oliveira Matos que
sem dúvida, o forte da culinária piauiense tem por base o boi e a farinha (produto da rústica mandioca que sobrevive durante os períodos de chuva e de estiagem nas baixadas e nas chapadas). É a dobradinha para todas as regiões do estado, para todas as situações difíceis. (p. 230)
Da carne de gado surgiu a alimentação típica do Piauí, como a paçoca, resultado
da carne seca batida no pilão com farinha de mandioca, e o arroz de maria isabel, com carne
seca cortada e misturada com arroz.
Conseguiram os vaqueiros e as populações rurais do Piauí antigo, ainda, mel
silvestre para a sua nutrição. Havia a coleta de frutos como cajá, caju, bacuri, crioli, buriti e
27
pequi, com as quais se começou a fazer doces e comidas típicas. Preparava-se também pratos
com a caça local, como jacu, avoante, paca, cotia, capivara e veado, quando as tinham em
quantidade. Nos rios menores pescava-se mandy, curimatá e piau, que depois inclusive deixou
o seu nome no rio Piauí, que por sua vez denominou o novo território (Costa, 2006).
Uma região rica em belezas naturais, belas serras, belos rios, e que por mais que
tenha recebido pouco dessa influência jesuítica quanto às imposições de modelos
educacionais a partir da disposição de classes sociais como esclarece Romanelli (2006)
A Educação dada pelos Jesuítas, transformadas em educação de classe, com características que tão bem distinguiam a aristocracia rural brasileira, que atravessou todo o período colonial e imperial e atingiu o período republicano, sem ter sofrido, em suas bases, qualquer modificação estrutural, mesmo quando a demanda social de educação começou a aumentar, atingindo as camadas mais baixas da população e obrigando a sociedade a ampliar sua oferta escolar. (p.35)
Na atualidade as perspectivas de distribuição de renda, como apontam dados do
IBGE (2006) ainda se configuram com um dos maiores problemas enfrentados pelo estado do
Piauí. Em especial por se tratar de construtos que se repetem ao longo das décadas.
1.4 Descansa a fome no Piauí em berço esplêndido, eternamente?
O Piauí tem tomado conta do cenário da imprensa nacional com frequência por
apresentar números alarmantes quanto ao Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, que
tem sido o mais baixo dentre os estados do país.
A situação de fome, miséria e pobreza perduram na região. Durante muitos anos a
fome, segundo Cerri & Santos (2003) tem sido vista como fenômeno natural, ou efeito
secundário de acidentes climáticos, nunca sendo aceito pelas elites como alvo de desigualdade
social, o que vem a embasar mais ainda o que diz Leal (1998, p.03): “não mais recorrente,
mais repetitivo, mais triste e mais drástico”, garantindo que o problema da seca do Nordeste
ainda não foi resolvido pelo simples fato de que para os homens de decisão política da própria
região interessa mais a sua permanência do que sua solução.
Para Negreiros et al (2003), a fome é um fenômeno amplo que incorpora
dimensões relacionadas a diferentes necessidades históricas, culturais e psicológicas, que
exercem influência direta e indireta no ambiente familiar. Para Castro (1961, p. 87) “as
28
crianças já nascem corroídas pela fome dos pais e se desenvolvem mal pelo uso de uma
alimentação extremamente inadequada”. O autor relata ainda que a fome transmite não só
uma herança de carência biológica, mas também uma funesta inferioridade social, que
permanece ao longo das gerações de maneira latente.
A idéia ganha mais consistência quando é reforçada por Bourdieu & Passeron
(1982) que fazem referência à reprodução cultural da desigualdade, apresentando que os
indivíduos e as instituições que representam a forma dominante da cultura, buscam manter
sua posição privilegiada, apresentando seus bens culturais como naturalmente ou
objetivamente superiores aos demais.
Idéia bastante visível no modelo apresentado pelos jesuítas, como articula
Azevedo (1963) ao discorrer que na primeira incursão na educação popular, fica explícito que
esses religiosos não tinham a idéia de só catequizar, “... mas lançavam as bases da educação
popular e, espalhando nas novas gerações a mesma fé, a mesma língua e os mesmos
costumes, começavam a forjar unidade espiritual e política de uma nova pátria” (p. 507).
Ao seguir a mesma linha de pensamento, no período compreendido entre a
chegada ao Brasil dos jesuítas (1549), até a sua expulsão (1759), em todas as unidades de
ensino (litoral, planalto e posteriormente Sul e Norte) se verificou somente o interesse em
formação humanística, havendo um total desinteresse na formação científica e técnica. O que
possa ter ocorrido devido às imposições do reino de Portugal para a continuidade de tal
omissão.
Não obstante, mais uma vez se torna evidente o caráter exploratório e legitimador
da dominação pelas ações efetuadas no aludido período. As concepções de Bourdieu (2006)
apontam que no conjunto da sociedade, tenderia a prevalecer, portanto, a imposição de um
determinado arbitrário cultural como a única cultura legítima. Os indivíduos normalmente não
perceberiam que os bens culturais tidos como superiores ou legítimos ocupam essa posição
apenas por terem sidos impostos pelos grupos dominantes.
A situação de fome se perpetua, conforme argumentou Negreiros (2003), se não
forem constituídas práticas educativas interventivas que contemplem tanto a instituição
familiar como a escolar. O primeiro por ser o primeiro espaço socializador da criança, sugere
um gama de repertórios comportamentais, por vezes disfuncionais; e a escola, enquanto
prática de ensino institucionalizada trata de reproduzir o habitus constituído a partir das
relações existentes entre as duas instâncias sociais.
A instituição familiar corresponde a um grupo de pessoas, que vive numa
29
estrutura hierarquizada com a proposta de uma ligação afetiva duradoura, incluindo uma
relação de cuidado entre os seus constituidores – adultos, crianças e idosos – surgidos no
contexto. A família tem que dar subsídios para que o indivíduo adquira valores morais,
éticos, culturais etc., pois fornece a base para o desenvolvimento social, por ser o primeiro
ambiente socializador vivido por parte das crianças em seus primeiros anos de vida (Carvalho,
1997).
Essa idéia é reforçada por Bock et al, (1999), que alude sobre o papel primordial
desempenhado pela família na reprodução de valores que constituem a cultura e das idéias
dominantes em determinado momento histórico, no qual estabelece disputa com outros grupos
sociais, prevalecendo e dando continuidade a um legado que transforma o homem e é
transformado por ele. Os autores ainda apresentam que para analisar o homem é preciso situá-
lo num contexto sócio-histórico-cultural, identificando e desvendando as determinações.
1.5 O estado do Piauí: uma caracterização histórica
Patrocínio (2006) afirma que por quase dois séculos subsequentes ao
“descobrimento”, o Piauí não foi colonizado, ao contrário do que acontecia com os atuais
estados do Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba; para o autor, o “devassamento e
o inicio da colonização” (p. 10) no Piauí estão intimamente relacionados às bandeiras, que
seguiam atrás de ouro e pedras preciosas. Nunes (2001) afirma que
se penetrações houve, não forma profundas; foram rápidas incursões em busca do ouro ou do índio, e jamais tentativas para colonizar. [...] A terra desconhecida teria que ser devassada e conquistada, e do seio fecundo dos sertões jorrariam novas fontes de enriquecimento (p. 26)
Entretanto, só foram encontrados no estado terras férteis e ótimas pastagens para
criação de gado. Um outro agente para a colonização do estado está relacionado à necessidade
de um percurso terrestre que ligasse a Bahia ao Maranhão.
A área correspondente hoje ao estado do Piauí, na época da sua colonização, era
considerada grande em se considerando a quantidade de colonos que a ocupavam, com suas
propriedades distando cerca de até vinte léguas umas das outras. Esta característica
30
determinou a tardia nomeação de um governador para a Capitania, criada em 1718 e tendo
designado seu primeiro governante apenas 40 anos depois, em virtude do pouco contingente
populacional e suas implicações, pois a realidade do Piauí à época – início do século XVIII,
era uma população sem vínculo de organização social e isenta à organização política (Nunes,
2001).
Muito embora o povoamento tenha sido acelerado, a densidade populacional era
extremamente baixa, em virtude da grande área territorial tomada, que era efeito da pecuária,
dispersar para crescer. Reflexo disso está no fato de apenas em 1972 ter início a fundação de
vilas, o que tão insistentemente solicitava a Corte, mas a precariedade demográfica da
Capitania não possuía um povoado digno de ser alçado à categoria de vila. Segundo Nunes
(2001), no sertão piauiense, com esse adensamento populacional, a maior parte dos habitantes
eram os “desocupados”, que eram apanhados pelos grandes fazendeiros e distribuídos pelos
latifúndios, assim organizando suas “cabroeiras”, visto que a coesão dos donos das terras era
manifesta pelo poderio que ele tinha de aglutinar ao que estavam no seu entorno, ou seja, “sua
gente”.
Durante os primeiros decênios do século XIX, prosseguem as pesquisas em busca
de novas fontes econômicas. O que se vê no cenário do Piauí desde o governo de D. João de
Amorim – até a independência – foi a continuação da luta entre fazendeiros, chefes de tribo, e
os representantes da coroa, a constituir a característica mais importante da história do Piauí,
na segunda metade do século XVIII, até mesmo a Independência. Nas vésperas da
independência, ainda não havia governo estabilizado. Vivia-se período retardatário de nossa
evolução histórica, de nossa Idade Média. Para to do o Brasil este século marcou por toda
parte a consolidação do poder público; por todo o litoral processava-se com facilidade a
organização política, em virtude do comércio, da agricultura, da indústria açucareira,
atividades que tendem a condensar populações, preparando o ambiente para a estabilização
estatal. Enquanto isso, na região do pastoreio a que pertencia o Piauí, tudo conspirava contra a
ordem: o deserto, a campina, o nomadismo e a tradição de longos anos de vida, dissoluta,
onde o individualismo impunha a lei.
Proclamada a Independência não houve como consequência dessa ocorrência
histórica, modificações profundas ou ainda modificação notável no cenário social do Piauí,
que continuava governado por fazendeiros, encastelados em seu orgulho e prepotência. Não
havia ensino de natureza alguma no Piauí. O que nos unia ao Brasil era incontestavelmente o
comércio de gado, que foi poderoso fator de unidade brasileira. Acerca desse fato Araújo
31
(1997) expõe:
No Piauí, o novo regime federativo, legitimado juridicamente pela Constituição Estadual de 1891, não trouxe mudanças profundas para o estado. Não obstante, foi um período marcado por lutas pela manutenção de sua autonomia, uma vez que existiam ameaças de o Piauí ser incorporado às unidades federativas limítrofes, em face da alegada insuficiência de recursos para sua auto-sustentação. Contudo, realizaram-se transformações de natureza político-administrativa, que buscavam a consolidação da autonomia do estado (p. 43)
Havia o caos econômico e financeiro por toda parte, e por toda parte periclitavam
as instituições, e o cenário político não era diferente, pois
“nem com o novo regime republicano os governantes piauienses modificaram seus atos, a bem dos setores públicos. Mesmo com o governo republicano, dava-se continuidade à política imperial de esquecimento dos estados pobres, como o Piauí” (Araújo, 1997, p. 72)
As atividades agrícolas e pastoris - fontes de grande riqueza do Piauí - estavam
decrescendo em produção, de ano para ano, em virtude de diversos fatores, tais como a
ausência da renovação e cruzamento com uma boa raça de gado, o absenteísmo, as
dificuldades de transportes e estradas, a rotina do método de uso da terra, ainda dos tempos
coloniais e, ainda, a seca, que implicava a falta de pastagens. No entanto, não se descartava a
ausência de uma política econômica que favorecesse aquelas indústrias.
No período da monarquia, as atividades continuavam as mesmas, não havendo
mudanças significativas na estrutura política-econômica-social do estado (Nunes, 2001). A
promessa de expansão da indústria pastoril, por meio de processos modernos, não foi além
dos planos, pois não alcançou resultado prático. Temerosos com a possibilidade da
emergência de uma nova força na política local, os grandes latifundiários boicotavam
iniciativas de modernização na atividade pastoril no Piauí (Araújo, 1997).
A navegação a vapor foi apenas amostra de modernização na economia política,
mas não solucionou o problema piauiense. Outros vestígios de fomento econômico
manifestam-se, como fruto da angústia financeira. O que vem, entretanto, em socorro do
estado, é a borracha e, em seguida, a cera de carnaúba e o babaçu, produtos naturais da terra
que surgem espontaneamente a impor-se como contribuintes maiores do orçamento, no ensaio
de adaptação do Piauí ao regime federativo (Nunes, 2001).
Desde a colonização do Piauí, a sua atividade principal fora a pecuária,
destacando-se como suporte básico até o início do século XX, quando a atividade econômica
do extrativismo vegetal – a borracha de maniçoba, a cera de carnaúba e a amêndoa de babaçu
32
se incorporaram no quadro econômico de maior importância para o Estado. Tais produtos,
mesmo inseridos na demanda do comércio internacional, não se consolidam como atividade
dinâmica e duradoura capaz de influenciar nas transformações da estrutura socioeconômica do
Estado (Araújo, 1997).
O regime federativo também não proporcionou mudanças para o Piauí, entretanto,
houve lutas para que o estado mantivesse sua autonomia, visto que eram constantes as
ameaças de que fosse incorporado aos outros estados com os quais fazia limite, para isso
sendo alegada a falta de recursos para que a unidade federativa se auto-sustentasse. Ocorrem,
então, mudanças para que se alcançasse uma maior receita, principalmente no aumento da
fiscalização da requisição dos impostos, que recaiam sobre os principais produtos de
exportação a época, os quais eram o gado e seus derivados (couros, solas, peles, chifres)
(Araújo, 1995). Até essa medida ser tomada, tais artigos.
“escoavam para as províncias limítrofes do Piauí, como Bahia, Ceará e Maranhão, quase sempre como contrabando, em tropas de animais, por áreas onde a fiscalização do Estado não era exercida, o que servia para engrossar a exportação dessas províncias” (Araújo, 1995, p. 68).
Essa dependência com os estados vizinhos, em especial com o Maranhão,
proporcionava atraso econômico e social para o Piauí.
Na capital Teresina, a essa mesma época, ouvia-se da elite um discurso
progressista revestido por um conjunto de mudanças aparentes. Essa aspiração progressista
culminou em projetos políticos que pretendiam iluminação pública, telégrafos, saneamento,
estradas de rodagem e de ferro, assim como projetos para a organização do espaço urbano. A
economia era pautada quase que exclusivamente na atividade de subsistência, com baixo nível
técnico e consequente ignóbil índice de produtividade, contando ainda com as “peculiaridades
históricas e ambientais da região” (Araújo, 1995, p. 20). Mesmo com meios de produção
rudimentares, a cultura do algodão foi de grande importância no comércio de exportação,
inicialmente para a América do Norte e posteriormente para atender as necessidades –
reduzidas – do mercado interno (Araújo, 1991; Araújo, 1995; Patrocínio, 2006; Mendes,
2003).
Ao longo da historia do Piauí, a agricultura mercantil não foi a prática principal da
sua economia, ao contrário das criações de gado, que até meados do século XIX eram
prósperas e representavam a base da economia do estado (Araújo, 1991). Isso denota que o
33
potencial agrícola (terras férteis abundantes, rios, lençóis freáticos) do estado pouco foi
utilizado até pouco tempo atrás, nos anos de 1990, com as grandes plantações de soja e arroz
no sul do estado, mas o principal, em se tratando de agricultura, é a de subsistência, essencial
para o sustento das populações rurais piauienses.
O interesse, conforme Mendes (2003), na criação de gado no Piauí começou com
os habitantes dos estados vizinhos, devido à situação climática e de solo que propicia a tal
atividade. Mendes ainda afiança que, de acordo com Censos Agropecuários, os recursos
naturais ainda são subutilizados no Piauí, tanto os solos quanto as águas (de superfície e de
solo). A importância da pecuária pode residir no fato de que foi esta atividade a responsável
pela inserção do estado no contexto econômico brasileiro (Brandão, 1995).
Historicamente, a virada do século XIX para os primeiros anos do século XX, foi
a passagem do período monárquico para a República e um momento agitado por crises
políticas que transcorreram todo o país (Araújo, 1995). Pode-se inferir que no inicio do século
XX, de acordo com o que coloca Araújo (1995), a situação político-social-econômica do Piauí
não era diferente do século anterior, pois poucas mudanças haviam acontecido tanto na
produção agrícola quanta na infra-estrutura do estado. Os grupos políticos ainda tentavam
melhorias e aquisições para o Piauí, mas percebe-se que eles não tinham forca suficiente para
alcançar os objetivos almejados.
A situação econômica do Piauí era muito distinta da situação do Centro-Sul, pois
esta região desenvolvia-se de forma rápida – devido à produção do café -, enquanto que no
Piauí e em todo o Nordeste a economia se orientava pela atividade de subsistência, imposta
pelas particularidades históricas e ambientais inerentes à região, tendo ainda como agravante
o nível técnico elementar que tornava baixo o índice de produtividade. A agricultura
orientava-se para o consumo familiar, baseado na pequena produção, utilização de terras
arrendadas de outrem e meios de produção elementares. (Araújo, 1997).
As finanças e a economia sustentaram-se na pecuária, que constituiu a riqueza
básica do Piauí até a primeira metade do século XX.
Muito embora, como colocado anteriormente, a agricultura mercantil não tenha
sido o forte da economia piauiense, a seca atinge incisivamente o povo piauiense, muito pelo
fato da cultura de subsistência ser a principal fonte de alimentação e de pequenas e informais
trocas dessas pessoas. Os produtores rurais ainda enfrentam, ao longo desses anos, da
colonização até hoje, o fenômeno da seca, encarado por Neto & Borges (1987) como uma
calamidade social e que “está ligada ao comportamento do clima, mas, de fato, contém uma
34
significação bem mais ampla e complexa que a simples ausência ou irregularidade de chuvas”
(p. 15).
Segundo os autores, de 1877 até a época do estudo, as noticias em torno da seca e
a consciência do povo acerca dela mudou muito pouco; ainda é mais cômodo acusar que a
seca é apenas consequência do clima. Até mesmo “órgãos técnicos, políticos e a imprensa
alimentam, sutil ou abertamente, a crença segundo a qual a catástrofe vem do alto” (p. 22). Os
aspectos climáticos piauienses, como infere Brandão (1995), sempre chamaram atenção dos
viajantes desde a época das Capitanias, mesmo com a boa qualidade dos solos para pecuária e
plantio de culturas e pastos.
É mostrado que os estudos especializados que tentam desmistificar esse ensejo
climático da seca ainda são de restrito acesso, porem, são taxativos em afirmar que a perda
das plantações não é provocada pela ausência de chuvas. Relatórios da Empresa Brasileira de
Assistência Técnica e Extensão Rural (EMBRATER) de 1981 afiançam que no Nordeste
brasileiro não falta água e que o semi-árido é região bastante propicia para a prática da
pecuária e da agricultura; outros estudos mais antigos (Lisboa, 1913; SUDENE, 1973 apud
Neto & Borges; 1987) já coligiam que o flagelo da seca não ocorre exatamente nos mesmos
anos e que os índices de chuva estão abaixo do necessário para encher rios, lagos e açudes, e
que o fenômeno social da seca acontece quando a frequência das chuvas é inconciliável com o
período das culturas de subsistência; isso significa que a chuva por vezes vem, entretanto, na
ocasião em que o produtor não estava preparado para recebê-la, ou depois que a produção já
havia sido perdida ou a precipitação vem distribuída irregularmente.
Neto & Borges (1987) afirmam que há casos, no Piauí, de municípios onde
agricultores produzem regularmente bem, enquanto que seus - à mesma época e com os
mesmos cultivos – perdem suas plantações; tais casos, em sua maioria,
“não se tornam conhecidos do publico externo ao município devido ao interesse dos agricultores e das lideranças políticas locais na obtenção dos benefícios dos programas de emergência. Neste sentido, prefere-se apresentar o município todo em estado de calamidade” (p. 24).
É imperioso afirmar que, ainda segundo os autores supracitados, não existe
qualquer região no mundo que seja ou esteja imune a ocorrências climáticas irregulares
semelhantes à do Piauí; não é a falta de água que assola o estado, isto é, “a natureza oferece os
recursos hídricos”, é a organização da sociedade “que não permite aos agricultores tirar (dela)
35
proveito” (p. 29) para sua subsistência.
Falta, portanto, informação e conscientização para o produtor rural acerca da
questão da seca, pois como coloca Araújo (1991), não faltam medidas para enfrentamento da
seca, já que a primeira intervenção com relação a esse fenômeno data de 1853, pela criação da
Comissão de Exploração, que levou a uma oficialização dos estudos acerca da falta de chuvas
no sertão.
Nunes (2001) sucintamente explicita que
“até meados do século passado, as modificações que se observaram na vida do Piauí tinham caráter mais social que político. Até mesmo a Independência não teve reflexos profundos em nossa história, a modificar sua fisionomia. A integração do Piauí no Brasil só teve seu início em 1845, e em nossos dias ainda está a se processar e a reclamar atenção de homens públicos. Ainda há pedaços do Piauí que pertencem ao Brasil arcaico, ronceiramente a marchar em rumo a seu destino, a evocar ainda a expansão dos currais, na época da conquista” (p. 34).
‘A prática política brasileira, assentada no paternalismo, favoritismo e
clientelismo viabiliza a permanência desse quadro de miséria no cenário atual. O quadro
social dos pobres se insere nas desigualdades culturais persistentes desde os tempos do Brasil
Colônia.’
1.6 E por falar no Piauí, Guaribas como anda você?
O povoamento/colonização da região sul do Piauí, conforme aponta Dias (1986),
deu-se em sua maioria pelas bandeiras, no fim do século XIX e inicio do XX; fica claro, nos
relatos de Dias (1986), que as bandeiras realizadas no sul do estado tinham como missão a
matança e aprisionamento de índios para o apossamento das terras. Os indígenas ofereciam
bastante resistência aos conquistadores, que ainda tinham que lutar contra a falta de recursos,
pois as cortes não mandavam ajuda muito constantemente assim como a ajuda por parte dos
fazendeiros nem sempre era suficiente para aguentar possíveis surpresas no decorrer das
bandeiras (Dias, 1986; Patrocínio, 2006; NUNES, 2007).
Na região de Guaribas, o que aconteceu não foi diferente, tendo-se como peculiar
o fato de que o “desbravador” dessa região, após conquistar dos Tapuias as terras ao redor de
uma lagoa, demonstrou interesse pela área e teve seu anseio prontamente atendido pelo
36
governador por ser um militar exemplar e exímio conquistador.
Nessa época o Piauí não tinha autonomia, vivia sob a jurisdição da capitania do
Maranhão e essas bandeiras eram custeadas pelos fazendeiros, visto que estes tinham interesse
em acabar com os índios que invadiam suas propriedades.
É míster ressaltar que as áreas pretendidas sempre eram as de proximidade aos
rios e lagos, que permeavam quase toda a extensão do estado, a fim de que estas terras fossem
povoadas com rebanhos bovinos, caprinos, ovino e equino, além da produção de alimentos
para consumo próprio, a princípio.
Segundo Dias (1986), a Lagoa de Caracol – nomeada assim pela forma da lagoa,
logo depois passando a se chamar apenas Caracol – possui características de caatinga, mas
também é “ladeada por baixadas colossais, a suportar árvores de avultados portes, que
constituem espécies florestais de grande valor econômico” (p. 17) e ainda possui o solo
formado, quase que em sua totalidade, de massapé (roxo e amarelo), propício para cultivo de
todas as culturas da região (p. 17). Tais características não são tão distintas do restante do
estado, como mostrado anteriormente.
A geografia da localidade formada por serras e chapadas, na divisa com a Bahia,
sendo considerada uma área de notável beleza, sem contar a fertilidade de suas terras,
sublimada pela proximidade com as nascentes do Rio Piauí. A localização, 566 metros acima
do nível do mar, ainda diferencia positivamente o clima da região em relação ao restante do
estado, que é na maior parte do ano bastante agradável.
Várias versões tentam explicar a origem do nome de Guaribas: na região existia o
macaco da espécie guariba, o antigo dono da região chamava-se Félix Guariba. Ao se
investigar mais profundamente o sentido do nome que esta cidade recebeu, descobriu-se uma
terceira versão, que acredita-se ser significativa, por está relacionada às duas anteriores e pela
referência da fonte.
O primeiro proprietário da fazenda onde hoje é a cidade de Guaribas chamava-se
Valentim José Alves. Valentim tinha um filho chamado Félix que criava um macaco e andava
sempre com o animal nas costas. Na época passavam muitos vendedores a cavalo pelo
povoado, perguntavam o nome da localidade e ninguém sabia responder, pois não haviam
pensado um nome para o lugar. E a partir de então, os próprios viajantes deram ao Félix o
apelido de Félix Guariba (fonte: Prefeitura Municipal de Guaribas, 2008).
Mais tarde o Sr. Félix vendeu a fazenda para os irmãos Antônio Correia do
Nascimento, que em homenagem ao seu antigo dono, batizaram a localidade com o nome de
37
Guaribas. Guaribas pertenceu primeiramente a São Raimundo Nonato, em seguida a Caracol,
criado através da Lei nº 4.680, de 26 de janeiro de 1994, desmembrando-se do município de
Caracol.
A situação de acesso à cidade na época em que foi instalado o município, era
bastante precária. De Caracol a Guaribas com aproximadamente 50 Km de estrada em leito
natural, que em condições melhores era percorrida em aproximadamente três horas. No
período chuvoso o acesso a cidade ficava intransitável, em função das poças d’água que se
acumulavam ao longo do percurso e dos deslizamentos nos pontos mais altos da Serra das
Guaribas, mais precisamente no trecho denominado Careta.
O isolamento e ausência dos benefícios públicos, como bem, a infra-estrutura,
educação, saúde, água e energia que na época eram ineficientes, fez com que Guaribas
apresentasse o mais baixo IDH do país.
1.6.1 Um pouco além/ mais da história local
Como apontam grande parte dos meios de comunicação, o retrato da miséria tem
nome e endereço no Brasil. Essa localidade se chama Guaribas, município do Piauí,
localizado a 533 km da capital, Teresina. Guaribas é uma cidade de ruas áridas e de barro
amarelado, com uma pequena atividade comercial. População estimada em 4.800 habitantes,
dos quais 1.700 desempregados. Cerca de 60% das casas não têm condições de habitação
razoáveis, das 942 residências, apenas 88 têm banheiros, e seus moradores caminham cerca de
6 km – situação modificada no último ano apenas junto ao perímetro urbano, entretanto é
continuada para aqueles que residem na região continua para buscar água de um poço
(CEPRO, 2005).
A mortalidade infantil em Guaribas, que representa quase o dobro da média
apresentada no país, é de 59,9 por mil nascidos vivos. Por isso, Guaribas é conhecida por ter
péssimos indicadores sociais, não só pela ONU, que a considera como o pior Índice de
Desenvolvimento Humano do País, como pelo IBGE (2006), em razão do pior índice de
vulnerabilidade social. Guaribas é uma das cidades mais pobres do Brasil. Pode-se dizer, sem
medo de errar, que ela é extremamente pobre. Precisa, com a devida urgência, da aplicação
efetiva de políticas públicas que possam minimizar os efeitos da miséria.
38
O Brasil é um país que, apesar de ter diminuído o número de pessoas pobres,
ainda conta, segundo o IBGE, com 54 milhões de miseráveis. É um número muito elevado,
levando-se em consideração que a vizinha Colômbia tem 40 milhões de habitantes.
O mapa da miséria, segundo o IBGE, mostra que os pobres se distribuem de
forma desigual pelas regiões do País. No Nordeste, 50,9% das pessoas vivem com até meio
salário mínimo mensal. No Sudeste, esse percentual é de 17,8%.
Os dados aludidos em torno das regiões e localidades mundiais, nas quais as
pessoas estão em situação de fome e miséria sempre fazem direcionar atenção aos
significativos estudos de Josué de Castro, em especial em sua obra Geografia da Fome,
publicada originalmente no ano de 1959. Nesta, Castro faz referências à lógica de um
mapeamento de áreas onde a desigualdade social, pobreza e situação de fome são mais
presentes, nos quais o autor discute determinantes e mantenedores sociais para a respectiva
realidade.
Ou seja, compreender a situação atual – de fome – do município de Guaribas
implica a compreensão dos construtos sociais, históricos, culturais, políticos e
comportamentais que contemplam aquele espaço físico e os indivíduos a ele vinculados.
Guaribas está encravada numa área de 3.741 km², na região sudeste do Estado do
Piauí, limitando-se com os Municípios de Canto do Buriti, Jurema, Caracol, Morro Cabeça no
Tempo, Bom Jesus, Santa Luz, Cristino Castro e ainda com Campo Alegre de Lourdes, no
Estado da Bahia. O Município foi emancipado em 1995 e instalado política e
administrativamente em 1997, apresenta uma área urbana complexa onde se vislumbra dois
núcleos populacionais distintos, separados fisicamente por uma depressão na qual figura o
tradicional “açude da água vermelha”, por muito tempo a principal fonte de abastecimento da
população, e socioculturalmente por uma discreta querela política, em que na parte chamada
“Fazenda” estão os menos favorecidos e na outra parte, o que os de primeiro grupo tratam de
“ricos” (CEPRO, 2008).
Nas duas partes, a estrutura das edificações, o traçado das ruas, o índice de
pavimentação e arborização traduzem uma forte carência de ações em infra-estrutura, e como
consequência uma dose relativa de baixa auto-estima dos próprios moradores (CEPRO,
2008).
Do ponto de vista do observador externo, esta divisão física e política do núcleo
urbano vêm comprometendo sobremaneira a consolidação da área como núcleo habitacional
uniforme, no qual as manifestações sociais e culturais possam ser melhor praticadas, a
39
organização comercial possa disponibilizar um leque maior de produtos e serviços e, quiçá,
daí surjam atividades industriais, hoje limitadas a uma pequena fábrica de pães e uma
carpintaria fracamente equipada.
A área rural onde estavam 71% dos domicílios ocupados, por ocasião da pesquisa,
apresenta-se distribuída em vários povoados, dos quais se destacam: Cajueiro, Brejão, Lagoa
do Baixão, Lagoa de Baixo, Água Brava, Tamboril, Zé Bento, Capim, Barreiro entre outros.
Alguns servidos de energia elétrica, chafarizes, escolas para ensino fundamental e educação
de jovens e adultos, mas com precária estrutura física, vez que é geral a ausência de
calçamentos e vias de circulação entre estes e o núcleo urbano (CEPRO, 2008).
Guaribas é uma cidade com uma base econômica totalmente rural. É da
agricultura – através da roça – que as famílias tiram o sustento. Mesmo as pessoas que
exercem outra atividade, complementam sua renda com a atividade do campo.
As condições de vida de sua população durantes muitos anos foram bastante
complicadas, por estar distanciado dos municípios mais desenvolvidos, o custo de vida
tornava-se mais alto com o tempo, devido ao péssimo acesso que possuía e a escassezes dos
benefícios públicos. Só depois da chegada dos benefícios dos Governos Federal/Estadual e
Municipal (mais evidenciado na Gestão de 2005 a 2008) é que foi percebido algumas
mudanças significativas em Guaribas, com vários investimentos de infra-estrutura, educação,
saúde e assistência social.
Hoje, o município tem um sistema de abastecimento de água cristalina e ainda
atendendo outras comunidades rurais. Ocorreram melhoras junto à administração, à educação,
à saúde e ao atendimento aos menos assistidos, aumentou a renda familiar, cresceu a frota de
veículos automotores no município, a Prefeitura Municipal tornou-se a principal fonte de
emprego no Município. Neste existe hoje um sistema bancário, Correios com Banco Postal e
Caixa Econômica Federal “Caixa Aqui”.
Por último, veio a melhoria da urbanização, construções da Sede da Prefeitura,
praças, colégios, pavimentação de ruas e iluminação pública e melhoria das estradas, etc.
40
1.7 Comer hoje no Piauí é...
De acordo com pesquisas efetuadas pela Fundação Cepro (2008) a preferência dos
piauienses foi pesquisada em outras áreas diversas, como a culinária. A pesquisa pedia para
indicar livremente o prato mais saboroso da culinária piauiense. Foi eleita a galinha caipira,
com 33% dos votos. Outros pratos da preferência, em ordem decrescente são: maria-isabel
(20%); peixada (10%); capote no arroz (9%); baião-de-dois (7%); carneiro ao leite de coco
(6%).
Outra pergunta relacionava-se à dieta alimentar principal dos piauienses – o
almoço –, pedindo aos entrevistados que relacionassem os tipos de alimentos contidos no seu
almoço do dia ou da véspera, conforme o horário da entrevista. Deu empate técnico entre dois
tipos de almoço praticamente semelhantes: arroz, feijão e carne bovina (21%), e arroz, feijão,
carne bovina e salada (20%). No prato seguinte, pela ordem, estava novamente arroz, feijão,
carne bovina e macarrão, mas com percentual de 7% dos almoços e, no seguinte, arroz, feijão
e frango, 6%, seguindo-se uma lista de pratos com pequenas variações e reduzidas
representações. Descrevendo-se de outra forma, o arroz está presente em 94% dos almoços, o
feijão em 71%, a carne bovina está de volta a 60% das mesas, a salada de legumes em 41%, o
frango em 19%, o macarrão em 17% e o peixe em 9%.
Como é observado, têm-se uma variedade grande de gêneros alimentícios
produzidos/consumidos pelos piauienses. Estes trazem em si, uma gama de hábitos e
interesses sociais embutidos, o que faz com que contradições entre o “alimentar-se” e o “não
alimentar-se” fiquem mais evidentes.
