A Melancolia, A Narrativa Melancólica e Sua Abdução Pela Mídia

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Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 22, dezembro, 2013 A melancolia, a narrativa melancólica e sua abdução pela mídia sob os auspícios do discurso capitalista Resumo Pretendemos, partindo da caracterização estrutural da melancolia em Freud, La- can e seus leitores, apontar os ecos estilísticos da mania na narrativa melancólica de Louis-Ferdinand Céline. Para tal, confrontamos o desespero degradante em Céline, com a forma shandiana assumida pelo Machado maduro, onde a ficção melancólica produz, paradoxalmente, um saber/satisfazer-se com a vida. Na se- quência, examinamos os efeitos melancolizantes articulados à invenção do signi- ficante depressão, abduzido pelo discurso da ciência e difundido pela mídia, sob os auspícios do discurso do capitalista, o que nos confronta com uma ideologia da depressão, antecipada pela melancolia poética dos Paraísos artificiais. Tal ilusão de sociedade sem mal-estar, quando cooptada pela biopolítica, seria capaz de agu- çar certas tendências narcotizantes no laço social, que vão da toxicomania medi- camentosa, compatível com a sociedade de consumo, até o apetite desagregador pelas drogas ilícitas. Palavras-chave: Melancolia; narrativa melancólica; consumo; discurso do capi- talista; mídia Resumen Pretendemos, partiendo de la caracterización estructural de la melancolía en Freud, Lacan y sus lectores, apuntar los ecos estilísticos de la manía en la narrativa melancólica de Louis-Ferdinand Céline.Para tanto, se ha confrontado el desespero degradante en Céline, con la forma shandiana asumida por un Machado maduro, donde la ficción melancólica produce, paradojalmente, un saber/satisfacerse con la vida. En la secuencia, examinamos los efectos melancólicos articulados a la inven- ción del significante depresión, abducido por el discurso de la ciencia y difundido por la media, so los auspicios del discurso del capitalista. Lo que nos confronta con una ideología de la depresión, adelantada por la melancolía poética de los Paraísos artificiales. Tal ilusión de sociedad sin malestar, cuando cooptada por la biopolítica, sería capaz de aguzar ciertas tendencias narcotizantes en el entorno social, que van desde la toxicomanía medicamentosa, compatible con la sociedad de consumo, hasta el apetito desagregado por las drogas ilícitas. Palabras-clave: Melancolía; narrativa melancólica; consumo; discurso del capi- talista; media. Ernesto Söhnle¹ ¹ Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Psicanalista. E-mail: [email protected]

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  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 22, dezembro, 2013

    A melancolia, a narrativa melanclica e sua abduo pela mdia sob os auspcios

    do discurso capitalista

    Resumo

    Pretendemos, partindo da caracterizao estrutural da melancolia em Freud, La-can e seus leitores, apontar os ecos estilsticos da mania na narrativa melanclica de Louis-Ferdinand Cline. Para tal, confrontamos o desespero degradante em Cline, com a forma shandiana assumida pelo Machado maduro, onde a fico melanclica produz, paradoxalmente, um saber/satisfazer-se com a vida. Na se-quncia, examinamos os efeitos melancolizantes articulados inveno do signi-ficante depresso, abduzido pelo discurso da cincia e difundido pela mdia, sob os auspcios do discurso do capitalista, o que nos confronta com uma ideologia da depresso, antecipada pela melancolia potica dos Parasos artificiais. Tal iluso de sociedade sem mal-estar, quando cooptada pela biopoltica, seria capaz de agu-ar certas tendncias narcotizantes no lao social, que vo da toxicomania medi-camentosa, compatvel com a sociedade de consumo, at o apetite desagregador pelas drogas ilcitas.

    Palavras-chave: Melancolia; narrativa melanclica; consumo; discurso do capi-talista; mdia

    Resumen

    Pretendemos, partiendo de la caracterizacin estructural de la melancola en Freud, Lacan y sus lectores, apuntar los ecos estilsticos de la mana en la narrativa melanclica de Louis-Ferdinand Cline.Para tanto, se ha confrontado el desespero degradante en Cline, con la forma shandiana asumida por un Machado maduro, donde la ficcin melanclica produce, paradojalmente, un saber/satisfacerse con la vida. En la secuencia, examinamos los efectos melanclicos articulados a la inven-cin del significante depresin, abducido por el discurso de la ciencia y difundido por la media, so los auspicios del discurso del capitalista. Lo que nos confronta con una ideologa de la depresin, adelantada por la melancola potica de los Parasos artificiales. Tal ilusin de sociedad sin malestar, cuando cooptada por la biopoltica, sera capaz de aguzar ciertas tendencias narcotizantes en el entorno social, que van desde la toxicomana medicamentosa, compatible con la sociedad de consumo, hasta el apetito desagregado por las drogas ilcitas.

    Palabras-clave: Melancola; narrativa melanclica; consumo; discurso del capi-talista; media.

    Ernesto Shnle

    Doutor em Educao pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Psicanalista.

    E-mail: [email protected]

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    Abstratc

    We intend, based on the structural characterization of melancholia in Freud, Lacan and their readers, pointing out the stylistic echoes of mania in melan-cholic narrative of Louis - Ferdinand Cline. We have confronted despair degrading in Cline to the shandiana shape assumed by a mature Ma-chado, where the melancholic fiction produces, paradoxically, a knowledge/ satisfaction with life. Further, we have examined the melancholically effects articulated to the invention of the significant depression, abducted by the discourse of science and diffused by the media under the auspices of the capitalist discourse. This has confronted us with an ideology of depression, anticipated by the poetic melancholy of artificial Paradises. Such illusion of society without uneasiness, when co-opted by biopolitics, would be able to sharpen certain narcotic trends in the social bond, ranging from drug addic-tion, compatible with the consumer society, disaggregating up an appetite by illicit drugs.

    Keywords: Melancholy; melancholic narrative; consumption; discourses of the capitalist; media.

    Melancolia, narrativa melanclica e gaio issaber

    Preliminarmente gostaramos de lembrar que o que a psicanlise cha-ma de discurso encontra eco tambm na tradio literria ps-Petrogrado (Formalismo russo) e estruturalista, pois ali se consagra o termo discurso literrio. Todavia, sabe-se que, na origem da poesia tica, vide Homero, a tradio pica, ao fundir Gosis e Eros, como nos ensinou Stephen Reckert, em Beyond Chrysanthemuns, incorporava, enquanto elemento da forma fixa, dita estrutura por Jorge de Sena, a Narrao. Esta, por sua vez, embrio-nariamente ir ganhar, com o passar do tempo, relativa autonomia e passar a ser consagrada como rcit, ou seja, um discurso narrativo no mbito da literatura, conforme a melhor lio de Roland Barthes (cf. Anlise estrutural da narrativa). Assim, a narrao oralizada, posteriormente incorporada ao gnero pico, libera-se, transformando-se, para alguns, em gnero autno-mo, para alm da trilogia de Aristteles, e, para outros, em discurso narra-tivo (rcit). Por sua vez, a psicanlise lacaniana a encontra no sculo XX e, via estruturalismo de base fontica (cf. Jakobson), a incorpora como um dos discursos, no no sentido da parole de Saussure, mas do rcit de Barthes. Em face disso, utilizaremos os termos narrativa e discurso como fazen-do parte do mesmo campo conceitual.

    Assim, depois de caracterizarmos a melancolia clnico-estrutural, ire-mos apontar suas conexes com a narrativa melanclica em Louis-Ferdi-nand Cline (indo do romance Viagem ao fim da noite at a incorporao do abjeto via panfletos). Feito isso, confrontaremos o impasse celiniano (que hiperdetermina injria e desespero desagregador), prprio da paixo pela

    Tais efeitos j foram previstos pela cincia psicolgica medieval, de

    Gregrio a Santo Toms, como filhas da acdia (filiae acediae): a malcia

    (malitia), o rancor (rancor) e a pusila-nimidade (pusillanimitas), substrato

    da injria (auto e hterorreferida), bem como o desespero (desperatio), o estupor (torpor) e a fuga do nimo

    (evagatio mentis) so os ingredientes para o aprofundamento do desespero

    desagregador (cf. AGAMBEN, G. Estncias. Belo Horizonte: UFMG,

    2007, p. 24-25).

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    misria, de estilo manaco, com o contraponto ilustrado na forma shandia-na, assumida pelo Machado maduro, onde a narrativa melanclica produz, paradoxalmente, um saber/satisfazer-se com a vida.

