A medida do Exito na arquitetura contemporanea - Identificado · profundamente todos os...

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XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016 A medida do êxito na arquitetura contemporânea: de Caravaggio a Frank Gehry. Alexandre Santi Viero Arquiteto e urbanista, especialista em Design mobiliário. UNIRITTER LAURATE [email protected] Resumo: O artigo traz à tona a discussão sobre a questão do êxito na arquitetura contemporânea, realizando uma abordagem subjetiva dos principais conceitos que tangenciam o assunto e impactam o papel decisivo e definidor que este tema tem apresentado. Avalia do ponto de vista filosófico e psicológico, o desejo universal do homem em se destacar, revisando o êxito sob a ótica econômica e contrapondo-o aos dispositivos do marketing e da propaganda como meio de difusão de um conceito de sucesso na arquitetura contemporânea. 1 Introdução Gosto ou não gosto. Estas são as primeiras definições que o senso comum enfatiza diante de uma obra arquitetônica, um objeto ou produto. Enquanto o senso técnico científico avalia, estuda e julga a obra pelos seus condicionantes físicos, estéticos e culturais - mas não quer dizer que este não seja contaminado pelo julgamento de um senso comum. O que acontece é que, no fundo, todos desconfiamos da validade do sucesso ou do êxito de uma determinada obra sob uma imposição de julgamento externo sem saber profundamente todos os condicionantes que realmente qualificam uma obra de arquitetura como boa ou ruim ou até mesmo se é possível julgar arquitetura de maneira tão objetiva e simplista. Então o que ocorre na realidade é que ser assertivo é diferente de obter êxito, sucesso ou destaque – palavras que caracterizam um momento de exaltação por uma conquista – porque na maioria das vezes a complexidade da arquitetura não nos permite esta avaliação de forma tão clara e tão rápida como necessitamos. Entra nesta discussão aspectos como o desejo universal do homem em se destacar, questões relevantes como a economia - com seus desdobramentos mercadológicos -, os aspectos mensuráveis do marketing e da propaganda na tomada de decisões das pessoas e as questões da dimensão do tempo que se esgota rapidamente em função de uma idéia de progresso. A intenção do autor é criar uma síntese dos efeitos positivos dos conceitos de êxito na arquitetura – agilidade, assertividade -, e também dos efeitos negativos e indesejáveis – comodismo criativo, repetição, ausência de foco, indiferença -, ampliando assim a discussão sobre a influência do conceito do êxito nas práticas do projeto arquitetônico. Este movimento, que parece ter tomado vulto com o conceito de sucesso para todos surgido no

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A medida do êxito na arquitetura contemporânea:

de Caravaggio a Frank Gehry.

Alexandre Santi Viero Arquiteto e urbanista, especialista em Design mobiliário. UNIRITTER LAURATE [email protected] Resumo: O artigo traz à tona a discussão sobre a questão do êxito na arquitetura contemporânea, realizando uma abordagem subjetiva dos principais conceitos que tangenciam o assunto e impactam o papel decisivo e definidor que este tema tem apresentado. Avalia do ponto de vista filosófico e psicológico, o desejo universal do homem em se destacar, revisando o êxito sob a ótica econômica e contrapondo-o aos dispositivos do marketing e da propaganda como meio de difusão de um conceito de sucesso na arquitetura contemporânea.

1 Introdução Gosto ou não gosto. Estas são as primeiras definições que o senso comum enfatiza diante de uma obra arquitetônica, um objeto ou produto. Enquanto o senso técnico científico avalia, estuda e julga a obra pelos seus condicionantes físicos, estéticos e culturais - mas não quer dizer que este não seja contaminado pelo julgamento de um senso comum. O que acontece é que, no fundo, todos desconfiamos da validade do sucesso ou do êxito de uma determinada obra sob uma imposição de julgamento externo sem saber profundamente todos os condicionantes que realmente qualificam uma obra de arquitetura como boa ou ruim ou até mesmo se é possível julgar arquitetura de maneira tão objetiva e simplista. Então o que ocorre na realidade é que ser assertivo é diferente de obter êxito, sucesso ou destaque – palavras que caracterizam um momento de exaltação por uma conquista – porque na maioria das vezes a complexidade da arquitetura não nos permite esta avaliação de forma tão clara e tão rápida como necessitamos. Entra nesta discussão aspectos como o desejo universal do homem em se destacar, questões relevantes como a economia - com seus desdobramentos mercadológicos -, os aspectos mensuráveis do marketing e da propaganda na tomada de decisões das pessoas e as questões da dimensão do tempo que se esgota rapidamente em função de uma idéia de progresso. A intenção do autor é criar uma síntese dos efeitos positivos dos conceitos de êxito na arquitetura – agilidade, assertividade -, e também dos efeitos negativos e indesejáveis – comodismo criativo, repetição, ausência de foco, indiferença -, ampliando assim a discussão sobre a influência do conceito do êxito nas práticas do projeto arquitetônico. Este movimento, que parece ter tomado vulto com o conceito de sucesso para todos surgido no