E a situação de fome tão exposta pela mídia? Com o passar dos anos e com a
inserção de algumas políticas sociais alguns números reduziram. Muito embora, ressalta-se
que diminuir as proporções da carência protéica de uma população não seja um sinônimo da
promoção da segurança alimentar. É necessário se discutir se discutir sobre quais construtos
sócio-históricos-culturais estão envolvidos em meio às práticas alimentares. Afinal, o que se
comia em Guaribas antes da inserção das politicas sociais e previdenciárias? Até que ponto a
fome esteve presente? Qual o grau de escassez da comida? Em que se diferencia o ato de
comer em Guaribas? Dentre os objetivos do próximo capítulo está o estabelecimento de
relações entre essas perguntas, a partir da discussão sobre as práticas alimentares do
município de Guaribas – PI.
41
CAP. 2 - GUARIBAS À MODA DA CASA: HÁBITOS ALIMENTARES E
SITUAÇÃO DE FOME
“Em momentos rituais
ou cerimoniais o alimento é um elemento fixador psicológico no plano emocional e comer certos pratos é ligar-se ao local
ou a quem o preparou”. (Câmara Cascudo, 1983)
Ao preparar um determinado prato ou iguaria alimentar percebe-se que é
frequente a recorrência a pessoas mais hábeis e/ ou aptas a efetuar as indicações práticas para
o cozimento, para a mistura de sabores, para as combinações complementares e distintas de
ingredientes que se conjugam com muita coesão, que, por muitas vezes provocam sensações
ao palato verdadeiramente únicas.
Afinal de contas, seria bastante laboroso para que cada indivíduo submetendo-se a
preparar seu alimento, não estivesse “respaldado” com manuais de receitas, ou acompanhado
por um mestre da cozinha, ou até mesmo algum sujeito mais competente na arte da culinária –
um membro mais velho da família, por exemplo –, pois, teria que a cada tentativa
(re)experimentar e (re)avaliar sabores, texturas, temperaturas, medidas, fusões, e, a propósito
o gosto, a quem se pretende agradar. Gosto, que, aliás, constrói-se a partir de uma gama de
conjecturas sócio-econômico-culturais.
Sobre esse assunto Bourdieu (2006), lança a seguinte pergunta: gosto se discute?
Para Bourdieu questão de gosto se discute sim, sobretudo pelo fato do gosto não ser uma
propriedade inata, uma vez que, este é produzido e é resultado de um feixe de condições
materiais e simbólicas acumuladas no percurso de nossa trajetória sócio-educativa. Para o
autor, o gosto cultural se adquire, mais que isso, é resultado de diferenças de origem e
oportunidades sociais, e, portanto, deve ser considerado como tal.
A partir desse pressuposto, o presente capítulo tem como objetivo apresentar e
discutir a constituição sócio-histórico-cultural das práticas alimentares da população do
município de Guaribas – PI, considerando as situações de fome apresentadas no decorrer das
últimas décadas. Baseia-se em fontes bibliográficas e os discursos de moradores antigos da
aludida localidade.
Com o intento de obter uma maior aproximação acerca das práticas alimentares e
de seus determinantes sociais trabalhar-se-á, com categorias de análise de dados apresentadas
42
e organizadas – de forma concomitante e análoga – a partir de uma receita de um prato típico
nordestino, o bolo de milho. A presente idéia surge para ilustrar como as potencialidades e
diretividades de uma indicação minuciosa sobre a quantidade dos ingredientes e a maneira de
preparar um prato podem contribuir para explicitar aspectos simbólicos em um determinado
grupo social; além de elucidar significativamente as nuanças que permeiam a maneira de
raciocínio particular sobre os estudos que contemplam as práticas alimentares.
Tendo em vista mais expressividade sobre as práticas alimentares neste capítulo,
os sujeitos entrevistados – moradores antigos do município de Guaribas – PI – terão seus
nomes substituídos por pratos alimentares, escolhidos pelos próprios entrevistados, e eleitos
conforme o agrado, gosto e sentimento de prazer que estes lhes proporcionam. Os discursos
se encontram inseridos em categorias, a saber:
2.1 Bolo de Milho com coco1, e sua receita como metáfora para expressar as
práticas alimentares de Guaribas – PI
O que esse prato tem de regional? Uma resposta plausível à pergunta precisa
conter uma observação nada superficial. Carece, sobretudo, de atenção minuciosa à análise
dos gêneros alimentícios utilizados, aos processos de produção, acesso e consumo alimentar,
bem como verificar aqueles indivíduos envolvidos no modo de preparo de um prato, no ato de
servir, e nas condições sócio-culturais nas quais este é consumido. Desse modo, seguimos as
já mencionadas considerações para examinar criticamente um pouco da história alimentar do
município de Guaribas- PI.
1 O Bolo de milho é um dos alimentos mais consumidos em mesas nas quais são comemoradas as Festividades Juninas. Este caso ilustra um pouco das representações existentes em torno das práticas alimentares nordestinas. É míster apresentar que muitos dos pratos servidos nestas festividades têm como principal gênero alimentício o milho; como exemplo deles temos a pamonha, o mingau de milho, o arrumadinho, o mugunzá, a farofa de cuscuz, entre outros. O período junino destaca ainda o fato de muitos estados brasileiros utilizarem o bolo de milho como um dos protagonistas das mesas familiares e das barracas de alimentação; acontecimento este que o fizeram sofrer adaptações quanto ao seu preparo e à inserção de ingredientes originalmente não utilizados – como é o caso do coco –, que exemplifica bem como algumas modificações dos hábitos alimentares ocorreram mediante interferências de outras culturas alimentares (Câmara-Cascudo, História da Alimentação Brasileira, 2005). Por esse conjunto de especificidades, a receita do bolo de milho foi adotada como roteiro indicador de nossas categorias de análise, principalmente por tornar possível a consideração dos princípios de análise estabelecidos pela Hermenêutica de Profundidade: análise sócio-histórica, análise formal ou discursiva, interpretação/reinterpretarão (Thompson, 1998).
43
2.1.1 Duas xícaras de chá de massa de milho; duas xícaras de chá de leite; três ovos
As práticas alimentares de qualquer região, povoado, ou localidade apresentam
características que expressam a forma como o grupo social se organiza e estabelece suas
interações com o espaço social e com outros grupos sociais. Destaca-se, com isso, a relação
do homem com os gêneros alimentícios naturais da localidade, em especial, os alimentos
produzidos/consumidos em tempos remotos e aqueles produzidos/consumidos na
atualidade.
A dimensão cultural dos hábitos alimentares se expressa nos padrões, crenças,
idéias e pensamentos de que são portadoras as “culturas tradicionais” (CANESQUI, 1988).
Muitos desses hábitos se referem ao consumo e produção de alimentos ocorridos por meio da
construção de práticas culturais repassadas de pai para filho, sucedidas pelas gerações ao
longo de décadas. A alimentação no espaço familiar faz com que pensemos em um espaço
social organizado.
A família, como instituição social, é o primeiro espaço de convivência em que os
pais se tornam modelos, mitos, exemplos (CHALITA, 2004). Esta corresponde, portanto, a
um grupo de pessoas, que vive numa estrutura hierarquizada com a proposta de uma ligação
afetiva duradoura, incluindo uma relação de cuidado entre os seus constituidores – adultos,
crianças e idosos – surgidos no contexto. A família tem que dar subsídios para que o
indivíduo adquira valores morais, éticos, culturais etc., pois fornece a base para o
desenvolvimento social, por ser o primeiro ambiente socializador vivido por parte das
crianças em seus primeiros anos de vida (CARVALHO, 1997).
Essa idéia é fortalecida por Bock et al, (1999), que refere sobre o papel primordial
desempenhado pela família na reprodução de valores que constituem a cultura e das idéias
dominantes em determinado momento histórico, no qual estabelece disputa com outros grupos
sociais, prevalecendo e dando continuidade a um legado que transforma o homem e é
transformado por ele. Os autores ainda apresentam que para analisar o homem é preciso situá-
lo num contexto sócio-histórico-cultural, identificando e desvendando as determinações.
É em família que os alimentos são consumidos, sentidos, degustados e associados
a diversas sensações da infância, da juventude e da velhice. Isso proporciona aos sujeitos
recordações dos alimentos mais consumidos no decorrer de variados momentos de seu
desenvolvimento, desde a infância até os dias atuais.
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A comida, portanto, traz consigo uma memória gustativa que remete as vivências
de uma comunidade, construindo e mantendo a memória social de um grupo ao qual avós e
netos pertenciam pelo simples fato de comerem a mesma comida. A dimensão que estamos
colocando em relevo, no contexto dos estudos de comida e memória, aborda a comida e as
práticas da alimentação com base em sua dimensão comunicativa, ou seja, assim como a fala,
ela pode contar histórias (AMON & MENASCHE, 2008).
No decorrer de minha investigação diante dos grupos sociais de Guaribas – PI,
parti daqueles moradores mais antigos da região, quer tivessem residido em zona rural ou
zona urbana, priorizando os que residissem no município por pelo menos 30 anos. Assim, as
memórias mais remotas de alimentação e comida emergiram indicando os alimentos
consumidos a partir da agricultura como o feijão, o milho, a fava, a mandioca e o arroz (raras
exceções), sendo preparados sob formas diversificadas. Quanto à pecuária, as carnes de porco,
gado e galinha, assim como os ovos eram de consumo frequente.
Antigamente era muito difícil as coisa. Me alimentei de leite materno quando nasci até uns dois anos e depois se alimentava de mingau de tapioca com água, e com leite no período do inverno. Também quando fui crescendo comia fejão, fava, mandioca, milho, e carne de porco e gado, e às vez carne de caça. Mas às vez passava dias sem cume(comer) carne, pois as coisa eram muito difícil... E hoje já é bem mais fácil as coisa, como carne quase todos os dia, de porco, gado ou de galinha, ou às vezes ovos, e feijão, arroz, cuscuz de mi(milho) ou bejú.
(Dona Beiju com carne seca – 68 anos)
Rapaz, se eu for lhe contar é muitas coisa. Era a canjica do milho, fubá do milho. Rapadura, era o beiju de tapioca, que quando não tinha o beiju de tapioca comia o beiju da massa. Tudo isso foi do meu tempo.
(Seu Feijão com arroz – 72 anos) Era farinha, um mingau com açúcar feito o mingau no dedo. Antigamente ninguém podia comprar uma lata de leite nem um pacote de leite né, então hoje tá tudo mudado... era o feijão com a farinha, uma canjica de milho que minha mãe fazia, era essas coisa assim. O feijão a gente comia sem o arroz, nessa época era poucos que comiam arroz ou só o feijão com a farinha. Gordura era de porco quando acontecia ter... Eu lembro bem que leite num se bebia, que não tinha!
(Seu Carne com tomate bem vermelho, alface, arroz e feijão – 69 anos)
A partir dessas falas, percebemos que, com o transcurso do tempo, alguns
alimentos são produzidos e consumidos com uma maior frequência, logo o abastecimento
alimentar do município de Guaribas era predominantemente oriundo da economia de
subsistência. Do ponto de vista da economia, o município de Guaribas, tem sua base de
sustentação quase que totalmente na agropecuária, onde a agricultura, praticada sob o sistema
tradicional da “roça queimada”, apresenta baixo rendimento e pouca diversidade, destacando-se o
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milho, a mandioca e o feijão. A pecuária, constituída principalmente pelos rebanhos de bovinos,
ovinos, caprinos e suínos, forma a base de produção do setor primário (CEPRO, 2005).
As atividades ações dos moradores de Guaribas- PI junto à roça começavam
muito cedo, logo quando se iniciava o amanhecer. Plantavam, sobretudo, milho, feijão,
mandioca, cana-de-açúcar, café e o arroz, com algumas dificuldades devido às condições
climáticas – poucas chuvas – que desfavoreciam sua produção. Destaca-se que o consumo de
carne era pouco frequente. Os estoques e armazenamentos ocorriam em forma de
empilhamento, estratégias que eram de suma importância para o consumo e plantio futuro,
bem como a própria comercialização dos gêneros produzidos.
Quando nós colhia os alimento, a gente estocava pra ter pra amanhã. Naquele tempo não tinha os tambores que tem hoje, o negócio era difícil, mas a gente estocava, o milho mesmo a gente estocava mesmo empilhado. Aqui é o seguinte, a renda na minha juventude era um pouco boa, porque a gente plantava milho, feijão, mandioca, cana. O algodão que não é alimentação mas servia pra vender. Então foram essas as coisas da minha juventude. A gente sempre desperta no interior, 5:30, 6 horas, toma seu cafezinho e parte pra lavoura... Olha, a gente comia feijão, farinha, carne mais nem todo dia porque carne era difícil... Feijão, farinha, arroz por um acaso. Não era diário.
(Seu Carne Assada – 58 anos)
Plantava aqui o feijão, plantava o milho, plantava a mandioca, o arroz. E esse arroz é só quando os inverno era bom, mas é difícil. Às vezes você ganhava só pra despesa aí num dava pra vender, né? Se vendesse num comia.
(Seu Carne com tomate bem vermelho, alface, arroz e feijão – 69 anos)
Na minha infância nunca faltou foi feijão, milho que a gente produzia, farinha, tapioca e a outras coisinha que a gente tinha até pra temperar o café. Quando tinha café de caroço que a gente torrava era o mel da cana, rapadura que nós produzia muito, “num sabe? Algodão aqui existia muito, o que mais vestia aqui era roupa de algodão pra trabalho, calça, camisa. Na minha casa produzia só essas coisa, era algodão, feijão. Era mandioca que nós fazia farinhada, era tapioca e rapadura... Plantava a cana de açúcar. Nós tinha tudo isso.
(Seu Feijão com torresmo – 81 anos)
Percebe-se que são presentes algumas variações na produção e consumo, de
acordo com a oferta alimentar da economia de subsistência ou extrativa e a renda familiar de
diferentes estratos (CANESQUI, 1988), o que resultou numa dieta capaz de preencher níveis
calóricos, protéicos e vitamínicos mais elevados apenas nos grupos de posição social mais
alta, ou seja, aqueles que apresentavam maiores condições de produção alimentar.
Outro aspecto de destaque que contribui para a referida situação contempla o
acesso à cidade e em sequência aos povoados, que é feito por estradas de chão, atualmente em
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precárias condições de trafegabilidade – há três décadas atrás sucedia apenas por meio de
animais –, comprometendo o deslocamento da população, a incipiente produção agrícola
local, constituída basicamente de feijão, milho, mandioca, mamona e fava, bem como o fluxo
de mercadorias e serviços necessários ao abastecimento da população (CEPRO, 2005).
2.1.2 Uma xícara e meia de chá de açúcar; meia xícara de chá de óleo; uma colher de sobremesa de fermento em pó
Os ingredientes envolvidos no preparo de uma refeição cotidiana expressam a
junção de vários padrões de comportamento alimentar, valores, formas de se relacionar com o
espaço físico, com o meio ambiente e com a natureza. A escolha destes segue uma variável,
dentre muitas outras, bastante relevante que é a lógica do uso dos gêneros alimentícios
regionais, advindos do meio ambiente que circundam a flora e fauna de um grupo social
específico.
Entretanto, com mudanças sócio-econômicas e estruturais (acesso de estradas,
aposentadorias e outras rendas) numa localidade, é perceptível que seja verificado a inserção
de outros gêneros alimentícios, em especial aqueles que são industrializados. Caso que
ocorreu de maneira visível em Guaribas – PI, no qual alimentos industrializados chegaram
às mesas dos moradores da cidade, agregando-se àqueles que já se faziam presentes nos pratos
alimentares locais.
Com a melhoria do acesso às estradas, fez com que os sertanejos piauienses
pudessem ampliar suas possibilidades de transporte entre as localidades, vilarejos, municípios,
e até mesmo entre os estados. E com isso, foi facilitada a aglutinação de produtos genéricos e
industrializados frente aqueles produzidos a partir da agricultura familiar, que se tratava maior
forma de renda dos guaribenses (IBGE, 2008).
Muitas das dificuldades enfrentadas pelos moradores de Guaribas – PI há pouco
mais de uma década, estavam ligadas ao acesso a outras localidades e às precárias condições
de acesso à água. Desse modo, as possibilidades de intercâmbio de gêneros alimentícios eram
limitadas.
É o seguinte, alimentação sempre um pouco difícil as coisas, mais sempre a gente se alimentava com as suas produtividade com as suas criações, só que é um pouco difícil, porque a gente morava no interior de Guaribas o chamado Brejão. Então, naquele tempo, as coisa é um pouco difícil de ruim acesso, não tinha água com abundância, não tinha transporte. Então era um pouco difícil pra chegar até a mesa de cada cidadão, a não ser aquele que a gente tinha produção, sempre vinha
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daquelas cidade longe, que nem Bom Jesus, através de transporte que nem, burro, porque não existia transporte viu. Trazia o arroz, alguma alimentação melhor, porque aqui não produzia. Hoje a diferença é que existe um bom desenvolvimento. Porque aquilo que a gente não produz aqui vem através dos transporte. É outra vida, nós tamo num mundo novo. Hoje é o seguinte, você ver, vem daqueles grandes abatedor de frango, vem com abundância. Vem alimentação de uma maneira melhor, porque hoje nós tamo num mundo esclarecido que a gente tá vendo o mundo do jeito que ele é. Antes nós passava pela vida e não vivia, hoje você tá vendo alí. Os acesso às comida hoje são bom, o dinheiro são pouco mas através do governo federal e o governo municipal sempre a gente vê o dinheiro. Não é com abundância, mas sempre a pessoa tem o seus troco do dia-a-dia. É porque aquelas família pobre hoje tem a bolsa família que já da uma pequena ajuda, outros tem seus emprego na prefeitura, outros já chega a idade que nem eu, sou aposentado. Porque antes não tinha esse privilégio da pessoa idosa se aposentar.
(Seu Carne assada – 58 anos)
Ao lado dessas atividades do campo, entram as aposentadorias, o rendimentos dos
assalariados, quase que totalmente do setor público, os fundos sociais repassados via programas
assistenciais e os fundos constitucionais administrados pelo poder municipal, que juntos
determinam a base de sustentação econômica do município (CEPRO, 2005). A ausência de uma
base de transformação dos produtos primários, bem como de um suporte de distribuição dos
produtos necessários ao dia-a-dia da população, deixa o Município de Guaribas fortemente
dependente do comércio e seguimentos de prestação de serviços instalados em São Raimundo
Nonato ou em cidades baianas circunvizinhas.
Na atualidade, com a melhoria no transporte e das estradas, bem como por meio
das possibilidades de renda emergidas com os programas sociais, aposentadorias e empregos
públicos, os residentes do município tiveram a oportunidade de consumir outros produtos
advindos dos municípios vizinhos. E assim, ampliando os enfrentamentos às impossibilidades
climáticas, que podem gerar pouca produção de determinados alimentos, como é o caso das
verduras ou de alimentos industrializados como o macarrão.
Você planta ela no tempo de plantio e passa 6 meses pra colher, acompanhava um pouquinho ficava comendo ali e ia sofrer, caçar coisa pra comer. Num é hoje que nem você chega dentro de casa e tem sacos e mais sacos de arroz e aqui depois que passou a ser cidade graças Deus. Tem cidadão rico aí. As mudanças quando passou a fome. O “cabra”, hoje... nós “plantemo” planta 30, 60 quilos de feijão, 70. Certamente quem plantou 70 quilos de feijão plantou 70, 80 saco de 60 quilos. E num acabou a precisão? Acabou.
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Porque “miorô”, passou a cidade, as coisa tão mais fácil, chega camelô aqui vende as coisa a gente fiado pra gente ficar pagando “mensal”, se falta uma coisa vai na casa no vizinho e toma emprestado, se numa num tem na outra tem. O cabra trabalhando mais, com mais cuidado com medo de fome, porque ninguém passa mais fome aqui. Aqui hoje come arroz, come macarrão, come todo tipo de verdura que tem. Antes não tinha. A verdura só quando enverdecia a mata. A única verdura era quando chovia que enverdecia a mata, que hoje filho nenhum nosso quer comer sem arroz e sem carne.
(Dona Frango com macarrão e tomate, com um feijãozinho do lado – 66 anos)
Agora aí eu lhe digo, da minha lembrança pra cá, eu já comi umas comida mais leve, que quando viajava daqui pra São Raimundo, Remanso. Naquela época trazia um macarrão, porque não tinha aquele negócio de outra coisa. Fazia aquela sopa e dava quando era maiorzinho “num sabe” e quando chegava a época de pegar um “gomozo” seja do que for, mandioca, tapioca, criava a criança desse jeito assi, no leite de gado, pra puder alimentar, porque na criança o intestino é fraco. Num tinha aquele negócio de leite Nestogeno e Ninho coisa nenhuma, e criamo todo mundo forte graças a Deus.
(Seu Feijão com torresmo – 81 anos)
Em relação aos dados finais apresentados pelo relatório de indicadores sócio-
econômicos do município de Guaribas (PI) da Fundação CEPRO (2005), chama a atenção a
proporção de 86% das famílias, que de uma forma ou outra afirmaram dispor de alguma renda
associada à atividade rural. O grupo de famílias que no município vive exclusivamente da
atividade rural apresentara a menor média de rendimento. De uma outra forma, cita-se como
mais elevada a média de rendimentos dos empregados no setor público.
Outro aspecto relevante presente nas práticas alimentares do município de
Guaribas (PI) é a presença do regime de não suficiência econômica, que não permitia ao
agricultor o provimento de todos os bens alimentares de que necessitava, passando a depender
o seu abastecimento e consumo da aquisição de produtos no mercado urbano (arroz,
macarrão, a massa de milho pré-cozida para fazer o cuscuz; ou os próprios gêneros que são
produzidos na região, mas que em circunstâncias difíceis como a seca e a falta d’água,
tornaram-se escassos).
2.1.3 Uma xícara de chá de coco ralado
Nas práticas alimentares percebemos que, volta e meia alguns pratos incorporam
novos ingredientes, expressando o seu caráter dinâmico, histórico e relacional. E o novo sabor
inserido ao prato, à comida, ou à sobremesa promove uma “renovação” ao paladar.
Entretanto, não se pode esquecer que a inserção de novos gêneros alimentícios em um grupo
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social traz consigo uma carga histórico-cultural significativa, em especial de valor simbólico
que pode repercutir nas relações sociais mediadas pela alimentação.
Por conta disso, não deve nos surpreender o fato de que certas comidas
consideradas marcadores étnicos – por exemplo, macarrão, croissants, pizza, o croque
monsieur – estejam perdendo hoje esse rótulo, tornando-se, dentro do mercado global de
alimentos, o que MINTZ (2001) chama de comidas etnicamente neutralizadas. Efeito este que
também parece ter ocorrido com a própria fava no município de Guaribas – PI. Para o autor,
“as comidas se tornam étnicas; e também deixam de sê-lo” (p.35). A comida como índice de
mudança social está relacionada a todos esses fenômenos. No município de Guaribas - PI a
inserção e redução de produção da fava trouxeram consigo algumas particularidades, e, por
conseguinte modificações humanas.
Destacam-se, portanto, dois momentos significativos para a produção e o
consumo da fava. Um primeiro que comporta a sua inserção, ocorrida por meio de sua
importação do estado do Maranhão, que, enquanto novo gênero alimentício na região do
município de Guaribas- PI gerou renda a alguns moradores. Entretanto, outra perspectiva foi
presente, estando relacionada às dificuldades junto ao plantio e à colheita da fava, sendo esta
com pouca praticidade e de difícil manejo.
A fava já foi já com bem “periúdo”, e já tinha meus 20 e poucos anos... É que veio a fava, trazido do Maranhão, comprada pra fazer, servir como alimentação e a gente plantou e deu uma boa renda viu. Eu cheguei a plantar um pouco e colhia até 32 sacas viu. Sem gastar dinheiro, só eu e a minha família... A fava num era bom, era difícil o acesso pra fazer a colheita, e uma baixa renda, o dinheiro era muito pouco. A fava num tem tanto retorno não... é porque a luta é muito pesada viu... é porque o feijão a gente colhe as bagem e bate na máquina. E a fava o pessoal puxa nas rama e não pode bater na máquina. É difícil. é só se fosse colhida, que nem o feijão. Mas pra dar um andamento a pessoa puxava as rama e depois batia. É difícil pra tratar... A planta nem tanto, o ruim é a colheita, viu. Quando o cabra ia pras cidade maior e via os outro plantar feijão fica era besta com tanta facilidade, e depois vinha e dizia pra muié, que ficava em casa esperando com fome... Plantar é a mesma coisa que nem o feijão, o milho, não tem diferença, agora a colheita é mais difícil, é um pouco “dependiosa”.
(Seu Carne assada – 58 anos)
A fava representa para a comunidade de Guaribas - PI um alimento identificador
de seu município. Na região sudoeste do Piauí, apenas neste município é produzida a fava, e
apesar das dificuldades quanto à sua colheita e produção, muitos agricultores residentes da
localidade plantam e colhem fava com a finalidade de venda para outros municípios (IBGE,
2008).
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Com o fluxo dos homens do campo para a cidade, o consequente aumento do
número de mulheres na miséria e a nova dieta dos trabalhadores. MINTZ (2001) afirma que a
comida da cidade adquire um significado especial por ser “da cidade”, enquanto que outras
comidas perdem atração justamente porque não são “comida da cidade”. Com isso, o autor
demonstra que a emigração do trabalho masculino pode alterar a vida rural no âmbito local, e
que a comida serve de portadora de significado na medida em que velho e novo, urbano e
rural, masculino e feminino, são conjugados.
Olha naquele tempo o pessoal dero fé de plantar fava no lugar de feijão e sempre era o fluxo naquela época viu. Aí depois “diminuiro”, o pessoal afastaram, e hoje até procuram e num encontram, aí o pessoal começaram a plantar feijão.
(Seu Carne assada – 58 anos)
Alguns estudos de Canesqui (1988) permitem demonstrar o envolvimento de
camponeses e agricultores nas relações de mercado, referidas a relações sociais concretas que
definem os diferentes circuitos de troca, de acordo com o produto, suas propriedades e
destino. Os produtos advindos da agricultura comportavam alternatividade entre consumo e
venda, variável conforme o circuito do mercado e o destino dos produtos. Revelam os
pesquisadores a dependência quase integral do mercado de certas categorias de produtores
para obtenção de bens alimentares.
Novas situações de mercado podem responder pela modificação dos hábitos
alimentares. Isto implica que a adoção ou rejeição de novos hábitos será também produto da
prática e da experiência dos grupos sociais, bem como do que significam para eles. Desse
modo, é percebido que a inserção de novos produtos alimentícios à mesa das famílias
guaribenses, como a carne – bastante escassa – o macarrão e as verduras, sucedeu conforme
variáveis sócio-econômicas através de oportunidades de empregos fixos gerando também
mais rendas contínuas, dando subsídios assim a melhores condições de vida e saúde.
A riqueza é água, é coragem que todo mundo criou pra trabalhar. É um salarinho que a maioria dos pobre tem nessa prefeitura daqui de Guariba, quem num tem muito tem pouco. Quem num é concursado tem, quem é tem. Porque graças a Deus nós “botemo” um prefeito aqui na cidade, esse é junto com os pobre aí, é dia e noite, você num viu ele aqui nesse instantinho, você precisão de ver ele, você chega lá na casa dele e encontra. Fala e é arrumado. Esse é um prefeito que chegou aqui na Guaribas pra dizer assim, não porque ele pega as coisa e “extravei” é por precisão, porque o cabra é socorrista. Adoeceu aqui já sabe. Sim e antigamente aqui quando adoecia um pra sair daqui a São Raimundo Nonato era na rede. Juntava, pegava uma travessa de pau, arrumava a rede lá, juntava dois homem um pegava no pé e outro na ponta e embalava daqui pra lá, mais de 30 homem pra levar daqui pra Caracol pra socorrer num médico. Hoje nós temos 3, da saúde aqui nós temos 4, carro da saúde aqui dentro da cidade. 2 ambulância, 1 L200 e
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uma Hilux. E dependendo das D20 se precisa de carro eles pegam outros carro e leva aqui, pra levar pra São Raimundo, Teresina, pra onde quiser leva. Aí num muito? Mudou muita coisa nessa cidade. É o arroz que ninguém comia antigamente, a carne que era difícil comer, macarrão e verdura. Porque hoje ninguém come sem tempero!
(Dona Frango com macarrão e tomate, com um feijãozinho do lado – 66 anos)
Alguns atributos – “forte/fraco”, “pesado/leve”, “vitamina”, “gostos/ sem gosto” –
servem para qualificar a dieta consumida ou idealizada, por referência à concepção de
pobreza que comporta desigualdades entre iguais (os pobres) e os outros (os ricos). A
desigualdade entre iguais implica, do ponto de vista dos entrevistados, escalonar a condição
de trabalhadores pobres mediante critérios que incorporam o quantum de salário, a
apropriação de bens de consumo, as formas de inserção e qualificação diante do mercado de
trabalho e a construção de identidades sociais. Restam diferentes graus de pobreza, que não
chegam a ultrapassar uma condição geral de empobrecimento e a avaliação de uma dieta
“fraca”, que o pobre dispõe, a despeito da valorização da “comida forte”, pesada, “com
vitamina” e “sem vitamina” (CANESQUI, 1988).
Comia milho, era o arroz quando nós ia comprar nos agreste. A fava a gente cozinhava ela até fazer o caldo pra depois poder comer... Nós trazia do agreste (a fava) pra plantar aqui. Nós plantava, ia colher, passava meio dia todo pra colher ela, pra depois trazer ela pra casa. Aí passava o tempo todo só comia aquela comida porque num tinha outra. Em outro lugar num tinha, e aí a gente ia pros agreste comprar. Se achasse um patrão bom pra gente, a gente ia ganhando aquele tostão e já trazia... um patrão pra botar a gente pra viajar tocar a tropa nesse tempo, a gente saia com 10, 12 jumento, pro carreiro, pra ia comprar no Cristino Castro... não nós trazia de lá, nós fazia assim: nós tinha um saco de “caruá” e lá nós fazia um saco grande, do tamanho dessa mesa aqui, colocava dentro, costura e trazia uns 3 de lá pra cá. Trazia uma rapadurinha pequena dentro... lá comprava barato... o patrão ajudava, porque a gente ia ganhando. Onde botasse nós pra trabalhar nós ia, e você comprava uns 3 e agente pagava com os cereais, aí servia pra gente, comprava outras coisa e trazia... o arroz, a fava.
(Seu Feijão com arroz – 72 anos)
Outro momento significativo para as mudanças de alguns hábitos e práticas
alimentares junto aos grupos sociais, foram a inserção das políticas públicas de benefícios
sociais – os de transferência de renda –, e o surgimento das aposentadorias dos trabalhadores
rurais.
Aumentos consideráveis no consumo de proteína animal, o uso crescente de
alimentos preparados, e o aparecimento da categoria “comidas de criança”, como aduz Mintz
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(2001) contribuem significativamente para mudanças junto ao consumo alimentar. Isso
decorre de determinações estruturais e não simplesmente porque “o gosto” das pessoas esteja
mudando.
Com a interferência de variáveis sócio-econômicas, isto é, a melhora da renda dos
moradores do município de Guaribas – PI alguns conceitos como o de “comida de rico”
emergiram associando-o à variedade de alimentos apresentados em um prato, ou na própria
despensa familiar. Ao mesmo tempo, algumas medidas sanitárias foram tomadas junto ao
município, como as tentativas de restringir a criação de animais de pequeno porte no
perímetro urbano.
Hoje tá tudo mudando, come o arroz, come a fava. Todas as coisa que o cara precisa, come uma batata, no lugar mesmo que “prodoze” vende fora, vem uma maçã, vem uma tomate, de tudo tá melhor de que o tempo que eu passei... Tá melhor porque tá muito adiantado pelo lugar... Diferente assim, porque vem do São Raimundo, vem de Teresina, vem de São Paulo, de todo esse lugar vem pra aqui pra terra... Porque teve um prefeito, teve o governo que conheceu o lugar, então ajudou numa parte. É mudança muita por culpa do governo... Eu recebo um cartão. O bolsa-família. Esse que foi cortado, eu recebo agora é o da aposentação (aposentadoria). A vida é muito melhor porque o camarado agora tem o dinheiro e todo mundo confia em vender a gente. E quando a gente não tinha salário ninguém confiava. Se tivesse o cartão aí vendia, aí a gente corria pra comprar aquela coisa.
Hoje a comida é de rico: hoje é o feijão, é o óleo, é a carne de gado, porque porco num tem. É um “tomata”(tomate)bem vermelhinha, uma laranja, um abacaxi bem amerelim que dá gosto, de tudo tem já no lugar. E é porque o porco tá acabando, num tem Cuma(como) antes. O prefeito mandou tirar, porque nóis criava era nas porta de casa, no mei da rua. Ele mandou tirar de cá pro povo num criar na cidade, aí tinha muito porco na cidade aí ele mandou tirar... aí nós num temo. E não foi pra levar não, era pra matar tudinho. Fez foi matar. Ou dava pros outro. Dizendo ele (o prefeito) porque a educação não aceitava pra não dar sujeira na rua. Agora só pode criar porco no roçado, num ele num pode mais comer coisa das rua. E nóis num tinha condições de botar na roça porque era muito longe, e agora é muito difícil pra lá, porque quem tem um animal podia levar, mas quem num tem. Isso já aconteceu tá completando 4 anos. Mas o povo ta comendo mais porco, só que da roça!
(Seu Feijão com arroz – 72 anos)
A comparação entre o “tempo antigo” e os “dia de hoje” ajuda os entrevistados
explicarem as relações de trocas sociais (passadas e atuais) das pessoas entre si e com a
natureza da região na produção alimentar. O “tempo antigo” é idealizado. As relações entre os
homens, por analogia coma razão homem/ natureza, tendem à desarmonia, deixando implícita
a idéia de desordem.