    Na sequncia, examinaremos os efeitos sociais desagregadores prove-nientes da abduo da narrativa melanclica (herdeira da acdia medieval), pela mdia, a servio da inslita copulao entre discurso da cincia e dis-curso do capitalista. Articulao que ir nos confrontar com uma ideologia da depresso, antecipada pela melancolia potica dos Parasos artificiais, bem como com seus efeitos segregativos: a excluso social, ilustrada no estmulo ao consumo manaco de gadgets farmacoqumicos (toxicomania), bem como a autoexcluso psquica da drogadio.

    Nesses termos, iniciamos por caracterizar a Melancolia, enquanto estru-tura clnica singular. Em Luto e melancolia, Freud (1917) a articula ao seu efeito imediato o culto morbidez, a dita paixo pela misria e tambm a um efeito mediato possvel: o luto, a partir do qual se poderia refalicizar o sujeito e o objeto, tido como perdido para sempre.

    Ao comparar luto e melancolia, Freud acaba por se dar conta de que um o negativo do outro. Entretanto, paradoxalmente em ambos, ele reconheceu traos comuns, como: desnimo penoso, inibio da atividade global, perda da capacidade de amar e/ou de se interessar pelo mundo externo, sendo que, na melancolia, se destaca uma reduo drstica do amor pela prpria ima-gem, que se expressa num contnuo injurioso que vai das autorrecrimina-es, passando pelos juzos de inferioridade, at o delrio de punio3 e Ju-zo Final. Freud define, ento, o luto como uma reao perda de um ente querido, como o pas, a liberdade, ou o ideal de algum (FREUD, 1996, p. 249), que superada por um trabalho psquico de aceitao (compatvel com os termos do recordar, repetir e elaborar), que culmina na colocao de outro objeto no lugar do objeto inicialmente amado.

    Mas, se o trabalho de luto mediado pelo princpio da realidade, na me-lancolia o sujeito, que no um deprimido, mas um apaixonado, desconhece a realidade daquilo que perdeu. Ou seja, a melancolia no , exatamente, uma reao de pesar diante da perda do objeto em si, mas a reao prove-niente da suposio da perda de um objeto idealizado (com valor de Coisa ancestral), em funo de uma decepo, de uma desiluso que desvaloriza o objeto. Em tempo, a sombra desse objeto impossvel, porm irrenuncivel, cai sobre o ego, de modo que esse passe a ser julgado por um agente espe-cial [a conscincia moral], como se fosse um objeto, o objeto abandonado (FREUD, 1996, p. 254-255). A identificao com esse objeto perdido faz com que o ego melanclico agarre-se ao gozo depreciativo de si mesmo, que Freud identificou como uma satisfao sdica na exibio de sua mi-sria. Todo dio, rancor e vontade de retaliao contra o objeto original so desviados contra o ego do prprio sujeito. Na verdade, o ego melanclico incorpora o objeto, em conformidade com o complexo oral, ou canibalista.

    No seria por isso que, ao teorizar sobre a perverso, em A relao de objeto (LACAN, 1995), Lacan cogitou a melancolia como masoquismo pro-priamente dito, o que explicaria a tendncia ao suicdio, na medida em que

    Freud cita a viso de Hamlet sobre o crime de existir: D a cada homem

    o que merece, e quem escapar do aoite? (Ato II, Cena II).

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    o dio melanclico do objeto incide sobre o prprio sujeito, numa vontade de matar autorreferida? Alis, no suicdio o objeto triunfa sobre o ego, como nos ensinou o pensamento freudiano. Mas foi K. Abraham (1970) quem re-conheceu que a gnese da melancolia no estava na perda desse objeto (ina-preensvel), mas na retirada do vu sublime e/ou flico que servia como tela de proteo frente miragem do objeto real da pulso, que remete ao nada. E, ainda que no possamos perder a Coisa que nunca possumos, cabe lem-brar que a funo do vu insinuar algo no lugar do nada. Assim, ao criar a suposio de objeto, como falta, o vu condescende ao desejo. Paradoxal-mente, o vu tem relao com o amor, na medida em que o amor aponta para um impossvel, este mais-alm do objeto, que o nada. Talvez por isso, ao transmitir a falta, a figura de amor d ao sujeito aquilo que no tem: o falo na medida em que falta mulher (LACAN, 1995, p. 158). Malgrado isso, o objeto com que o ego melanclico se identifica o oposto diametral do objeto de amor ou do ideal narcsico: o objeto no amvel por definio, aquele que s pode ser rejeitado ou sacrificado e, especialmente, o objeto excrementcio (ANDR, 1995, p. 251), com o qual se identifica, em ato, o manaco.

    Assim, enquanto o melanclico passa a cultuar niilisticamente a mor-bidez, se inibindo diante da vida, o manaco cultua o dejeto, se expondo degradao, de forma totalmente desinibida.

    Fato que nos levaria a concluir, apressadamente, que o melanclico, as-sim como o manaco, objeta comdia flica, na forma de uma denncia, por vezes virulenta, da aparncia, desqualificando o falo para expor a ver-dadeira face obscena do objeto, outrora idealizado. Entretanto, por trs de sua denncia sobre a comdia humana, h uma reivindicao de ignorncia absoluta, da ordem da impostura (filha da acdia). Na realidade, o melanc-lico recua diante da verdade nua e crua, procurando lhe opor o mais radical desmentido. Prova disso a injria, tanto na forma da autorrecriminao melanclica, quanto da autoexposio manaca. Ao se colocar numa posio abjeta, de menos-valia, seja por autoinjria melanclica, seja por autoexpo-sio manaca, o sujeito toma para si a misria do Outro, condenando-se, com toda ferocidade do superego, a manter o Outro em sua posio ide-al. Tal covardia moral autorizou Serge Andr a situar tanto a melancolia quanto a mania no campo da impostura perversa (Verleugnung), ao contr-rio da hiptese freudiana sobre um delrio melanclico, que levou alguns lacanianos a verem a melancolia como uma forma de psicose.

    O prprio Lacan no incluiu a melancolia em seu seminrio de 1955-56 sobre As psicoses, sendo corroborado por A. S. Mendona (2002), que v na estrutura melanclica o desmentido da Bejahung4 e a desfalicizao, isso porque a perda do objeto idealizado foi considerada traumtica, levando anulao tanto do dito narcisismo primrio (autoertico) quanto do narcisis-mo secundrio (objetal). Mais ainda, a psicanalista Rita F. Mendona (2002) demonstrou que podem existir efeitos melanclicos, especficos e diferen-ciados, em todas as estruturas.

    J a narrativa literria, parafraseando Pablo Picasso, uma mentira (fic-

    4 Primeira simbolizao da perda da Coisa, cuja ousia (essncia, ex-sistn-cia) autoinvestida no sujeito, como efeito dessa afirmao primordial de falicidade, criando o sujeito narcsi-co. Ali o amor pela prpria imagem seria a base da simblica identifica-

    o amorosa (dita 1 identificao narcsica por Lacan), e pr-condio

    da identificao viril.

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    o) que nos faz compreender a verdade. Por essa razo, em Televiso, La-can nos ensinou que a verdade tem estrutura de fico, ao dizer que o mito a tentativa de dar forma pica ao que se realiza na estrutura (2003, p. 531). Nesses termos, a psicanlise sempre lanou mo da arte para revelar, construir e colocar prova a verdade no toda de seus conceitos. No seria diferente com a narrativa melanclica. Para isso optamos por uma anlise comparada de dois autores: Louis-Ferdinand Cline, com destaque para o aclamado romance Viagem ao fim da noite, e Machado de Assis, cuja obra de referncia seria a shandiana Memrias pstumas de Brs Cubas.