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final dos anos 60 e durante os anos 70 a partir do movimento Pop Art1, devido aos avanços da tecnologia nos processos de comunicação de massa, verificando como esta idéia culminou no meio arquitetônico e como foi absorvida pela sociedade contemporânea e as implicações desta prática nos projetos de arquitetura. O artigo analisa qual o papel que o êxito desempenha na formação de novas culturas arquitetônicas a partir de revisões de bibliografias pertinentes, compondo uma seqüência de fatos relevantes com a intenção de gerar uma contribuição positiva ao meio arquitetônico e acadêmico. 2 Paradigmas do êxito na sociedade contemporânea

Já não é de hoje que a ação de destacar-se se tornou aspecto relevante em nosso meio. Mas é nos últimos tempos que tem aparecido e sido desejado na sociedade ocidental como tradução de um novo fetiche. Parece estar registrado no DNA de todos os seres vivos que evoluíram através do êxito de suas ações, sejam elas para o acasalamento, para a liderança de um grupo, na construção de um produto e não é diferente na forma como ocorre na arte e na arquitetura. Disputar e ter êxito faz parte da evolução das espécies. Ao longo das últimas revoluções sociais do ser humano, e principalmente a partir das revoluções industriais, o homem tornou-se extremamente competitivo e talvez, nos dias de hoje, o que antes teria sido uma disposição necessária pode estar causando algum tipo de ruído no conjunto das atividades da sociedade contemporânea. Ao propor esta reflexão nas questões de sucesso é justo avaliarmos qual é o nível de competição e de sucesso que estamos implementando nas nossas vidas, porque, embutido dentro deste “invólucro dourado” que é o sucesso, existem características que quando exacerbadas podem gerar algum mal estar social, e uma delas chama-se fetichismo. Para abordar este assunto seria importante levarmos em consideração a tendência simplista de que o contrário do êxito é a derrota, a humilhação e o fracasso, mas isso não é propriamente uma verdade, pois sabemos que vários esforços podem construir algo importante, mesmo sem um reconhecimento glorioso para tal. Antes de lançar um olhar crítico sobre o êxito contemporâneo será necessário abordar quais são as características do nosso tempo e como elas tem se refletido na formação da identidade do homem pós moderno. Dentre os sinais mais significativos destes tempos, que tem permeado as atitudes humanas - segundo Mike Feathestone (1997) - está o afastamento do indivíduo das ambições universalistas e um direcionamento das atitudes para a ênfase no conhecimento 1 Pop Art - é um movimento artístico surgido na década de 85 na Inglaterra mas que alcançou sua maturidade

na década de 60 em Nova York.

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local, na fragmentação, no sincretismo e na diferença. Também existe a dissociação das hierarquias simbólicas que acarretam julgamentos canônicos de gosto e de valor, o colapso da distinção entre a alta cultura e a cultura popular criam uma nova dimensão social e espacial, a tendência a estetização da vida cotidiana coloca o status da felicidade ao nível do consumo. e porfim a descentralização do sujeito e a supervalorização das sensações têm tomado intensidades multifrênicas, testando os limites das capacidades do ser humano e do planeta. Em seu livro El hombre light, ENRIQUE ROJAS (1996, pág.48) faz metáfora do homem atual através de uma narrativa que poderia ser traduzida dos comerciais de TV dos anos 90:

...os produtos “light” deram origem ao homem “light” e à vida “light”, caracterizada pelo fato de que tudo está sem calorias, sem gosto ou interesse. A essência das coisas não importa, só é quente o superficial, e a vida pode ser comparada a um coquetel, onde tudo pode ser experimentado, mas tudo está desvalorizado. Centrado em aproveitar bem o momento e consumir, em se interessar por tudo e, ao mesmo tempo, por não se comprometer com nada, o homem light ajeita tudo. Para ele, tudo é transitório, passageiro e assim até a democracia e a vida conjugal se tornam light. O lema é não exigir muito e alcançar uma tolerância absoluta. Não existem desafios, nem metas heróicas e grandes ideais, nem um esforço ou luta contra si próprio. O homem moderno é sumamente vulnerável. Embora seja atraente, dinâmico e divertido, é um ser vazio, sem idéias, evasivo e contraditório. Rebela-se contra todos os estilos de vida reinante. Sempre bem-informado, mas com escassa formação, perde-se no folclórico e, diante de tantas notícias, cria uma espécie de mecanismo de defesa, ficando insensível. É pragmático e se interessa por vários assuntos ao mesmo tempo. Tem uma curiosidade insaciável, porém mal dirigida e que não o leva a lugar nenhum. Conhece muito bem sua área de atuação, mas não consegue fazer síntese.