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De uma relação de convivência hostil com a natureza (a terra), que dificultava o
provimento alimentar, os lavradores hoje sem terra explicavam um “tempo da fortuna”. A
vida da fazenda, onde detinham parcela de terra “cedida” para o plantio era idealizada por eles
e comportava relações solidárias e harmônicas dos lavradores com os homens (proprietários)
e coma própria natureza, definida como “fértil”, “forte” e “sadia”. Tal situação era valorizada
como ideal e foi-se deteriorando à medida em que certos processos sociais alteraram as
condições de acesso à terra, impondo ao lavrador novas relações de trabalho e modificações
na sua dieta. Esta, ao invés de ser produzida por ele, passa a depender cada vez mais da
compra de bens e serviços. Para o lavrador é o empobrecimento da natureza, a dificuldade de
acesso à terra, a redução na oferta de empregos, a introdução do mercado e a “ambição” dos
patrões que a empurram para a cidade. Considera sua vida na cidade repleta de carências, ao
contrário do tempo de “fartura” de antes.
Era difícil. Antigamente era difícil, tudo. Antigamente você comprava um saco de arroz, tinha que comprar fora. Hoje pra você comprar, compra dentro de casa. Os cara você paga e vem entregar na casa. Antigamente a gente ia de jumento, comprar um saquinho no agreste. É diferente porque tem muita coisa que. Olha, antigamente se adoecia uma pessoa, ela era levada de animal, porque num tinha transporte. Hoje pra todo lado tem um transporte. Quando levava pro outro lugar, porque a gente morava no interior, 10 légua, 30. Num como buscar um carro porque num tinha. Hoje não, aqui hoje tá tudo mudado. Até num lugar que a gente morava lá já tem carro.
(Seu Carne com tomate bem vermelho, alface, arroz e feijão – 69 anos)
As mudança que eu conheci que o povo hoje come o que bem quer, o que existe no Brasil que procura, encontra. Porque se quer comer o arroz tem, se quer comer a farinha tem, se o povo aí quer a tapioca come, a carne num falta dia nenhum, se o camada tem come um macarrão, de tudo que existir. Nessa época a gente num conhecia nem um peixe e aqui num falta, aquele sardinha num falta. Tudo o que o camarada pensar de comer tem. Mudou demais. Antes vocês pegava só o feijão, pegava ali com a manteiga, quase um quilo que arroz, ali tava bom. Enjoa aquela gordura só de porco, o porco enjoa demais, só que é mais sadia do que esse oleoso que tá saindo. Eu me criei, com o óleo que eu conheci era manteiga de gado e o toicinho de porco só. Antes a manteiga de gado e o toucinho de porco era o tempero que tinha pro feijão, e hoje mudou tudo. É um colorido danado! A mudança é porque tem muito óleo de soja, tem de coco de babaçu, tem o óleo de iniro, que ninguém conhecia, hoje todo mundo conhece, hoje até essas criança desse tamanho tão conhecendo. rapaz eu lhe digo que é uma mudança muito especial, porque quem pega dinheiro não fica com ele, porque acostumado a comer melhor, tem que gastar. Se fosse conseguir no começo quando nós tava, num entra não, tem que caçar um temperar, tem que um tomate, tem que ter um repolho, que tudo isso aqui tem e ninguém insistir. Até produzem tudo isso aqui hoje, o camarada, quem conhecia uma maionese pra fazer uma salada? E tudo isso nós temos hoje. Ninguém num sabia o que era isso aí. Hoje nós tamo num mundo novo, bem como tem aquele negócio da bíblia sagrada, num tem o novo testamento, nós tamo no mundo novo hoje, porque o antigo nós
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escapemo, mas num era bem não. (Seu Feijão com torresmo – 81 anos)
Alguns estudos orçamentários sobre o consumo alimentar como aponta
(CANESQUI, 1988) mostraram entre famílias assalariadas urbanas paulistas a relação entre
renda e o valor nutricional da dieta. Ressaltou o estudo as baixas proporções do consumo de
nutrientes de origem animal e a importância do feijão e não da carne como fontes protéicas
entre as camadas de baixa renda. Arroz e feijão consistem nos alimentos básicos da cesta de
consumo, sendo as fontes mais importantes de nutrientes e gatos domésticos.
Ainda vale destacar que como apresenta MINTZ (2001) é presente uma estranha
congruência de conservadorismo e mudança que nos acompanha sempre no estudo da comida.
Embora muitas comidas novas venham invadindo a sociedade Guaribense com a
redução do plantio e consumo da fava, por exemplo, requereria um rearranjo social e
simbólico considerável nessa comunidade. Uma vez mais, o novo e o tradicional se revelam
em complexa interação.
2.1.4 Modo de preparo: em uma panela, misture a massa de milho, leite, o açúcar e o
óleo
O plantio, cultivo e preparo dos alimentos trespassa o uso das tecnologias e
instrumentos envolvidos nas práticas alimentares que contemplam estes diferentes
processos. Investiga-se assim os instrumentos utilizados para a colheita de produtos
alimentícios da lavoura, como a enxada, pá e o arado, dentre outros; e ainda aqueles utensílios
aproveitados no preparo das comidas e pratos de um grupo social, como o caso do ralador,
materiais de corte e armazenamento adequado, fogão (à lenha ou elétrico), panelas para o
cozimento, etc.
Estudos sobre alimentação, de forço antropológico, se concentravam em povos
sem uma tecnologia de máquinas, e para quem a comida era uma das preocupações mais
importantes, se não a mais importante diária. Indicavam um interesse considerável na
tecnologia de busca e de uso da comida nas culturas que estudavam. Assim destacavam em
muitos dos estudos o interesse para mapear e categorizar povos mais simples (Mintz, p. 36,
2001) e, sobretudo para elucidar como estas alterações proporcionam mudanças de ordem
social.
Recompor um percurso histórico das tecnologias pode resultar numa interpretação
55
sobre o quanto essas transformações promoveram mudanças nas subjetividades envolvidas na
alimentação. Por volta de 500 mil anos atrás, o uso regular do fogo no universo doméstico
modificou profundamente a alimentação, assim como os comportamentos sociais a ela
relacionados. O gosto pela carne cozida é corrente entre muitos carnívoros. Todavia, somente
o homem pôde fazer disso uma prática regular e dar os primeiros passos em direção à
alimentação cozida e, depois, à cozinha (Flandrin & Montanari, 1998). Estudos constatam
que, com as primeiras fogueiras, aparecem também os primeiros indícios de cocção de
alimentos. Esta prática, ainda ocasional há mais de 500 mil anos, generalizou-se quando o
fogo foi realmente dominado, ou seja, integrado de forma permanente ao universo doméstico.
Além da vantagem nutricional da cocção dos alimentos, logo ficou patente sua
importância no plano social: favorece, com efeito, a comensalidade, isto é, o hábito de fazer
as refeições em comum, introduzindo no seio do grupo uma divisão de trabalho mais efetiva,
um ritmo de atividades comum a todos e, de modo geral, um nível mais complexo de
organização do grupo.
Em Guaribas – PI, as práticas alimentares seguem uma lógica de proximidade
entre os sujeitos presentes naquele grupo social, isto é, relações sociais são fomentadas em
prol do cuidado coletivo. Com isso, os discursos expressam experiências de sociabilidade
(trocas, aproximações, empréstimos, doações) mediadoras de práticas alimentares.
É o seguinte, a gente guardava o que pudesse servir do dia-a-dia, a gente tirava o daquela despesa e o outro a gente vendia. Num era muito isolado onde morava mas que sempre possuía, umas 10, 15 casa. Dali foi formando o povoado que hoje tá grande.
Quando em casa num s tinha alguma coisa, olha o que a gente muitas vez trocava, no caso, a gente sempre criou muito suíno nessa terra, e alí como era ruim de renda, a gente emprestava pra receber em outra oportunidade
Como num tinha como se vender, pela habitação que não era tão grande, dinheiro difícil né, a gente as vezes emprestava pros outros vizinho. Quando eles tornava eles devolvia... não era nem de pedir. Se pedisse emprestado a gente emprestava... Fomos criado nessa maneira que eu to explicando... não, era 2, 3, 4 ou 5kg que a gente servia. Aí quando chegava a sua vez aí devolvia... As vez você matava um cabrito, aí você servia o seu vizinho.
As propriedades sempre foram perto viu. No máximo 3km. Como num tinha assim o que tem hoje, um arado, uma coisa qualquer, a gente plantava, na enxada, sabe como é que é.
(Seu Carne assada – 58 anos) Neste processo das práticas alimentares muitos métodos e técnicas tendiam ao
desaparecimento, sendo substituídas por outros. Restavam ainda outras modalidades de
abastecimento alimentar complementares, seja a caça ou a pesca e os sistemas de
56
solidariedade e de reciprocidade: os empréstimos e as trocas alimentares calcados nas relações
de vizinhança e parentesco (CANESQUI, 1988).
Conforme o exposto pela referida autora algumas das características envolvidas
diante da produção e cultivo de gêneros alimentícios, permeia a substituição ou troca do
produto a ser cultivo. Este fato é percebido na realidade das práticas alimentares de Guaribas,
observando as relações dos agricultores com o cultivo da fava e do feijão.
Nós peguemos ajeitemos um pouco de feijão, aí fomo plantar um pouco de feijão pra ver se era melhor de que a fava. Só que o feijão foi melhor de que a fava porque não dava tanta dificuldade pra nós colher ele. Rapaz a fava a gente saia uma hora dessa pra aproveitar o sol e depois batia ela todinha. Dava mais trabalho. O feijão não, o feijão é mais fácil... Já com a fava tinha de puxar ela todinha da rama, pra depois botar ela no sol com 15 dias e bater ela. O feijão quando amadurecer ele tá seco.
(Seu Feijão com arroz – 72 anos)
As dificuldades em produzir – plantio do alimento – alguns gêneros alimentícios
procede devido às características específicas e inerentes a um dado alimento, bem como
através das poucas alternativas e sem ajuda instrumental ou com instrumentos elementares
exercem influência direta nas relações culturais e sociais experenciadas em meio a este
processo. Segundo Montanari (2003) a prática da agricultura não é por si só um elemento
suficiente para colocar um povo no âmbito da civilização. Este é nó da questão: intervir
ativamente na fabricação do alimento, construí-lo artificialmente, “inventá-lo”; não se limitar
a tomar o que a natureza (mesmo que estimulada pelo homem) possa oferecer.
Alguns discursos dos moradores de Guaribas - PI mostram que o consumo tem
relação estreita com as formas de produção. Assim, as escolhas alimentares têm relação com o
processo produtivo. No caso em estudo, com o processo produtivo local.
Todo tempo pra nós foi difícil, porque, pra nós colher, foi a custa de jegue. Demorava muito pra trazer as coisa da roça tudinho porque era bocadinho por bocadinho, era gente viajando direto. Acontecia que quando era noite de lua, ficava a gente dormindo nos lugares onde tinha aquelas ruma de milho, enchendo as calha e despachando, quando vinha de dia era cansado, porque o sol era muito quente. Também produzia esse lugar aqui muita fava, até 1974 tinha fava demais, eu mesmo abusei, é uma comida que eu enjoei, só em ser mais trabalhosa de produzir, já dá uma canseira
Era, só dava pra gente colher no mês de maio pra junho. E o lugar que o algodão também era bom podia plantar que ele ainda dava muito. A fartura era dessa época em diante, aí o povo começaram a aprender que plantava esse feijão ligeiro, a safra sempre dava no começo e a gente se livra daquelas dificuldades da seca medonha que a gente fica. Hoje só planta mais esse feijão ligeiro.
(Seu Feijão com torresmo – 81 anos)
57
Concepções com a de “fartura” apresentada no discurso acima, configura-se como
um achado histórico significativo, pois mostra que a chegada do “feijão ligeiro”, provocou
uma interrupção (descontinuidade) das práticas de produção e consumo anteriores.
Com grande valor de atuação junto aos aspectos evolutivos das práticas
alimentares, o fogo e suas formas de utilização transformaram as representações sociais em
torno da comida e de sua sucessão de estados de mudança. Por meio dele foram modificados,
do mesmo modo, comportamentos, concepções e condutas frente aos momentos de consumo
da comida.
De acordo com Lévi-Strauss (2004) o fogo sendo utilizado como utensílio
culinário, faz com que os alimentos preparados desta forma sejam mais bem apreciados. Desta
maneira, o autor apresenta a oposição entre o cozido (o forno) e o cru (as saladas),
repercutindo a poisção entre a natureza e a cultura. O autor ainda apresenta que o fogo além
de possuir utilidade culinária, também tinha um sentido ritual: “cozinham-se” indivíduos
intensamente engajados em um processo biológico – recém-nascido, parturiente, menina
púbere. A conjunção de um membro social com a natureza deve ser mediatizada pela
intervenção do fogo de cozinha, normalmente encarregado de mediatizar a conjunção do
produto cru com o consumidor humano, e por cuja operação um ser natural é, ao mesmo
tempo, cozido e socializado.
Na cozinha, fazer a comida no fogão à lenha é muito diferente do fogão com o bujão de gás. No outro tem que pegar a lenha é cedo, e tem que ser da boa, se num for o fogo num presta não, só faz uma fumaça fedorenta, e ainda num cozinha, demora chegar no ponto de comer. Às veiz o ponto nem chega. Mas com o fogãozão bom, num tem labuta não, e a comida se apronta é ligeiro, não dá trabalho nenhum se for comparado. Quem foi criado hoje em dia, com essas mordomia, já vira é outra pessoa.
(Dona Beiju com carne seca – 68 anos) Com a transmissão de valores que constituem a cultura e as idéias dominantes em
determinado momento histórico, são estabelecidas relações com outros grupos sociais,
prevalecendo ou dando continuidade a um legado que transforma o homem e é transformado
por ele. Ou seja, o homem sofre influências do meio ambiente, ao mesmo tempo em que o
transforma a partir de suas ações com ele. Para analisar o homem que se alimenta – ou que
constrói instrumentos/ tecnologias para isso – é preciso situá-lo num contexto sócio-histórico-
cultural, identificando e desvendando as determinações.
Em suma, os instrumentos e tecnologias que mediam os processos e práticas
alimentares unem-se á função mediadora do “cozimento simbólico” apontado por Lévi-
58
Strauss (2003) como os casos da colher de pau, o pilão, a xícara para beber, o garfo, a faca e o
prato, são intermediários entre o sujeito e seu corpo, presentemente “naturalizado”, ou entre o
sujeito e o mundo físico.
2.1.5 Leve ao fogo por 5 minutos; desligue o fogo e deixe esfriar
A alimentação segue um conjunto de variáveis sociais, culturais, históricas e
econômicas que influenciam e norteiam os hábitos alimentares de um agrupamento social.
Guaribas – PI, ao ser classificada como a cidade mais miserável do país (IBGE, 2005), tornou
explícita uma das relações de proporcionalidade discutida pelos pesquisadores de história da
alimentação, que é a do capital econômico como indicador do que e de como se come.
As fontes de abastecimento alimentar, organizadas na economia urbana, pela
combinação de formas mercantilizadas e não mercantilizadas, estão presentes nos modos de
aquisição alimentar das unidades domésticas. Não é o supermercado, que comporta formas
mais capitalizadas de produção, como a principal fonte de abastecimento alimentar, mas o
armazém e o pequeno comércio que circundam bairros periféricos dos espaços urbanos,
incluindo-se Guaribas – PI.
Prevalecem nas modalidades de abastecimento das famílias, os arranjos
econômicos entre consumidores e os comerciantes; a compra a crédito e em pequenas
porções; o uso do pequeno comércio mais próximo às residências; a combinação de diferentes
fontes de abastecimento (armazém e supermercado) conforme a disponibilidade de dinheiro e
do sistema promocional de vendas dos supermercados e avaliações sobre o preço
(CANESQUI, 1988). Não se excluem outras fontes complementares e transitórias de
abastecimento alimentar calcadas nos padrões de solidariedade dos grupos pesquisados, na
produção doméstica dos quintais e na política assistencial (pública ou privada).
Olha, Guaribas por ser um município de grande produtividade de boas terras, aqueles que têm coragem de plantar, colhem com certeza... Que a fome muita vezes vem através das pessoas que não se esforça. Porque se esforçando com certeza o pão tem... Olha hoje é o seguinte, não tem nem escolha ruim pra se comer, porque dependendo da sua renda se precisa aparece e a gente compra.
(Seu Carne assada – 58 anos)
Fome braba era a de antes... porque os homem não trabalhava. Porque eles pensava que aqui a terra num produzia mandioca nem feijão, nem milho... É porque num tinha coragem, ficavam só olhando mesmo. Porque eles pensavam que a terra aqui não produzia mandioca nem feijão, nem milho. É porque eles num tinha coragem só ficava no mundo mesmo. Só ficava andando... se num achasse
59
ficava sem comer. Eu sou acostumado a dizer: olha meus filhos, com toda pobreza minha, toda fraqueza de recurso minha, na lei hoje vocês tão criado no berço de ouro igual filho de rico. Porque a criança hoje escolhe o que comer. Ah, não quero isso aqui não, lá vai a mãe procurar outra coisa pra dar o filho. Por que? Porque tem, se não tivesse, tu num ia comer não? Tudo o que você acha com fome é bom. Antes sofria muito, era um sofrimento horroroso. Antes a mulher deitava hoje, levantava 3 hora da manhã e ia à fonte. Lá 4 hora da tarde ela num tinha chegado ainda porque as outra num deixava apanhar, ficava com aquele fecho na boca do poço, cada uma esperando um gole pra beber, e hoje graças a Deus. Sim elas era cansada de sair 5 hora da tarde e chegar no outro dia e chegar 9, 10 horas do outro dia. Se tivesse o que fazer pra comer num fazia porque num tinha água.
Eu não cheguei a essa época não, mas o papai mais a mamãe eles diziam que comeram muito um tal batata de imbu... é no período da fome mesmo. Em 53 eles disseram que aqui teve uma fome que morria gente bem aí de fome.
Batata de pau, disse que matava um gado e botava o sangue todinho pra secar pra pilar pra comer junto com a carne pra dizer que era farinha. Pra dizer que era mistura, o arroz, a farinha era aquele sangue ali pisado... não, num era pra aproveitar mais o boi, é porque não tinha farinha e nem arroz. Em 53, aí eu ouvi eles falar isso aí.
Falava que muito sofrimento,... Eles ia no mato caçar as batata, chegava lá, achavam, cavavam, achava as batata, chegava em casa “relava” e torrava e comia, é porque num tinha outra coisa pra comer.
(Dona Frango com macarrão e tomate, com um feijãozinho do lado – 66 anos)
A aquisição de alimentos nos grupos pesquisados comporta o estabelecimento de
hierarquias de necessidades, que se expressa na classificação de produtos considerados “mais
necessários” – arroz, feijão, sal, açúcar, farinha, leite, pão, óleo e outros “menos necessários”
– hortaliças e carnes. Tal hierarquia incorpora critérios econômicos ao preço dos alimentos e a
disponibilidade de dinheiro que obriga a restringir ao mínimo as compras alimentares e a
substituir produtos mais caros ou de difícil acesso, pelos mais baratos, os mais nutritivos pelos
menos nutritivos, observando-se a regra básica de controle e economia. Implica ainda critérios
que avaliam o costume alimentar, a oferta, a qualidade e atributos dos alimentos do ponto de
vista nutricional e suas adequações de consumo, os regionalismos e a preservação ou ruptura
das identidades sociais (CANESQUI, 1988).
Só comia a fava, porque feijão num tinha. Depois que plantava num servia pros outro, porque se a gente fosse comprar eles num vendia porque era pouco. Plantava um litro, o mais rico aqui plantava um prato de feijão e dizia que era rico. Tudo isso era difícil. O milho nós plantava porque trazia dos agreste, Bom Jesus... plantava, e aí ia dar aquele produto pra gente. Quando eles ganhava nós ia vender ele, vendia por 5 conto o saco, 5 conto não 5 mil reis naquela época. Aí vendia fora, ia vender em Caracol, São Raimundo ia passar um mês por fora, vendia e ia trazer outras coisas pra comer. Comprava roupa, quantas vezes o camarada não tinha condições de comprar, comprava só comida, uma roupa de algodão, tecia o pano e a gente vestia.
(Seu Feijão com arroz – 72 anos)
60
Com relação aos gêneros alimentícios, Montanari (2003) relata que o alimento,
historicamente, possui um conjunto de associações simbólicas, nas quais implicavam em
relações de poder como foi o caso da carne a partir do século VIII, onde na cultura das classes
dominantes este valor primário da carne – como instrumento de poder – é fortemente
considerado e afirmado. A carne surge, aos olhos desses grupos, como símbolo de poder, um
instrumento para obter energia física, vigor, capacidade de combate; qualidades que
constituem a primeira e verdadeira legitimação do poder. E vice-versa, abster-se de carne, é
um sinal de humilhação, de marginalização.
A carne era só quem tinha dinheiro que comiam todo dia, de vez em quando nóis comia, num era sempre não mas comia. Às veiz a gente comprava, o porco, do gado, uma criação... a gente comprava dos outro que matava, porque nós num produzia, tinha que comprar o quilo dos vizinho que matava. Pobre mesmo caçava, era o tatu, o bandeira, caititu. Comia, antigamente tinha muito. Botava na panela, cozinhava, se num cozinhasse comia assado. E quando num tinha o feijão nós comia com arroz, ou só a carne com a farinha.
(Seu Carne com tomate bem vermelho, alface, arroz e feijão – 69 anos)
Ao se analisar a composição cotidiana das refeições, observa-se uma dieta
monótona, restrita ao arroz e feijão, à “comida” propriamente dita e a algumas “misturas”
(ovos, batata, macarrão e verduras) e raramente a carne. Trata-se da “comida que pobre come
todos os dias”, conforme se define, detendo a nível ideológico significados referidos por
alguns autores, a identidades sociais e à própria sobrevivência e, por outros, aos modos de
pensar as condições de vida e a posição que ocupam na sociedade. De qualquer forma, a
alimentação é concebida pelos moradores de Guaribas – PI como medida de privação
dimensionando-se as limitações salariais para sobrevivência e o padrão alimentar possível de
ser obtido. Esta avaliação também incorpora ideais de consumo pela incorporação de
necessidades renovadas e de ascensão social, numa perspectiva centrada no indivíduo e não
nas forças sociais organizadas.
A avaliação da dieta, da maneira como é feita pelos entrevistados, revela uma
forma de pensar a alimentação dentro dos parâmetros das condições de vida e trabalho, do
próprio consumo, do corpo socialmente posicionado, dos atributos alimentares e da
construção de identidades sociais, que contraditoriamente favorecem ou negam a condição de
ser pobre.
A comida valorizada, que se dispõe, é aquela “capaz de sustentar o corpo, dar
força e energia para trabalhar, a encher a barriga, deixando a sensação de estar alimentado”
61
(CANESQUI, p. 214, 1988). Trata-se enfim da “barriga cheia” que preside as práticas de
consumo alimentar, concomitantemente de natureza econômica, ideológica e cultural.
2.1.6 Quando já estiver frio, junte o coco, as gemas, as claras batidas em neve e o fermento
As questões relacionadas às práticas alimentares (como a forma de adquirir
alimentos; prepará-los para o consumo; o modo de servir; e formas de armazenamento)
se constituem em ações derivadas de vivências subjetivas, sociais e que se reproduzem nos
espaço coletivo. O comportamento relativo à comida, assim, estabelece vínculo direto com a
identidade social, ou seja, revela a cultura em que cada um está inserido.
O que aprendemos sobre comida está inserido em um corpo substantivo de
materiais culturais historicamente derivados. A comida e o comer assumem, assim, uma
posição central no aprendizado social por sua natureza vital e essencial, embora rotineira. O
comportamento relativo à comida revela aspectos da cultura em que cada um está inserido.
Nossos filhos são treinados de acordo com isso. O aprendizado que apresenta características
como requinte pessoal, destreza manual, cooperação e compartilhamento, restrição e
reciprocidade, é atribuído à socialização alimentar das crianças por sociedades diferentes. Os
hábitos alimentares podem mudar inteiramente quando crescemos, mas a memória e o peso do
primeiro aprendizado alimentar e algumas formas sociais aprendidas através dele
permanecem, talvez para sempre, em nossa consciência (MINTZ, 2001).
A alimentação agrega uma amplitude de representações que vão além do
biológico, relacionando-se com o social e o cultural (Maciel, 2004). Portanto, se refere a um
conjunto de substâncias que uma pessoa ou grupo costuma ingerir, implicando a produção e o
consumo, técnicas e formas de aprovisionamento, de transformação e de ingestão de
alimentos.
2.1.6.1 Despeje a massa em uma forma untada e enfarinhada
Aspecto ímpar diante da configuração dos hábitos alimentares corresponde à
aquisição e ao armazenamento de alimentos. A coleta de vegetais é inerente às estratégias
alimentares. Tem sua importância tanto no plano nutricional como no econômico, tanto mais
que o domínio do fogo oferecerá uma nova gama de recursos potenciais, tornando possível o
consumo daquelas plantas que são tóxicas quando cruas, mas comestíveis depois de cozidas
62
(Flandrin & Montanari, 1998).
Os comportamentos envolvidos na aquisição e no armazenamento de alimentos
ilustram bem elementos da subjetividade do grupo social de Guaribas – PI. A coleta dos
alimentos, muitas vezes é desenvolvida em locais próximos às residências familiares; o
trabalho na lavoura iniciado desde a infância; o empaiolamento do milho para poder conservá-
lo em condições favoráveis ao consumo e plantio futuro, bem como a forma de conservação
da carne (a salga) das criações, expressam particularidades do município e de seus moradores.
Pra tirar uma abelha chamada aruçu. Pra vê se extraia o mel pra dar de comer o filho que era fraquim... Não tinha o que guarda não. Só guardava milho nos paiol, fazia um paiol no meio do quintal e levava os milho pra lá.
(Dona Frango com macarrão e tomate, com um feijãozinho do lado – 66 anos)
A gente tinha esse alimento nessa condição, num passava fraco de só comer coisa ruim não. Comia a carne que nós criava, de criação a cabra2, a ovelha, criava o gado3, o que nós queria nós. Num tinha outra saída. Às veiz a carne só escapava se salgasse bem ela pra num estragar!
(Seu Feijão com torresmo – 81 anos)
Eu sei da minha vida pessoal e sei que tem pessoas que a situação foi pior do que a minha. Porque sempre eu com meus 7 anos comecei a trabalhar pra poder comer e graças a Deus nunca faltou o pão no meu lar, e muitas pessoas são pobres de espírito que não têm disposição aí é difícil.
(Seu Carne assada – 58 anos)
As estratégias de armazenamento no sertão brasileiro contemplam, conforme o
discurso de Câmara Cascudo (2004), os processos de conservação das carnes, queijos, cereais,
enfurnados nas meias-trevas das camarinhas, suspensos nos latos jiraus. As carnes-secas são
guardadas dobradas, com sal em cada volta. A seguir, são arejadas quinzenalmente, raspando-
se o sal e os possíveis bichos que venham a aparecer em sua cobertura. Caso apareçam as
manchas esverdeadas do bolor, envolvem-nas com folhas de marmeleiro (Croton
hemiargireus Muell, Arg., uma euforbiácea) ou de bananeiras, murchas e sem talo. As
garrafas de manteiga ficam em lugar fresco e de pouca luz. O chouriço metem-no na farinha
solta, numa bruaca de couro.
A roça da gente era pertim de casa, nós plantava aqui mesmo dentro da cidade... A
2 A cabra surgiu cerca de 2 mil a. C., enquanto que o carneiro (a ovelha) apareceu em 3 mil a. C., ambos na Mesopotâmia e nos planaltos iranianos. Em: Comida e sociedade: uma história da alimentação, de H.Carneiro publicada em 2003. 3 O boi foi domesticado na Mesopotâmia (cerca de 4.500 a. C.), no Egito e em cidades lacustres da Suíça (cerca de 4 mil a. C.). Em: Comida e sociedade: uma história da alimentação, de H.Carneiro publicada em 2003.
63
casa era de taipe! Pegava umas coxia botava uma outra madeira por “riba” pegava uns “caibo” e botava. Aí ia pra lagoa bater telha pra poder plantar. Aqui não tinha condições de nós compra “teia” porque não tinha mesmo, nem uma estrada aqui num tinha, pra vender uma coisa tinha que ir no Rio Gracel depois vender lá em Caracol e ir pra São Raimundo. Tudo era difícil pra nós, hoje não que hoje tá mais fácil. A gente colhia as coisa e botava dentro de um tambor! Desse aí de zinco, desses tambor de óleo de carro. Pegava colocava dentro, tampava pra depois conseguir ficar com ela comendo, porque o feijão num dava.
(Seu Feijão com arroz – 72 anos)
O domínio dos cereais acompanhou-se de novos recursos técnicos para o seu
preparo, dos quais os mais importantes foram os fornos e os moinhos de moagem. As grandes
conquistas técnicas ligadas ao plantio do trigo4 – primeiro cereal a ser domesticado, conforme
argumenta Carneiro (2003) – foram o uso do arado e, a partir de cerca V a. C., o uso da
atrelagem de animais.
A domesticação dos animais junto às comunidades mais simples é um elemento
significativo nas práticas alimentares junto ao espaço familiar, quer seja através da facilitação
na aquisição de alimentos, através da caçada com o cachorro, e o cavalo para lavrar a terra,
por exemplo; quer seja por meio da domesticação e criação de animais para o abatimento
posterior (MINTZ, 2001).
A relação com os animais domesticados marcou a constituição das primeiras
civilizações. Não só como alimento, transporte, tração, decoração, caça e companhia, mas
como encarnações do sagrado, símbolos totêmicos, personificações dos deuses, os animais
incitam gulas, tabus e complexas regulamentações rituais (CARNEIRO, 2003).
No município de Guaribas - PI, a relação dos grupos familiares que tem como
maior fonte de renda a agricultura, configura-se de maneira bastante interativa com os animais
domesticados, como é o caso do cachorro. Este, considerado um participante indispensável
para as caças de animais, por meio do qual se obteria uma otimização do tempo, facilitando
uma caça mais produtiva. As carnes de caça, assim como são chamadas pelos moradores,
contemplam animais como a cotia, o preá, caititu, tamanduá bandeira, e aves como pombas,
juritis e zabelês.
4 De todas as plantas cultivadas, a mais antiga foi o trigo, que juntamente coma cevada, surgiu na Ásia menor, entre 6 mil e mil a. C. Em Comida e sociedade: uma história da alimentação, publicada em 2003, H. Carneiro apresenta dezoito plantas que foram identificadas como sendo a base de 75% a 80% da alimentação total da humanidade em todos os tempos e em todos os continentes. Entre elas, nove são cereais (trigo, arroz, milho, cevada, centeio, aveia, trigo-sarraceno, milhã e sorgo); quatro são tubérculos (batata, mandioca, batata-doce, inhame); três são arbustos (tamareira, oliveira e vinha); e há um árvore (bananeira); e uma gramínea (cana-de-açúcar).
64
Destaca-se ainda que alguns dos alimentos produzidos na agricultura familiar
guaribense, a exemplo da mandioca e do milho, são utilizados para alimentação dos animais
domésticos.
A mandioca também servia pra botar pros bicho de casa comer também... os porco, as galinha, as cabra. Na hora de caçar, um bicho do mato, uma cotia, era preciso um cachorro5, quando a gente ia caçar que tinha um cachorro bom, dava tudo certo, num demorava muitas horas não... era só uma manhã caçando ou uma tarde, num levava o dia e a noite toda não!
(Seu Feijão com arroz – 72 anos)
Por outro lado, a grande revolução na conservação das carnes ocorreu no final do
século XV, quando se ampliaram os métodos de salga para abastecer as tripulações em alto-
mar e para transportar grandes quantidades de peixes (Carneiro, 2003).
Já o feijão e o milho sob a forma de armazenamento sertaneja, ficam nas sacas de
couro, em latas de gasolina ou querosene, pintadas de alcatrão, afugentando os assaltantes
vorazes (animais como ratos e baratas, por exemplo), visíveis quando se adentra as
residências e os depósitos familiares em Guaribas - PI. Vez por outra ocorre a exposição ao ar
livre, vento e algum sol, para arejar e limpar, livrando-os do gorgulho. Para legumes e uso
doméstico, derrama-se sebo derretido, com sal fino, misturando-os aos grãos. O feijão
também fica em sacas de pano grosso ou enfaixado nas esteiras de carnaúba, cosidas ao modo
de fardos. Os moradores de Guaribas – PI guardam esses víveres nos paióis, depósitos
construídos na própria residência do proprietário, em compartimento especial para esse fim,
de alvenaria ou taipa. Conservam o milho em espigas, pendurando-as no paiol, fumeiro da
cozinha ou em quarto ensolarado, tradição de lavradores europeus e norte-americanos.
Arrumando as espigas em cima de taboas, no paiol, besuntam as extremidades com calextinta.
Nessa mesma estocagem ficam as batatas e os jerimuns (abóboras). O arroz oculta-se também
nos sacos de couro.
A farinha de uso diário fica nas grandes sacas de imburana (Bursera leptophoes
Engl.) cumaru (Amburana claudii Schw. & Taub.), caixões e em maior porção em surrões de
couro, cosidos. Sobre a tábua do paiol, bem secas, está a reserva de rapaduras, o doce
sertanejo como apresenta Câmara Cascudo (2004). Em Guaribas, sucede de forma
correspondente ao que é narrado pelo referido autor. Muitas vezes, a farinha também é
5 O cão foi o primeiro animal domesticado, contemporâneo da revolução neolítica e serviu de auxiliar da caça e do pastoreio.
65
utilizada na localidade para auxiliar no armazenamento dos ovos, nos quais são colocados em
baldes grandes cheios de farinha, e distribuídos para que sejam preservados de forma segura,
evitando a quebra.