    De sada diramos que Cline narra a melancolia a partir de um horror sacro, para tomar emprestado um termo de W. Wundt, num culto ao deses-pero profundo que se choca com seu prprio cinismo (Zynismus), presenti-ficado pela mscara da injria auto e heterorreferida. Alis, conforme Peter Sloterdijk, na modernidade o kynismus antigo, que se traduziu historica-mente enquanto estratgia de resistncia ao discurso oficial troca de lado, tornando-se Zynismus, isto , assumindo a lgica dos donos do poder. Nesses termos, Cline chega a ser um kynik antigo em relao s iluses sociais para manter sua iluso em relao ao Outro materno, custa de uma falsa conscincia esclarecida. De sada, fica evidente o desespero melancli-co que Cline expe em sua viso injuriosa de mundo:5

    A terra est morta, [...] No passamos de vermes em cima dela, vermes em cima de seu infecto cadver imenso, a lhe comer o tempo todo as tri-pas e unicamente seus venenos... No h o que fazer com gente de nossa laia. Somos todos podres de nascena... E s!. (CLINE, 2009, p. 398)

    Quanto ao amor pela prpria imagem, que a psicanlise chamou de nar-cisismo, Cline nos conta que:

    Gradualmente enquanto durava essa prova de humilhao eu j sentia o meu amor prprio prestes a me deixar, a definhar ainda mais e depois me largar, me abandonar por completo por assim dizer oficialmente. (CLI-NE, 2009, p. 132)

    Quanto ao amor em termos gerais, ou seja, com aquilo que, a juzo de La-

    can, deveria vir em suplncia da impossibilidade do rapport sexuel, o autor categrico: o amor o infinito posto fora do alcance dos cachorrinhos. (CLINE, 2009, p. 15).

    No menos evidente a ausncia de objetos de amor que o liguem vida, visto que a existncia, para ele, uma mentira que s encontra sua verdade na morte:

    E aonde ir l fora, pergunto a vocs, quando no temos mais em ns a soma suficiente de delrio? A verdade uma agonia que no acaba. A verdade deste mundo a morte. preciso escolher, morrer ou mentir. (CLINE, 2009, p. 216)

    O que nos leva sua viso de homem, numa peculiar interpretao do

    5 A viso celiniana de mundo en-quanto um grande cadver asque-

    roso, que tem suas tripas estufadas por venenos letais, secretados pelos

    mesmos vermes que a aniquilam a partir da superfcie, encontra na

    viso da Grande Guerra um corre-lato monstruoso. Guerra na qual o

    prprio L.-F. Destouches lutou, sem deixar de invejar a sorte dos cavalos,

    que morriam como seres humanos, mas sem a mscara do herosmo e da glria. E, ao falarmos do desgaste e/

    ou ruptura da honra, o dia 7 de junho de 1917 prenunciou a hecatombe de

    Hiroshima. A batalha de Serra Messi-nes (cerco em torno das fortificaes

    alems na frente ocidental, em Hill 60, Blgica), serviu de introito para

    antirrosa atmica. Ali os ingleses deflagraram a maior exploso con-vencional que o mundo jamais viu.

    Foram 640 toneladas de explosivos, distribudas em vrios tneis, 25

    metros abaixo das linhas inimigas, aniquilando instantaneamente mais

    de 10 mil soldados alemes.

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    instinto de morte, que anula o Eros civilizatrio (compreendido ora como amor, ora como desejo). Cline acredita que os homens vivem para levar, de forma mais ou menos dissimulada, o parente, o amigo, o vizinho aos braos da morte:

    Existem [...] neste mundo duas grandes maneiras de morrer, seja pela indiferena absoluta de seus semelhantes em tempos de paz, seja pela paixo homicida dos mesmos quando chega a guerra. Se se pem a pen-sar em voc, na sua tortura que pensam logo, os outros, s nisso. No os interessamos a no ser sangrando, a esses canalhas! (CLINE, 2009, p. 91)

    Sabe-se ainda, a partir dos estudos literrio-biogrficos de Frdric Vi-toux, que a vida de Cline, intensamente imbricada na elaborao de sua obra (a partir de 1932), foi marcada por uma sequncia de desiluses, que inicia com a descoberta das trapaas familiares e repercute na falta de ob-jetos amorosos. A excluso familiar do pequeno Destouches por trs longos anos, sob a justificativa de proteg-lo do contgio da tuberculose, da qual sua me alegava ser portadora, constituiu a mentira que fundamentou a de-sidealizao materna. Essa primeira tapeao repercutiu na dificuldade da me de transmitir o amor prpria vida, que se desdobra na dificuldade de vincular um significante flico digno de identificao, enquanto conjunto de foras que resistem morte, conforme ilustrado pelo personagem Ferdinand Bardamu: minha me nunca perdia uma oportunidade para tentar que eu acreditasse que o mundo era benigno e que ela bem fizera de me conceber. Esse o grande subterfgio da incria materna, essa Providncia suposta (CLINE, 2009, p. 187).

    Somam-se a essa concepo melanclica de um nascimento sem sentido as constantes alegaes de misria parental (que no passavam de avareza conjugal), a falsificao e a trapaa no comrcio de antiguidades e artigos de renda, realizado pela me, bem como a mitomania do pai, destacadamente em relao a aventuras martimas. Alis, em entrevista concedida ao jornal Le Monde, em dezembro de 1932, a propsito de seu complexo familiar, Cline declarou: sempre houve falncia a minha volta quando eu era guri (CLINE apud ANDR, 1995, p. 266). Nesse sentido, a imagem de pai que Cline pinta em Morte a crdito uma das mais desoladoras da literatura. O pai era caracterizado, sob todos os aspectos, como um impostor, estpido e frouxo, impotente para fazer obstculo devorao materna, na medida em que Ferdinand se via abandonado vontade de gozo da me. No imaginrio celiniano, a me e a mulher em geral presentifica-se como uma espcie de vampiro que preciso saciar com sangue, esperma e morte (ANDR, 1995, p. 293).

    Mas foi em sua 2 fase, por volta de 1936, a partir dos panfletos antis-semitas, que a injria manaca se transformou no eixo infame do estilo de Cline, eliminando praticamente a distino entre o autor e seus persona-gens. No limite, seria o prprio Destouches/Cline a tomar a palavra, pois o

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 28, dezembro, 2013

    autor chega ao cmulo de falar como mdico, para melhor construir o seu judeu como um bastardo hbrido, inscrito na tramoia e na mentira, de modo a propagar uma verdadeira epidemia da falsificao, que ameaa a histria, o pensamento e a prpria lngua. O que era antes uma podrido interna, uma misria e uma covardia, inerente ao anti-heri celiniano, passa a ser identificado no judeu, agora a fonte de toda a podrido e infeco do mundo. Os judeus foram colocados no mesmo campo semntico da fala, que Cline via como mentirosa: somente os judeus falam no mundo, e toda fala uma mentira. A nica verdade que existe a dos rgos mudos, da sensao, da emoo. Essa uma verdade biolgica que no tem voz para se expressar (CHESNEAU apud ANDR, 1995, p. 279). Ao equiparar o judeu mentira, Cline diz que a mentira um efeito do engodo da fala, que se dissemina, maculando a lngua materna.

    Ainda que a obra de Cline seja uma manifestao singular do discurso do mestre, tal narrativa indicia no somente o desamor pelo significante lingus-tico, mas, sobretudo, um desacordo do significante com seu modo de gozo, visto que somente uma metalinguagem (dos rgos mudos) poderia dar conta da verdade sobre o verdadeiro, na suposio do autor. E, como no h Outro do Outro para revelar a verdade final, resta a Cline rechaar essa mentira sistmica da lngua, em funo de uma paixo pela misria que, atravs da injria, cumpre a vontade de gozo do Outro, seja se identificando a impostura suposta no seu judeu, seja perseguindo a obrigao sacrificial de dizer toda a verdade, ou submetendo-se aos abusos dA Mulher (me primordial).

    Portanto, na obra celiniana, ainda que a ironia corrosiva faa parte de sua mensagem melanclica, seu estilo emocional leva sempre ao aniquila-mento injurioso de qualquer verdade (que no a morte e/ou a degradao do falo), mesmo que nisso haja uma inovao esttica a enquadrar a fico desesperadora do objeto excrementcio. Ou melhor, essa paixo pela mis-ria, que sobredetermina vida e obra em Cline, nos leva a uma concluso semelhante de Lacan (1962), no Kant com Sade, sobre o triunfo do signo de virtude (das Ding) na Filosofia na alcova: que o lugar da me, inclusi-ve em sua vontade de gozo mais obscena, permanea salvaguardado, para que a nostalgia da Coisa possa ser cultuada sob o vu do pudor. Seria essa aparncia que o melanclico se esfora por manter e/ou restaurar, ainda que custa da sua autoimolao. Por isso, Serge Andr sublinhou a reao ver-tiginosa que a ameaa de desmascaramento do ideal do Outro (com valor de Coisa ancestral) provoca no sujeito, fazendo como que ele prefira a iluso e o engodo verdade nua e crua. Assim, o melanclico volta contra si a raiva que sente pelo objeto, responsabilizando a si prprio pela misria do objeto real, na esperana de manter as aparncias com respeito ao semblante idea-lizado do Outro. Mais ainda, ao voltar contra seu prprio ego a raiva sentida em face da desiluso objetal, por vezes, ao ponto de cumprir seu destino suicida de kakon, o melanclico acaba desmentindo em ato a verdade sobre a indigncia do Outro (Castrao). Prova disso que a narrativa de Cline progride sob o eixo da injria, na suposio de desmentir, inclusive, a im-possibilidade da relao sexual. Ora, se o amor entre semelhantes , a seu

    6 Aspecto que ser retomado na segunda parte deste trabalho.

    7 No barroco ps-ibrico, desta-ca-se a festa do Dia dos Mortos,

    pela converso da alegoria em alegria, conforme a tradio

    cultural mexicana.