Diante das afirmações de Rojas é possível entender que o homem contemporâneo não faz síntese do conhecimento que adquire e por isso necessita tanto de modelos para poder expressar seu gosto e seu desejo. E é isso que a sociedade contemporânea tem se empenhado em oferecer: centenas de milhares de modelos à La carte. 3 Paradigmas do êxito nas artes e na arquitetura

As artes visuais e a arquitetura são processos sistemáticos, como afirmava Le Corbusier, ou seja, não há arte e nem arquitetura sem um processo.

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Seguindo nesta linha, é importante reafirmar que a produção e a experiência arquitetônica, como a de qualquer arte, constituem um ato crítico histórico, segundo Vincent Scully, (1977). Mas a essência da arte e da arquitetura está no reconhecimento das simbologias e na significação que cada projeto expressa, consciente ou inconscientemente. Sendo assim “...a empatia e a identificação de sinais são modos de derivação do conhecimento a partir da memória e em contato com a realidade produzem a percepção que é absorvida em diferentes escalas pelo indivíduo/expectador”, conforme a afirmação de ROBERT VENTURI (1966, pág.2). Por isso, o mesmo autor confirma que a arquitetura é matéria complexa e a complexidade se origina dos diversos níveis de significação que a mesma expressa. A arquitetura também é contraditória e ambígua, mas é no ponto de acumulação entre dois componentes que está a maior eficiência poética da arquitetura... É onde a “tensão” manifesta-se em forma de beleza. 2 Deste nascedouro contextual de sistemas, rigorismos e poesia é que emerge a essência da arte e da arquitetura. Por isso é importante abordar aqui estes conceitos de pensadores pós modernos que perceberam com sensibilidade as mudanças que se insinuavam em seu tempo/espaço para lembrar que, de fato, a arquitetura é síntese e assim como tal precisa ser absorvida, elaborada e compreendida e nesse aspecto o comportamento contemporâneo tem instaurado questionamentos e desafios à arte e a arquitetura a ponto de nos questionarmos se o homem do nosso tempo – leia-se a sociedade com sua limitação de fazer síntese – está sendo capaz de absorver de maneira satisfatória a produção intelectualizada da arte e da arquitetura. Estariam os arquitetos e os próprios mecanismos de produção arquitetônica comunicando de forma assertiva seus ideais. Pelo que se percebe tem sido mais fácil criar mitos – como obras icônicas – ou repetir a exaustão modelos tidos como de sucesso pelas mídias, a elaborar conceitos e repertórios pertinentes ao cenário. Denise Scott Brown3 já ascenava com o manifesto de uma arquitetura anti heróica, que assimilasse as necessidades arquitetônicas de maneira mais abrangente. A mesma autora sugeria que o arquiteto assumisse o encargo também do “feio e do ordinário” das cidades para se aproximar de uma atuação mais humanista e próxima da sociedade. Talvez a arquitetura precisasse criar uma nova utopia e um acordo com as mídias, neste caso com o marketing e a publicidade, que realinhasse a realidade dos fatos sociais reais com a arquitetura, e através deste se contaminar com as pessoas, com as ruas atulhadas e com a poluição ruidosa, mas também com a avidez do tempo que clama e necessita um novo olhar nas cidades. Talvez, desta forma, a arquitetura continuasse mantendo a sua importância na escala de decisões sociais e econômicas nas cidades e atingiria uma amplitude de novos repertórios dentro de uma nova escala de valores... Talvez.

2 Stanley Edgar Hyman (1919–1970) - crítico literário americano nascido em Nova Iorque. 3 Denise Scott Brown - Aprendendo com Las Vegas. Editora Cosac Naify, 2003. Pág.161.