2.1.6.2 E leve ao forno na temperatura média ou baixa por cerca de 45 minutos. Para servir
polvilhe com coco ralado
DaMatta (1986) fixa uma separação entre comida e alimento, de acordo com a
qual a “comida não é apenas uma substância alimentar mas é também um modo, um estilo e
um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido, como
também aquele que o ingere” (p. 56). Ao partir deste ponto de vista que compreendemos o
modo de preparar e servir os alimentos, práticas desenvolvidas nos espaços das cozinhas,
como lugar e formas de expressão da identidade cultural.
Acerca da referida concepção, Maciel (2004) afirma que uma cozinha faz parte de
um sistema alimentar – ou seja, de um conjunto de elementos, produtos, técnicas, hábitos e
comportamentos relativos à alimentação –, o qual inclui a culinária, que se refere às maneiras
de fazer o alimento transformando-o em comida. A cozinha de Guaribas- PI agrupa
instrumentos e técnicas diversificadas. O fogão à lenha que já foi o instrumento doméstico
mais utilizado no município, foi substituído gradualmente pelo fogão à gás. Mudança esta que
repercutiu concomitante à substituição de técnicas de preparo com a chegada de gêneros
alimentícios industrializados.
Na época era cozinhado no fogão a lenha. Nessa condições o feijão fervia, lavava bem lavadinho depois temperava só que num faltava era o óleo. Agora o óleo era toicinho de porco, que a gente criava muito e uma manteiga de gado, que meu pai criava um pouco de gado. E com o óleo de hoje o preparo é mais rápido mesmo. Depois que ele morreu desapareceu tudo ligeiro, ele pegava uns 40 e poucos bezerro.
(Seu Feijão com torresmo – 81 anos)
O espaço de preparo de alimentos, ou seja, a cozinha de uma determinada
residência constitui-se como um vetor de comunicação (Lévi-Strauss, 2004, p. 311), “um
código complexo que permite compreender os mecanismos da sociedade à qual pertence, da
qual emerge e a qual lhe dá sentido”. São justamente os elementos do cotidiano alimentar, na
construção dos pratos significativos que se expressam as identidades, e dá-se subsídios para a
construção e permanência desta consciência que as sociedades têm delas mesmas para sua
66
manutenção em futuras gerações.
Seguindo esta referida idéia, a cozinha de Guaribas- PI, enquanto espaço de
socialização, oportuniza a troca de informações ente aqueles que preparam os alimentos. As
atribuições domésticas de preparo são, na localidade, papéis desempenhados pelas mulheres,
nas quais fazem do espaço um local de diálogos, conversas sobre o cotidiano da cidade, e, em
especial, um local de aprendizados acerca das técnicas de preparo dos alimentos, assim como
as formas de se relacionar com este.
Só era nóis “muié” pisando milho e ralando e pisando no pilão pra fazer cuzcuz e farinha pra comer. Só o que tinha. A hora da cozinha pra gente era onde a gente conversava, as mãe ensinava as coisa para as filhas, todo mundo se falava de um tudo, das coisa que acontecia na rua, nas casa alheia (riso)! E assim, a gente sempre acaba sabendo do acontecia e do que era pra ser aprendido, as novidade.
(Dona Frango com macarrão e tomate, com um feijãozinho do lado – 66 anos)
Cozinhava a fava e depois jogava com ele – o toucinho de porco – dentro pra cozinhar. Às véiz demorava muito, até ela criar uma aguinha, e depois botava o toicim pra engrossar mais.
Como a tapioca num dava pra nós vender aí nos lugar, nas cidades. Quando viajava pra comprar outras comida (arroz e fava) nós ficava, pra comer um maranhão, uma coisa. Botava a tapioca em espera – é botar uma mandioca, botava em cima de um pote e passava o dia todinho, se matar tudo bem, se num matasse ficava – (deixar em repouso para atingir o ponto ideal de consumo) e depois matava uma cotia, uma juriti, um tatu pra comer junto. A gente com a mandioca fazia a farinha, a tapioca, a borra dela que ela dava também. Era de qualquer jeito, comia até feito o beiju aí dava pra comer porque não tinha outra coisa, comia, bebia água e ia embora pra roça... num misturava com nada, era pura mesmo! Se tivesse um leitão a gente comia com leitão, se num tivesse comia pura.
(Seu Feijão com arroz – 72 anos)
Os modos de preparo dos alimentos em Guaribas – PI envolvem saberes bastante
específicos, como: “esperar a aguinha que sai da carne”; “esperar que matasse a mandioca”;
expressam conhecimentos específicos que são passados de gerações em gerações, por meio de
conversas, troca de informações, observações, exemplos, que não podem ser apreendidos
apenas com a prática das descrição verbal do ato de preparo alimentar propriamente dito, mas,
sim, ao experenciar o cotidiano local.
A cozinha de um povo é criada em um processo histórico que articula um
conjunto de elementos referenciados na tradição, no sentido de criar algo único – particular,
singular e reconhecível. Entendendo a identidade social como um processo relacionado a um
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projeto coletivo que influi uma constante reconstrução, e não como algo dado e imutável,
essas cozinhas estão sujeitas a constantes transformações, a uma contínua recriação. Assim,
uma cozinha não pode ser reduzida a um inventário, a um repertório de ingredientes, nem
convertida em fórmulas ou combinações de elementos cristalizados no tempo e no espaço
(Maciel, 2004, p. 27).
Na hora de servir os alimentos à mesa, não diferente de outras localidades, os
moradores guaribenses narram cuidados que são essenciais para o usufruto pleno do prato a
ser experimentado. São pensados, portanto, o tempo certo de servir, de colocar um ingrediente
para melhorar o sabor do prato. Caracterizando, formas particulares e detalhistas que
expressam o significado do momento de consumir os alimentos.
Vixe...na hora de botar as comida na mesa tinha ser direitinho. Quando botava a galinha cozida dentro de uma vazia (vazilha) bem grande, era pra deixar a fumaça subindo, e enquanto a fumaça subia, aí nóis cortava o cheiro verde em cima. Assim pegava mais gosto e dava um agradozim (agrado) pra quem tava esperando desde 11 horas pra comer.
(Dona Beiju com carne seca – 68 anos)
A forma de apresentação dos animais para serem comidos, até o século XVI era
inteiriça, mas disfarçou-se, entretanto, na época moderna, quando o aspecto corpóreo da
comida passou a ser escondido, picado em meio a molhos espessos. Da omofagia (comer
carne crua) até a preparação cuidadosa no fogo definiu-se um trajeto que foi o mesmo da
fundação da cultura (CARNEIRO, 2003). E com isso garantiu uma maior gama de
expressividade cultural, bem maiores representações e significados foram conjugados ao
momento de apresentação da comida à mesa.
Desse modo, o município de Guaribas - PI vai à mesa em seu modo de preparar e
servir os alimentos, processos através dos quais expressa suas características culturais, suas
potencialidades, seus sabores e saberes populares, bem como sua transmissão de
conhecimentos alimentares e de papéis sociais às gerações futuras.
2.1.7 Rendimento: 10 pedaços; ou 8 pessoas
A transformação do alimento em comida perpassa por um processo subjetivo. Este
agrega preparadores e consumidores da comida num mesmo âmbito, que se influenciam
mutuamente. Portanto é indispensável que seja articulado com os arranjos da cozinha, a união
de gêneros alimentícios de forma compatível com a quantidade de sujeitos consumidores,
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assim como do apetite de cada um destes.
Não obstante, coexistem muitas variáveis operando frente ao rendimento de um
prato, como já foi citado. Entretanto, qual a necessidade ou exigência alimentar dos membros
presentes à mesa? Alguém está em situação de fome? Se estiver, há quanto tempo tem
vivenciado? Renderiam “10 pedaços”, ou serviriam “8 pessoas” o mantimento estando todos
os presentes sem se alimentar adequadamente por extensos períodos? Em todos esses aspectos
é importante considerar o conjunto de particularidades que a vivência da fome traz consigo.
Tem-se o conhecimento de que a alimentação, como narra Maciel (2004), implica
representações e imaginários, envolve escolhas, classificações, símbolos que organizam as
diversas visões de mundo no tempo e no espaço. Assim, concebe-se o ato de alimentar como
um ato cultural, pensando-o como um “sistema simbólico” que contempla uma gama de
códigos sociais que norteiam as relações das pessoas entre si, e destas com a natureza.
Embora possa haver certa margem de manobra individual diante do consumo
alimentar, comportando estratégias de sobrevivência entre camadas de agricultores e
trabalhadores rurais, o seu caráter é sempre de subordinação aos determinantes conjunturais e
da acumulação de um estilo de desenvolvimento (CANESQUI, 1988). Tal consideração
descarta o caráter de sua autonomia, como se os sujeitos transitassem livremente pela
sociedade.
Reforçando a mesma lógica, Woortmann (1996) afirma que em qualquer
sociedade os alimentos são não apenas comidos, mas também pensados. Possuindo a comida,
desse modo, um significado simbólico – ela “fala” algo mais que nutrientes. Então pensemos
em condições nas quais o ato de adquirir os alimentos venha a ser uma ação que exige muito
labor, dificuldades extraordinárias, ou até mesmo que o almejado alimento não seja obtido. E
assim, mesma proporção que as circunstâncias de “comer” operam significativamente nos
sujeitos, o não comer promove no plano simbólico – sem desprezar outras instâncias como a
biológica e a psicológica – uma dimensão de inferioridade social.
As contingências de fome, por muitos anos frequentes no município de Guaribas –
PI, apresentou-se também ilustrada com o fenômeno do êxodo rural. Este modo de proceder,
sair de sua localidade de moradia para residir e trabalhar em outra localidade foi uma arte de
explorar condições mais favoráveis de sobrevivência. Muitas famílias tiveram seus
provedores migrados para as grandes cidades, com o intuito de fazer prosperar as condições
econômicas de sua família (Castro, 1961).
Para os moradores de Guaribas – PI, lidar com as dificuldades desencadeadas pela
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vivência da situação de fome foi no decorrer dos anos caracterizado por grandes dificuldades,
nas quais foi frequente a mudança de famílias para outras localidades em busca de emprego e
de melhores condições de vida.
Olha em 1953 eu tinha 13 anos, e vi aquela grande foi uma dificuldade muito grande viu. Muitas famílias retiraram daqui pra outros municípios, outros estados, porque não tinha como ficar. E dali por diante, sempre a gente enfrenta essas dificuldade... as dificuldade é a falta de recurso pra alimentação. É o seguinte, a gente que nem eu mesmo, a partir de meus 20 anos, a gente que não podia ficar por aqui, a gente saia pras outras cidades, Brasília, São Paulo pra ganhar seu pão e mandar dinheiro pra família, e a família pegava e mandava comprar o que não tinha. Isso quase num modo geral, hoje não tem uma pessoa da minha idade do que já passou, aqueles que já foram, que não tenha passado por essa luta. É tanto que hoje muitos, como eu hoje, viajo pra viver a vida. Pra ver meus parente.
(Seu Carne assada – 58 anos)
É imperioso ressaltar que a realidade desencadeada pela vivência da fome latente
no decorrer dos anos, ocorreu, mas não de forma ingênua e despretensiosa. Como José de
Castro relata: “trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura”, por outra
forma.
Foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou, pelo menos, pouco considerável de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a essa espécie de interdição baseia-se pelo fato de que o fenômeno da fome, tanto a fome de alimentos, como a fome sexual, é um instinto primário e por si um tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre os instintos na conduta humana (castro, 1961, p. 12).
Os moradores mais antigos do município de Guaribas- PI, em parcela significativa
dos relatos, apresentaram manifestações de vergonha ou pudor elevado mediante as narrações
de experiências em que enfrentaram condições de fome em longos períodos do ano. Destarte,
esses sentimentos advindos da contingência de fome são perceptíveis, e igualmente
vivenciados quando narram alterações dos gêneros alimentícios, falta de condimentos e
temperos para o preparo da comida, ou em circunstâncias de poucas perspectivas de
subsistência futura.
Cozida, cozinhava a fava. Cozinha ela e quando tem tempero, tempera, quando num tenha era só cozinha ela na água e no “sali” mesmo, mas é bozim demais, mais é bozim. Aí fui tirando, e todo tempo com medo de fome. Era da lavoura, era feijão, era milho, só que as coisa era pouca. Aqui o povo mais
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ainda ganha um litro de feijão, um litro pra plantar só um litro de feijão, pra ficar “bogiando” aí e o resto tirava sofrendo caçando no mato, tirando mel e cavando com o pau de uruçuba que num tinha broca e pra sobreviver a vida, tudo morrendo de fome. Um litro de feijão por safra, um litro. Pra oito pessoas comer, só comia enquanto tava verde, não tinha o que plantar... não tinha o que guardar não, num guardava nada não, ficava só com a vergonha nos peito mesmo. Quando acabava ficava “bogiando” caçando no mato e se virando, caçando coisa, caçava tatu, a caça do mato pra sobreviver... ara caititu, Bandeira, tudo aí que tem. Ah, tem tanta caçinha, juriti, zabelê, cutia, tudo a gente leva, o que achava levava nos peito, porque quem vai com fome, vai com fome. E se tem pouco, a gente faz a comida com o que tem!
(Dona Frango com macarrão e tomate, com um feijãozinho do lado – 66 anos)
A permanência de receitas em algumas localidades ou grupos sociais não deriva
unicamente de uma persistência de certos hábitos alimentares, assim como mudanças
verificadas nessas receitas não decorrem apenas da falta dos ingredientes tradicionais. Ambas
podem ser entendidas como parte de uma dinâmica cultural que implica uma constante
recriação de sua maneira de viver, com novas formas e significações. E, neste caso de
Guaribas – PI, de sobreviver, em uma situação de extrema privação alimentar (Maciel, 2004).
Por fome porque aqui tava uma fome preta. Você comia hoje se achasse hoje e agora tchau, não sabia quando é que ia achar comida pra comer não. Aí meu marido saiu daqui fui embora pra Brasília mais um irmão meu chamado E tudo que nós ganhava lá nós mandava pra cá pros nossos pais comer aqui. O salário dos dois juntava e mandava, mandava pra cá pra nóis comer mais meus irmão. Por carta e por quem vinha de lá pra cá porque num tinha nem conta, nem banco, nem ninguém tinha conta. Quem vinha de lá pra cá eles mandava os dois pagamento. Eles ficava só mesmo tomando café nas firma fiado pra quando sair nosso pagamento eles pagar e mandar pra aqui. Servia pros nosso pais comer. Aí acabou o sofrimento do papai nessa época. Aí quando foi em 81 ele faleceu aí “fiquemo” batalhando com a mamãe e a mamãe faleceu agora também. Agora só tem nós mesmo, os filho.
(Dona Beiju com carne seca – 68 anos)
O consumo alimentar cotidiano segue indicações estabelecidas a partir das classes
sociais nas quais os sujeitos estão inseridos. Em outras palavras, as práticas e representações
de consumo alimentar, concretizam a maneira como as pessoas em seus grupos sociais
reproduzem seu modo de vida e sobrevivência. Destaca-se, com isso, a inscrição do consumo
alimentar nas oportunidades diferenciais de vida, ou seja, se salários e rendimentos auferidos,
que expressão inserções diferenciais de força de trabalho, sendo a alimentação elemento
básico de recomposição, manutenção e de sobrevivência. É por referência à família que se
realiza e organiza o consumo alimentar, ainda que os seus determinantes não se esgotem neste
nível (CANESQUI, 1988).
71
Viver por algum período em abstinência absoluta de alimentos, pode provocar
sensações das mais diversas possíveis. Portanto, a fome promove alterações
comportamentais naqueles que a vivenciam. A fome é um fenômeno amplo que incorpora
dimensões relacionadas a diferentes necessidades históricas, culturais e psicológicas, que
exercem influência direta e indireta no ambiente familiar (Negreiros, 2003). Para Castro
(1961, p. 87) “[...] as crianças já nascem corroídas pela fome dos pais e se desenvolvem mal
pelo uso de uma alimentação extremamente inadequada”. O autor relata ainda que a fome
transmite não só uma herança de carência biológica, mas também uma funesta inferioridade
social, que permanece ao longo das gerações de maneira latente.
O contexto da situação de fome do município de Guaribas – PI fez com que os
espaços familiares lidassem com adaptações de rotina diária, no que diz respeito aos horários
de trabalho na agricultura – tanto iniciar as atividades mais cedo, como passar mais tempo no
ofício –; assim como quanto ao racionamento da comida, da água, com a finalidade distribuí-
lo de forma igual entre os filhos.
Ah meu amigo, no tempo que era difícil, o cara pulava, tinha que caçar jeito de viver porque senão tava ruim... olha, aqui nem água aqui num tinha. Tinha um “ôi” d'água mas quando a gente ia 2 horas da manhã, já não achava, ia chegar era 2h da tarde do outro dia pra poder amparar a situação da água mesmo. Eu ia pra roça quando chegava não tinha água pra beber, hoje é tudo mais fácil por causa do governo.
(Seu Feijão com arroz – 72 anos)
Comer antes a pessoa tinha que labutar muito na roça, no meio do mato, e em casa pra racionar a comida e dividir melhor pra render pros fí poder comer, nem que seja um poquim por dia. Pra viver se inventava de um tudo pra comer, comia coisa que nem gosto tinha, e nos dias de hoje, tem gente aí que nem vai procurar nada, fica dentro de casa esperando o dinheiro da bolsa chegar ou vai nas casa dos patrão (homens mais abastados da cidade) pedir uma ajuda pra comer.Tem agricultor aí que desde que ganhou bolsa num planta mais.
(Seu Carne assada – 58 anos)
As dificuldades apresentadas em décadas atrás em Guaribas – PI quanto à
aquisição de alimentos eram bem maiores. Muito embora suas estratégias alimentares atuais
para enfrentar a situação de fome, são permeadas pela falta de perspectiva ou de condições
objetivas de ter outra prática. Por vezes alguns munícipes chegam a abandonar determinadas
práticas agrícolas devido aos benefícios que acabam recebendo por parte de órgãos
governamentais. E estes, por sua vez, visam erradicar a problemática da fome e da miséria
presentes em Guaribas – PI.
Por outro lado, a inserção de políticas públicas de caráter assistencialista,
72
provocou as modificações de determinadas estratégias criadas pela população local de
mudanças dos hábitos alimentares e de produção agrícola para lidar com a situação de fome.
Com isso, tornou-se presente a pouca perspectiva de condições objetivas para desenvolver
outras práticas sociais de grande parte da população quanto à produção agrícola para a
comercialização, assim como para o próprio consumo familiar.
Vou lhe dizer, o mais difícil é que a gente lutava muito pra buscar essa água né. Voltava pra roça, mas se fosse uma pessoa que tivesse 2 pessoas em casa ia sofrer pra trazer aquelas coisa, um ia busca água e a outra ia pra roça e quando chegava as vezes ainda tava sem almoçar porque não tinha uma água. Tudo era difícil. Eu fui criado aqui vendo todo sofrimento... ficava queto. Não pudia fazer nada. Ia pra roça trabalhar, pra Deus ajudar pra gente num ficar se batendo na dificuldade. Quando a fome vinha nois pegava até as macambira, a batata dela, relava e fazia o beiju. A batata da macambira, cavava ela, relava, como rela a mandioca, passava ela no pano, se tinha a mandioca tudo bem, se num tinha comia ela... Botava pra torcer, deixava ela secar e comia o beiju dela. E às veiz quando num tinha nada comia a Batata de embu... pegava arrancava ela também do chão, com um enxadeco ou um enxada, lavava bem lavadinha, relava, tudo que dava era comida... misturava com pirão ou relava, fazia o mingau dela só com o sal. Aqui tudo era difícil!
(Seu Feijão com arroz – 72 anos)
“As fomes assolam o passado e o presente da humanidade” (Carneiro, 2003, p.
23). Isso pode trazer possíveis danos àqueles que vivenciam este fato. “De inicio, a fome
provoca uma excitação e violenta exaltação dos sentidos, mas logo a seguir vem a fase de
apatia, de tremenda depressão, de náuseas e de dificuldade de qualquer forma de concentração
mental” (Castro, 1961, p. 143). Portanto, uma vivência que causa todas essas alterações na
conduta do indivíduo implicará, possivelmente, em prejuízos na dinâmica dos papéis
familiares centrais.
De forma similar Montanari (2003) comenta que muito mais normal do que
morrer de fome, fato este que ocorre em casos extremos e prolongados de inédia (abstinência
total de alimentos) é conviver com a fome, suportá-la, aparelhar-se para combatê-la dia após
dia (p. 16).
Os munícipes de Guaribas - PI, dentre algumas formas de enfrentamento da
situação de fome postuladas pelo referido autor, apresentaram-se resistentes em suportá-la,
procurando beber mais água quando não se tinha alimento, tentar se distrair com alguma
atividade (ir para a roça, andar pela cidade), ou até mesmo ficar estático, em repouso físico.
De manhã, quando tinha comida comia, quando num tinha num comia. E era levando a vida assim mesmo. Tem que tocar em frente, tinha que era mesmo só encher o bucho d’água, era difícil mesmo comer de manhã por aqui! No almoço era, quando aparecia carne era uma carne do cabrito, era um porco. Às véiz era
73
pra escolher, almoçava ou jantava, num tinha o que fazer.
Quando faltava, quando era difícil ficava quieto, ia fazer o que? Até quando aparecia de um dia pro outro... Ia pro mato, andava no mato mesmo, aí se num arrumasse num comia... ficava quieto, as vezes ia andar, ia pra roça, se divertir.... ficava parado. Sem fazer nada.
(Seu Carne com tomate bem vermelho, alface, arroz e feijão – 69 anos)
A despeito da falta de unanimidade das classificações alimentares e da ética de
uso elas respondem às finalidades de definição social da área do comestível e da comida e
estabelecem bases para os princípios de acesso, modificações e uso de alimentos. Estas bases
partem de crenças e convicções sobre as relações de troca entre o homem e a natureza,
traduzindo partes de uma visão de mundo que incorpora efeitos sobre o equilíbrio do sujeito à
medida que o homem incorpora parte da natureza para comer, e sobre o habitat, enquanto o
homem transforma e destrói a natureza para comer (CANESQUI, 1988).
Sabemos que algumas estratégias alimentares de enfrentamento da fome
são estabelecidas pelos agrupamentos sociais. Afinal a fome não pode ser concebida como um
fenômeno meramente biológico, conforme sucedeu por décadas. Disto discorda Castro (1946,
p.16) quando afirma que “a fome não é somente um grave problema biológico, é
fundamentalmente um sério problema político, econômico e social. É a expressão biológica
de uma doença racial. É fruto de conjunturas econômicas defeituosas”.
Por conseguinte, coube ao homem lidar de frente com a problemática da fome em
luta da sobrevivência. Montanari (2003) aduz que existem formas distintas de enfrentamento
desta dificuldade, nas quais seguem repertórios de comportamentos indicados pela identidade
cultural de cada grupo social. Ou, em outras palavras, o habitus, entendido como sistema de
disposições duráveis estruturadas de acordo com o meio social dos sujeitos e que seriam
predispostas a funcionar como estruturas que agem como princípio gerador e estruturador das
práticas e das representações.
Esta categoria de análise não corresponderia, no entanto, segundo Bourdieu, a um
conjunto inflexível de regras de comportamento a ser indefinidamente seguidas pelo sujeito,
mas, diferentemente disso, constituiria um “princípio gerador duravelmente armado de
improvisações regradas” (Bourdieu, 1983a p.65). Não só a forma de procurar alimentos, mas
que tipo de “novos alimentos” não convencionais segue esta lógica escolha/ seleção,
sobretudo construída no decorrer dos grupos sociais de origem.
Sim, me lembro de meu velho pai que era baiano. Viveu muito tempo aqui e morreu aqui. Falou de muito tempo numa seca que teve em 32 que disse que pegava a
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Croata. Aquela fruta de mucunã, botava de molho pisava que deu até pra inchar, pra lá pra Bahia, agora aqui nós num conhecemo isso. No meu tempo não. Ele arrancava aquela batata de croatá que dá um pó. Aí botava pra secar e batia, que saia aquele pozinho que nem o polvilho mesmo. Batia, dali, lavava, botava pra secar e fazia o beiju pra comer. A fruta da mucunã, num sei se você conhece. Botava ela de molho, inchava, depois botava de molho na água e disse que quebrava. O que ele contava. Quebrava, tirava aquela casca dura, e outra ia pro pilão. Lavava em nove água, mas pra comer o beiju dava inchar. Lavava em nove água, ia lavando e despejando... porque era muito forte e entrava vento. O que fazia dizendo eles que fazia era o beiju e comia... moía no pilão bem moidinha e ia lavar e aquilo ali tirava aquela água que saia muito forte do cravo e jogava fora, lavava nove vez, aí deixava sentado, depois que sentava, pelo final, quem nem é depois que lava num espreme?! Torce e num deixa a tapioca sentar embaixo?! Aí escorria aquela água agora ali, e botava pra torcer num beiju num pano e fazer o beiju e comer. Tinha também aqueles que pegava aquela batata e relava no ralo e comia e tinha um leite, eles botava, misturava no leite pra poder comer, batata do embu. Aliás ele é muito doce mesmo. Era tudo enfrentamento pra poder escapar, isso nóis fizemos por muitos anos!
(Dona Frango com macarrão e tomate, com um feijãozinho do lado – 66 anos)
Durante décadas uma das estratégias alimentares de enfrentamento da fome por
parte dos indivíduos do município de Guaribas – PI, foi justamente de procurar alimentos
alternativos, isto é, alimentos que não faziam parte dos hábitos alimentares da comunidade,
como a macunã – tipo de semente de onde se extrai uma massa, comumente consumida por
caprinos – e a batata de umbuzeiro, que passaram a serem preparadas a fim de atenuar a fome,
diante da escassez de outros gêneros alimentícios.
A diferença é grande. Tem uma coisa que eu me esqueci, chegou um ponto de eu ver pessoas entra nos gerais e caçar resina de trapucá pra vender pra arrumar um tostão e furar aquela manisoba. pra vender, e dava dinheiro e a resina também. Tudo aqui eu conheci, eu mesmo num fui, mas conheci. Era meio de viver, porque num tinha outro não, porque a pessoa era fraco demais, apelava pra isso... ainda conheci casinha de terra, em pé de monte assim que nós chamamo urundu, pro camarada passar o inverno caçando resina, pra dormir ali dentro na mata. E se a fome apertar agora hoje em dia tá brabo mesmo, hoje tem muito o que caçar mais o povo tem medo, o Ibama pega.
(Seu Feijão com torresmo – 81 anos)
Assim sendo, diversificar, como discute Montanari (2003), talvez seja a palavra-
chave para compreender os mecanismos de localização e produção de alimento. Esta foi a
atividade mais substancial utilizada pelas diferentes civilizações no decorrer dos séculos para
lidar com a escassez de alimentos.
A prosperidade nos leva a esquecer o quanto a fome pode ser impositiva, mas
mesmo nesses períodos os hábitos alimentares continuam sendo veículos de profunda
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emoção. Como aponta Mintz (2001), nossas atitudes em relação à comida são normalmente
aprendidas cedo, e são, em geral, inculcadas por adultos afetivamente poderosos, o que
confere ao nosso comportamento um poder sentimental duradouro.
Mais especificamente, é na família – e mais tarde na escola – que as relações de
poder são fomentadas e aperfeiçoadas, através da inculcação de conteúdos potencialmente
alienadores por meio de uma imposição autoritária e arbitrária resultante das camadas
dominantes da sociedade. As concepções ideológicas difundidas orientam toda sorte de
condutas cujos objetivos residem na concretização de idéias que regulam o comportamento
desprovido de consciência crítica e por isso, estagnado dos sujeitos, no que confere à
iniciativa de mudança. Estas concepções reproduzem, dentre outras “verdades” a idéia
universalizada e naturalizada de transformação social e do próprio sujeito, desconsiderando o
caráter histórico contido nas dinâmicas sociais manifestas na atualidade. Assim, disseminam-
se idéias que cristalizam as visões de família, escola, sociedade e a educação que delas
advém.
2.1.8 Tempo de preparo: 1 hora e 10 minutos
Quanto tempo é necessário para preparar um almoço? Quantas são as pessoas
envolvidas na preparação dos alimentos, homens, mulheres e crianças estão envolvidas?
Essas variáveis antropológicas e sociais interferem de forma substancial nos significados e
representações reunidas em meio ao consumo alimentar. E destacam, com isso, as
características idiossincráticas dos moradores de Guaribas – PI, tornando-os, possivelmente
semelhantes a outros povos, mas, sobretudo, torna-os distintos e únicos.
As pesquisas sobre as práticas alimentares mostram a família trabalhadora
enquanto lócus da organização do consumo, enfocando-a primeiramente enquanto unidade de
rendimentos. Assim sendo, seus membros compartilham um orçamento doméstico comum,
composto de somatória de salários e rendimentos, oriundos de inserções diferenciais no
mercado de trabalho e de subordinação, também, diferente às relações capitalistas de
produção, que se combinam com relações não capitalistas. O padrão de consumo alimentar
depende e varia conforme modos de inserção no mercado de trabalho, as oportunidades de
rendimentos, associando-se a certas características do grupo familiar (forma de organização,
número de membros aptos ou não para o trabalho, idade dos membros e etapa do ciclo da
76
vida) e eventualmente de fontes adicionais de renda (CANESQUI, 1988).
As famílias guaribenses em relação à estrutura de ocupação e níveis de
rendimento apresentam uma caracterização bastante específica, conforme relatórios realizados
pela Fundação CEPRO (2005). Neste sentido é importante que se esclareça que foram
somados além dos salários e outros rendimentos facilmente declarados mensalmente,
elementos relacionados à produção agrícola, pecuária e/ou de exploração de pequenos
negócios. Em relação aos dados finais apresentados, chama a atenção a proporção de 86% das
famílias, que de uma forma ou outra afirmaram dispor de alguma renda associada à atividade
rural. O grupo de famílias que no município vive exclusivamente da atividade rural
apresentara a menor média de rendimento. De uma outra forma, cita-se como mais elevada a
média de rendimentos dos empregados no setor público (CEPRO, 2005).
As relações entre as vivências presentes na atualidade quanto às dimensões de
emprego e renda, propicia a percepção de como as experiências passadas contribuíram, de
certo modo, para a reunião das conjunturas sociais do momento presente.
Eu trabaiava o dia todo, desde muito novo na labuta... mas quem cozinhava mesmo era minha mãe, minhas irmã.
(Seu Carne assada – 58 anos)
A mamãe tinha a roça, arrancava mandioca, ligeiramente, as vezes a gente ia pro mato, matava um tatu comia. Matava a caça do mato quando chegava a mamãe tava “troçendo” a massa e outros torrando pra comer aquela coisa grosseira, e a gente comia a bicha doce, as vezes a gente embebedava. Até quando aqui passou a cidade e graças a Deus. Enquanto num arrumasse água num voltava não. Num ia morrer de sede mais os filho. E hoje graças a Deus tá tudo aí na torneira. Os homi ficava caçando coisa e nóis muié também, ia pra roça, ia caçar de espingarda, ia caçar coisa pra alimentar a vida e qualquer coisa o cabra fazia. Comparando num tem comparação, hoje aqui pra nós só é riqueza. Em vista do que nós viva aqui num tem pobre na Guaribas, hoje nóis come!
(Dona Frango com macarrão e tomate, com um feijãozinho do lado – 66 anos)
A gerência e o controle da alimentação do grupo familiar são atribuições
femininas. As pesquisas mostram a divisão dos papéis sexuais na organização e realização do
consumo alimentar familiar pela segregação entre os sexos na gerência dos gastos e no
preparo de alimentação e pela complementação e divisão de responsabilidades entre seus
membros, no caso das compras alimentares.
Além disto, o trabalho feminino no preparo da alimentação rege-se por regras: de
economia e controle, morais, estéticas e de higiene, permeando o próprio trabalho doméstico
77
referido à cozinha, ao uso dos equipamentos domésticos, aos cuidados com os alimentos e à
casa e à alimentação da família. Comporta ainda aquele trabalho o dispêndio de tempo, uma
organização específica, capacitação e treinamento. Este se obtém mediante um processo de
socialização no âmbito da família, resultando na produção e reprodução de atuais e futuras
donas-de-casa, incorporando-se regras e concepções que presidem o trabalho doméstico e o
próprio consumo (CANESQUI, 1988).
Conforme essa caracterização do preparo da alimentação em Guaribas - PI,
percebeu-se que com a falta de alguns gêneros alimentícios, deixando a sua produção pouca
rica proteicamente, ou mesmo o alimento não ter ficado no ponto ideal para o seu consumo,
eram, dessa maneira, consumidos pelos munícipes. Destaca-se ainda, que as dificuldades em
adquirir a água, na qual era necessário percorrer quilômetros para encontrá-la, mesmo em
poucas quantidades, racionalizando-a para o melhor aproveitamento.
Ela de vez em quando tinha na casa, ela ralava aquele milho, fazia aquele mingau pra nós todo comer, porque num tinha outra coisa. Era muito o povo lá em casa naquele tempo e até hoje ainda é, se eu for contar, era uma base de uns 11, era muita gente. E nós comia era só do que plantava... era o milho, a fava, a mandioca, era a cana, tinha algum leitãozinho também, aquilo ali, a gente botava dentro de uma fava e ia comer ela. Huuum! Fava com carne de porco... Num era ruim não, pro cara comer o cara com fome comia tudo. E eu passava um tempo fora comprando as coisa pra alimentar os outro e ganhar um tostão pra poder chegar em casa e dar pro véio mais a véia comer e os outros irmão. Aqui muitas véiz, colocava as comida no fogo num deixava cozinhar bem cozinhada não, comia era logo. Quando era uma coisa diferente, batata de umbu, batata de muncubira, relava também. Outras vez que num dava pra relar cozinhava ela e comia aqueles pedaços... chegava até dia que comia cru, a gente quando pegava a planta, comia as duas cabeças e trazia o resto pros outros comer em casa.