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 29, dezembro, 2013

    juzo, um ponto infinito fora de alcance, restaria relao sexual ser algo possvel, ainda que em sua dimenso de amor ao prximo, no mbito da misericrdia6 . Com efeito, tanto na vida pessoal quanto em sua obra, Cline ir se interessar pela doena e/ou pelos doentes no mbito da misericrdia, passando a amar o dejeto como a si mesmo.

    A partir dos panfletos antissemitas (2 fase), pela via da injria auto e heterorreferida, o autor passa a convocar o rechao de todos, se apresentan-do como um escritor perseguido, o anticristo excludo e prisioneiro de um corpo doente, quase uma carcaa expiatria, ainda que sobrevivente. J no ps-Segunda Guerra, as queixas de perseguio se tornam to exageradas pelo prprio Cline, que os crticos pensaram tratar-se de uma paranoia. Como esclareceu Serge Andr, tratava-se de uma pardia de paranoia, nada alm de uma nova modalidade melanclica, de expanso manaca, em que ele se oferecia como objeto sacrificial. Nas narrativas do ps-guerra (3 fase), Cline se resigna vontade de gozo que tentou expulsar com os panfletos, para assumir a mrbida condio de morte em vida, num corpo j corrodo pelos vermes: um escritor j pstumo, que falava do alm-morte, dessas profundezas crepitantes onde nada mais existe, como dizem as l-timas palavras de Rigodon, texto que ele concluiu pouco antes de morrer (ANDR, 1995, p. 281).

    Por sua vez, no dito Machado maduro, teremos a criao de uma forma singular de discurso melanclico, shandiano para alm de Sterne, que eleva perfeio a relao entre riso & melancolia, tornando perene este jogo de forma e contraforma. Ento, se ali no h luto festivo (que transforma a morte em festa7), ou desejante (freudiano), que supere a melancolia, por outro lado, a morte despida de seu carter solene, assumindo um aspecto apalhaado, que no cessa de se escrever simbolicamente. At porque, se em Brs Cubas o destino do homem a melancolia, sua dignidade est em rir, mesmo em face da morte, at a cambalhota final (ROUANET, 2007, p. 221), como bem disse Srgio P. Rouanet, em Riso e melancolia.

    Ora, se o riso dessacraliza a melancolia, no recuando diante do terror da morte, ele tem o poder de libertar o homem de seu efeito aniquilante, por desmobilizar a obrigao sacrificial (seja ela a decadentista morte lenta, em Baudelaire, seja a obrigao celiniana de ser devorado pelo gozo obsceno do Outro primordial), sem a necessidade de colocar outra iluso no lugar da Cousa, ou da Causa perdida.

    Machado zomba da fantasia mrbida da narrativa melanclica (do dito temperamento saturnino, ou do temperamento atrabilirio, ou ainda deste Eros acidioso). Alis, em Brs Cubas, a principal funo do riso era zom-bar de todos os esforos para curar a melancolia (ROUANET, 2007, p. 238). Por isso ele ridicularizou, atravs do sonho de grandeza de um Brs Cubas, o ideal cientificista8 de inventar a droga perfeita, pois que a inveno do emplastro Brs Cubas fracassou, bem como a suposio baudelairiana dos Parasos artificiais, visto que a poo suprema, chamada npenths, conforme a Odisseia, teria sido um Bem perdido para sempre da memria humana. Tem-se a a ilustrao de um saber impossvel, porque real (repre-

    8 Em todo caso, importante diferenciar: a) cincia, especial-

    mente em sua singular articu-lao quinhentista, enquanto

    manifestao no-toda do discurso do mestre, de b) dis-

    curso da cincia, um semblante miditico-publicitrio a servio

    da perverso do mercado, sob a forma de logos techniks,

    porque voltado tecnicizao do prprio homem, bem como

    de c) cientificismo, a servio do idealismo cientfico, que

    denuncia o conhecimento paranoico, inerente ao racismo mental, ilustrado no bovarismo cientfico la Simo Bacamar-

    te. Em suma, a primeira tem gnese sublimatria e expe a autoria do discurso do mestre,

    a segunda tem uma relao preferencial com a canalhice

    (prpria da impostura perversa) e a ltima com a

    megalomania, prpria do estilo paranoico da psicose.

    Bem portado por Elena, ela prpria o dom do arrebatamen-to, do desejo, do amor-paixo,

    do Eros exttico, conforme So Bernardo de Clarivaux.

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 30, dezembro, 2013

    sentao da castrao). Para tal, Machado no lana mo do chiste freudiano (evocado na stira)

    que apesar de ser uma formao do inconsciente, em que uma ideia recal-cada fora sua passagem por baixo da censura, emergindo na conscincia necessita da confirmao egoica de outrem, via gargalhada (da localizar-se no imaginrio da intersubjetividade). Ele tambm no faz uso da ver-tente cmica, na acepo clssica do drama, a produzir uma refalicizao simblica do trgico (de telos melanclico). Ou seja, o cmico, enquanto drama, substitui o trgico de nossa condio humana pelo riso da alegria e pressupe fazer luto dessa misria. Mas, apesar de tal discurso restaurar a dignidade do falo, todo apogeu flico porta o germe de sua derrocada: a desiluso e seu mergulho melancolizante.

    Nesse sentido, o lugar de falta-real que os discursos de biopoder supem tamponar, s vezes por um delrio verbal e alucinatrio, explicita a per-sistncia da cultura em acolher iluses utpicas, em neguentropia, o que leva a sociedade a inventar ideologias, gadgets milagrosos, personalidades atraentes e gurus, que prometem a felicidade (terrestre ou celeste). Por isso, somente o humor irnico, especialmente o shandiano, ao articular o riso corrosivo melancolia, inicia gozando o sentido do discurso das impossibi-lidades e acaba visando o nonsense do real, no lugar do luto. O humor shan-diano, atravs de sua posio de renegao (riso como renncia), assume o enfrentamento da ausncia de sentido que h no real, fruto do desvelamento do mais-alm objetal, por trs do objeto ideal, mantido pelo cinismo cultu-ral e civilizatrio. Ou melhor, o shandismo machadiano assume a verdade (no-toda) sobre a inexistncia do grande Outro, a no ser como um efeito de fico. Em outras palavras, tal discurso pode no acreditar no Outro, mas no deixa de servir-se de seus significantes para bendizer seu amor pelo prprio amor (que seu sintoma sublimatrio).

    Ento, como essa forma de humor irnico articula o riso corrosivo melancolia, ele coloca, de forma perene, este jogo de forma e contraforma no lugar das consequncias do luto freudiano. Assim, no havendo luto, no h falicidade; e, no havendo gozo flico, como podero esses discursos he-gemnicos se apresentarem como a possibilidade de satisfao de todos os desejos humanos, levando as pessoas narcotizante suposio de apogeus flicos? Ou ainda, como os discursos de ocasio, que prometem a felicidade, podero, pelo simulacro da novidade, ou pelo logos techniks, recortar o social pelo delirante, abduzindo todos os modos de gozos (extraviados, ou no), se esta narrativa kynikai no cessar de se inscrever, inclusive, simboli-camente no lugar do duo iluso/impossibilidade?

    Alis, o Machado shandiano, apesar de ser considerado absentesta e pessimista em seu pice estilstico, fazia a crtica da irremedivel tolice hu-mana, mas o fazia sem levar a srio aquilo que denunciava, isto , sem ter a pretenso de dizer toda a verdade sobre o verdadeiro, visto que reconhecia haver um impossvel saber sobre o gozo, que Lacan chamou de castrao.

