A menina e a bomba na praça

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1 A menina e a bomba na praça - conto – 2012 Camila Appel

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A menina e a bomba na praça

- conto – 2012

Camila Appel

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Desenha um smile-face na marca que sua respiração deixa no vidro de trás do carro. Chove lá fora. Limpa a umidade do vidro com as mãos, transparecendo um menino curvado, encarando o lado de dentro. Deve ter sua idade, ela pensa. O sorriso não retribuído, o menino chora. Ou será que chove demais? Ele protege os olhos com as duas mãos, espiando o banco traseiro. A respiração dele marcada pelo frio. Ela aproxima o rosto e vê a vontade do menino em estar ali, quente dentro do carro. Na imaginação de criança, trocaria de lugar com ele, para ter a liberdade de pegar resfriado, e a opção de ser triste. Toma o susto de uma boa ideia, lembrando das palavras da professora de redação: coloque-se no lugar do outro, só assim se será uma grande escritora. É o que essa menina quer. O sinal abre, ela se despede. Ele não. Mas acompanha o carro com os olhos até a curva da primeira esquina os separar. Essa menina chega em casa feliz. Tem uma ideia tão boa que não vê a hora de apoia-la no travesseiro, transforma-la em um plano até pegar no sono, meio sem querer. Acorda para roubar um carvão da churrasqueira do pai. Na frente do espelho, estica a pele imitando uma moça de cinema, e dá vida a rugas fantasmas com traços pretos. Elas existem. Abre a palma das mãos cobertas de carvão e vai pintando o corpo com o dedo indicador. Ela está quase pronta, e se prepara para o toque final. Pensa que pode ser exagero... mas e daí? Escova os dentes com o pó. Espia os pais inertes na televisão. Vai saindo nas pontas dos pés, como um assaltante de desenho animado, sorriso de gato. Abre a porta mas estaciona quando vê seu reflexo no espelho. Ops, ainda não está convincente. Volta para o quarto contrariada, só não bate os pés para não chamar atenção. Encontra roupas antigas, calça acima da canela, blusa rasgada. É essa. Ela morde a camiseta, confiando no dente canino. Imita seu cachorro, chacoalha a cabeça, rosna. O tecido sede. Buracos, para ela perfeitos, mostram agora pedaços de pele papel. O reflexo atesta que ela está pronta. E lá vai o sorriso de gato pela porta da entrada. Corre para o farol. Um farol. Não tem ninguém. Vai

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até outro farol, ninguém. Cadê todo mundo? Para na esquina olhando as cores mudarem, vermelho, verde, amarelo. Quantos segundos demora para chegar cada cor? Os carros param, algumas pessoas a olham. Ela conta carros. Quando chegar no 20, ela vai se aproximar. O vigésimo carro para, no vidro fechado ela estende a mão, palma para cima e olhos para baixo. A mulher nega com a cabeça e a menina bate o pé. Vai com raiva ate o próximo carro, mão estendida. Outro não com a cabeça. Agora essa menina está indignada. Vai até o próximo de braços cruzados e bico na cara. Um homem já com o vidro aberto, é pego de surpresa e passa a nota. Essa menina fica tão feliz que beija o homem no rosto. Ele limpa e acelera. Ela não se importa. É a primeira vez que recebe dinheiro de um estranho. Já cansada do farol e com o objetivo alcançado, essa menina caminha para encontrar o menino, quer mostrar o que conseguiu. Dá de cara com uma praça, bem familiar. Sua mãe costuma vir com ela na doceria da esquina. Ela nem precisa dizer o que quer, a mãe sempre sabe. Entra estalando a palma na frente do doce preferido. Aquele cumpridinho, macio por dentro, recheado de delicadeza, coberto com crosta de chocolate gelada, gotas cristalizadas. Lá está ela, enfileirada na vitrine: a bomba de chocolate. A menina aponta, balançando a nota no dedo. Dá pulinhos e acha que chama atenção pelo charme. Mas não é por isso. Um jogo de olhares dá a volta no balcão. As mães se comunicam, levantam a sobrancelha em desaprovação, encaram o doceiro. Ele sabe o que fazer. A menina ainda pula. Estende a nota. O doceiro, aquele mesmo que ela já conhece, que normalmente sorri e faz cócegas, vai em direção a sua mão, passa pela nota e agarra o mini-pulso. Agora essa menina está de quatro no chão. O joelho sangrando, uma nota entre os dedos, e vingança em qualquer lugar. Levanta com o orgulho ferido e espreita a doceria de longe. Uma senhora caminha da vitrine até o banco de madeira, com os colares balançando entre peitos apertados. Estende ao pequeno filho um doce, bomba de chocolate sobre prato de porcelana florida. Essa menina é acostumada a não ouvir não, muito menos aceitar. E quando pisca de novo, já está escondida atrás de uma árvore do outro lado da praça, esbaforida e tremendo, segurando uma nota toda suja do chocolate da bomba que amassa na palma da mão. Vai recuperando o ar, quando vê, se aproximando, aquele menino da chuva. Ele a observa, pensando ver um ser estranho. Inclina para olha-

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la de perto e dá um bote segurando os dois braços da menina. Pega a nota entre os dedos dela, mas ela não larga. O empurrão a faz rodar até o cimento, um chute a faz berrar, o chacoalhar soluçar, mas a nota ela não larga. Alguém grita de longe: deixa a menina em paz. Sim, deixo sim senhor. Ela o vê desaparecer entre carros. E mesmo sem dentes, ela sorri, ao pensar que pelo menos tem uma boa história para contar.