(Seu Feijão com arroz – 72 anos)
O mais difícil, pra comer sempre nós tinha alimentação, agora difícil era água. Um tanto de gente desse aqui, isso aí era difícil. A gente tinha quando era pra desmanchar a mandioca, tinha não ainda tem, tem os motor tem tudo só que eu parei, tem umas barreira aqui nuns terreno no nosso cercado que tem muita água ainda, pra nós a dificuldade, não tinha dificuldade enquanto tava farinhando e quando secava nós tinha propriedade que chamava lagoa da bosta, água nós ia pegar lá, uma distância de 2km. Era tudo nesse jegue. Era sofrimento muito. Agora pra beber aqui era duro, era um chorero, você pegava de pouquinho em pouquinho, quando uma pessoa pegava por exemplo 20 litros, tinha que dar pra outra, o outro ficar esperando noite e o dia, noite e o dia, todo mundo passou por isso aí aqui.
(Seu Feijão com torresmo – 81 anos)
Mostra-se acima a importância feminina no preparo alimentar, área em que se
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exercitavam as mulheres desde a infância, no uso dos procedimentos culinários, basicamente
o cozido e o frito, juntamente com o emprego de temperos, extraídos da flora local (Canesqui,
1988).
Outro aspecto relevante a ser destacado, corresponde às transformações no modo
de produção da agricultura e o gasto energético dos trabalhadores e dos seus dependentes (não
produtivos). Mostrou, entre os assalariados agrícolas a insuficiência dos salários auferidos na
manutenção de uma dieta que pudesse preencher o dispêndio dos gastos energéticos no tipo
de trabalho manual desenvolvido. Tal insuficiência tinha impacto sobre a distribuição
alimentar a família de modo a restar os filhos daqueles trabalhadores uma dieta de qualidade e
quantidade inferiores em relação à consumida pelos chefes das unidades familiares. Isto
resultava em baixos níveis de crescimento e de desenvolvimento para os filhos daqueles
trabalhadores, não atingindo os recomendados pela ciência nutricional. Este estudo introduziu
a importância da família no consumo alimentar, agregando uma preocupação antropológica.
Segundo Woortmann (1980), a família nuclear organiza-se em torno de dois
papéis centrais, ao mesmo tempo categorias ideológicas: o “pai de família” e a “dona-de-
casa”. Tais categorias correspondem evidentemente, ao marido-pai e à esposa-mãe, mas
significam mais que do que apenas isso: ao expressar papéis interdependentes, expressam,
também, como se desenvolverão as relações interpessoais no ambiente familiar. Somente
poderá haver um pai de família se houver uma dona-de-casa (ou mãe de família), e vice-versa.
Pai de família significa mais que um “genitor”; significa “pater”, segundo a clássica distinção
antropológica; significa responsabilidade, respeitabilidade, ser “um homem sério”.
Em resumo, significa ser um homem no pleno sentido da palavra, como uma
categoria cultural. Esse pai de família provê a casa com os meios necessários à reprodução da
família, através da venda de sua força de trabalho, enquanto que a dona-de-casa é aquela que
preside sobre o seu consumo; que toma decisões segundo padrões de economia (doméstica),
seguindo certas regras, de forma a subordinar as necessidades individuais às necessidades
coletivas da família. A organização do grupo doméstico atribui à esposa-mãe o controle sobre
a produção dos valores de uso essenciais à reprodução dos seus membros, e é esse controle
que define a própria essência de ser dona de casa. Diante destas competências destinadas à
mãe e ao pai de família, como de controladora de consumo e de provedor de renda,
respectivamente, estão intimamente articulados à ideologia da família. No entanto, se é
vivenciado por parte desta família o fenômeno da fome, isto causa uma redefinição desses
papéis. Kaloustian (1998) afirma que a ausência de uma renda familiar adequada para a
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alimentação desses membros familiares, fará com que o papel de provedor por parte do chefe
de família (o pai) seja dificultado, gerando frustração neste, e remetendo a um conflito pessoal
de sua auto-imagem. Isto implica diretamente na execução do papel da mãe como articuladora
do lar (dona-de-casa), que também não terá seu papel frente à instituição familiar facilmente
executado. Ou seja, possivelmente terá que tomar posturas complementares à do provedor,
atentando-se também à aquisição de recursos alimentares.
2.2 Comer e não comer. A segurança alimentar em Guaribas, alguém determina?
Em meio a essa sucessão de idéias, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o
PNAE, emerge como uma política educacional de fomento à segurança alimentar. Possuidor,
logo, de potencialidades de desenvolvimento social nas instâncias locais, principalmente por
exercer atividade frente ao comportamento alimentar de escolares, e por tal, com uma força
multiplicadora. A partir disso, quais seriam as potencialidades do PNAE como elemento de
estímulo à agricultura familiar local e superação de fome/ garantia de segurança alimentar?
Como os cardápios da merenda das escolas de Guaribas são construídos? A identidade
cultural alimentar dos sujeitos envolvidos é considerada na elaboração do cardápio da
merenda? A produção agrícola local é integrada aos cardápios da merenda escolar? As metas
do capítulo seguinte agregam as interfaces que partem destes questionamentos, todavia
argumentra-se-á acerca das operacionalizações do PNAE no estado do Piauí e no município
de Guaribas, sobretudo estabelecendo confronto com a expressão alimentar dos grupos sociais
em estudo.
CAP. 3 – O SABOROSO E O INSÍPIDO NA ESCOLA: DISCUTINDO OS TEMPEROS DO PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR
“Seu dotô, os nordestino têm muita gratidão pelo auxílio dos sulistas
nesta seca do sertão. Mas doutô uma esmola ao homem que é
são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”.
Patativa do Assaré (1980)
Percebida por muito tempo como um mero instrumento de reprodução social, a
escola atualmente é vista como um fator crucial na luta contra as desigualdades sociais. Ela
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requer ser compreendida justamente a partir da sua inserção histórica e do papel social que
exerce nos contextos específicos em que se faz presente (MARTINEZ, 2005).
Nessa condição, o papel da escola e da educação é fundamental: ser um espaço de
formação para a cidadania. É evidente que uma escola que busque desempenhar esse papel
desenvolve ritos e práticas, no seu cotidiano, que vão além do processo de ensino-
aprendizagem de conteúdos reservados a cada nível e modalidade de ensino (FERREIRA,
2006 citado por AGUIAR, 2006).
Contudo, na atualidade, são nítidas as dificuldades da escola e da família no
processo de reconfiguração e complementação de suas atividades em prol da manutenção dos
valores culturais e da melhoria da qualidade de vida das futuras gerações. Entretanto, ao
transportá-las para uma localidade que apresenta a situação de fome como uma constante ao
longo das gerações, põe em risco as funções sociais dessas instituições, como apresentam
Castro (1960); Negreiros et al (2003); Valente (2002). Os prejuízos trazidos pela fome são de
ordem bio-psico-social, alterando notoriamente o indivíduo e a instituição familiar. E estes,
frutos de uma construção sócio-histórica-cultural, transmitem ao longo das futuras gerações,
uma herança funesta de carência biológica e inferioridade social.
Ao se discutir variáveis como crianças advindas de ambientes familiares
desconfigurados pela situação de fome (CASTRO, 1961; KALOUSTIAN, 1998;
NEGREIROS, 2003) que são submetidas a educadores que também passaram pela mesma
realidade, acredita-se que a atividade educacional seja prejudicada, podendo auxiliar nesse
processo de manutenção do legado nocivo da fome.
Essa situação pode ser melhor compreendida, se tomarmos como referência o que
defende Vygotsky (2000) quanto ao processo de desenvolvimento. O referido autor explica
que este ocorre por meio da interação social, e que as funções psicológicas elementares
encontradas nos bebês darão subsídios para o surgimento de processos mentais superiores.
Portanto, processos interativos afetados por um contexto social nocivo, conflituoso,
influenciarão significativamente nas interações desses indivíduos envolvidos, promovendo
situações que retroalimentarão essa realidade.
Diante disso, Contini (2000, p. 46) descreve que a educação deve ser vista “[...]
enquanto um bem cultural fundamental para a construção da cidadania das crianças e jovens
brasileiros, entendida como um projeto de saúde.” A autora ainda faz referência à concepção
de saúde que é ampliada para além dos limites de doença e está ligada aos vários aspectos que
estão presentes na vida do homem, como moradia, lazer, educação, trabalho etc. Sendo, com
81
isso, o equilíbrio desses componentes da vida diária que irá formar o grande mosaico da saúde
humana.
A idéia acima apresentada é complementada ainda por Hunt e Mckenna (1993)
que apontam a definição de saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e
social, e não apenas a ausência de doença. Inúmeros estudos mostraram que o bem-estar
subjetivo do indivíduo é o maior determinante para a sua decisão de buscar formas
alternativas de enfrentar as dificuldades de seu cotidiano
A instituição escolar, portanto, como explica Martinez (1996 apud CONTINI,
2000) é um espaço vital para a promoção de saúde e desenvolvimento social. A autora destaca
que essa promoção é uma função do conjunto da sociedade e das suas instituições. A saúde
possui íntima relação com o processo educativo, e “[...] a partir dessa concepção podemos
analisar o papel da escola, como uma das instituições básicas da sociedade, no processo de
desenvolvimento da saúde.” (p. 47). Portanto é bastante significativa e adequada a tentativa
deste estudo, que é de analisar uma política pública de segurança alimentar que acontece no
ambiente escolar, como é o caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar.
Neste terceiro capítulo, discute-se acerca das práticas alimentares indicadas por
meio das diretrizes e leis do Programa Nacional de Alimentação Escolar, o PNAE junto ao
município de Guaribas – PI. Mais especificamente mapeamos o universo da produção agrícola
familiar do município, identificando os alimentos que podem integrar os cardápios da
merenda escolar; em seguida identificamos formas de utilização do PNAE – como política
educacional – como um potencial elemento de estímulo à agricultura familiar local e
superação de fome/ garantia de segurança alimentar.
Utilizou-se as designações: data de fabricação; composição química;
embalagem; preservar em local arejado; e prazo de validade; que ilustram características
de um produto alimentício ofertado em um supermercado ou qualquer espaço onde a
alimentação pode ser comercializada.
As categorias de análise despontaram a partir dos discursos de membros da equipe
do Conselho de Alimentação Escolar da Secretaria Estadual de Educação do Piauí
(SEDUC/PI) – coordenadora e nutricionista; Nutricionista responsável pela compra da
merenda escolar no município de Guaribas; Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais
da cidade, representantes da Secretaria Municipal de Agricultura; Técnicos do Serviço de
Aprendizagem Rural (SENAR) – agrônomo e médico veterinário; Presidente do Conselho de
Segurança Alimentar (CONSEA/PI); e pais de alunos das escolas públicas do município de
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Guaribas – PI, cuja principal renda é a agricultura familiar.
3.1 A data de fabricação
Construir um produto em grande escala implica atribuir significativa atenção a
dados operacionais para o consumo deste. A data de fabricação corresponde, portanto, ao
marco de término de preparo de um produto, sugerindo-o como pleno e completo para o uso,
conforme as suas indicações e adequações ao público para o qual se destina. Esta analogia,
aqui, elucida eixos de análise para determinadas instâncias ligadas ao funcionamento e
caracterização do programa de merenda escolar; tipos de relações e estudos
desenvolvidos entre as instâncias estaduais e municipais envolvidas no processo de
seleção e fornecimento dos gêneros alimentícios, sobretudo seguindo designações do
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
As relações humanas em todos os âmbitos (política, economia, educação,
sociedade) sofreram grandes mudanças no decorrer das últimas décadas. Do mesmo modo,
ocorreram mudanças significativas em relação às políticas públicas que visaram à segurança
alimentar no Brasil. Como o foco deste estudo é o PNAE, faz-se necessária uma breve
apresentação do itinerário da merenda escolar no Brasil.
De acordo com Bezerra (2003, p. 449), para resolver o problema da fome, a partir
dos anos de 1930,
os estudiosos da alimentação, os nutrólogos, sugeriam o desenvolvimento de cruzadas, campanhas, associações de combate à fome e de educação alimentar e o desenvolvimento de políticas de alimentação e nutrição orientadas pelo objetivo de ensinar o povo brasileiro a comer.
O autor afirma que a evolução dessa política se caracteriza por conter três fases
distintas: a internacional (1955-1973), a nacional centralizada (1973-1993) e a nacional
descentralizada (de 1993 aos dias atuais).
Bezerra (2003) aponta que, a partir de 1993, na terceira fase, portanto, começou o
processo de descentralização do PNAE. No primeiro semestre desse ano, o convênio foi
realizado com aqueles municípios com mais de 50 mil habitantes. Em 1994, foi possível a
adesão dos demais municípios do país. Na atualidade, todos os municípios estão conveniados,
direta ou indiretamente com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE),
órgão do Ministério da Educação responsável pelo repasse de recursos para escolas,
83
municípios e estados.
Há três tipos de descentralização do PNAE: a estadualização, a municipalização e
escolarização. No primeiro, o FNDE repassa os recursos para as secretarias estaduais de
educação, que adquirem os gêneros alimentícios e os distribuem para as escolas pertencentes
à rede estadual. A segunda modalidade pode se desdobrar em duas práticas: o município pode
gerir a merenda somente na sua própria rede de ensino ou, mediante convênio com o estado,
atender às escolas pertencentes à rede estadual de ensino que se localizem na sua área de
jurisdição. Por fim, a merenda escolar pode ser escolarizada, isto é, as escolas tanto
municipais quanto estaduais recebem os recursos financeiros diretamente do FNDE, compram
e preparam sua própria merenda (Bezerra, 2003).
A lei nº 8.913, de julho de 1994, que regulamentou a descentralização da
merenda, apesar de algumas alterações, que aconteceram entre 1994 e 2001, relacionadas à
operacionalização, incumbência de responsabilidades e recriação de controle e fiscalização do
Programa, determina os seguintes objetivos da merenda escolar:
[...] suprir parcialmente as necessidades nutricionais dos alunos beneficiados do PNAE, adequação dos cardápios aos hábitos alimentares regionais; melhorar a capacidade de aprendizagem dos alunos; formar bons hábitos alimentares – educação alimentar; pontualidade no fornecimento da merenda; economia com transportes de gêneros alimentícios e revitalização da economia dos municípios, sobretudo os de pequeno e médio porte (MEC/FAE, 1993, p. 6-10) (MEC/FNDE, 1998, p. 4).
Vale destacar que existem aspectos da Política Nacional de Alimentação Escolar –
PNAE relacionadas às questões operacionais de gestão e caracterização específicas do manejo
de suas diretrizes em cada localidade. Estas alterações/ adaptações possivelmente ocorram no
estado do Piauí.
Percebe-se que apesar das diversas articulações existentes entre o estado e o
município de Guaribas, ainda são presentes empecilhos como dificuldades em fiscalizar os
manejos da merenda escolar e verificar os aspectos logísticos, até a chegada às escolas
municipais da cidade em estudo. Destarte, constata-se que os Conselhos de Alimentação
Escolar (CAE) fazem parcerias com técnicos voluntários, tanto no âmbito estadual como no
municipal. Fato este que conforme relato dos técnicos do CAE, gera empecilhos quanto à
fiscalização e aprimoramentos de futuras ações.
O Plano de Alimentação é muito importante, e ele faz com que se tente desenvolver no nosso estado, no Brasil como um todo, uma segurança alimentar, apesar de sabermos que essa Segurança Alimentar ainda é muito precária. Nós sabemos que
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ocorrem vários problemas até essa merenda chegar à boca do aluno. Esses problemas, pouco a pouco, nós sabemos com a fiscalização, com os Conselhos Escolares, eles vem sendo minimizados, mas ainda ocorrem.
Sra. Baião de Dois com bastante Queijo, Nutricionista Membro do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Tem os órgãos, os parceiros que nos ajudam, a fazer realmente essa fiscalização pra ver se essa coisa tá acontecendo ou não tá . Alem do próprio Conselho Escolar, que é dentro da Secretaria e cada escola tem seu Conselho, e a gente tenta revitalizá-los pra que esse Conselho atue realmente. Nós temos o CAE (Conselho de Alimentação Escolar) com os supervisores também municipais, que tá lá em cima, que em cada município é obrigado a ter seu Conselho de Alimentação Escolar, inclusive agora a gente vai ter uma capacitação, do CAE. Essa capacitação quem oferece é FNDE, daí a gente fica na parte de logística, de operacionalização, de ver inscrição, ver local, tudo isso. Esses parceiros são parceiros que a gente não sabe até que ponto a gente pode tá cobrando. Digamos assim, “ele tá fazendo o serviço no CAE? Será se tá ?”, porque todo CAE, todo conselho, você sabe que são voluntariados, essas pessoas vão como voluntário e as vezes essa pessoa acontece um empecilho, uma coisa e tudo dá errado.
A gente tenta, o Estado como um todo, dar algum suporte. Nosso CAE aqui tem uma sala próximo da gente, a gente botou um computador, tenta dar um suporte de vale-transporte pra essa pessoa vir pra cá, mas mesmo ainda é muito precário. A gente tenta fazer essa articulação, essa fiscalização, esse acompanhamento, junto com os Conselhos, com a própria supervisão. Em cada município tem um supervisor nosso, estadual, a gente pede pra tá vendo. Aqui na unidade, na gestão, a gente tem um chek-list, que a gente faz pelo menos duas vezes, a gente desce nas GRE’s (Gerência Regional de educação), que faz realmente o diagnóstico da escola, de todos os programas, não só da merenda, como do livro, de todos os programas, PNDE, a gente faz o levantamento da escola como um todo, de como é que a escola está funcionando. A gente faz essa diagnostico pelo menos duas vezes por ano, mas ainda é muito pouco pra gente tá acompanhando isso aí, todas essas 800 e tantas escolas. Os parceiros são esses. E nessa capacitação do CAE, eles trabalham muito a alimentação, como são as resoluções, como é que se dá esse armazenamento, a Segurança Alimentar (o CONSEA/PI) também é convidada, eles participam, fazem toda essa articulação, esse treinamento, as oficinas e tudo. Aí eles fazem um treinamento com todo o público.
Sra. Pirão de Galinha Caipira, Coordenadora do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
O PNAE, com suas respectivas ações na política de Segurança Alimentar e
Nutricional (SAN), inter-relaciona com o Programa Fome Zero, dentro das políticas
específicas. É gerenciado diretamente pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE) do Ministério da Educação (MEC), que repassa recursos por 200 dias letivos. O valor
atual é de 0, 18 centavos para todos os seguimentos – creches, pré-escolas, escolas
filantrópicas e ensino fundamental.
O terceiro princípio do PNAE refere-se à continuidade de ações, e, então, os
recursos são repassados para cada 20 dias, como estratégia para evitar distorções na utilização
das verbas ou perda, desperdício e/ou compras inadequadas. Outro princípio é a
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descentralização, uma vez que de posse dos recursos, compete aos estados e municípios
efetivarem as aquisições, com a vantagem de possibilitar o escoamento dos produtos
regionais. E mais, o processo de descentralização favorece a adaptação dos cardápios à
realidade cultural do público escolar, além de possibilitar ampliar o consumo de frutas,
verduras e legumes frescos em lugar de produtos industrializados, concorrendo, assim, para a
promoção à saúde, que consiste essencialmente, no cumprimento do Art. 208, inciso IV e VI
da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
Nesse processo, a distribuição da merenda escolar no município de Guaribas – PI
engloba ações desenvolvidas entre as instâncias estaduais e municipais envolvidas no
processo de seleção e fornecimento dos gêneros alimentícios, ou seja, em termos logísticos,
pode sofrer alterações conforme as dificuldades do contexto sócio-econômico e cultural, ou
por trâmites trabalhosos entre estado e município.
Em relação de como é que se dá a distribuição dessa merenda: eu mesmo faço a compra da merenda em São Raimundo Nonato (cidade localizada a 147 km de Guaribas), de todos os gêneros, eu faço a compra por mês. Então é uma compra muito grande, eu compro todo recurso que vem. Agora eu sempre ultrapasso às vezes uma certa quantia, aí eu comunico pro tesoureiro: “olha, eu passei tantos mil”. Porque não tem como a gente usar só aquilo ali. A partir daí eu faço a distribuição por aluno através de per capita, eu coloco lá um per capita X pra cada criança em relação, eu já tenho um per capita fixo pra carboidrato, pra proteína e de lipídio. Aí todo mês eu faço esse tipo de distribuição, cada escola por exemplo: as escolas são muito descentralizadas, existe escola que tem 10 alunos, outra escola tem 60 alunos, outra escola tem 200 alunos, então pra cada escola existe uma distribuição. São 18 escolas, todo mês são 18 distribuições que eu faço. Aí varia a quantidade. Então é o seguinte: pra mim não é passada essa limitação estadual e municipal, o que é passado são os nomes das escolas, com o nº de alunos, então eu tenho o número da escola, endereço e número de alunos. Ai eu tenho um programa em casa, coloco, jogo tudo isso aí, e já sai com um resultado. Em relação as per capita geralmente varia assim: de carboidrato a gente coloca 50 gramas, por exemplo o pacote de massa de milho é 500 gramas então aquilo ali seria pra 10 alunos e ela crua. De proteína o ideal seria pelo menos no mínimo 20 gramas, mas só que a gente não consegue. Se eu for jogar, por exemplo, 20 gramas de sardinha pra cada aluno no dia que eu for botar a preparação, é uma coisa surreal, não tem dinheiro pra comprar isso tudo, aí fica 12, 13. Agora você imagina o que é 12, 13 gramas de sardinha. É complicado, mas é assim a gente tem que ficar fazendo isso, o que eu faço às vezes é tentar fazer o seguinte: jogar a merenda pra distribuir o total de merenda que eu compro com o recurso pra 3 semanas, e na semana que eu sei que vai faltar, já fazer outra compra. Aí eu utilizo o recurso, como são mais repasses, é de março a dezembro, o mês março, quando já entra o final de fevereiro, aí já faço a 1ª compra, aí o mês de julho não tem aulas, aí o recurso já dá pra ir manejando. Ficar remanejando recurso pra tentar suprir isso.
Sr. Galinhada, Nutricionista responsável pela merenda escolar em guaribas – PI.
Tudo isto chama atenção para quão importante é a preparação dos cardápios.
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Idealmente, devem ser definidos por nutricionista, do mesmo modo apresentado em Guaribas
– PI. Pó outro lado, é preciso levar em conta a recomendação oficial para que 70% dos
recursos se destinem à aquisição de alimentos básicos, enquanto o 30% restantes podem ser
gastos com produtos que atendam, de forma saudável, à clientela alvo, dentro das
necessidades nutricionais mínimas. Destaque-se, ainda, que os cardápios devem preservar os
hábitos e as vocações agrícolas regionais, além de se submeterem ao teste de aceitabilidade.
3.2 COMPOSIÇÃO QUÍMICA: escolha de cardápios e aceitabilidade
A reunião de dois ou mais elementos para a formação de um novo produto, a qual
tem um significado único e autônomo, não raro dissociado das noções expressas pelos seus
componentes, caracteriza, justamente, um processo de composição. E este, corresponde,
senão, à característica central para a composição da merenda escolar. De outro modo, aos
aspectos operacionais da construção dos cardápios da merenda escolar.
Segundo Martins et al (2002), a análise do Programa de Merenda Escolar sob o
ponto de vista da Segurança Alimentar remete à dualidade de aspectos a serem enfocados:
quantitativo e qualitativo. O primeiro refere-se “[...] à disponibilidade dos alimentos para
atender ao cardápio pré-estabelecido [...]”, isto é, “[...] a garantia de que todas as crianças do
ensino fundamental e do pré-escolar receberão merenda adequada durante todos os dias
letivos do ano.” (MARTINS ET AL, 2002, p. 66-67).
Enquanto no aspecto qualitativo, a segurança refere-se à qualidade dos alimentos
que integrarão o cardápio, “[...] essa qualidade deverá ser vista de acordo com vários focos:
nutricional; sensorial; higiênico-sanitário; operacional e conceitual.” (MARTINS ET AL,
2002, p. 67). Vale destacar que o estudo aqui proposto apresenta-se na perspectiva de ampliar
a concepção qualitativa da merenda, nos aspectos relacionados à sua dimensão curricular/
pedagógica e instrumento de segurança alimentar e nutricional.
Como é possível observar, a lei apresentada anteriormente (lei nº 8.913, de julho
de 1994), assim como o ponto de vista de Segurança Alimentar, fornecem indicativos do
potencial que o Programa Nacional de Alimentação Escolar tem como promotor de saúde e
como agente de desenvolvimento social – no momento em que promove o fortalecimento da
agricultura local, fomenta novas formas de ação diante da realidade atual – tornando, por
meio dessas duas vias, um atenuante da situação de fome em comunidades que tem como
87
principal fonte de renda a agricultura, como é o caso do município de Guaribas (IBGE, 2006).
Não obstante, para que os referidos princípios e potencialidades sejam
funcionalmente operacionalizados, são necessárias verificações sistemáticas acerca da
aceitabilidade da merenda escolar no estado do Piauí, em especial considerando a aceitação
dos alunos do município de Guaribas.
A gente coloca uma salada de fruta, por exemplo, não tem aceitabilidade. É a característica da aceitação no Piauí como um todo, claro. A gente tem isso aí porque se faz esse levantamento e a gente sabe disso, e nessas capacitações a gente escuta muitos depoimentos, é no Brasil, infelizmente, eles querem o grosso mesmo. Ainda é um atrativo desse aluno tá indo pra escola, é uma maneira de tá segurando esses alunos em muitos lugares, claro que não é geral, mas ele vai porque ele sabe que vai ter aquela merenda que em casa ele não tem aquela alimentação. E por isso que eles preferem o arroz, o feijão, a carne, mingau de milho, que é realmente mais substancial.
Sra. Pirão de Galinha Caipira, Coordenadora do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Como primeiro critério temos a aceitação do aluno. Apesar dessa fiscalização ou até mesmo essa inspeção ainda ser um pouco falha, o critério básico é se o aluno tiver uma boa aceitação. Se o aluno não gostar do gênero, tiramos do cardápio. Em segundo lugar, a questão do acesso do alimento em nossa região. Tivemos um problema com almôndegas no cardápio anterior [...] Se o gênero não tem fácil acesso no nosso Piauí, então ele também não é comprado, não é requisitado para compra, é basicamente e também a relação da questão financeira, porque só é liberado 22 centavos por aluno, por dia. Então isso também é levado em consideração, nós não podemos fazer compras de gêneros que sejam caros, que não tenham facilidade de aquisição por conta da questão financeira.
Sra. Baião de dois com bastante queijo, Nutricionista do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
E quanto ao produto federal, a gente vê as complicações, porque é um programa muito grande, depende de muitas pessoas, depende de muita articulação e sempre tem alguns lugares que a gente tem mais dificuldade. No caso dessa merenda centralizada, o problema maior é esse ai, porque entram na licitação, ganham e tudo, e na hora de entregar o produto, às vezes acontece como aconteceu, nem sempre, mas dessa vez a gente teve problema tanto na merenda do EJA, como na merenda das filantrópicas, agora que a gente tá entregando, que a gente faz o cardápio tipo assim pra 100 dias, pro primeiro período todo, porque por conta dessa dificuldade de licitação, de tudo, a gente faz a compra pra 100 dias e entrega o produto na escola onde tem essa modalidade de ensino. Nas demais direciona o recurso.
Sra. Pirão de Galinha Caipira, Coordenadora do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Tem uma nutricionista em cada uma das escolas em Teresina, nas unidades regionais. Em cada regional ela responde por todas as escolas daquela região, então ela faz um cardápio de acordo com as necessidades da escola, tanto a aceitação do aluno, como financeiramente, ela faz um cardápio.
Sra. Baião de dois com bastante queijo, Nutricionista do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
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Questão de regionalização no cardápio é o que acontece, porque, por exemplo, se você for ver o que a gente usa no interior: é o cuzcuz, o macarrão, a proteína de soja. É uma coisa mesmo que é adicionado que faz tempo que é colocado, mas não é uma coisa que tem a frequência que você vê nas casas. Hoje em dia muita gente usa, mas você não tem aquela frequência de tá vendo no dia a dia das casas. Não que sejam adequadas à situação, porque, por exemplo: o leite, se houvesse a produção de leite local, na região, na cidade. Seria melhor do que a gente tá comprando leite em pó, por causa do custo-benefício. Seria muito melhor porque é mais barato, é tirado no dia ali, tem uma disponibilidade protéica muito melhor pra criança em relação ao leite em pó, mas já existe essa regionalização. Se você for ver como é diferente a merenda escolar de outras regiões, até mesmo de outros municípios do próprio Estado... Se bem que o leite em pó é melhor para transporte. Você chega, por exemplo, em algumas cidades, em São Paulo, região Centro Oeste, que mesmo a Bahia eu já vi, em outros municípios, em São Raimundo Nonato mesmo, a merenda pode ser arroz com feijão, salada e a carne como se fosse um almoço mesmo. É servido mesmo como um almoço, suprindo todas as necessidades em relação a carboidrato, proteína, lipídios, sais minerais, vitaminas, coisa que não acontece lá (Guaribas - PI) por conta disso. Nas cidades maiores você vê que isso é feito. Em Teresina pode acontecer, São Raimundo Nonato você vê algumas escolas que fazem arroz com frango, que antigamente a merenda escolar era centralizada, ela vinha dos caminhões tudo com produto formulado. Na região Nordeste todo mundo come de forma igual, sem variações, todo mundo deu a contribuição de sua localidade. Que era tudo produto formulado, hoje em dia houve essa descentralização, uma foi por conta desse problema de ficar vindo a merenda, faltava, demorava, às vezes passava meses sem merenda e outra era essa que como vinha demorava pra chegar, o transporte era grande, era tudo produto industrializado, já era assim aqueles sopões, pão, aqueles arroz já, rizotozão, os pacotão de suco em pó, aí o PNAE determinou.
Sr. Galinhada, Nutricionista responsável pela merenda escolar em guaribas – PI.
A escolha dos cardápios e aceitabilidade da merenda escolar indicam um arbitrário
cultural, referente à escolha de gêneros alimentícios específicos quer seja por critérios como
“mais barato” ou por “mais fácil de preparar, armazenar”. Na mesma proporção,
predisposições acerca do gosto local, do tipo “na região nordeste todo mundo come de forma
igual, sem variações” sugerem, ao absolutar a diversidade, o que é tido como uma valorização
dos elementos diferenciados – as chamadas “contribuições” – acaba sendo uma legitimação
de uma dada ordem social, profundamente desigual e hierárquica (Maciel, 2004). A autora
ainda discute que ao afirmar o papel e a participação de diferentes povos das regiões
brasileiras, bem como de raças presentes na miscigenação brasileira, e, colocá-los em
condições de “igual influência” desconsiderando as lógicas de poder incutidas nas relações da
sociedade, é legitimar a supremacia de um grupo social sobre o outro, e assim legitimar uma
visão de harmonia que implica o “mito” da democracia racial/social.
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3.3 A EMBALAGEM: como os atores vêem a merenda escolar
Embalar, processo que corresponde ao ato de preservar objetos e mercadorias de
situações de deterioração, ou pôr em condições e contingências convenientes ao usufruto, lhe
dispensando, entre outros caracteres a proteção. A “embalagem” do Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE) é equivalente ao modo como essa política educacional e de
fomento à segurança alimentar é representada por aqueles sujeitos a ela agregados, seja
atuando profissionalmente conforme as mediações de suas diretrizes, seja como beneficiário
do programa. Como o PNAE se apresenta à comunidade de Guaribas - PI? Como a merenda
escolar é vista? É justamente essa perspectiva que nos pretendemos a discutir adiante.
Do mesmo modo, a metáfora anteriormente citada apresenta a relativa fragilidade
da embalagem. Esta, por ser suscetível a variáveis de manejo físico e social entre as pessoas
que se dispõem mobilizá-la – ser rasgada, danificada, por exemplo –, ilustra
significativamente as intempéries que podem também ocorrer frente ao PNAE: falha no
manejo de seus direcionamentos; ou transgressão de diretrizes que fomentam a promoção da
boa qualidade dos alimentos chegados às escolas, pela aceitação dos beneficiados, pelo
respeito às identidades culturais e alimentares.
Alguns dos trâmites para a escolha do cardápio da merenda escolar sucedem de
acordo com as representações das práticas alimentares piauienses, bem como em torno das
avaliações de aceitação por parte dos alunos sobre os alimentos servidos na escola.
O cardápio ele leva–se em consideração o gosto do aluno, a facilidade de se comprar aquele produto e a aceitação e a questão financeira. Então, como hoje o mundo é globalizado, existem determinados gêneros que a gente não considera regionalização, como no caso das almôndegas, que não é produzido no nosso Estado. Mas existem outros que leva sim em consideração, como o mingau de milho, o baião de dois com sardinha. Então leva sempre em consideração a nossa questão cultural no Piauí, que é o arroz misturado, a maria-isabel.
Sra. Baião de dois com bastante queijo, Nutricionista do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
No caso da EJA, essa das almôndegas que a gente coloca, é porque eles pegam o gênero, a gente não pode botar frango, por exemplo, no cardápio, porque como é que eles vão pegar esse gênero, como é que eles vão pegar uma coisa perecível? Tem que botar produto não-perecível, esses que a gente compra os gêneros no caso da EJA e das filantrópicas, das conveniadas, a gente coloca só enlatados
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realmente. No caso da merenda mesmo, da descentralizada, eles fazem frango, fazem maria-isabel, eles compram, lá no cardápio ela coloca e eles compram mesmo, aí faz aquela coisa mais regionalizada, que é coisa que a gente usa mesmo, a nossa região é muito unificada nesse cardápio. Mas nesse cardápio, se você chegar lá em São Raimundo Nonato, em Corrente, eles comem a mesma maria-isabel que a gente come aqui em Teresina. É, é quase que unificado esse nosso cardápio, essa variedade. Galinha caipira, lá tem, aqui também, num tem no cardápio, mas tem o frango com arroz. Aí é muito parecido, faz esse cardápio de acordo com aceitação do aluno, eles querem é comida mesmo, literalmente.