    Ento, ao contrrio de Cline, que no abriu mo do masoquismo, para manter as aparncias com respeito ao semblante idealizado do Outro, Ma-

    10Trecho destacado pelas pes-quisadoras Irene Moutinho e

    Silvia Eleuterio, conforme uma das cartas destinadas Caroli-

    na, onde se l: depois... depois, querida, ganharemos o mundo,

    porque s verdadeiramente senhor do mundo quem est

    acima das glrias fofas e das suas ambies estreis (cf. GI-RON, Luiz Antnio. ... depois, querida, ganharemos o mundo.

    poca, So Paulo, n. 541, pp. 138-139, 29 de setembro 2008).

    11 Se a alegria de amor do trobador medieval pode ser

    vista como um saber dedicado a fazer da prpria vida uma obra

    de arte, o amor-corts, no Ama-dis de Gaula, no somente a

    conduta inibitria de culto dama como objeto inatingvel

    do finamors. Ele mais um joi damor que condescende

    ao desejo de transmitir o amor heterossexual na inscrio do casamento enquanto reconhe-cimento da paternidade, reco-nhecimento da mestria portada

    pelas damas ao fazerem com que os cavaleiros se deparem

    com a diferena sexual. Assim, bravura, mesura, conquista e

    reconhecimento, nesta ordem, reconciliam o Amadis com a

    referncia paterna que ocupar este lugar por produzir um pre-

    tendente. Reconhecer-se filho de um Rei (ungido, Periom de

    Gaula) por gerar um Rei outro (neto de Lisuarte), o seu desti-no sintomtico (cf. MENDON-

    A, A. S. O ensino de Lacan. Rio de Janeiro: Gryphus/Foren-

    se, 1993, pp. 217-218).

    12 Cf. MILLER, J.-A. A propos des affects dans lexprience

    analytique (conferncia profe-rida em Ganda, em 16 de maio

    de 1986). Actes de lcole de la Cause Freudienne. Paris: ECF,

    1986.

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 31, dezembro, 2013

    chado, armado da ironia, no fez apenas o luto da crena numa verdade integral do Outro, mas realizou o luto da prpria excluso: de cor, da epi-lepsia, da pobreza, da formao no-douta, prometendo cousa amada (Carolina) que conquistaria o mundo10 , ao fazer do amor um lao entre gozo real [falo] e real do gozo [morte] (ALLOUCH, 2010, p. 449), visto ter amado aquela que soube amar seu dizer verdadeiro, seu sinthoma, enfim... Este saber-viver, compatvel com a criao de um gaio saber no Amadis de Gaula11 , se articulou, ora com o amor heterossexual (desejo), ora com o amor-prprio (narcisismo), ora com o amor pelo prprio amor (sublimao).

    A exemplo do ato sublimatrio, no mbito clnico, tratar-se-ia no de fis-gar um sentido para a vida (que lhe sirva de cola), mas, conforme a produo do que Lacan chamou de gaio issaber redenominando tanto a gaya scienza de Nietzsche, quanto o gay savoir do trovador provenal no medievo da arte de bendizer o acaso (a falta, o fora do sentido), encontrando-se com a palavra, no nvel de um acordo12 com seu modo de gozo, que seria uma forma de luto do luto pela indigncia do Outro (da linguagem). Vale lembrar que, se o primeiro luto seria causado pela perda da Coisa freudiana, visto que a palavra a morte da Coisa, o segundo luto seria o reconhecimento da impossibilidade de dizer, atravs da linguagem, a verdade sobre o ver-dadeiro. Essa alegria (luto do luto) seria efeito da arte de saber-dizer o mais ntimo do ser com elucubrao de alngua, chegando a uma feliz reconcilia-o entre dizer e gozo, a ponto de inventar, face ao vazio do real, um novo nome para a vida, que inclua o seu gozo particularizado, conforme o pice potico em Joyce. De qualquer forma, o encontro faltoso com o real cria a possibilidade do pensamento-desejo colocar o gozo em ressonncia com o significante, que se referencia no inconsciente, na estrutura:

    arte de viver participa igualmente desse modo diferencial at fazer dele seu principal objetivo; no s ela tira sua funo da apreenso do sofri-mento, mas instaura ainda por completo as contingncias formais neces-srias ao prazer, com o objetivo de salvaguardar a livre mobilidade do gozo. A forma deve levar a seu pice a potncia das emoes e nesse pa-radoxo que a arte de viver no cessar de exprimir sua essncia. Na me-dida em que ela retira dos sentimentos e das paixes sua influncia e sua potncia dinmica, ela os concordar com Ideias da razo e, na medida em que retira das leis da razo sua exigncia moral, ela as reconciliar com o interesse dos sentidos. Assim se exprime Schiller numa Carta sobre a ducation esthtique de lhomme. (MARIE-CLAUDE, 2000, p. 161)

    A abduo da narrativa melanclica e seus efeitos manacos: o consumo, a acumulao e a excluso

    Muito antes de ter sido acusado por Sartre de ser nazista (o que uma meia-verdade ), ou mesmo de ser cultuado pela esttica beat (final dos anos 50), sabe-se que Louis-Ferdinand Cline, quando de sua visita a Viena, em 1933, solicitou a uma amiga que lhe conseguisse o clebre texto de Freud

    13 A narrativa jornalstica no divulga imagens nem informa-

    es sobre o amargo regresso de combatentes (em caixes e/ou

    cadeiras de roda), a no ser para construir um heri midiaticamen-te. Sem desconsiderar a suspenso da morte presente no desenho ani-

    mado, onde os personagens so aniquilados, mas retornam sem

    nenhum arranho, a apresentao fetichista da violncia nas produ-

    es hollywoodianas suspende o carter trgico da morte, por

    espetaculariz-la, confundindo realidade e fico verossmil. O

    efeito de banalizao desse culto violncia, que apresenta a morte

    como seduo, gera o distancia-mento e/ou o aplauso, evocando

    a fantasia perversa, ainda que tornada fantasia inconsciente.

    Quando se trata da informao jornalstica padro, tambm

    editada pelo vu do simulacro, a saturao presentifica o horror da violncia, mas no ajuda a inscre-

    ver o acontecimento no registro elaborativo do luto.

    14 Ao questionar se a acdia pe-cado, em Sobre o mal, So Toms de Aquino percebe que essa tris-teza despreza os bens interiores e os bens do esprito. Nesta via, o jovem Agamben caracteriza a acdia como uma tristeza com

    relao [...] dignidade espiritual especial que foi conferida por

    Deus [enquanto Nome-do-Pai] (cf. AGAMBEN, G. Estncias. Belo Horizonte: UFMG, 2012,

    p. 28). Em termos psicanalticos, significa que o melanclico acaba se oferecendo subverso (dni)

    do simblico binmio Deus/Luto, via autoaniquilamento lento, por alocar a penria martirizante no

    lugar do gozo. Ou seja, o gozo excessivo com a morbidez sacri-ficial, prprio da impossibilidade

    de qualquer emenda entre o signi-ficante e o gozo, faz com que ali o luto refalicizante no se realize, j que o sujeito afetado pela suposi-o de colagem no objeto-real,

    sob o libi do amor ao prximo (foracluinte do deificante amor

    ao Pai, dito Eterno), renuncie ao lugar de sujeito, cultuando literal-mente o dejeto, enquanto imagem

    real da morte, numa perspectiva tomasiana, do mal mais radical

    que o aproxima da Coisa.

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 32, dezembro, 2013

    sobre melancolia (VITOUX, 1988). Ora, se Cline estetizou, a partir das no-tcias do front, o sentido da morte, pela via melanclica do desespero degra-dante, chegando a afirmar que de verdadeiro s havia a morte, o excremen-to, a misria e os vermes, Freud pde falar sobre o sentido clnico da morte, pela via desejante da vida. Seu opsculo, que foi escrito em 1915, produto de um contexto preciso, em termos de mentalidade para a Histria da morte no Ocidente (ARIS, 2003). Momento em que a cultura da morte, outrora ancorada nos ritos grupais, prescritos em funo do gozo de Deus (figura do grande Outro, conforme Lacan), bascula para uma morte seca, que seria uma morte sem carpideira e velrio, a juzo de Jean Allouch (2004). Neste admirvel mundo novo, como diria William Burroughs, um misto de fraude e pesadelo, a morte suja espera cada vez menos nas trincheiras da Primeira Guerra, lanando as massas em uma cloaca infecciosa plasmada em lama, fezes e sangue, como introito do ponto de apocalipse celiniano: a reabsoro de um insondvel dejeto devolvido aqui sua dimenso constan-te e ltima para o homem (LACAN, 1997, p. 284), como o definiu Lacan, em 1960, antecipando-se crise dos msseis em Cuba.