Sra. Pirão de Galinha Caipira,Coordenadora do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Há a dificuldade da questão da regionalização das frutas, porque a fruta não tem tanto acesso à merenda, por causa dessa dificuldade que nós temos. As crianças, os jovens, os adolescentes, eles preferem a refeição, no caso o arroz, mesmo que em menor a quantidade, não considere uma refeição, mas tem que ser o arroz, com o feijão e um tipo de carne. Até pela falta que ele tem em casa, então ele leva essa necessidade pra escola.
Sra. Baião de dois com bastante queijo, Nutricionista do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Segundo as diretrizes estabelecidas pelo Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE), o respeito aos valores, hábitos e costumes alimentares, é meta primordial
para seu funcionamento em potencial. Entretanto, algumas dificuldades quanto ao transporte
propriamente dito de alimentos; dificuldades em fracionar a verba para a compra da merenda
com a quantidade nutricional/protéica necessária para o número de alunos; ou empecilhos
quanto a avaliações pouco minuciosas dos cardápios; podem prejudicar algumas prerrogativas
que o programa subsidia aos seus beneficiários.
Em geral, a gente se limita, eu como nutricionista, me limito em determinados produtos pra mandar pro interior, por esses fatos de transporte, de armazenagem, acesso e o preço dos gêneros. O leite era uma fonte de proteína que era mais usado na alimentação escolar. Hoje em dia não dar pra usar aquilo como base, o leite como base, porque se eu for comprar quantidade de leite pra suprir a necessidade de todos aqueles alunos, eu vou gastar mais da metade do recurso só com leite, porque o pacote de leite agora é R$ 3,00. Aí não tem condição. Aí existe produto base, de carboidratos, sempre a massa de milho, biscoito, macarrão e pronto. Tem o óleo que sempre vai e proteína é proteína de soja, a sardinha e o leite e aí vai também o açúcar e o achocolatado. Mas são só esses produtos que pode usar. Esses são os produtos, aí a gente tenta fazer uma magicazinha com os produtos pra poder ficar modificando, pras crianças não abusarem. O cardápio eu tento elaborar aqueles preceitos que vêm regulamentados no PNAE da quantidade de lipídio, proteína e carboidrato, mas só que é muito complicado fazer isso aí. R$ 0,22 não dá pra gente obrar milagre com aquilo ali. Não dá. Mas aí eu elaboro o cardápio geralmente em cima disso. Aí é de acordo com o costume da região. Porque mesmo assim a gente tenta consultar pais, professores e até tá verificando com as crianças se elas tão aceitando ou não o cardápio. Aí geralmente é o cuscuz com a sardinha, que eles gostam, o cuscuz com a carne de soja, o macarrão com a soja, eles fazem o sopão de macarrão com a carne de soja, por exemplo. E às vezes eu nem prendo muito as merendeiras na questão de cardápio, de formulação. [...] É o macarrão com soja, cuscuz com sardinha, é o biscoito com leite, aí fica variando. Sempre tem o suco também, o suco de garrafa
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que eles reclamam muito que só vai suco de caju, mas é porque é o mais barato, e eu não posso ficar usando o suco em pó.
Sr. Galinhada, Nutricionista responsável pela merenda escolar em guaribas – PI.
De maneira concomitante, às ações das equipes do Conselho de Alimentação
Escolar (CAE) do Estado do Piauí e do município de Guaribas, o CONSEA desenvolve a
integração da atuação e parcerias com estas equipes. Com intento, principalmente, de articular
estratégias para uma maior coesão ao lidar com a insegurança alimentar.
O CONSEA contribuiu na questão de pressionar o governo, no sentido de implementar uma política de alimentação, que antes era merenda escolar. Já era uma normativa do próprio CONSEA e retira-se a palavra merenda escolar e passa a ser alimentação escolar. Porque a gente observa que dentro das escolas as crianças que estão em estado de insegurança alimentar, que vem de casa, elas não conseguiam se alimentar com 25 centavos, ou seja, não é um pão, praticamente. Então, houve um debate a nível nacional, a nível estadual, o debate permaneceu. Há um acompanhamento direto do CONSEA na questão no que tange a alimentação escolar, há um acompanhamento direto, uma negociação com a SEDUC/PI (Secretaria estadual de Educação do Piauí), com a SEFAZ (Secretaria Estadual de Fazenda do Piauí), com o próprio governador. Há até mesmo com o Conselho Estadual de Educação onde ocorre um acompanhamento direto no que tange a alimentação escolar. Há um debate amplo. Passando pra dentro dessas instâncias, eu queria até retratar uma coisa: o Programa Compra Direta que é trabalhado pelo Governo Federal e aqui pelo governo estadual, ele compra toda a agricultura, todo o produto do agricultor rural, e a própria SDR (Secretaria de Desenvolvimento Rural) que é o órgão que está executando, em parceria com o Fome Zero e com a SASC (Secretaria de Assistência Social e Cidadania do Estado do Piauí) e outros, distribui para a própria população naquele município que ele comprou, onde 50% fica pra merenda escolar, ou seja, também, são injetados esses mecanismos. Além da alimentação escolar que é recebida pelo Governo Federal numa conta única diretamente na escola.
Sr. Arroz de cuxá maranhense, presidente do CONSEA – PI.
Dentre os sujeitos envolvidos na promoção da segurança alimentar por meio de
atividades conjuntas e complementares com órgãos já citados, como CAE/PI, CONSEA/PI,
Secretarias administrativas, etc. são presentes também aqueles sujeitos – de importância
inquestionável nos processos de fomento desta política educacional – beneficiários do PNAE:
as famílias dos alunos das escolas de Guaribas – PI, nos quais podem ter suas concepções
expressas através dos pais agricultores, isto é, que possuem como principal renda a agricultura
de subsistência, fonte de renda mais presente na localidade antes da inserção de políticas
sociais do governo, como as políticas de transferência de renda e previdenciárias (CEPRO,
2005).
Lá em casa tem muitas variedades de comida. Tem arroz, feijão. Feijão é o principal que num pode faltar. Se não tiver feijão pra mim a comida não presta. Rapaz, francamente, eles deve ter lá uma merenda boa porque além de tudo o prefeito não deixa faltar a merenda. Olha, tem suco, bolacha, cuscuz, carne. Tudo isso eles participa lá, come que nem rico. Num é carne de caça e coisa grosseira
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não! Sr. Arroz com Bife, 46 anos, agricultor, pai de
alunos da escola: 6 filhos.
Sei (sobre a merenda). Tem muitas vezes que eu sei, porque eles (os filhos) fala pra mim que tem. Tem muitas vezes a carne, num é todo dia, é revezando. Num dia muitas vezes tem a carne de jabá. Outras vezes tem o cuscuz com leite. Outras vez faz uma sopa, é revezando. Num é todo dia uma comida só de um tipo. É trocada, um dia uma de um tipo e no outro dia é outra de outro.
Sr. Feijoada com arroz, 38 anos, agricultor, pai de alunos da escola: 3 filhos.
Sei da merenda. Vai o leite, inclusive tem carne moída, tem o arroz doce e biscoito. Que eu saiba é isso, agora se tem outra coisa... Ah, também tem vez de ter o macarrão. O que eu sei é isso. E eles são obrigado a gostar! Tem que gostar. Porque é o que tá tendo. Às vezes ele num gosta do arroz, tem aluno que num gosta do arroz doce, por que num é parecido com as coisa que tem em casa, outros já gosta. Porque o que tem pra comer é aquilo alí, tá na escola, tá com fome tem que comer.
Sr. Carne cozida com beiju, 33 anos agricultor, pai de alunos da escola: 4 filhos.
Eles comem, tem o leite, e tem carne e frango também, tem o macarrão, massa de milho e tem carne moída também. Na merenda da escola eles come é só comida de rico, com uns temperos diferentes dos da gente em casa.
Sr. Macarrão com tomate, 35 anos, agricultor, pai de alunos da escola: 3 filhos.
Meu filho come merenda. Quando tem come, quando num tem... Tem vez que come o cuscuz, e o leite eu num sei não. E as carne moída. E tem vez que falta que o menino chega na casa e diz que falta. Mas tão é dando, num tem que reclamar nada não!
Sr. Frango ao molho com arroz, 28 anos, agricultor, pai de alunos da escola: 2 filhos.
Olha, eles come, tem o arroz, às vezes tem aquela carninha de sol que, é feito uma mistura ali. Tem o macarrão, tem o biscoito, tem o leite. Isso são os primeiros alimentos que eles recebem. Inclusive eu estudei, terminei o ano passado e a turma é véia (velha), papagaio véio (pessoas mais velhas) e nós também tinha um pouquinho da merenda, mesmo que você num aprenda mais tem conhecimento de alguma coisa, tudo que você puder acolher é bom. As comidas de lá é feita diferente das de casa. Num tem tanto gosto, tem muita coisa de pacote. Mas dizem que é mais forte, devia ser mais parecida com a de casa! Sr. Frango com arroz, feijão, salada, batata-frita de um lado e uma farofa no outro,
40 anos, agricultor, pai de alunos da escola: 4 filhos.
Canesqui (1988) expõe que alguns destes atributos – “forte/fraco”, “pesado/leve”,
“vitamina”, “gostoso/sem gosto” – servem para qualificar a dieta consumida ou idealizada,
por referência à concepção de pobreza que comporta desigualdades entre iguais (os pobres) e
os outros (os ricos).
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A desigualdade entre os iguais implica [...] escalonar a condição de trabalhadores pobres mediante critérios que incorporam o quantum de salário, a apropriação de bens de consumo, as formas de inserção e qualificação diante do mercado de trabalho e a construção de identidades sociais. Restam diferentes graus de pobreza, que não chegam a ultrapassar uma condição geral de empobrecimento e a avaliação de uma dieta “fraca”, que o pobre dispõe, a despeito da valorização da “comida forte”, pesada, “com vitamina”, e “sem vitamina” (p. 214).
A desigualdade já mencionada aos outros (os ricos; comidas de rico), por outro
lado, não incorpora os mecanismos de exploração, mas é estabelecida mediante comparações
entre o que os ricos podem adquirir, pelo fato de disporem de poder aquisitivo mais elevado:
“boa comida, variedades alimentares e carne todos os dias”. Com isso, o resultado
corresponde não apenas ao anseio de uma dieta de melhor qualidade, mas principalmente uma
dieta que representa uma condição de vida melhor em termos de aspiração de um padrão de
consumo.
3.4 PRESERVAR EM LOCAL AREJADO: operacionalização das propriedades do PNAE
Ação que visa garantir a integridade e a perenidade de algo. Livrar de algum mal;
manter livre de corrupção, perigo ou dano; conservar; livrar, defender, resguardar em local
arejado, ventilado, para que possa tomar novo ar, novo alento; espairecer; arejar-se. Todos
esses caracteres descritivos ilustram bem a preservação de um produto, mercadoria, ou objeto
frente ao seu bom funcionamento, à sua plenitude de propriedades. Com isso, tendo a sua
demonstração – preservar em local arejado – não seguida/conservada, a ocorrência de seu
funcionamento pouco prospectivo.
Analogamente, existem possibilidades similares a uma política educacional. O
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), sob perspectivas futuras de atividades
junto à população, carece de ações sociais coesas, que pensem, sobretudo, num panorama que
preserve suas ações. Conjugando, assim, ações efetivamente atuais, como é caso de algumas
dificuldades apresentadas na operacionalização (gestão) do PNAE, com a finalidade de
aproximar estratégias desenvolvidas no presente momento no estado do Piauí e no município
de Guaribas daquelas avaliadas como ideais/ funcionais.
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Todos os programas são muito grandiosos. São muitas pessoas envolvidas, e você sabe da dificuldade que nós temos. Quando você diz assim “vocês fiscalizam, vocês fazem essa inspeção?”, a gente diz que sim, mas por amostragem, porque nós não “temos perna” [capacidade dinâmica]. Nós da secretaria, as próprias regiões e as GRES, não têm. Às vezes diz B, “ah, o município funciona mais a contento”, mas o município só tem aquelas escolas do município. Mas o Estado tem um montante em todo o Estado do Piauí. São muitas escolas pra gente dar conta, a nossa área geográfica é muito grande.
Ainda teve a dificuldade das chuvas. Em algumas o fornecedor deixou na Gerência pra depois a escola ir pegar ou em outro município mais próximo. Avisa pra Gerência Regional, que avisa para escola ir pegar. Mas eles entregam, a gente faz esse acompanhamento direitinho. Aí tem as guias que a gente faz, prepara as requisições, daí ele tem que trazer, são três vias, eles levam lá, a pessoa assina que recebeu a merenda. A gente consta todos os gêneros, as quantidades que tem que entregar. Os recursos vão por depósito bancário, no nome da escola. Todas as escolas, a maioria tem Conselho Escolar que é onde tem a conta. Daí vai direto pra escola e ela recebe esse recurso, daí elas fazem. A gente tem todo o acompanhamento, através do nosso Conselho Escolar, porque a gente sabe que tem gestão e tem “gestão”. Uns fazem esse gerenciamento bem, uns dizem assim “ah, mas é muito pouco, não dá e tudo”, aí tem uns que já quando vão receber o segundo repasse e ainda tem dinheiro do primeiro e tá dando merenda direitinho pros alunos, de acordo com o cardápio e já têm outros que não tem mais nem o dinheiro, nem o gênero e às vezes falta até merenda na escola [referindo –se a Guaribas – P]. A gente tem que tá acompanhando, sistematicamente, fazendo visitas nessas escolas, fazendo todo um levantamento porque se faz necessário isso, até pra ver realmente como é que tá essa entrega dessa merenda. Mas, infelizmente, isso não dá.
Sra. Pirão de Galinha Caipira, Coordenadora do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Igualmente, estamos diante de uma gama de aspectos problemáticos em relação a
uma gestão de política educacional. Como visto são presentes os casos de impedimento ou
impossibilidade de uma fiscalização mais minuciosa acerca dos cardápios, sobre a qualidade
dos alimentos chegados às escolas, sobre as condições de preparo das comidas, e, sobretudo
diante do respeito à identidade alimentar dos alunos de Guaribas – PI. São empecilhos
advindos da conversão de poucos recursos em alimentos qualitativamente protéicos e
nutritivos. Ou como supracitado, acarretando mesmo na ausência da merenda escolar.
Outro problema que nós tivemos em relação às chuvas foi que as escolas, principalmente em Campo Maior, Esperantina, estão sendo ocupadas pelos desabrigados, então a merenda também está sendo entregue em alguns lugares, nas GRES, por conta disso, porque não pode deixar na escola porque esses desabrigados podem ter acesso a essa merenda. O recurso da merenda são pros alunos, eles não podem fazer isso. Nas escolas que tem a merenda descentralizada, ela é feita pela nutricionista responsável por aquela escola, da região responsável. Já a merenda do EJA, ela também é responsável em fazer esse diagnóstico dentro da escola, mas como a maior parte da merenda de educação de jovens e adultos ela é comprada pra 100 dias, por conta de toda essa problemática de licitação, não tem como a gente fazer uma mudança rápida. Vamos dizer: o mingau não tá sendo aceito, nós não temos
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como fazer essa mudança, porque ela já foi feita pra 100 dias, ou seja, metade do ano letivo que tem 200 dias. Essa mudança só vai poder ser feita no segundo semestre. Então existe dificuldade de poder mudar o gênero ou a merenda rápido.
Sra. Baião de dois com bastante queijo, Nutricionista do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Além disso, é possível que sucedam interpretações em torno das condições de
pobreza e insegurança alimentar. Com isso muitos moradores do município de Guaribas – PI,
localidade na qual foi desenvolvido o projeto piloto do Programa Fome Zero, estão passíveis
de interpretações que legitimam e fortalecem as representações mantenedoras das condições
reduzidas de ascensão social. Em especial quando ocorrem apreciações, pouco convergentes
com a identidade cultural do grupo social do município, bem como as influências sócio-
históricas que o construíram e o tornaram uma localidade tão particular em situação de fome,
ao ponto de ter sido eleito como o município mais miserável do país (IBGE, 2003).
Como o Consea vê hoje essa situação de insegurança alimentar no estado? O Consea vê e age da seguinte forma: a partir do momento setorial que o Consea observa que tal setor está realmente em estado de insegurança alimentar, o Consea chama a atenção de todos os órgãos, puxa pra si a responsabilidade de estar articulando as políticas necessárias para fortalecer e para trabalhar aquelas pessoas que estão em estado de insegurança alimentar. Guaribas, em 2003, o povo tinha mais fome de “beleza” [valorização da própria identidade], fome de se auto-afirmar, fome de auto-estima, do que a própria fome de comida. Só que com o passar do tempo, a gente observou que a necessidade do povo inicialmente era de “beleza” e de auto-estima, depois a comida, que comida eles até produziam, eles não sabiam era se alimentar, mas até que produziam.
Sr. Arroz de cuxá maranhense, presidente do CONSEA – PI.
Por outro lado, tomando como referência os princípios enunciados, o PNAE
possui cinco diretrizes básicas: estimular o exercício do controle social; respeitar os hábitos
regionais e a vocação agrícola; oferecer alimentação saudável aos escolares; garantir as
necessidades nutricionais durante o período em que o aluno está em sala de aula; envolver
todos os entes federados. Mas, para que isso ocorra, é indispensável um conhecimento prévio
e isento de julgamentos pré-estabelecidos acerca da população local.
Seria ideal que a prefeitura entrasse com a contrapartida, pra que a gente melhorasse essa merenda. Aí seria sim, no caso, uma melhoria que ia ter, aumentar o aporte energético, não diversificar, porque é muito difícil diversificar por conta de distância, que é tudo comprado em São Raimundo Nonato, aí pra levar pra Guaribas tem transporte, refrigeração, porque a energia é precária, só na cidade, só na sede que a gente entra com algum perecível, alguma coisa assim, mas o interior tem os produtos básicos que é só aquilo ali, que é a maioria. Para a maior parte das crianças, só produto básico mesmo.
Sr. Galinhada, Nutricionista responsável pela merenda escolar em guaribas – PI.
Por conseguinte, somente a partir desse preceito fundamental, atua-se para o
cumprimento de diretrizes nutricionais estabelecidas tecnicamente. Hoje é primordial que a
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política não se limite à quantificação nutricional, como apontam suas normas de
procedimento. Ou seja, mesmo existindo uma média nutricional a cumprir (15% das
necessidades calóricas e protéicas), as particularidades locais devem ser consideradas, tanto
no que se refere ao perfil da clientela – faixa etária, por exemplo – como o risco nutricional,
porquanto há municípios como Guaribas - PI, onde a insegurança alimentar e nutricional é
maior, e, portanto, podem necessitar de mais de 15% previstos (CONSEA, 2004). Isto, em
suma, aproximaria o PNAE de uma preservação longitudinal, contemplando futuras gerações.
3.5 PRAZO DE VALIDADE: aspectos da funcionalidade do PNAE
Alimentos com prazo de validade vencida pode ser uma realidade, todos os
consumidores devem ficar atentos a esta informação quando fazem as compras da semana ou
do mês. Esta mesma informação é checada por nós consumidores ao provarmos qualquer
comida, ou mesmo, se esta informação não é apresentada por escrito na embalagem do
produto a ser experimentado, costumeiramente questionamos: quando foi feita essa comida?
Quando foi colhida esta fruta? Quando foi preparada aquela salada? Essas interrogações
demonstram muitas das preocupações humanas frente ao consumo alimentar, em especial pela
verificação em torno da qualidade, legitimidade, valor do que está prestes a ser degustado.
Discutir o que é eficaz nos programas de assistência social e promoção da
segurança alimentar, sobretudo descrever nestes a condição de válido – em todas as acepções
– junto às comunidades nas quais são fomentadas estas políticas consiste em tarefa de
relevante importância, já que tratamos de ações sociais fomentadas a humanos, e por isso
concepções como a de “prazo”, espaço de tempo durante o qual deve realizar-se alguma coisa,
ou seja, uma variável temporal.
Dentre os princípios do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) está
o estímulo à agricultura familiar. Destaca-se que a Secretaria Nacional de Segurança
Alimentar (Sesan), em muitos casos, junto com a companhia Nacional do Abastecimento
(Conab), haja vista que o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) não dispõe de
estruturas estaduais, tem a seu encargo uma série de ações, com destaque para o Programa de
Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) ou Compra direta Local, instituído
pela Lei 10.696, de junho de 2003. E este, consequentemente, tem em seu princípio básico
bastante convergência e complementaridade àquele apresentado pelo PNAE.
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A abrangência e a diversidade das situações que caracterizam o público da
segurança alimentar e nutricional implicam necessidade de utilização de instrumentos
diversos e formas de ação social voltadas para o enfrentamento de situações de fome em
caráter estrutural, emergencial e local. Assim, o Programa Fome Zero inclui ações estruturais,
com políticas voltadas para as causas da fome e da pobreza (geração de emprego e renda,
previdência social, incentivo à agricultura familiar, intensificação da reforma agrária, bolsa
escola e renda mínima); ações específicas, com políticas direcionadas ao atendimento das
famílias (cartão-alimentação, cestas básicas emergenciais, combate à desnutrição materno-
infantil, ampliação da merenda escolar, educação para o consumo, dentre outras) e ações
locais, com políticas a serem implementadas pelas prefeituras e sociedade civil (CONSEA,
2004).
Não obstante, a pouca inter-relação entre ambos os programas – PAA e PNAE –
pode gerar incompatibilidades de suas ações desenvolvidas. Assim, os resultados esperados
através da atuação do PNAE, em destaque para atividades que por dificuldades diversas
impedem o seguimento/ cumprimento de suas diretrizes, podem ter resultados opostos aos
esperados: ao invés de autonomia e estímulo ao trabalho e renda, redução da atividade laboral
junto à agricultura.
Às vezes a pessoa confunde o que é segurança alimentar, ela é o que assegura a toda criança que tá na escola ter o acesso a alimentação escolar, isso é um direito de todos os pré-escolares e alunos de escola fundamental. Agora em relação à agricultura local e associação a segurança alimentar é um fato que a gente vê em diversas prefeituras que funciona, porque a merenda, ela se torna uma coisa mais agradável, com uma palatabilidade muito melhor. A gente consegue trabalhar melhor as crianças com relação a suprir as necessidades não só energéticas como também de vitaminas e sais minerais, coisa que não acontece aqui [em Guaribas – PI]. Porque aqui não funciona a questão da ordem escolar, que infelizmente no interior o povo tá muito amarrado a esses programas emergenciais que o governo federal entrou: bolsa família, enfim. O pai manda o aluno pra escola pra receber a bolsa, o aluno vai pra escola pra merendar. A preocupação no ensino se torna irrisória em relação a esses outros pontos. Se você fosse associar na realidade de fato, como é feito, a associação desse fato na merenda escolar com a agricultura e com as hortas familiares, por exemplo, agricultura familiar, é uma coisa que é muito boa pra merenda em relação a esses pontos de vista, mas aqui não funciona, se funcionasse seria uma boa.
Sr. Galinhada, Nutricionista responsável pela merenda escolar em Guaribas – PI.
A literatura sociológica demonstra claramente que o envolvimento dos pais no
processo educacional seria uma das mais importantes condições do bom desempenho escolar.
O indivíduo, em Bourdieu, é um ator socialmente configurado em seus mínimos detalhes. Os
gostos mais íntimos, as aptidões, as posturas corporais, a entonação da voz, as aspirações
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relativas ao futuro profissional, tudo seria socialmente construído (Bourdieu, 2006). Nessa
perspectiva, os pais apresentam um papel preponderante na construção dos indivíduos como
sujeitos sociais; dessa forma, o sentido atribuído por eles à educação dos filhos pode
influenciar de forma plena nesse processo formativo.
Quanto ao sentido atribuído à escolaridade dos filhos, o desencontro família-
escola dá-se na medida em que, ao passo que as famílias se orientam, sobretudo pela “lógica
da eficácia” – aprendizagens escolares que devem culminar em trunfos profissionais e
possibilitar um “se virar” na vida, por exemplo -, muitas ações pedagógicas escolares
distanciam-se desse objetivo. Os processos de significação da escola pelas famílias precisam
ser averiguados, pois os processos de socialização familiar são potencialmente
desencadeadores de elementos favorecedores – ou dificultadores – de êxito escolar, conforme
as afinidades ou os distanciamentos com relação à escola que esses traços engendram
(SWARTZ, 1997).
As lógicas socializadoras populares enraízam-se e perpetuam-se por meio da
socialização familiar, das condições sociais de existência que se afastam das lógicas
escolares, e da própria escolarização (ou falta de escolarização) dos pais, que está na base de
sua relação com a escola, mas também de sua relação com a linguagem e com a cultura
escolar.
Pode se assinalar que as relações entre famílias populares e escola surgem das
relações entre instituições de socialização e de enquadramento de membros de classes
populares, relações consideradas na perspectiva de um controle social exercido sobre as
famílias.
Muito embora, Valla (2000) apresenta que existem dificuldades por parte dos
pesquisadores e estudiosos em “conceber” que classes populares são capazes de “[...]
produzir conhecimento, de organizar e sistematizar pensamentos sobre a sociedade, e dessa
forma fazer uma interpretação que contribui para a avaliação que nós fazemos da mesma
sociedade” (p. 12). Ou seja, trabalhos que venham a ser efetuados nas referidas classes,
quando não contemplam as especificidades locais, observando-as como desprovidas de
cultura e/ou saberes, são, no mínimo, disfuncionais e nocivas.
Ao considerar o contexto social mais amplo, em plena era do conhecimento e da
informação, os sujeitos sociais são certamente classificados de acordo com o seu capital
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cultural6 e isso traz responsabilidades à escola de agregar valores a suas práticas culturais e
educativas. É preciso superar as concepções que reduzem o sentido da socialização à
interiorização de normas sociais dominantes ou à produção de indivíduos capazes de viver
em conformidade com as leis e normas próprias a uma formação social em uma dada época.
Trata-se de sair de uma socialização vista como o único produto da ação das instituições
construídas ao longo da história, para concebê-la como um processo contínuo, nos dois
planos da biografia individual e da produção das relações sociais, e que não se reduz,
portanto, à ação de uma instância particular.
Não obstante, a escolarização para as crianças de classes populares é uma
experiência de mudança simbólica e social. E por isso, deve estar atenta, em especial aos
aspectos relacionados ao “como fazê-lo”. Como se sabe, no que diz respeito às ações
efetuadas pelo governo federal – em termos de atribuições de responsabilidades frente à
população – Valla (2000, p. 21) relata que
a tradição dominante no Brasil é a da participação popular, isto é, o convite das autoridades para que a comunidade tenha uma participação mais frequente. Além disso, muitas vezes, as autoridades querem a participação popular para solucionar problemas para os quais não dão conta. Nesta concepção está embutida a idéias de que o aceite ao convite para participar seria uma forma de os governos se legitimarem.
O aprofundamento desses debates na escola é potencialmente rico por possibilitar
aos profissionais de educação, pais e estudantes ampliarem a compreensão acerca das
vinculações da escola com a sociedade e com os projetos socioeducativos, bem como o
(re)conhecimento dos mecanismos de exclusão e discriminação de quaisquer ordens,
presentes na sociedade e na escola, para melhor enfrentá-los e superá-los (ESTEBAN, 2007).
Configura-se, então, como indispensável que ações interventivas frente à
realidade da desigualdade social, sobretudo àquelas desencadeadas pela situação de fome
junto aos grupos sociais de uma localidade específica como a de Guaribas – espaço social que
conjuga famílias, comunidade escolar, conjunturas sociais e suas lideranças – sejam
articuladas de forma coesa com o PNAE, programa já instituído no local. Sobretudo que se
atue de modo que sejam respeitadas as identidades culturais locais e as subjetividades
envolvidas em meio à efetuação do aludido programa.
A referida idéia é reforçada por Cavaliere (2002), que relata que sem o
funcionamento desenvolvido, refletido e continuamente recriado das vias de comunicação
6 É um termo utilizado por Bourdieu para exprimir todo o aparato cultural herdado ou institucionalizado que e adquirido pelo indivíduo através da família (diplomas, nível de conhecimento geral, boas maneiras).
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entre família, sociedade e comunidade escolar, tal micro-sociedade será tão frágil que tenderá
a se tornar um mundo artificial e socialmente insignificante ou a ser engolida pela força da
sociedade estabelecida e suas exigências. Destarte, aliado a isso, precisa-se compreender as
visões de mundo que as classes populares elaboram, de modo a melhor apreender sua ação
política, evitando o risco de se fantasiar uma identidade e consciência de classe não
pertencentes àqueles com quem, pretensamente, se pretende atuar.
As famílias do município de Guaribas – PI têm como principal fonte de renda a
agricultura de subsistência (CEPRO, 2005). E esta foi pautada pelo próprio Governo Federal
como um dos focos estratégicos de intervenção junto à insegurança alimentar. É justamente
ao partir dela que é possível transformar o combate à pobreza em um instrumento de inclusão
econômica e produtiva. Com isso, o Programa Nacional de Alimentação Escolar contempla
também esta perspectiva de atuação, relacionando educação, respeito à identidade cultural e a
segurança alimentar e nutricional.
Pensando assim, é com o reconhecimento da agricultura familiar como elemento
expressivo no abastecimento alimentar da sociedade nacional, apesar das fragilidades que se
caracterizam, descritas em detalhes no texto do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional, Políticas de apoio e fortalecimento da agricultura familiar e do agroextrativismo
(Consea, 2004), e que podem comprometer a permanência das famílias rurais no campo em
condições de uma vida condigna.
Ao garantir a compra da produção dos agricultores, o PNAE, por intermédio dos
setores de compra e construção dos cardápios da merenda escolar, pode gerar emprego e
renda nas localidades beneficiadas. Por outro lado, os produtos adquiridos se destinam à
formação de estoques e/ou à distribuição de alimentos em tempo hábil e de qualidade
adequada para o consumo, já que os trâmites para compra e preparos alimentares sucederão na
mesma localidade.
A estratégia do Consea (PI) é trazer todos os conflitos no que tange ou até mesmo todos os debates possíveis para o campo do controle social. Tudo que é trabalhado dentro da instância do Consea, onde os projetos na área de segurança alimentar são aprovados somente com a seguinte técnica: nós temos um projeto aqui da SDR (Secretaria de Desenvolvimento Rural). A SDR traz o projeto e apresenta pro Consea, os conselheiros debatem todo aquele projeto, e vê a viabilidade. Até então se não tiver o aval do Consea, o projeto não é aprovado pra ser encaminhado pros ministérios ou outra instância, ou seja, todos os debates não saem do foco no que tange o controle social. Eles passam pelo Consea para está trabalhando a viabilidade das políticas públicas no que tange a questão da segurança alimentar. Você sabe que o Consea é uma instituição de articulação, ele não é um órgão público de execução, ele é um agente articulador, ele tem atores de diversas
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instâncias executoras, seja pública, privada. Então, qual é o papel do Consea ai? E articular as políticas, trazer todas essas políticas no que tange a educação, agricultura familiar, saúde, lazer, esporte, etc pra dentro da discussão. Ou seja, nós temos controle, entre aspas, de toda a política, porque tudo passa pelo CONSEA, só é aprovado qualquer projeto a nível da melhoria da qualidade de vida das pessoas se passar primeiro pelo CONSEA.
Sr. Arroz de cuxá maranhense, presidente do CONSEA – PI.
O CONSEA, enquanto órgão com relação direta com o Programa Nacional de
Alimentação Escolar assume uma diretriz nacional voltada para a articulação entre Estado e
sociedade, cujo objetivo é associar a Política de Segurança Alimentar e Nutricional ao
desenvolvimento econômico e social sustentável. O processo de análise proposto por este
estudo quanto ao exercício do PNAE no município de Guaribas – PI se torna essencial na
construção de indicadores de monitoramento, para mensurar e analisar os efeitos e impactos
do programa como um todo. Assim sendo, o discurso de possíveis beneficiários merece
consideração diante desta discussão.
Produzo na minha roça e quando dá comprador vendo milho, vendo feijão. Se você tá produzindo a mandioca é no tempo, você faz 20 sacas de farinha, você vende. Agora é preço baixo, porque aqui ninguém tem como chamar comprador e nem como ir pra fora vender, é muito longe. Ninguém tem. O que acontece, quem vem lá de fora compra do preço que ele quiser. Dinheiro você num tem, digamos assim, você vai vender 30 sacas de feijão, você vai fretar um carro daqui pra São Raimundo Nonato, quando vai pagar o frente num compensa. Então o que acontece, ao invés de você gastar muito lá, às vezes você pensa de ganhar um pouquinho acaba perdendo mais, às vezes quando é uma oportunidade que tá na alta, o feijão é assim, aqui é 10, 15 dias, até 20. É de acordo com o “chuvoeiro” que tá chovendo, quem colhe primeiro vende num preço melhor. Às vezes o feijão, dá até 200 contos, que tem dado aqui, por último acontece de vender por 40, 50 conto. Vai caindo. Se tivesse algum comprador por aqui ficava mais fácil pra gente se sustentar, mas aqui num tem cooperativa, num tem nada. E acontece quando tem muita saída, a turma gosta de trabalhar, então produz muito. Principalmente o feijão e o milho. Às vezes nem tem é ferramenta suficiente, porque é mais é braçal, hoje o último desenvolvimento pra quem tem o arado, facilita mais as coisas, quem num tem é na enxada, capinar mesmo ali braçal, desse jeito. Sr. Frango com arroz, feijão, salada, batata-frita de um lado e uma farofa no outro,
40 anos, agricultor,pai de alunos da escola: 4 filhos.