    Essa morte industrial, tambm foi chamada, por Phillipe Aris (2003), de morte selvagem, morte excluda, ou, ainda, morte invertida. Isso porque doravante os cultos de elaborao grupal da morte no nvel pblico seriam banidos, enquanto um fato social. O morrer passaria a ser conotado como inconveniente, um procedimento indecente, que deveria ser tamponado pela hipocrisia ideolgica do pudor. Tambm o luto, enquanto culto morbidez, sofreria uma negao, seria patologizado, quando no atravessado com m-xima discrio. No limite, ningum mais teria direito baixa de humor, enquanto manifestao de pesar em face de perdas significantes. Logo, o texto Luto e melancolia repercute como uma resposta sintomtica, de re-sistncia do esprito face grande carnificina mecanizada que se processava na Europa, na medida em que o dizer de Freud antagoniza com esta men-talidade de suspenso social da morte, condescendente com a estratgia de negao do luto, prpria da perverso da guerra (e de sua propaganda).

    Por isso, em tempos de paz onde a narrativa miditica suspende a mor-te13 e com isso nega o luto, no podemos esquecer os malefcios sociais provocados por aqueles que de fato (vide o neo-higienismo transnacional) ou ideologicamente tm vivido custa da misria humana, por exemplo, na legitimao e no aperfeioamento de uma ideologia da depresso.

    Como descreveu Serge Andr (1995), a palavra depresso somente conquistou apelo de massa, ao ser apresentada como a doena do sculo XX, pela mdia comercial e cientfica, a partir de um deslocamento semnti-co do campo da economia, para a clnica psiquitrica. Ou seja, ela foi alada ao status de palavra-mestra no discurso da cincia, sob os auspcios de um outro discurso hegemnico, que Lacan definiu, no incio dos anos 70, como discurso do capitalista, cuja meta seria a foracluso da castrao, ou seja, a difuso da iluso de que existe um saber possvel sobre o gozo, ou, talvez, da suposio de no existir limite ao gozo com o consumo e a acumulao. Em tempo, a mentalidade moderna transformou a acdia14 medieval de pai-

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 33, dezembro, 2013

    xo da alma em atentado contra a tica capitalista e/ou falha orgnica, do contrrio vejamos o que Lacan nos disse em 6 de janeiro de 1972:

    (...) me levantei contra qualquer definio de doena mental que se abri-gasse numa construo feita de um semblante que [...] deixasse inteira-mente de lado aquilo de que se trata na segregao da doena mental, algo que diferente, [mas] que est ligado a um certo discurso, aquele que rotulo como discurso do mestre. Mas a histria mostra que ele viveu durante sculos, esse discurso, de maneira lucrativa para todo mundo, at um certo desvio em que, em razo de um nfimo deslizamento, que passou desapercebido aos prprios interessados, tornou-se discurso do capitalista [...]. O que distingue o discurso do capitalista isto: a Verwer-fung, a rejeio para fora de todos os campos do simblico [...] da cas-trao. Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalista deixa de lado o que chamamos, simplesmente, de coisas do amor, meus bons amigos. Como vocs veem, no pouca coisa, certo? (LACAN, 2011, P. 87-88)

    Nossa poca testemunha a debandada dos vus do amor que paramen-tavam o Outro, suporte das identificaes simblicas, sendo o discurso do capitalista prodigioso na foracluso dessas coisas do amor, a ponto de foracluir os efeitos do amor ao significante flico. E, como so os discursos que modelam a realidade, organizando os modos de gozo, tal discurso ir rechaar o desejo, bem como o mal-estar inerente s exigncias culturais e civilizatrias, para abduzir e capitalizar todos os modos de gozo. Os dispo-sitivos da biopoltica esmagam as particularidades subjetivas em funo da homogeneizao do gozo, criando o personagem psiquitrico, que se torna um significante contbil, a ponto de Lacan (1973) nos dizer que os psi que supostamente se dedicam ao aguentar a misria mental, acabam colabo-rando com a manipulao do mal-estar, bem como com sua converso em mais-gozar, objeto que pode ser consumido e capitalizado, numa sociedade medicamentosa. Mesmo porque, na transposio mecnica do significante depresso, do campo econmico para o campo psquico, no devemos per-der de vista a lgica que esse deslocamento escamoteia, que se articula em torno da noo fundamental de um capital, seja ele monetrio, humoral, ou nervoso.

    Ora, para que a homeostase do sistema seja preservada, esse capital deve ser mantido em alta, at porque o melanclico algum que no pro-duz, no consome, muito menos acumula, o que incompatvel com a sa-de funcional do capitalismo globalizado. Trata-se de combater a baixa de humor, essa tristeza antiacumulao nociva ao sistema, com vistas a adaptar os indivduos aos novos padres estatsticos de bem-estar estabelecidos pelo discurso do capitalista.

    De forma geral, trata-se de combater o mnimo sinal de angstia e/ou mal-estar, com o arsenal fast-food da farmacoqumica moderna. Por isso, o sucesso de mentalidade do significante depresso, prprio da nosografia psiquitrica, inclui-se no contexto de um verdadeiro derrame de novas hs-tias sintticas no mercado de gozo: os neurolptios, os tranquilizantes, os

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 34, dezembro, 2013

    hipnticos e os antidepressivos. Essa nova panakeiai seria legitimada, j na dcada de 50, com as sucessivas edies do Manual diagnstico e estatstico dos transtornos mentais, o DSM, que estabeleceria uma classificao das doenas em funo de uma classificao dos medicamentos. No por aca-so, como lembrou Eric Laurent (2011), foi tambm a partir do ps-Segunda Guerra que comeou, nos EUA, uma preocupao em medir os ndices de felicidade, que se estendeu para a Europa, na dcada de 70.

    Vale lembrar que o campo da felicidade o campo do bem-estar, compa-tvel com a homeostase psicofsica, que tem a ver com um sujeito do prazer. J o sujeito do Ics, enquanto sujeito trgico, no busca propriamente a felici-dade, busca no ceder sob o prprio Desejo, que tem relao com o princpio da realidade. O desejo fruto de uma perda, justamente a perda da felicidade original, em funo da aquisio da linguagem, como pr-condio do Ics.

    Nesses termos, se atentarmos para a ideia de felicidade, assim como ela foi tratada por Sigmund Freud (1996), em O mal-estar na civilizao, encon-traremos no somente a sua fonte, mas, tambm, a sua finalidade articuladas ao projeto do princpio do prazer. Contudo, apesar do gozo com o incesto, a tortura, o assassinato e o canibalismo serem inerentes ao funcionamento deste princpio, que dominou o aparelho psquico desde tempos imemoriais, seu programa estaria em desacordo com a lgica do mundo externo, pois o homem no viveria para gozar desta felicidade e liberdade por muito tempo. Assim, em virtude dos dados da realidade, esse gozo foi sendo culturalmen-te recalcado, em troca da segurana dos laos civilizatrios. O prottipo desse recalque original seria o acatamento de uma lei comum, chamada por Lacan de Lei-do-Pai, que comparece como interdio ao corpo da me (mi-ticamente formulado como das Ding).

    Ento, na medida em que o gozo ancestral da Coisa se torna, a juzo de Freud, um objeto para sempre perdido, a aposta na felicidade, seja ela cole-tiva ou individual, se v limitada pela nossa prpria constituio pulsional. Alm disso, o projeto civilizatrio, baseado no princpio da realidade, impe renncias pulsionais, frustraes e sacrifcios sublimatrios, muitas vezes acima de nossas possibilidades, induzindo um permanente sentimento de mal-estar, a se expressar como insatisfao, infelicidade, ou mesmo vazio melanclico.

    Mas, se na poca de Freud, o sacrifcio de gozo, em nome do Outro cul-tural dito por Lacan significante do Nome-do-Pai podia ainda ser visto como uma das causas de infelicidade em meio cultura, hoje, sob uma pers-pectiva lacaniana, conforme a intruso do discurso da cincia no gozar que se torna a fonte da infelicidade. A foracluso dos efeitos recalcantes do Nome-do-Pai deixa, como nica injuno a regular nossa vida ps-moderna o mandamento: Goze! [...], goze de todas as maneiras (ZIZEC, 2011, p. 49).

    Paradoxalmente, essa mesma presso de mentalidade faz obstculo rea-lizao da promessa de felicidade e satisfao de nossa sociedade tolerante e pluralista, pois coloca o indivduo em uma posio de empuxo ao gozo, apesar do discurso oficial rejeitar os excessos do gozo, em funo de uma

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 35, dezembro, 2013

    maneira adequada de regular a homeostase do bem-viver. Como se no bastasse a derrubada gradual de todas as coeres tico-

    morais e/ou choques traumticos que poderiam impedir a realizao da fe-licidade, a neurotecnologia do bem-estar decidiu operar diretamente sobre os centros nervosos da dita depresso, como se o passado de perdas, desilu-ses, ou traumas pudesse ser lobotomizado quimicamente. Ou no foi assim com o surto da fluoxetina, a partir do incio da dcada de 90? Momento em que as defeituosas entranhas moleculares e bioqumicas do crebro esta-riam dominadas e acrescidas do bnus da felicidade privada, ao alcance dos orifcios corporais, sob os auspcios da medicina mental medicamentosa. Ou seja, malgrado a importncia que Freud deu elaborao do luto, uma descoberta fantstica se produziu: a Melancolia no passaria de um distr-bio da qumica cerebral!.

    Tal mentalidade se presta legitimao da chamada ideologia da depres-so, que permite a edio fetichizada de insumos de consumo, tanto em suas diretrizes biopolticas quanto em sua utilidade publicitria e mercadolgi-ca, levando a recepo audincia e ao consumo no necessrio de produ-tos, na suposio de que esses objetos suturem suas angstias, anulem seu mal-estar existencial e/ou satisfaam seus desejos. Enredados nessa teia de engodos, os consumidores podem se demitir da reflexo sobre sua prpria implicao no gozo que obtm com sua dor (para que o phrmakon realize sua funo de mscara, cosmtico e filtro do esquecimento de si, conforme Plato apud Derrida, 2005).

    Nesses termos, Lacan (1973) questionou a seriedade de uma abordagem da melancolia dita depresso pela psiquiatria que excluiu a noo ps-quica de paixes da alma, que a anlise recuperou e articulou aos excessos do gozo. Alis, a psiquiatria dos gadgets no a mesma de seus primrdios (sculo XIX), cujas referncias ainda podiam ser buscadas na paixo triste de Esquirol e antes disso na tradio de Plato e Aristteles, cuja noo de paixes da alma se transmitiu de Santo Agostinho at o medievo de So To-ms de Aquino (ANDR, 2005, p. 247). Assim, tanto em Aristteles quanto em So Toms, a psiqu, ou a alma (sede das paixes), no o esprito puro, desligado do corpo, mas a forma do corpo, a maneira de ser do corpo, que nos remete ao que acontece no corpo, enquanto um modo de gozo. Depois de enumerar as paixes do irascvel, bem como as do concupiscvel, que seriam: o amor, o dio, o desejo, a alegria e a tristeza, conforme a Suma te-olgica (vol. III), Toms de Aquino (TOMS DE AQUINO, 2003/2005) ir nos falar da misericrdia e da acdia (vol. V), como subdivises da tristeza: A misericrdia o tipo de tristeza em que o sujeito toma a misria sofrida por outrem como um mal pessoal (ANDR, 2007, p. 247). Ou seja, muito antes de se passar por uma virtude, ou de se confundir com o sentimento de piedade, a misericrdia era uma paixo pela misria. J a acdia seria a melancolia profunda, um desespero capaz de interromper a fala e at a alimentao.

    Portanto, malgrado a noo psiquitrica de humor, ligada ao biolgico, Lacan nos ensinou que o afeto de tristeza deve ser ligado s paixes da alma,

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 36, dezembro, 2013

    e, estas, correlacionadas aos excessos do gozo e/ou s pulses inconscientes. Ento, se a literatura sobre a acdia medieval, assim como a narrativa me-

    lanclica em Cline e Baudelaire nos ensinam como retirar desse decaden-tismo flico o seu valor tico-esttico de verdade, no devemos nos esquecer de que este ltimo emanou da supremacia romntica que respaldou o mal du sicle, porque forjado na decepo com o ideal do projeto revolucionrio ilu-minista. O efeito de impossibilidade dessa mentalidade que prometeu uma sociedade sem mal-estar foi historicamente melanclico, sendo denominado de fim de sculo.

    Mas o fato de no haver objeto capaz de satisfazer o desejo humano faz com que, mesmo referido ao futuro, ocorra a persistente reedio das iluses perdidas, iluses de Balzac, que prometem costurar o mal-estar civilizat-rio. Porm, o que mudaria a partir da felicidade no mal no seria somente o estilo do discurso (de coletivo para individual), mas tambm a forma como os modos de gozo passariam a ser lastreados (do grande Outro para o pe-queno a).

    No se trata aqui de psicanalisar as causas do gozo solitrio de Baude-laire (vida e obra), mas, sim, evidenciar a edio de padres identificatrios, estilsticos e de mentalidade, que estabeleceram lao social com a morbidez, pela via dos abjetos mais-gozar. Tal empuxo-ao-gozo abriu As portas da percepo comitiva psicodlica, ainda que a lgebra da necessidade j tivesse recriado o inferno na vida do junky.

    Assim, quando Baudelaire relocou o estatuto da felicidade iluminista, outrora coletiva e embalada pelo ideal de uma moral-poltica, na esfera in-dividual da felicidade no mal, ele deslocou tambm a motivao, antes alicerada no Outro-ideolgico, visto como um Soberano-Bem poltico, para a alcova das volpias artificiais, propiciadas pelo consumo de artefatos da farmacoqumica moderna, que logo foram abduzidos pela impostura do mercado.

    O tdio dAs Flores do mal j delineava um modo solitrio de gozo dn-di, extrado dos parasos artificiais, conforme prenunciado no poema Alma do vinho. Tal experimento de modernidade, rumo ao nirvana particular, foi desenvolvido na notvel monografia sobre o tema, publicada em 1860 e intitulada Parasos artificiais: o haxixe, o pio e o vinho, onde a ideia de felicidade perpassa todos os captulos. Ento, ao modo de gozo dndi, o decadentismo francs aditaria a introspeco drogatcia, como ato potico inspirado pelos estados de exaltao, primeiramente atingidos por uma substncia muito em voga na poca, o haxixe:

    Pegue uma pequena poro equivalente ao tamanho de uma noz, encha com ela uma colherzinha e possuir a felicidade; a felicidade absoluta com todos os seus xtases, todas as suas loucuras e juventude e tambm suas beatitudes infinitas. A felicidade est a, sob a forma de um pequeno pedao de confeito; pegue-o sem medo, disto no se morre; os rgos f-sicos no sofrem nenhum golpe mais grave. Talvez sua vontade fique en-fraquecida, mas isto um outro assunto. (BAUDELAIRE, 2007, p. 1999)

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 37, dezembro, 2013

    Por sua vez, J.A. Miller (2005) articulou o dandismo ao estoicismo, sob a rubrica de condutas de desinvestimento flico, porque o dndi deveria se mostrar indiferente e/ou superior a tudo, tal qual o seguidor de uma dis-ciplina asctica, todo vigilncia, controle e cuidados de si, como diria, tambm, o Foucault de O uso dos prazeres. Seno vejamos:

    O modo de gozo dndi implica uma disciplina severa, uma verdadeira ascese, da qual Baudelaire fazia o herosmo moderno, porque, no fundo, realizado em perda pura. uma ascese v, toda vaidade, em todos os sentidos do termo, pois centrada no nada. Nela no h vejam s no h Outro do qual seria preciso assegurar a satisfao. Pelo contrrio, caso seja um modo de gozo, um modo de gozo centrado no nada, e um nada exaltado pelo ftil, isto , que retira lucros da futilidade dos pe-quenos nadas. A posio do dndi repousa sobre o respeito, o cuidado, a solicitude, o tudo por pequenos nadas, que so elevados ao valor de Coi-sa, no sentido de Lacan, a Coisa que ele retirou de Freud, e desenvolveu no primeiro Seminrio que dedicou longamente ao gozo, o Seminrio 7. (MILLER, 2005, p. 156-157)

    Este gozo sublimatrio do dndi, ao tomar ao p da letra a no relao com o Outro, foi visto, por Agamben, como arte de cuidar da prpria inc-ria, assim como a poesia de Baudelaire foi entendida [...] como uma luta mortal com a acdia e, ao mesmo tempo, como uma tentativa de invert-la em algo positivo (AGAMBEN, 2007, p. 24). J a performatizao miditica do dandismo baudelairiano preparou a mentalidade de empuxo-ao-gozo do zyniker anti-institucional dos anos 60, compatvel com a politizao do apetite pelas drogas e com a sociedade de consumo. Como raciocinou Peter Sloterdijk (2012), esse outsider exibia uma falsa conscincia esclarecida que, ao contrrio do cnico antigo, pleiteava, de fato, um alm do princpio do prazer, mas usava como semblante a mscara reflexiva.