A gente trabalha junto com os vizinhos na roça de cada um. Uns com os outros, agricultor troca uma coisa pela outra. Se a plantação dá bem, ganha, aí a gente com os outros vizinho controla, pega uma dia na roça de um e um dia na roça de outro, como o trabalho também, nós trabalha em forma de mutirão, O negócio mesmo é que todo mundo planta, mas num tem quem compre. Se o cidadão for pra outra cidade vender pode até ser melhor, mas aqui ninguém vai comprar o que já tem casa!
Sr. Carne cozida com beiju, 33 anos agricultor, pai de alunos da escola: 4 filhos.
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A gente vende, e armazena o outro pra ir comendo aquele período até encontrar outra. O feijão a gente armazena, compra o tambor, armazena dentro de casa, o milho é pra dar pro porco, o gado, o jumento que você tem, o animal. Mas sempre vende, se você ganha 10 ou 15 saca de feijão você vende 10, 15 e 5 você deixa pra consumo. [...] Produzo mel. Eu sou da associação de apicultura. Da casa de mel, porque a gente ta começando. Nós somos 28 sócios. O ano passado a gente teve 1.500 quilos de mel, e esse ano a gente passou pra 2.500 quilos de mel. Tem que plantar e vender também pra comprar as outras coisa. Você tem que vender pra comprar a carne, arroz, porque a gente não produz o arroz aqui, mas através disso comprar as outras coisa que falta dentro de casa. Uma vez falta uma coisa em casa, uma cadeira, um sofá, uma coisa e aí vai construindo essas coisa da renda que você tem.
Sr. Macarrão com tomate, 35 anos, agricultor, pai de alunos da escola: 3 filhos.
Em conformidade com o que já foi exposto, o PNAE ressalta em algumas de suas
propostas a geração de trabalho e renda, principalmente nas áreas rurais e em pequenos
municípios, onde as atividades ligadas à agropecuária e à agroindústria são predominantes.
Nós temos hoje uma ampliação do programa Compra Direta. Qual é a participação? Por exemplo, o Consea, uma instância do programa Fome Zero, juntamente com o CONSB tá ampliando várias políticas. O Compra Direta, por exemplo; não basta você só produzir, você tem que ter como comprar. Nós estamos comprando mel, verduras, galinha, goma, ou seja, toda a produção daquela determinada cidade. Se antes você vendia uma lata de mel por 50 reais, o governo passa a comprar a 80, ou seja, é um ganho, você não precisa mais do atravessador. E o Consea tem contribuído muito no debate com esses órgãos, para que as políticas sejam realmente de fato concretas. Sr. Arroz de cuxá maranhense, presidente do CONSEA – PI.
Com o funcionamento das diretrizes estabelecidas pelo programa ocorrendo de
forma legítima, destacam-se, além do apoio à agricultura familiar, o incentivo ao
autoconsumo e à produção de subsistência, as compras institucionais de alimentos da pequena
produção para a merenda escolar, os estoques de segurança formados a partir da compra dos
agricultores familiares. Entretanto, sem as possibilidades reais de venda das produções
advindas da lavoura familiar, os gêneros agrícolas coletados perdem seu potencial de
sustentabilidade. É relevante pontuar que estão presentes variáveis geográficas e climáticas
que interferem nestes trâmites relacionados às características de cada região, localidade,
identidade cultural, e, no Piauí, assim como em Guaribas, não poderia ser diferente.
Temos como destaque o caju, a cajucultura, nós temos como destaque a apicultura, nós temos como potencialidade terras para o cultivo do algodão – que já foi o ouro branco, mas o bicudo o exterminou quase, mas pode se retomar. Nós temos regiões, microrregiões, para também o cultivo sustentável da mandioca e seria, de
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fato, essa nova perspectiva do bicombustível. Então, nós temos potencialidade para a mamona, para o pinhão, para o gergelim, para as nativas, como coco babaçu, o pequi, que são oleaginosas, o tucum, e temos esse potencial todo. Do sertão, do semi-árido nosso, lá tá com muita intensidade o caju, que é um produto alimentício, o mel, que também é um produto alimentício, e, se puxa para pecuária, temos a caprinocultura, que se adapta muito bem no sertão. A alimentação básica nossa é o arroz, milho, feijão, mesmo, e a carne. A carne entra em menor escala não é por falta, é pela condição do poder aquisitivo da população. Nosso estado é grandioso, basta que a própria sociedade e as entidades, as instituições e os cidadãos, tanto os técnicos como políticos encarem programas sérios para cultivo intenso dos produtos alimentícios, porque potencialidade não é carência, nós temos sobrando.
Sr. Arroz com feijão misturado, costelinha e uns três piquizim pra roer, Agrônomo do SENAR/ PI
Muitas são as potencialidades da pecuária e da agricultura piauiense, no entanto
merece um destaque a necessidade de articulação maior entre os programas de incentivo ao
desenvolvimento social e à segurança alimentar e nutricional, e os seus beneficiários. Afinal,
quem são estas pessoas beneficiadas? Quais características e potencialidades estes grupos
sociais apresentam? Quais são os estudos prévios das políticas sociais sobre estes perfis de
agricultores propensos a intervenção? Conhecer implica diretamente em uma intervenção
mais concisa e próxima da transformação social por meio do incentivo adequado.
O grande problema hoje é uma agricultura feita por pessoas aculturadas, que a gente, por exemplo, eu, que trabalho com capacitação, trabalho no SENAR, que é uma empresa que capacita o produtor e o trabalhador rural, a gente tem dificuldade de levar tecnologia pra esse público, porque é um público de pouco estudo, e quando você tem pouca cultura, você tem uma capacidade de absorção de enxergar pouco, de ver só o que tá na sua frente. E ai você às vezes tá falando da tecnologia, tá mostrando a importância, do quanto que ele vai ganhar com aquilo e ele não consegue ver, ele é um homem cego pra tecnologia. Claro que isso não se generaliza, isso é uma questão geral, mas existe os casos de pessoas que absorvem, de pessoas que trabalham melhor.
O governo tem se voltado muito pra esse tipo de produtor, nos últimos tempos, principalmente nesse atual governo que administra o país, a política dele é voltada para o pequeno produtor, para a agricultura familiar. Tá aí o PRONAR derramando dinheiro na mão desse pessoal. Eu tenho acompanhado os assentamentos, de uma forma em geral, através das nossas ações do SENAR, mas o que a gente tem visto é que o retorno disso tem sido pequeno em relação ao que tem sido gasto. Porque, exatamente por essa dificuldade de cultura, o homem do campo não tem conseguido dar uma resposta a esse investimento alto. Você chega na maioria dos assentamentos, e não tem produção. Pecuária leiteira não existe em assentamento, a pecuária de uma forma geral. O governo faz um investimento hoje através, por exemplo, crédito fundiário. O crédito fundiário compra uma terra, entrega pra eles essa terra, faz toda a infra-estrutura necessária ali, faz casa, instala água, energia, depois vem um projeto produtivo, tudo isso e o cara às vezes ainda abandona. Só explora a potencialidade dali, vende a madeira, os animais que ele consegue adquirir com o projeto produtivo, ele compra um animal de péssima qualidade, porque ele não tá interessado em produtividade, em produzir
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bem. Então você chega lá e o sistema produtivo não funciona, não consegue funcionar. [...] Infelizmente, eu não sei, eu acho que enquanto não mudar a cultura do nosso homem do campo vai ser difícil. Essa agricultura no momento não tá dando uma resposta que o governo esperava. A meu ver continua sendo uma agricultura de subsistência, quando muito eles tão conseguindo produzir apenas para o sustento deles, e aí não conseguem pagar os investimentos bancários. Uma agricultura que é de subsistência não consegue produzir o suficiente pra pagar o que ele toma emprestado a um banco.
Não adianta também tá só investindo em qualificação, e não tá tendo resultado. Então o SENAR tá muito preocupado com isso. E os nossos resultados não tem sido às vezes o esperado exatamente porque o nosso treinando não tem às vezes o preparo suficiente pra receber um curso nosso e transformar aquilo em produtividade, em ganho de vida, em ganhos econômicos. A maioria dos nossos cursos visa, no fundo, não só produzir mais, mas injetar um recurso a mais no bolso do produtor, do trabalhador rural, não só aperfeiçoando ele naquela atividade que ele já exerce, mas qualificando ele numa nova ocupação. Agora essa resposta não tem sido às vezes a esperada, por conta do nosso público não tá realmente preparado pra receber isso.
Sr. Galinha Caipira, Médico-Veterinário do SENAR.
Como observamos, alguns empecilhos são citados frente a tentativas de orientação
e aprendizagem rural no estado do Piauí, dentre eles tem-se, de acordo com os relatos dos
técnicos do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), o despreparo do agricultor
perante as tecnologias, o analfabetismo e a pouca instrução local. Muito embora, sabe-se que
problemas dessa ordem não se configuram como “novos problemas”. Afinal, e o homem do
campo de antes. Tinha mais cultura? Não seria papel dos órgãos competentes com o fomento
de aprendizagens rurais os responsáveis por desenvolver estratégias compatíveis com o
público beneficiário e com a cultura na qual estão inseridos?
Estudar uma determinada localidade sempre implica em investigar as
determinações sócio-histórico-culturais que permeiam a construção dos sujeitos que convivem
naquele espaço. O estado do Piauí, por muitos anos teve sua história cultural associada àquilo
que Renato Castelo Branco designou como a Civilização do Couro (1970), como responsável
pela construção da identidade cultural piauiense, bem como as práticas culturais
contemporâneas ali engendradas.
É imperioso destacar que a aludida pressuposição acima, é aceita
consideravelmente por setores vinculados à gestão cultural do Piauí (Said, 2003). Entretanto,
remete a uma análise histórica para duas questões correlatas: uma que pontua o muito do que
se discutiu sobre a cultura piauiense, e que esteve marcado pela herança de um certo
determinismo histórico, que via a prática cultural das fazendas, como elemento formador da
cultura desenvolvida na localidade; o outro ponto remete ao fato de que, muito embora, apesar
da clara aceitação de predominância da civilização do couro como principal elemento
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constituidor da cultura piauiense, ainda é presente a dificuldade para se definir quais
elementos compõem a identidade cultural do Piauí.
A atribuição da definição dos traços culturais desenvolvidos pela sociedade
piauiense à formação histórica do Piauí é plenamente coerente afirmar, como discute Said
(2003):
Por certo, a vida privada nas fazendas foi que determinou, por um longo período, desde a sua gênese, a atividade cultural no território piauiense. Com efeito, por longo tempo, relações domésticas e produtivas nas fazendas, com suas divisões explícitas de atividade comercial, com sua lógica de divisão de poder, com suas segregações sociais e raciais, geraram grande parte da experiência cultural, econômica e política do Piauí. Mas é que pensar a civilização do couro como único elemento que vai caracterizar essa cultura é deixar de perceber que aquele foi um momento específico – mormente tenha sido marcante – da vida econômica, política e cultural piauiense. As marcas daquele período foram legadas à sociedade que iria se construir a posteriori, mas tais traços acompanharam o próprio ritmo de mudanças sociais impostas ao longo do tempo (SAID, p. 341-342, 2003).
Pontua-se aqui que a cultura do vaqueiro e as práticas agrícolas se fizeram
presente da conquista do território piauiense no séc. XVI, tendo seu auge no apogeu da
economia pecuária, no séc. XVII e primeira metade do séc. XVIII. Mas a questão é que a
cultura vaqueira marcou e definiu e está presente na formação da cultura do Piauí.
De certo, aquele momento de produção cultural foi impregnado de determinados
artefatos culturais provenientes da lida com o gado, da labuta nos campos, nos pastos, no
entorno das casas, enfrentando as dificuldades climáticas (condições de seca) que vigorou de
forma praticamente hegemônica, enquanto a vida social se centrava na economia política das
fazendas, isto é, em torno da produção e da comercialização do gado e das atividades
contíguas que as mesmas ensejavam (Said, 2003). Atividades estas que, em suma, anunciam
bem as configurações atuais do modelo sertanejo de cultivo e enfrentamento das dificuldades
vivenciadas no espaço agrícola.
Aqui não tem nem como eu te dizer o que é melhor para criar porque: a gente tem a dificuldade de criar só preso, mas dá certo aqui também. A única dificuldade que a gente tem aqui que ainda não deu pra perceber se é bom pro município o projeto de galinha caipira. Só isso, porque a gente já fez algumas tentativas, mas como aqui não tem um veterinário fica difícil de a gente observar, porque eu mesmo, como secretário, não entendo muito. Aqui tem uma doença chamada, acho que é “goro” como um caroço que dá nos pintinhos, aí morre tudo. Quem tem aquele rebanho maior que é obrigado a se desfazer, e a questão dos patos também, que a maioria planta pouco e quando tem essa dificuldade, que é a falta de água, aí tem que prender os animais, tem que ficar todo dia levando água pra lá, aí falta o pasto e falta água. É esse que eu considero a dificuldade na área de agricultura é na época da seca, quem tem um rebanho maior vai passar por
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uma dificuldade maior, aí é obrigado a se desfazer dos animais. Sr. Bife e arroz com batata frita,
Secretário de Agricultura do Município de Guaribas – PI. Aqui o que mais produz é o feijão, milho e mandioca, são os três produtos mais produzidos na cidade, tanto na sede quanto na zona rural. Aqui tem muitos agricultores. Atual nós temos associados na associação, mais de 300 pessoas. Aí eles atualmente planta é mais para o consumo, digamos que ele ganhe 10 sacas de feijão, 30 de milho, no caso ele vende 20 sacas de milho, fica com 10 para o animal, galinha, porco, ou então vem pra ração do gado e o feijão atualmente tem uma boa renda, se eles ganha 10 sacas atualmente eles vende na faixa de umas sete sacas e ficam com três para o consumo. Mas o pessoal reclama muito de não ter oferta boa pra venda, ai tem que vender no preço que oferecer!
Sr. Galinha Caipira misturada com arroz e o pirão,Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Guaribas – PI.
Ao longo do tempo, a atividade nas fazendas e regiões de cultivo agrícola
piauiense, em função da decadência do comércio de carne bovina, entrou em colapso,
subsistindo como atividade produtiva complementar e não mais ocupando o posto de principal
produto de exportação da economia piauiense. Não obstante,
foi difundida a crença na imobilidade e na imutabilidade de certas práticas culturais que dali derivaram, o que, grosso modo, contribuiu para generalizar as diversas manifestações culturais de um território marcado pela grande extensão e pela diversidade (SAID, p.342, 2003).
A construção de uma identidade cultural alimentar sofre inúmeras alterações, pois
não se pode em hipótese alguma concebê-la como algo imutável e estático. Apesar de serem
percebidos alguns elementos e artefatos culturais que perduram no decorrer dos anos. Ou, em
outras palavras, “o que confere um caráter identitário a um grupo ou a uma determinada
sociedade são a permanência e valorização de alguns elementos culturais que constituem a
base da experiência dos indivíduos desse grupo ou dessa sociedade” (Said, p.342, 2003).
O mesmo autor ainda relata que o caráter dinâmico da cultura correspondente a
um jogo de enfrentamento e conflito entre grupos sociais distintos que se apropriam dos
elementos surgidos das transformações econômicas e tecnológicas, muitas vezes, novos e
velhos elementos culturais entram em processo de choque, de contágio e de contaminação,
alguns resistindo, outros, menos hegemônicos, transmutando-se. Com isso, tradições culturais
diferentes podem se coadunar. Isso tudo tem a ver com o processo de formação da identidade
cultural, que se dá à medida que se moldam novas formas de experiência social, muitas das
quais ligadas a estratégias de produção e consumo dos bens culturais.
Para a consecução da diretriz do PNAE de respeitar os hábitos regionais e a
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vocação agrícola, é necessário estimular o Programa de Aquisição de Alimentos da
Agricultura Familiar (PAA), para que a compra da produção dos pequenos agricultores seja
cada vez maior. Isto requer vencer algumas limitações impostas pela legislação, o que só é
visível por meio da articulação interministerial, com destaque para o Ministério da
Agricultura e Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a Companhia Nacional de Abastecimento
(Conab), embora reconheçamos que não é um processo simples, pois envolve outros órgãos
de fiscalização e controle.
De qualquer forma, é consensual que o respeito aos hábitos regionais pode trazer
uma série de benefícios, como a preservação da identidade cultural, das práticas alimentares
saudáveis, inter-relação entre as diferentes culturas e tradições, auto-reconhecimento e auto-
estima dos indivíduos, independente da faixa etária e da etnia.
A nossa adequação é essa, realmente, a nossa cultura alimentar é essa: é arroz, carne e feijão. Nós não temos esse hábito de comer verduras, legumes, frutas, infelizmente a maioria nossa, dos piauienses, é o trivial como a gente chama, arroz, carne e feijão e macarrão.
Sra. Pirão de Galinha Caipira, Coordenadora do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
O iogurte já foi inserido, mas há ainda uma grande dificuldade com o iogurte. Os meninos ainda preferem o salgadinho, que é proibido em toda escola de ensino fundamental. É proibido nessas escolas ter cantina paralela, não existe, é proibido. Quem recebe o recurso não pode ter uma cantina paralela vendendo esses alimentos, que não são alimentos, são frituras. Só que muitas escolas, depois do portão, têm as pessoas que vendem, e que nós não podemos proibir. E na hora do recreio eles chegam no portão e a criança muitas vezes prefere comprar aquela coxinha do que se alimentar com o iogurte que é muito mais nutritivo, com biscoito, prefere se alimentar com a bomba, com um copo de refrigerante do que com a alimentação que é fornecida pela escola, que é um direito dele.
Sra. Baião de dois com bastante queijo, Nutricionista do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Apesar dos direcionamentos previstos pelo Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE) quanto ao respeito à identidade alimentar, muitas das estratégias fomentadas
quanto à inserção de produtos naturais podem ser de difícil articulação, sofrendo influências
no que compete ao custo e a rejeição das crianças, segundo gestores do Programa.
É, visivelmente, assim, a minha experiência de Teresina, eu não conheço. Mas existe o estímulo no programa. Existe uma lei que define, estadual, que nós deveríamos inserir o mel e a cajuína na merenda escolar, como uma sobremesa, no caso o mel, teria a merenda e mel como uma sobremesa. É uma lei muito importante para a produção, no caso, só aceitaria a compra no caso de cooperativas, a Educação compraria diretamente de cooperativas. Tem uma merenda agora que ganhou a licitação que vai ter o mel como sobremesa, é a do PENAC. É muito importante porque viabiliza a produção. Mas nós temos o outro
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lado, porque o mel é muito caro e os R$ 0,22 centavos que é colocado para o aluno às vezes inviabiliza a colocação do mel no cardápio. Porque o lado financeiro, como é uma lei estadual, a não ser que a Educação venha ter recurso para que a gente venha a comprar esse mel, mas na questão, vamos imaginar na EJA, é inviável se colocar o mel, porque não existe recurso pra isso.
Sra. Baião de dois com bastante queijo, Nutricionista do Conselho de
Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Porque no caso do PNAE, da merenda descentralizada, a que vai pra escola, o Estado já faz um complemento, tem o 22%, três centavos por aluno, e ele já complementa pra poder chegar um recurso maior na escola, ele já faz um complemento de 3% em cima daquele valor. A gente faz o cardápio, procura colocar as coisas pra tá realmente fazendo esse estimulo [da agricultura familiar], mas fica muito difícil tá dentro da escola todo dia, verificando isso aí, se a escola tá fazendo ou se não tá. A gente não tem pernas pra está fazendo esse acompanhamento bem sistemático, bem de perto. A gente vive fazendo capacitações, fazendo visitas, orientando, mas infelizmente não tem ainda aquela coisa bem formalizada, como deveria ter. Existe possibilidade, como essa mesma do mel. Na hora que se conversar, que se ver a aceitação, porque nem toda criança aceita. A cajuína, também. A maioria das crianças, entre uma coca-cola e a cajuína, vai preferir a coca-cola, infelizmente. Teria que ser até uma mudança de cultura, de hábito alimentar, e de cultura mesmo. A gente tenta botar essas coisas que tem um teor nutritivo bem maior, que a própria idade requer e tudo, mas tem que ver a aceitação da criança. Infelizmente a gente tem que trabalhar isso, seriam várias mudanças ao mesmo tempo. Você vê a dificuldade que a gente tem de tá inserindo esses programas, depende de muitas pessoas, são muitos atores. Mas as coisas funcionam ainda, precariamente, mas funcionam.
Sra. Pirão de Galinha Caipira,Coordenadora do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Sobre as dificuldades em inserir mel e cajuína, gêneros alimentícios advindos da
produção agrícola piauiense, no cardápio da merenda escolar local, retratam
convenientemente alguns mecanismos – aparentemente contraditórios – de resistência e
permeabilidade quanto às práticas alimentares. À medida que esses alimentos
(naturais/regionais) são rejeitados, presencia-se a acolhida de alimentos industrializados.
Santos (2005) discute um pouco acerca dessas mudanças:
Diante das transformações impressas pela urbanização e pela globalização, a alimentação passou e continua passando por mudanças que afetam a qualidade dos alimentos produzidos e industrializados. Na verdade, um novo estilo de vida impõe novas expectativas de consumo, que acabam orientando as escolhas de alimentos [...] nesta transição de final e início de milênio, há o triunfo do indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sociais. É o estilo jovem de vida que triunfa, estilo este que passou a ser marca mundial, isto é, a juventude praticamente deixa de ser uma etapa da vida para se constituir num estilo de vida. O jeans, o rock, o hambúrguer e a Coca-Cola são expressões simbólicas dessa nova cultura. Os adolescentes ganharam maior autonomia e isso é vislumbrado pela indústria, que vê aí um mercado promissor. Daí as mudanças dos padrões, que parecem menos satisfatórios ao paladar e ao aporte nutritivo em relação ao que eram anteriormente (p.12).
O mesmo autor ainda destaca que o fenômeno do fast-food representa bem a
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lógica de consumo do mundo globalizado, no qual alimentos prontos como o sanduíche de
hambúrguer, a pizza, a batata frita e os refrigerantes, preferidos por crianças e adolescentes
protagonizam o caráter do funcionamento e o perfil desta clientela por contemplar as
dimensões do prático e curto prazo no preparo. Contribui-se, com isso, com o aumento do
consumo de produtos alimentares industrializados, bem como de utensílios domésticos que
fortalecem a aquisição destes gêneros prontos para o consumo, como os fornos microondas,
por exemplo.
Em relação à região Sul do Estado, eu posso dizer assim: que é básico em relação aos outros municípios, a alimentação é igual, a merenda é igual, agora, regionalização em relação ao município, não existe porque não existe nenhuma intervenção do município na merenda escolar, ela é totalmente encaminhada de São Raimundo Nonato, assim como os outros municípios dessa região. Então, essa questão de regionalização do cardápio é uma coisa assim que, às vezes, se você for ver em relação ao Estado, em relação à região, é uma coisa regional por conta dos produtos que são oferecidos, que é o costume da alimentação da população e são os produtos mais baratos. Quando a gente faz essa associação de regionalização da merenda escolar, ela tá mais voltada à participação do município em relação à merenda, por exemplo: o município entrar com as hortas, aí produzir produtos básicos que é de costume comer na região, pra tá inserindo na merenda, por exemplo: eles gostam de comer beiju, aí tem as farinhadas, que fazem as tapiocas, pronto, se tivessem uma produção para colocar no município seria uma boa, tem o mel, o mel tá sendo produzido lá, aí seria uma boa em colocar na alimentação das crianças.
Sr. Galinhada, Nutricionista responsável pela merenda escolar em guaribas – PI.
Toda a perspectiva de gestão do Programa Nacional de Alimentação Escolar
(PNAE) perpassa, como já exposto, pelos princípios de estadualização e municipalização da
merenda escolar. Deste modo, prima-se por ações conjugadas entre os dois níveis de
distribuição da merenda escolar, assim como de eleição dos gêneros alimentícios a serem
inseridos no cardápio da alimentação escolar. Todavia, segundo a observação do técnico
responsável pela compra dos alimentos da merenda das escolas do município de Guaribas –
PI, o funcionamento sucede de maneira parcial. No que diz respeito à regionalização do
cardápio no estado do Piauí faz-se possível, enquanto que o mesmo não é viabilizado diante
dos hábitos alimentares do próprio município citado.
Por outro lado, o mesmo profissional elenca, inclusive, algumas das
manifestações culturais em torno da comida, como citada a experiência da farinhada, na qual
são produzidos os beijus, com potencialidade nutricional e de aceitação compatível com os
preceitos do PNAE. São destacados, ainda, a inserção do mel, que corrobora com os
incentivos à produção local. E, acima de tudo, podem se tornar símbolos de uma identidade
110
através da qual os moradores de Guaribas – PI podem se orientar e distinguir.
Em suma, a inserção de alimentos que destoam daqueles relacionados com os
hábitos alimentares locais, quer seja por dificuldades operacionais, ou financeiras no ato de
fracionar o dinheiro para a compra da merenda escolar, ou mesmo por precária comunicação
entre gestores e fiscalização insuficiente; incompatibilidades existentes entre as características
e diretrizes do programa com os hábitos e costumes da localidade estudada; bem como não
cumprimento de algumas de suas indicações: incentivo à agricultura familiar; estímulo ao
desenvolvimento social, etc. Depõem contra o usufruto, em plenitude, das potencialidades do
PNAE atuando nas escolas e sociedade guaribense.
Desse modo, alimentos produzidos na agricultura familiar de Guaribas – PI como
o milho, o feijão, a mandioca, que possuem significativa produção na localidade, poderiam ser
plenamente inseridos no cardápio da merenda das escolas guaribenses Destacam-se ainda o
leite, o mel, os ovos e as carnes gêneros alimentícios animais derivados da criação de animais
como o bode, a galinha, o porco e o gado, com o mesmo potencial de inserção. Entretanto,
ocorre um privilégio dado aos alimentos industrializados na escolha dos cardápios da
merenda, sob a justificativa de serem passíveis de maior praticidade no manejo e nos acordos
de compra e distribuição estabelecidos pelos técnicos responsáveis pela compra dos gêneros
alimentícios e os estabelecimentos de compra (supermercados de cidades vizinhas, no caso de
Guaribas- PI, ocorre na cidade de são Raimundo Nonato).
Destarte, existem problemas enfrentados pelos agricultores locais em relação à
venda do que produzem. Em outras palavras, produzem os referidos gêneros agrícolas, mas
por não terem possibilidades melhores de venda – às vezes efetuada em outras cidades
vizinhas – pode ocasionar na diminuição do valor real/potencial de venda devido a carência
de compradores fixos mediante suas produções agrícolas.
111
CAP. 4 - O CONTEÚDO DO PNAE: POSSIBILIDADES DE USUFRUTO
DE SEU PESO LÍQUIDO
“Um, Dois, feijão com arroz Três, Quatro, feijão no prato
Cinco, Seis, falar inglês Sete, Oito, comer biscoito Nove, Dez, comer pastéis" (T.M.M.Almeida, 1998)
Entende-se conteúdo por aquilo que se contém nalguma coisa. Desse modo
implica a prática de conter, ou seja, manter dentro de certos limites; deter; controlar. Sabemos
que um gênero alimentício industrializado, apesar de possuir um conjunto de informações já
ilustradas em tópicos anteriores, como a data de fabricação e a embalagem, destacam-se por
apresentarem indicações que levam ao conteúdo, caracterizando-o. E por conta disso,
habilitando-o ou não ao consumo.
É no conteúdo que estão todas as forças potenciais. E segundo esta perspectiva
que propomos agora discutir as potencialidades do Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE), e assim entender aspectos que o compreendem. Pontuaremos, adiante,
características do programa que encerram em si, o seu poder de segurança alimentar, por meio
do fomento a construção de hábitos que propicia, incluindo suas ações, articulações, parcerias
e coesão, nas quais consistiriam em sua atuação com máximo vigor junto à população da
cidade de Guaribas – PI.
O reconhecimento oficial do direito à alimentação está expresso na Declaração
Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, da qual o Brasil é signatário. Implica
dizer que nenhuma restrição à alimentação pode ser aceitável, tendo em vista que o bem-estar
nutricional é um direito humano (Bobbio, 1992). Tal reflexão remete à questão da segurança
alimentar e nutricional e à necessidade de definição do seu conceito. A expressão segurança
alimentar e nutricional (SAN), como princípio geral, pode ser definida como “a realização do
direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade
suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base
práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam
112
social, econômica e ambientalmente sustentáveis” (CNSAN, 2004, p.1).
A ausência dessas condições pode ser gerada por quatro fatores, conforme revisão
de literatura elaborada por Pessanha (1998): Escassez de produção e oferta de produtos
alimentares; distribuição desigual dos alimentos entre os membros da sociedade; baixa
qualidade nutricional e contaminação dos alimentos consumidos pela população; e falta de
acesso ou monopólio sobre a base genética do sistema agroalimentar. Daí se concluir que a
noção de segurança alimentar e nutricional inclui quatro conteúdos, a saber: a) produção e
oferta de alimentos; b) direito universal de acesso aos alimentos; c) qualidade sanitária e
nutricional dos alimentos consumidos; d) conservação e controle da base genética do sistema
agroalimentar.
O sertão seria exatamente a região de semi-árido, que é a grande região de Picos, a grande região de São Raimundo Nonato, que é todo o Alto e Médio Canindé, é que é exatamente essa região que tá margeando o rio Canindé, que é um rio que corta o semi-árido. Então, toda essa região de semi-árido se traduz nessas atividades: na agricultura, mandioca, milho, algodão, são culturas mais resistentes à seca, e da parte de pecuária, a ovinocaprinocultura e a apicultura, que é o que se destaca lá nessa região. [...] Essa é a carne mais produzida [caprinos e ovinos], mas se nós falarmos em consumo, ainda o maior consumo é a carne bovina.
Sr. Galinha Caipira, Médico-Veterinário do SENAR.
A minha primeira preocupação, ao chegar a Guaribas, em 2002, foi perguntar pelo Chapadão Alto, eu perguntei quando cheguei lá embaixo “quantos engenhos de rapadura já esteve aqui?”, aí me responderam: “22” e “quantos tem funcionando?”, “4”, então a potencialidade está lá, porque no passado já existiu. Não andei muito na zona rural, muito embora a própria cidade tenha uma característica rural, mas vi que tem sim potencialidade, eu diria até superior a outros municípios da própria região. Eu sou também muito contra o paternalismo. Fico triste e ao mesmo temo indignado quando ouço da boca de quem quer que seja – da maior autoridade a menor cidadão em termos de projeção – quando se lastima miséria. Nosso país, e nele nosso estado, tem potencialidades extraordinárias, então que não cobremos só das autoridades. Cada cidadão, cidadã, tem que exercer sua cidadania, cumprir o seu papel. A ação governamental tem existido em governos anteriores, sim, não sou de tá jogando pedra; no governo atual, porém o cidadão tem que cumprir mais o seu papel. [...] O cidadão tem que acordar.
“Sr. Arroz com feijão misturado, costelinha e uns três piquizim pra roer”,Agrônomo do SENAR.
Conforme apresenta Maluf (2003. p.12) “as políticas de Segurança Alimentar e
Nutricional devem trabalhar a necessidade de dar acesso aos alimentos para os grupos
inseguros, atendendo as dimensões da quantidade, qualidade e regularidade no consumo de
alimentos”. Assim, para o autor o consumo alimentar carece de ser realizado dignamente, de
forma a assegurar que as pessoas possam se alimentar com cidadania, havendo ainda
113
possibilidades prospectivas com o “empoderamento” da comunidade.
As idéias apresentadas pelo referido autor convergem com as concepções narradas
pelos técnicos do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural – SENAR, à medida que
expressam como indispensável a ação governamental que atue para o fomento da autonomia
dos munícipes de Guaribas – PI, discriminando e valorizando, sobretudo suas potencialidades
locais.
4.1 O PNAE como indutor de segurança alimentar e nutricional
Uma vez que o Estado tem como dever proporcionar a educação básica para
todos, e também o de combater a miséria, foram elaboradas políticas públicas que atendam
demandas tanto na área da educação quanto na área social. Dentre estas políticas, o PNAE,
cujas diretrizes tem o caráter de envolver todos os entes federados, é essencial e evidencia
essa política social como Programa sob a responsabilidade das três esferas governamentais:
federal, estadual e municipal, cujos objetivos são voltados para contribuir com a (o):
promoção do crescimento e desenvolvimento do aluno; processo ensino-aprendizagem/
rendimento escolar; formação de hábitos alimentares saudáveis; dinamização da economia
local e geração de trabalho e renda.
O papel da merenda escolar assume uma abrangência particular em localidades
em que as condições de insegurança alimentar é presente. Em Guaribas – PI, o papel da
merenda é narrado pelos técnicos do Conselho de Alimentação Escolar como fundamental
para a promoção da segurança dos alunos beneficiados, mas também como potencialidade de
fomentar aprendizados.
O papel da merenda escolar, ela tem um papel muito amplo, dentro da segurança alimentar no Brasil. Historicamente, a merenda escolar iniciou-se pela carência que existia na alimentação da população brasileira. E hoje ela ainda tá tentando suprir essas carências, mesmo que reduzidas, porque são só 15% da alimentação diária do aluno, mas ela tenta adequar essas, a carência que existe quanto aos nutrientes, aos minerais, que a população não tem. Então, essa merenda, ela tenta possibilitar esse aluno a ingerir esses nutrientes adequados, feito um cardápio por uma nutricionista.
Sra. Baião de dois com bastante queijo, Nutricionista do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Muitos alunos vão pra escola, e a gente não tem como negar isso, por conta dessa merenda, e é até um suporte pra segurar esses alunos, que a gente sabe da
114
deficiência alimentar dessas crianças e até de adultos na escola. Isso é até, digamos assim, um instrumento de aprendizagem nesse caso, no nosso caso, no Nordeste e de Guaribas principalmente. Essa merenda é fundamental.