    Em tempo, a mentalidade da dita ps-modernidade terminou por diluir aquilo que havia de tico e/ou autoral nas condutas de autossuficincia a exemplo do dandismo decadentista, em sua opo sublimatria da arte pela arte (uma finalidade sem fim avessa massificao, ao utilitarismo, ao fetichismo da mercadoria); ou do estoicismo, qualificado por Lacan de ma-soquismo politizado (uma moral da autossuficincia e insubmisso aos ser-vilismos do discurso do Outro), ou mesmo do cinismo (cujo ato de mestria corrosiva denunciou a hipocrisia do idealismo filosfico) reduzindo-as mera busca de adequao entre o gozo e o corpo. No caso dos contestadores, diferentemente da tica trgica de Antgona (dita tica do desejo), a conduta de celibatrio era uma conduta de faz de conta, que pretendia fundir crtica social radical com a livre expanso do princpio do prazer; o que muito di-ferente do cinismo canino de Digenes (em sua tica de descrdito ao prazer e dor), ou mesmo do masoquismo no-politizado, por anulao narcsica extrema, do sem-teto, este, sim, o verdadeiro outsider. Mas, se a vanguarda estudantil no mudou o mundo como queria, ao proibir a proibio, por ou-tro lado, ela inventou uma nova Neverland, enquanto forma de protestar contra a castrao, por recusar envelhecer...

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 38, dezembro, 2013

    Por isso, Lacan advertiu a vanguarda universitria de 68 sobre um modo de gozo celibatrio, que se pretendia criticamente fora do sistema, na medida em que desprezava tambm as demais vias sublimatrias que a cul-tura ocidental oferecia ao sujeito: A contestao me faz pensar em uma coisa que foi um dia inventada [...] por meu bom e falecido amigo Marcel Duchamp le celibataire fait son chocolat lui-mme, o celibatrio prepara sozinho o seu chocolate que ele no fique decepcionado (LACAN, 1992, P. 189). Isso porque o dito outsider seria resultado, conforme O avesso da psicanlise, de um sistema que proscreveu o olhar do Outro, como portador da Vergonha, tida como marco do respeito castrao. Ento, sob o manto de um sistema que produz a impudncia, rompendo o lao com o Nome-do-Pai, o zyniker moderno no passa de uma personalidade atraente que coopera e sofre com as injunes do discurso do capitalista, ajudando, inclu-sive, a lanar no mercado artefato(s)/imagen(s): estilos de vida, personas e ideologias, nada mais que objetos mais-gozar, que funcionam como ndices renegatrios de nomeao do discurso do Outro (Ics).

    Por isso, o comedor de pio quinceiano, o dndi baudelairiano, o junky burroughniano, o hippie huxleriano, tambm nos falam de um personagem de carne e osso: o drogadito. Como um cnico moderno, o drogadito lana mo da droga, no mais como ato de insolncia prprio de uma integridade asctica, a exemplo do cnico antigo, mas em funo do carter medicamen-toso que esse produto da cincia tem no tratamento do mal-estar inerente falta.

    Nesse sentido, a drogadio , antes de tudo, uma questo psquica, que pode comparecer em qualquer estrutura (psicose, neurose, ou perverso). um efeito de autoexcluso psquica, temporrio e/ou permanente, concer-nente fixao no seio da me-primordial, que remete a imago mortal da Coisa e ao encontro paulatino com essa miragem, via suicdio lento. Em outras palavras, a recusa do desmame repercute como fracasso de um luto sobre a imago da me ancestral, enquanto objeto impossvel, sendo o auto-envenenamento lento o seu efeito melanclico de morbidez.

    J o termo toxicomania remete s manipulaes perversas da esfera so-cial, onde concorrem os argumentos cientficos, de mercado, a razo cnica do poder oficial e a lgica da acumulao, essa prpria do discurso do capi-talista. Em suma, o conceito de toxicomania qualifica o conjunto de narrati-vas, prprias da degradao da cultura, que criam iluses e delrios sociais, sejam eles institucionais, miditicos, econmicos ou polticos, para fomen-tar, no nvel organizacional, a livre circulao, distribuio e consumo de drogas lcitas (e ilcitas).

    A droga, por sua vez, entendida como tudo aquilo que rompe o casa-mento com o falo, conforme definido por Lacan, no Discurso de encerra-mento das Jornadas de estudos sobre cartis (1975), em 1975. Ento, se a fe-licidade, a qualquer custo, passou a ser o parmetro autorreferido de nossos tempos ps-metafsicos, por que no satisfazer tal ideal pela via direta de um objeto que permita este gozo autossuficiente, isto , uma via mais rpida e fcil que o trabalho e/ou a sexualidade adulta? Da nosso modo de gozo

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 39, dezembro, 2013

    ocidental situar-se, a juzo de Lacan, (1973), nica e precariamente a partir do pequeno outro, vale dizer, do objeto a, como um mais-gozar, pois o trao do universo contemporneo que o Outro desaparece (MILLER, 2005, p. 154). Isso porque o discurso do capitalista passou a prescrever, instrumenta-lizado pelo discurso da cincia, a uniformizao dos mercados de gozo. Essa globalizao das modalidades de gozar procedeu a um deslocamento hist-rico do Outro-simblico ao outro-imaginrio, prprio dos pequenos-mestres e de seus gadget tecnocientficos. Assim, do ponto de vista de certos gozos extraviados, resta ao sujeito excludo supor uma cura no consumo padro de drogas, sob a tutela do discurso medicamentoso da toxicomania. Com efeito, a promessa de felicidade dessa narrativa de consumo nada faz seno converter essa suposio de felicidade em mal-estar, que retroalimenta os efeitos melancolizantes no lao social.

    Em suma, o discurso do capitalista passa a abduzir qualquer modo de gozo, desde o excesso obsceno produzido pelo trfico, passando pelo gozo extraviado dos que sofrem, apesar da remedicalizao, at a autoria do Mestre, para realizar a frmula do que Lacan denominou de canalhice, isto , tomar o discurso do Outro como seu. Por isso, em Televiso, Lacan (1973) nos disse que contra o discurso do capitalista s mesmo a Sublimao, que, em Joyce, seria a santificao do sintoma. Isso porque, em seu caminho epifnico/ sinthomtico, Joyce fez o luto da misria paterna, colocando-se como sujeito, tanto em relao nomeao, quanto autoria da prpria pa-lavra, no mbito da imortalidade.

    J Vinicius, em Carta ao Tom, tomou a melancolia como impulso, para nos ensinar que ... s resta uma certeza, preciso acabar com esta triste-za; preciso inventar um novo amor. Ainda hoje, com Hlderin, sabemos que onde mora o perigo pode tambm crescer a salvao, pois a paixo da alma melanclica pode ser convertida em experincia espiritual emancipa-tria, caso o hodierno ideal de felicidade puder ser desmentido em funo da simbolizao-sublimatria do luto. Essa finalidade sem fim com a pa-lavra inspira o amor, cuja potncia capaz de resgatar o amor de si, saciar o apetite pela misria e soprar a vela da fantasia que impulsiona o barco do desejo por um outro amor. Quem ama mata a Coisa (iluso de felicidade e/ou completude), para inventar um Outro amor... Amor possvel, ao contrrio da paixo pelo objeto real, visto que ali o Eros acidioso cede seu impossvel ob-jeto que jamais poderia ser acariciado, ou amado aos braos de Tnatos, para reencontr-lo como ausncia, cuja ousia constitui as foras que resistem morte. Assim sendo, inspirados pelo joi damor bossanovista, podemos dizer: que alegre a triste hora em que te perdi..., visto que os pais da Igreja

    (...) colocam, ao lado da tristitia mortifera..., uma tristitia salutifera..., que realizadora da salvao e estmulo ureo da alma [...]. Na esttica as-censo da Scala Paradisi, de Joo Clmaco, o stimo degrau est ocupado pelo luto que gera alegria [...]. To dialtica a natureza de seu dem-nio meridiano: assim como se pode dizer da doena mortal, que traz em si a possibilidade da prpria cura, tambm daquela se pode afirmar que a maior desgraa nunca t-la tido. (AGAMBEN, 2012, p. 31-32)

  • Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 1, n. 2, p. 40, dezembro, 2013

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