Sra. Pirão de Galinha Caipira,Coordenadora do Conselho de Alimentação Escolar do Estado do Piauí.
Em se tratando da contribuição para a promoção do crescimento e
desenvolvimento das crianças que pode ser prestada pelo PNAE, como referendado pelo
CONSEA (2004, p. 60), alimentação e educação nas escolas seriam “processos extremamente
integrados e a promoção da saúde se dá tanto pela difusão das informações quanto pelas
práticas disseminadas nos diferentes espaços escolares”.
De outra forma, a má-nutrição na educação acarreta, sempre, o risco maior de
fracasso escolar, comprometendo o rendimento escolar. Ademais, a formação de hábitos
alimentares saudáveis é condição essencial para transformar creches e escolas em espaços
efetivamente privilegiados para ampliar o acesso à informação sobre saúde e nutrição, pois se
conseguimos mudar os hábitos alimentares o mais cedo possível, é mais fácil termos uma
população adulta sadia, reduzindo os custos elevados do tão oneroso Sistema Único de Saúde
(SUS) e prevenindo problemas sérios na saúde pública.
A formação de hábitos alimentares também é relevante para a construção de
habilidades e competências fundamentais. Dentre elas, autonomia e capacidade decisória. São
fatores decisivos para que o ser humano mantenha relacionamentos afáveis em grupo,
administrando conflitos, desenvolvendo raciocínio lógico, criticidade e criatividade. São
pressupostos discutidos e consolidados pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e
Nutricional (LOSAN), que instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(SISAN).
O Consea, a nível nacional, é subordinado à presidência da república, ou seja, ele é uma instância do gabinete da presidência; a nível estadual, é uma instância do gabinete governador; a nível municipal, uma instância do gabinete do prefeito; ou seja, é uma política que vai além, perpassa, a política de governo. Mas eu queria ressaltar uma coisa, um feito muito grande nos últimos anos, foi a aprovação da LOSAN – lei orgânica de segurança alimentar; em setembro do ano de 2006, foi aprovada essa lei, sancionada pelo presidente Lula, onde a política de segurança alimentar deixaria de ser uma política de governo e passaria a ser uma política de estado, ou seja, a partir daí, todo cidadão brasileiro tem direito de comer e comer bem, em qualidade, quantidade, regularidade. Porque até então não se pensava isso, as políticas eram mais política de governo, políticas setoriais.
Sr. Arroz de cuxá maranhense, presidente do CONSEA – PI.
4.2 Necessidades de políticas públicas mais eficazes
115
O governo Lula colocou o tema do combate à fome nas agendas nacional e
mundial e deflagrou de uma ampla rede de solidariedade para promover o desenvolvimento
sustentável de regiões e populações à margem da economia (Silva, 2003). Não se trata,
portanto, de uma operação assistencial de grandes proporções destinada a gerar uma
dependência tão grande quanto. A solidariedade só se resume a caridade quando desprovida
de articulação com Políticas Públicas estruturais. Em contrapartida, políticas públicas sem
adesão social, não raro, patinam em burocracia, corrupção e resultados medíocres. Ao
contrário, a combinação entre as duas pontas permite habilitar o indivíduo, a família, a
comunidade e a região a serem protagonistas de sua própria emancipação em pareceria com o
governo.
O aludido autor relata que as políticas sociais efetuadas até então sofreram alguns
embates quando aos seus respectivos processos de efetuação, que, por vezes configuraram-se
como dificuldades ou até mesmo impedimentos operacionais.
Esse é outro diferencial importante embutido na nova arquitetura das políticas sociais: o seu componente de participação. O Brasil tem fome de comida; tem fome de educação; de terra; e de empregos. Mas tem fome primal superior a todas elas: a fome de direitos republicanos de participação. Essa é a mãe de todas as fomes. A ausência de voz organizada gerou um déficit estrutural de democracia na sociedade brasileira que o Fome Zero encara como um obstáculo a ser atacado de imediato, por meio dos comitês gestores. (Silva, 2003, p.49 -50)
Para ser promovida alguma mudança significativa e efetiva para com a realidade
dos indivíduos em situação de fome Silva (2003) aponta para a necessidade de atacar a
herança das desigualdades herdadas e, simultaneamente, construir os marcos reguladores de
uma futura retomada do crescimento com justiça social. Com isso, os comitês gestores surgem
como parceiros em potencial, por constituírem a ramificação local dessa estrutura retificadora.
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CONSEA, é sua contrapartida
federal. Cabe-lhe, entre outras atribuições propor e pronunciar-se sobre diretrizes da Política
Nacional de Segurança Alimentar de responsabilidade do MESA e demais órgãos executores
dessa política, bem como mobilizar a sociedade civil, e estimular a sua participação em
conselhos estaduais e municipais.
Destarte, vale ressaltar que as instâncias acima operacionalizam o processo de
ação e transformação proposto pelo programa Fome Zero. Muito embora, indubitavelmente,
os propósitos estabelecidos pelo programa só ganharam força quando estiverem envolvidos no
âmbito de um planejamento estratégico que lhes dê coerência macroeconômica dentro de um
116
novo modelo de desenvolvimento nacional (Silva, 2003).
Não obstante, Dagnino et al (2002) em seu estudo na qual faz uma análise acerca
da situação atual de funcionamento dos conselhos gestores de políticas públicas nas áreas de
saúde, criança e adolescente e assistência social, nos níveis municipal, estadual e federal,
chegou à conclusão de que os conselhos apresentam, no cenário atual, uma baixa capacidade
propositiva, exercendo um reduzido poder de influência sobre o processo de definição das
políticas públicas.
A autora supracitada, ainda relata que a institucionalização da participação
popular nas políticas públicas foi um grande avanço, uma conquista importante dos setores
democráticos à qual é preciso dar consequência e efetividade na prática concreta. Se os
desafios, como vimos, são imensos, grande tem sido também a criatividade na busca de
soluções. “Apenas o tempo será capaz de dizer se esses esforços serão suficientes, ou se os
constrangimentos e as limitações atuais inviabilizarão os conselhos como um dos campos de
luta dos setores progressistas pela ampliação e aprofundamento da democracia no Brasil”
(Dagnino et al, 2002, p.100).
Silva (2003) reforça essa lógica mais à frente em seu artigo aduzindo que
justamente o que faltou às políticas sociais anteriores praticadas no país, foi acreditar que o
mercado, por si só, funcionaria como amálgama potencializador das iniciativas contra a
exclusão.
Tudo que se conseguiu, com tímidas exceções, foi o ‘atendimento à pobreza’, que constitui a melhor forma de perpetuá-la. (...) com recursos públicos, com boa intenção, com acertos localizados, mas sem impactos transformadores. Ações dispersas e fragmentadas, por mais focalizadas que sejam não fazem girar a roda da inclusão. (Silva, 2003, p.51)
Arretche (2000) discorre sobre o fato de que no Brasil existem muitos trabalhos
sobre experiências descentralizadas de gestão de programas sociais. Mas análises sobre o
processo global de reforma das políticas sociais, que identifiquem a substituição de um
modelo centralizado por um modelo descentralizado, são raras. Isto é, “poucos são os estudos
que buscam avaliar a natureza das mudanças ocorridas – ou em curso – no âmbito nacional,
de modo que possamos falar de um possível (re)desenho institucional de nosso Sistema de
Proteção Social” (p.23).
As idéias apresentadas pelos três últimos autores acima destacam a importância de
redefinições quanto aos modelos de políticas sociais presentes nas políticas públicas
117
brasileiras. Contudo, apesar de ocorrerem correspondência entra as idéias dos autores acima,
destaca-se como indispensável uma participação popular mais articulada e ativa, e, sobretudo
homogênea e integrada.
Em suma, é imperioso levar em consideração os espaços institucionais ou grupos
sociais nas quais são veiculadas, desenvolvidas, ou implementadas essas políticas sociais.
Afinal, as ações a serem efetuadas devem ser permeadas por novos aprendizados, novos
modos de agir e de enfrentamento. O espaço familiar de indivíduos em situação de
insegurança alimentar encontra-se envolvido por algumas reconfigurações estruturais – como
já foi apresentado – em seu sistema interacional, que, indispensavelmente requer também uma
assistência em meio que sejam instigadas ações mais integradoras e mobilizadoras, quem dirá
educativas e transformadoras.
Com relação ao governo, tem sido feito um grande investimento a longo prazo através, eu acho que uma coisa que vai dar uma resposta futura, chama-se FUNDEF, fundo da educação, O governo está investindo na educação, tá sendo investido no jovem rural. Hoje o jovem rural além de uma escola, tem um professor mais bem pago, tem ônibus passando na porta da casa dele. Então esse jovem eu acredito que vai ser a resposta de amanhã. Amanhã, no campo, vai ter nele como uma grande resposta.
Sr. Galinha Caipira, Médico-Veterinário do SENAR.
Especificamente sobre a dinamização da economia local, as metas a serem
alcançadas incluem o desenvolvimento da agricultura local. Este, por sua vez, exige o
incentivo ao pequeno produtor, visando à geração de trabalho e renda, como recurso
estratégico para amenizar a insegurança alimentar e nutricional. Para tanto, os gerentes do
Programa nacional de Alimentação Escolar têm mantido contatos sistemáticos com o
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a Companhia Nacional de
Abastecimento (Conab), para encontrar meios de aperfeiçoar o Programa e aperfeiçoar os
resultados.
Todas estas são medidas que possibilitam a elevação do Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), indicador empregado para mensurar a qualidade de vida e o
desenvolvimento dos povos, em nível mundial, por meio de três parâmetros: longevidade,
nível de educação e oportunidade de acesso a recursos. Também permitem a apreensão de
novos conhecimentos e criam igualdade de condições nas disputas comerciais.
Os relatos dos sujeitos da pesquisa – pais de crianças matriculadas em escolas do
município de Guaribas – apresentaram indicativos de uma relativização da situação de fome;
ou seja, o que se come no espaço familiar não corresponde ao que é indicado pelas ações
118
pedagógicas das escolas. Ou, em outras palavras, muitas das práticas alimentares vivenciadas
por estes grupos sociais que vivem da agricultura de subsistência e de práticas de caça no
sertão piauiense, não são vistas com “bons olhos”. E a representação daqueles que estão em
situação de fome ganha uma nova configuração: antes da inserção de políticas sociais do
governo e previdenciárias, era relacionada à privação de alimentos por período prolongado;
hoje está vinculada ao consumo de gêneros alimentícios que não passaram pelo tratamento da
indústria, como as carnes de caça e o milho ralado, por exemplo.
Bom, os ganho dependendo da colheita que a gente faz, que a gente colhe. O que faz você ganhar é dependendo do que você produziu, do que for produzido. Ôh rapaz, ia ficar muito feliz. Feliz, sabe porque, só em eu plantando, ter a colheita, vender e tendo meu filho na escola, já é um futuro, aquilo dali vai ter um grande espaço. Porque hoje as coisas é o seguinte: pra quem tem uma boa cultura o mercado é difícil, e quem num tem. Mais distante fica. [...] Se você pudesse alcançar uma coisa mais melhor quem é que num ficava feliz?! Uma merenda de boa qualidade, mais adequada seria bom, saber as comida de lá é a gente que plantou, que colheu, eu ia ficar cheio de orgulho! Sr. Frango com arroz, feijão, salada, batata-frita de um lado e uma farofa no outro,
40 anos, agricultor,pai de alunos da escola: 4 filhos.
Sentia melhor porque se era de eu dar esses passos pra frente, já tava ficando aqui mesmo, e aí consumia aqui, era bem melhor. Mas é difícil sabe... será que na escola eles iam querem comer como pobre come? Num sei não! Nós às vez come carne de caça, mandioca braba do mato. Umas comida selvagem. São comida de quem passa fome. Por aqui, passar fome é comer coisa do mato. Antigamente quando eu era menino, numa tinha essas coisa. Se sentia bem, seria bom (sobre produzir para a merenda escolar). Porque o que eu tava produzindo eles tava comendo na escola. Iam dar valor pras comida do lavrador que planta, caça no mato, e come. Também tem a rapadura que eles tem também na escola.
Sr. Macarrão com tomate, 35 anos, agricultor, pai de alunos da escola: 3 filhos.
Como é observado nas falas dos pais (agricultores) de alunos das escolas de
Guaribas – PI, ao supor a inserção de alimentos produzidos e cultivados na agricultura
familiar, emergem sentimentos de valorização – de si próprios e de seus ofícios – e de orgulho
pelo fato de ocorrer a convergência com os alimentos produzidos pelo trabalho do pai de
família. Destarte, ressalta-se as concepções de que o ato de passar fome é representado pelo
ato comer comida do mato, e de que na escola não se come de maneira semelhante ao espaço
familiar.
4.3 A merenda educadora
De acordo com Fonseca (1988) a merenda escolar em seu período de
119
centralização colecionava uma série de críticas quanto à sua funcionalidade e efetividade.
Dentre elas, era comum que os alimentos ali destinados chegavam ao seu fim com atraso, em
excesso ou até faltavam. Com isso, causava transtornos ao fornecimento da merenda, quando
muitos alimentos chegavam em condições desfavoráveis ao consumo (pacotes rasgados,
danificados, com data de validade vencida).
Vale destacar que devido à pouca quantidade de fornecedores através da aludida
centralização da distribuição da merenda escolar, viagens longas pelas estradas brasileiras
eram efetuadas, e por conseguinte, aumentavam os custos dos respectivos gêneros
alimentícios (FONSECA, 1988). Não obstante, elevados índices de rejeição ainda eram
constatados, pelo fato desses não serem correspondentes aos hábitos alimentares regionais e
locais, em especial por não respeitar a cultura alimentar infantil.
Muito embora, para que programas e políticas sociais que se utilizam da escola
como mediador institucional de sua práxis, tenham êxito se faz necessário que se conquiste a
adesão das crianças pela percepção destas de que a vivência que ali têm é original,
insubstituível e enriquecedora (CAVALIERE, 2002). Afinal, a merenda escolar possui um
caráter curricular em meio ao espaço educacional. Através dela, é possível promover
aprendizados indispensáveis ao desenvolvimento infantil e juvenil, bem como – com o mesmo
potencial – ferir determinados direitos educacionais e legítimos aos escolares, sem falar do
direito humano básico à alimentação.
A escola vem sendo concebida como espaço de formação para a cidadania, o
pleno desenvolvimento cognitivo, afetivo e social do indivíduo, intensificando-se, assim a
preocupação em se definir práticas pedagógicas que favoreçam este desenvolvimento. Sobre
esta realidade versa os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que a educação deve pautar
– se nos princípios da dignidade da pessoa, da igualdade de direitos, da participação e co-
responsabilidade pela vida social.
É imperioso analisar, ao tempo em que se é promovida esta discussão, as diversas
representações que a sociedade faz junto à merenda escolar. Parte substancial destas
perspectivas envolve o discurso referente
[...] à distribuição de extraordinários poderes a ela. Referem-se principalmente à sua mistificação, ingenuamente apresentada como antídoto contra o fracasso escolar e a desnutrição. Como ela não soluciona nem pode solucionar o primeiro problema e muito menos o segundo, muitos de sua validade. Não tendo poderes mágicos e não sendo panacéia para os problemas sociais, para nada serve? (FONSECA, 1988, p. 107).
120
Não obstante, a merenda escolar possui algumas finalidades, dentre as quais
podem ser elencadas a social ou assistencial, a biológica e a educativa. Na primeira finalidade
– social ou assistencial - a merenda escolar assume um caráter paliativo, pois pode apenas
aliviar, atenuar ou remediar o sofrimento infantil, e, por conseguinte, não apresenta eficácia
duradoura, mas sim momentânea. Essa perspectiva em torno da merenda faz-se presente
principalmente pela “[...] precária situação sócio-econômica em que vive a maior parte da
população brasileira, a escola é chamada a cumprir, além da função pedagógica, também a
função assistencial para amenizar o sofrimento infantil.” (FONSECA, 1988, p. 108).
Outra finalidade aduzida pela merenda escolar diz respeito á sua função biológica,
que é o de saciar a fome do aluno durante o tempo em que ele está na escola. Esse objetivo da
merenda não torna a escola um “restaurante”, mas mostra que as cozinhas e refeitórios das
escolas podem ser mais um espaço escolar onde se é possível ter ações pedagógicas. Enquanto
ser com necessidades biológicas, o aluno se sente compelido a ingerir alimentos após algum
período de tempo. Se, no horário em que a criança deveria se alimentar, ela está na escola, é
natural que esta ofereça uma alimentação que satisfaça a necessidade orgânica do aluno, sem
que esta refeição seja vista como paternalismo ou assistencialismo (FONSECA, 1988). Vale
destacar que a presente proposta de pesquisa assume essa função pedagógica junto à merenda
escolar, conforme é exposto nos aludidos pressupostos acima.
O Programa de Merenda Escolar também exerce uma função educativa – lógica
argumentada pelo mesmo autor supracitado – e pode ser utilizado como recurso didático,
sendo adicionado ao currículo da escola. Para tanto, tem a faculdade de ensinar as crianças o
valor dos alimentos, o processo de transformação, de cultivo, a importância na recuperação da
saúde. Destarte, potencialmente com a merenda escolar, pode-se orientar acerca de alimentos
prejudiciais e dar-se início a uma reeducação alimentar.
Destarte, é imperioso observar que Sucupira (1998) destaca as refeições
fornecidas nesses espaços coletivos tem uma dupla vantagem do ponto conforme a ótica
educativa. Uma primeira vantagem está vinculada ao fato de constituir como significativa
ocasião de proporcionar aos alunos o contato com uma variedade maior de alimentos, o que
favorece a incorporação de hábitos alimentares mais saudáveis. Como segunda vantagem, a
autora aduz que é possível fomentar nos educandos a formação de uma atitude de cuidado
com o alimento a ser consumido introduz para a criança a noção de vigilância sanitária. Esta
última entendida como a vigilância das condições ambientais e dos serviços oferecidos à
121
população, ressaltando a questão da consciência da cidadania e incorporando na sua atuação
uma função educativa mais orientadora e conscientizadora do que punitiva.
As referidas discussões aduzidas anteriormente seguem o mesmo raciocínio
defendido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) frente à concepção de segurança
alimentar, ou seja, visar especialmente à prevenção e o controle de doenças crônicas, a
desnutrição e a obesidade. Afinal, sendo fomentadas em salas de aula discussões sobre os
hábitos e práticas alimentares, assim como as estratégias que as famílias sertanejas utilizam
para enfrentar as restrições e dificuldades alimentares por circunstâncias de fome latente ou
cíclica.
Em se tratando de questões relacionadas ao espaço escolar, assumem um caráter
pedagógico todas as ações cotidianas que na escola são fomentadas e planejadas, quer sejam
de maneira explícita, quer de maneira encoberta ou tácita, todas perpassam pelas atividades
curriculares. Compreende-se como currículo, portanto, a forma como as instituições de ensino
organizam os conhecimentos a serem trabalhados pedagogicamente (MOREIRA & SILVA,
2005).
Com isso, a merenda escolar como prática cultural inerente ao cotidiano escolar,
precisa ser concebida segundo as influências e articulações sofridas pelo próprio currículo.
A merenda escolar tem um papel fundamental na escola, porque ela tem que suprir a necessidade energética da criança em 15% do valor total, e em Guaribas especificamente essa merenda, ela tinha que ser um pouquinho maior o percentual porque ela é como se fosse café da manhã pras crianças, muitas e muitas crianças vão pra escola sem tomar café esperando já essa merenda escolar.
Sr. Galinhada, Nutricionista responsável pela merenda escolar em guaribas – PI.
Destarte, vale destacar que o respeito aos hábitos e práticas alimentares que se
discute aqui inclui, inclusive, detalhes aparentemente banais, como a submissão das crianças a
um arbitrário do horário indicado pela escola. Além disso, o PNAE em suas diretrizes vem
estimulando para que as escolas trabalhem na implantação e manutenção de hortas. Estas
podem ser utilizadas não só para a complementação da alimentação escolar mas também para
enriquecer os currículos, como tema transversal, engajando professores de geografia, história,
ciências ou qualquer outra disciplina, para que o alunado visualize as questões nutricionais de
forma mais ampla.
Oferecer alimentação saudável aos escolares é uma forma de cobrar das
prefeituras a contratação de nutricionistas que respondam tecnicamente por este requisito.
Segundo Bezerra (2003, p. 162) “a merenda escolar extrapola tanto o papel de
122
complemento alimentar, como os limites de sua cobertura, determinado pela legislação que o
regulamenta”. Desse modo o autor discorre sobre a merenda escolar e suas práticas
pedagógicas e curriculares relando que é possível gerar “um habitus correspondente que tende
a orientar as disposições práticas relacionadas ao comer na escola, à organização do trabalho
pedagógico e à jornada escolar” (p.213). Pensando assim a potencialidade da merenda escolar
que se direciona o olhar sobre esta nas escolas de Guaribas - PI.
Primeiro tem que partir da administração pública, o incentivo, mas só que é uma coisa muito complicada trabalhar com a população que é carente, e a carência não é em relação à carência financeira, à carência alimentar, é uma população carente de instrução, que é um ponto que a gente tava até conversando muito, por exemplo, em relação a modificar os hábitos alimentares de certas regiões, micro-regiões da cidade de Guaribas em específico, que ali é um processo não só de chegar, colocar o produto e dizer: “Use isso! Você vai ter que comer agora isso e isso”. Não é uma coisa que só compete a eles, é mais um processo de modificação de educação da população, não só em relação à educação alimentar, em relação à educação higiênico-sanitária, a educação moral, é uma série de fatores que não tem como a gente separar, é tudo interligado.
Sr. Galinhada, Nutricionista responsável pela merenda escolar em guaribas – PI.
Conforme a fala do técnico responsável pela merenda escolar de Guaribas- PI, em
especial quando discute sobre o arbitrário que envolve a escolha dos cardápios, narrando ser
tarefa complexa decidir abruptamente quais gêneros devem ser inseridos no cardápio com a
finalidade de modificar hábitos alimentares locais. Acerca disso Bezerra (2002, p. 168)
discute que a merenda, “de maneira implícita e sutil, manifesta-se como uma atividade
discriminatória que reforça a submissão do aluno, limita sua capacidade crítica e desqualifica
sua cidadania”. Assim sendo, a merenda carece de ser pensada nesta localidade como
construto pedagógico, e como tal estar permeada de concepções de valorização e respeito aos
discentes em sua plenitude e identidade cultural.
É justamente com a atenção aos processos educativos que o Programa Nacional de
Alimentação Escolar atua, vislumbrando ações cotidianas no espaço escolar. Ações estas que
primam pela transformação social, sobretudo com olhar atento à conjunção dos aprendizados
sociais, culturais, e históricos, a partir da prática curricular junto à escola, a fim de fomentar
autonomia de seus beneficiários.
Em termos numéricos, a clientela ora atendida pelo PNAE totaliza mais ou menos
37 milhões de pessoas. Isto o transforma num programa amplo, com visibilidade até no
exterior. São crianças de creches e da pré-escola, ensino fundamental, além de estudantes
indígenas e quilombolas.
123
De acordo com dados do CONSEA (2004), o PNAE atinge 97% das escolas
públicas urbanas e este percentual sobe para 98%, na zona rural. No entanto, paradoxalmente,
apesar das discrepâncias regionais ao Norte (N) e Nordeste (NE), as pesquisas apontam o
Sudeste (SE) como a região mais beneficiada. O mesmo em relação ao confronto de áreas
urbanas X rurais, quando o urbano tem primazia.
Finalmente, no caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar, considerando
controle social como a participação da sociedade no acompanhamento da execução da política
pública, de forma organizada, sistemática e individualizada, este é o encargo do mencionado
Conselho de Alimentação Escolar (CAE), como instrumento de participação da sociedade
(quinta diretriz do PNAE). A Medida Provisória No 1979-19, de 2 de julho de 2000, define a
sua composição e suas atribuições.
Em termos de composição, os CAES reúnem representantes do Poder Executivo e
do Legislativo, além de professores, pais e representantes da sociedade civil, como igrejas,
sindicatos, associações de moradores, clubes e organizações não governamentais (ONGs).
Quanto às suas atribuições, como antes mencionado, cabe a eles fiscalizar e analisar as
prestações de contas das entidades executoras.
Tudo isto comprova que qualquer processo social ganha mais qualidade quando
há aproximação entre as instituições. A escola não pode ser vista como autônoma. Quanto
inter-relacionada com as demais instâncias, de qualquer área, como saúde e assistência social,
a comunidade escolar – alunos, professores e pais – tem chances de incrementar segurança
alimentar e nutricional desde a infância, assegurando qualidade de vida condigna à população
brasileira.
Em suma, percebe-se que o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE é
possuidor de potencialidades de desenvolvimento social e promotor da qualidade de vida
frente à situação de fome presente no município de Guaribas - PI. Constatação que é
percebida através de dois aspectos centrais.
O primeiro corresponde ao potencial agrícola do município de Guaribas
relacionado pelos relatos de técnicos do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural – SENAR,
pelos membros do Conselho de Alimentação Escolar do estado e do município, nos quais
apresentam gêneros alimentícios como a carne (de gado, de bode e de galinha), os ovos, o
mel, a mandioca, o feijão, o milho e o leite, que poderiam ser incluídos na merenda escolar.
O segundo aspecto diz respeito às narrativas dos pais de alunos das escolas que
tem como principal renda a agricultura. Estes relatam apresentar dificuldades quanto à venda
124
dos alimentos que produzem na lavoura familiar. Entretanto, caso estas famílias produtoras
tivessem seus alimentos integrados à merenda escolar, além de gerar maiores possibilidades
de trabalho e renda, estimularia o desenvolvimento social do município de Guaribas – PI, e,
por conseguinte, a superação da situação de fome. Ressalta-se, com isso, que não existe
nenhuma experiência concreta de utilização de produtos da agricultura familiar em políticas
públicas como o PNAE, isto é, nenhum gênero alimentício produzido no município de
Guaribas está inserido na merenda das escolas, quer sejam estaduais ou municipais. O
argumento que é utilizado como justificativa por parte dos técnicos responsáveis pela compra
da merenda está relacionado às dificuldades de manejo da merenda, fiscalização insuficiente e
ao racionamento dos poucos recursos financeiros fornecidos para a aquisição dos alimentos.
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou analisar o Programa Nacional de Alimentação Escolar,
por meio da discussão de suas potencialidades apresentadas nas diretrizes que norteiam as
ações dos Conselhos de Alimentação Escolar (CAE) junto às escolas municipais e estaduais
do município de Guaribas – PI.
Ao se discutir as práticas alimentares da população do município situando sua
construção sócio-histórico-cultural, constatou-se transformações no universo das práticas
alimentares, em especial aquelas decorrentes da inserção de políticas sociais de transferência
de renda implantados pelo governo federal, bem como as de previdência social.
No âmbito das práticas alimentares do município de Guaribas – PI, a chegada de
novos gêneros alimentícios, ou até alimentos industrializados aconteceu com a melhora da
renda e do acesso à cidade – antes praticamente inviável, realizado apenas com animal – ainda
dificultado por estradas de chão, em precárias condições de trafegabilidade. Ressalta-se que o
escoamento da produção agrícola local, constituída basicamente de feijão, milho, mandioca e
fava, assim como o deslocamento da população para outras regiões e o fluxo de mercadorias e
serviços necessários ao abastecimento da população, ainda hoje é dificultado por estradas mal
cuidadas
Verificou-se que a fava representa para Guaribas - PI um alimento identificador
de seu município. Como já apontado no decorrer desta dissertação, na região Sudoeste do
Piauí, apenas este município produz a fava, e apesar das dificuldades quanto à sua colheita e
produção, muitos agricultores residentes da localidade plantam e colhem fava com a
finalidade de venda para outros municípios. Trata-se, com isso, de elemento de distinção
social para aqueles munícipes.
Além disso, a meta de mapear o universo da produção agrícola familiar do
município, com a identificação dos alimentos que podem integrar os cardápios da merenda
escolar, permite afirmar que é plenamente viável a utilização dos gêneros alimentícios
advindos da agricultura e da pecuária familiar. Entretanto, por meio dos relatos dos moradores
antigos e dos pais (agricultores) de crianças matriculadas em escolares do município de
126
Guaribas – PI representaram que o que se come no espaço familiar não corresponde ao que é
apresentado na merenda das escolas. Por conta disso, foi atribuído um caráter simbólico a
determinadas comidas e alimentos, como as carnes de caça – tatu, cotia, avoantes, etc. – como
sendo “comidas de pobre”, e devido a essa atribuição, não serem passíveis de inserção junto
ao cardápio da merenda escolar.
Desta maneira, constatou-se, por meio dessa pesquisa, que as formas de utilização
do PNAE – política educacional – podem constituir potencial elemento de estímulo à
agricultura familiar local e superação da fome, podendo garantir segurança alimentar. No
entanto, isso não ocorre na operacionalização daquele Programa. Logo, face à
intersetorialidade inerente ao PNAE, visualizada tanto no âmbito de sua gestão, quanto, e,
sobretudo, na disseminação de suas ações em diversas instâncias governamentais e não
governamentais, nas esferas federal, estadual e municipal, é de se esperar que a avaliação
proposta seja cautelosa quanto a posicionamentos mais amplos, que impliquem em
generalizações.
Destaca-se ainda que a forma como a dieta é avaliada pelos moradores do
município de Guaribas - PI, expressa uma identidade social alimentar, inserida nas condições
de vida e trabalho, e do corpo socialmente posicionado, que paradoxalmente favorecem ou
refutam a condição de ser pobre.
Ao mapear o universo da produção agrícola familiar do município, foram
identificados os alimentos como a carne de gado, de bode e de galinha, os ovos, o mel, a
mandioca, o feijão, o milho e o leite que podem integrar os cardápios da merenda escolar. Por
conseguinte, estaria explícito o potencial do programa diante do estímulo à agricultura
familiar local e superação de fome/ garantia de segurança alimentar na localidade, já que as
famílias de Guaribas enfrentam dificuldades quanto à venda de suas produções agrícolas,
tendo, por vezes, que diminuir o valor do produto para obter alguma forma de retorno
financeiro.
Não obstante, alguns entraves são apresentados por parte daqueles técnicos
responsáveis pela compra da merenda das escolas guaribenses, relatando que existem
dificuldades operacionais quanto ao fracionamento dos recursos financeiros destinado à
merenda, bem como diante do manejo dos alimentos industrializados, com a justificativa de
que seriam mais práticos para a compra e manuseio dos produtos.
Com a mesma veemência, algumas assertivas provenientes deste estudo podem
subsidiar outros estudos e pesquisas destes derivados. Afinal, a pulverização das atividades do
127
PNAE dificulta a visibilidade, o acompanhamento e o controle, e, por conseguinte, a análise
do programa em esfera nacional, o que significa reconhecer que um dos maiores desafios está
na dificuldade em conhecer e articular conjunturas e estruturas que condicionam a sua
visibilidade e os impactos sociais gerados.
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133
APÊNDICES
134
APÊNDICE A – Roteiro de Entrevista com representantes do Conselho de Alimentação
Escolar da Secretaria Estadual de Educação do Piauí – SEDUC
• O papel da merenda escolar.
• Em que se baseiam os critérios utilizados para escolher os gêneros alimentícios/ o cardápio da merenda escolar? Os alunos são consultados?
• Como ocorre a distribuição da merenda escolar em termos logísticos?
• Relação entre o PNAE e a Segurança Alimentar/ e a merenda como estímulo
agricultura familiar.
• A regionalização dos cardápios. A adequação à cultura alimentar.
135
APÊNDICE B – Roteiro de Entrevista com representantes (Agrônomos e Médicos
Veterinários) do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural – SENAR
• Descreva um pouco sobre as características/ especificidades da agricultura/ pecuária do Piauí.
• Quais são as principais fontes de produção do sertão do Piauí quanto à agricultura e à
pecuária?
• O que mais se produz e se consome através da agricultura familiar piauiense?
• Quais são as potencialidades agrícolas e pecuárias da região e município de Guaribas – PI em situação climática normal?
• Em períodos de seca/ infernos irregulares como se caracteriza a ação governamental
em relação à agricultura familiar?
136
APÊNDICE C – Roteiro de Entrevista com representante do Conselho Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA
• Dados acerca do CONSEA – PI (criação, formação, sistemática de funcionamento).
• Como o CONSEA vê a situação de fome e alimento no Piauí?
• Estratégias/ ações prioritárias do CONSEA para lidar com a insegurança alimentar.
• Quais as ações do CONSEA que envolvem/ são direcionadas para o PNAE?
• Propostas e ações do CONSEA – PI frente à agricultura familiar.
137
APÊNDICE D – Roteiro de Entrevista com Moradores mais antigos do município de
Guaribas – PI
• O que você comia na sua infância e juventude?
• O que mudou na alimentação daquele tempo para a de hoje?
• Qual sua opinião/o que você acha dessas mudanças?
138
APÊNDICE E – Roteiro de Entrevista com Agricultores Pais de alunos das escolas do
município de Guaribas – PI
• Quais são os alimentos produzidos em sua lavoura/ roça / plantação (espaço de domínio
familiar);
• Quando produz além do que consome, o que faz com o excesso?
• Você sabe quais alimentos são consumidos por seu filho na escola?
• Para você como seria (se sente, que ganhos teria plantar e colher alimentos que serviriam
para a merenda escolar dos alunos de Guaribas?
• Que alimentos você/senhor/senhora consumia quando era criança?
139
APÊNDICE F – Fotos de Guaribas - PI
Visão panorâmica do município de Guaribas – PI.
140
Avenida principal da cidade.
Escola municipal, localizada na zona urbana da cidade.
Rua da zona urbana de Guaribas – PI.
141
O “antigo” e o “moderno”: mulher transportando máquina de lavar.
142
Capela da cidade de Guaribas – PI.
Animais criados no perímetro urbano de Guaribas – PI.
Zona rural de Guaribas – PI.