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4 Desejo universal do homem em se destacar – em filosofia e psicologia

Contrariando as premissas conceituais de Andy Warhol4 desde os preceitos vanguardistas da Pop Art que requeria um lugar ao sol a todos os mortais, a psicanálise aposta que destacar-se é para poucos. Segundo o psicanalista Jorge Forbes5, o ser humano é dependente da coletividade e o seu maior medo é sair do padrão, despregar-se do meio e não ser aceito. Não há quem viva fora do grupo. É somente no grupo que reafirmamos nossa identidade. É necessário que cada um ceda em partes suas características individuais para caber no uniforme do grupo. E sendo assim, o sucesso, o êxito e o destaque nos colocam, muitas vezes, fora do senso comum, nos diferenciando dos outros. É desta forma que nos sentimos sozinhos, deslocados do nosso meio social e angustiados: Nós sofremos no sucesso, no destaque, no êxito, porque aí ficamos sós, revela Jorge Forbes. É saudável e prazeroso ser exaltado por uma conquista. Faz parte do nosso comportamento social de aceitação e reconhecimento, mas o equívoco vem da busca frenética pelo reconhecimento a qualquer custo uma vez que a sociedade contemporânea tem procurado respostas tangenciando os limites dos sentidos do homem e dos recursos do planeta, o que estaria causando angústia, ansiedade, dor e constrangimento.

4 Andy Warhol, nascido Andrej Varhola, Jr. (Pittsburgh, 1928 — Nova Iorque, 1987), foi um empresário, pintor e cineasta norte-americano, bem como uma figura maior do movimento de pop art. 5 FORBES, Jorge. A diferença que se é (sobre a questão do êxito) . Portal Ciência e Vida – Revista Psique. Artigo da internet.

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5 De Narciso a Frank Gehry

Imagem6: 1 Imagem7: 2 A leitura sobre um artigo produzido por Pedro Fiori Arantes (2008), chamado O grau zero da arquitetura na era financeira, faz pensar que no âmago das questões do “êxito” a qualquer custo - como forma de sobressair-se aos demais - estaria encastrada uma forte inclinação do arquiteto contemporâneo ao fetichismo e a vaidade, estimulada pela validação do seu trabalho através da mídia e pelo reconhecimento pleno do público, e que, por sua vez, vem sendo filtrada pelo interesse financeiro e corporativo. Este mesmo autor cita Guy Debord8, que ao caracterizar a sociedade do espetáculo como o estágio avançado do capitalismo, no qual tudo virou representação, o faz justamente apontando para o fato de que as práticas sociais – e não somente a pratica dos arquitetos - teriam definitivamente fundido realidade e imagem: “O espetáculo é, pois, a anti-história, o antitrabalho e a antipolítica.” Guy Debord. pg. 121.

6 Narciso in Michelangelo Merisi da Caravaggio.1571-1610.

7 Walt Disney Concert Hall, no centro de Los Angeles. Frank Gehry (1988). Fonte: Revista Arquitetura Viva,

nº 93. 2003. 8 Guy Debord (1931 - 1994) - escritor francês que publicou a obra “ A sociedade do espetáculo”.

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A experiência do arquiteto, catedrático e diretor de publicidade FERNANDO DIÈZ (2005)9 também revela um pouco do fetichismo corrosivo que tem contaminado o projeto arquitetônico contemporâneo:

Cresce o pensamento de que, no circuito da arquitetura de proposição, os edifícios são construídos pensando nas fotografias que serão capazes de produzir ou na fascinação de seus procedimentos, mais do que em suas próprias questões de programa e circunstância. Parece...que são vistos como meio necessário na construção dessas imagens da mídia, cuja circulação e difusão são o pré requisito para a validação da obra.

O fetichismo é lugar comum na cultura contemporânea, mas é tão antigo quanto à origem do homem e neste caso, talvez seja interessante buscar respostas em outros tempos da história, em temas que possam ser compatíveis com o que tem ocorrido na sociedade e na arquitetura atual, de modo a facilitar a nossa compreensão sobre o assunto. Parece pertinente e propositiva uma analise comparativa, de forma abstrata e simbólica, sobre duas figurações emblemáticas, em dois momentos marcantes da história humana: um nas artes e o outro na arquitetura: O primeiro caso fica explicito na obra Narciso, de Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), artista italiano do período Barroco, que retrata da mitologia a vaidade excessiva do jovem Narciso:

A lenda do belo rapaz Narciso tem sido representada ao longo dos séculos e a sua simbologia analisada e dissecada por estudiosos, intelectuais e artista como uma, das muitas, representações existentes sobre a estranheza e obscuridade que a psique humana tenta exorcizar. A vaidade excessiva e a insensibilidade - para além do todo resto - são o legado do belo rapaz que entorpecido e apaixonado pela própria imagem refletida no lago, perdeu o interesse por tudo e, em especial, por todos; deixando-se definhar (sem retirar o olhar da sua própria imagem) à margem do grande espelho.

O segundo contrapõe a obra de Caravaggio ao trabalho recente do arquiteto Frank Gehry para o Walt Disney Concert Hall, de Los Angeles (1988), nos EUA. As duas obras quando interpostas deixam transparecer suas semelhanças sobre o reflexo do culto ao individualismo e pela exacerbação da vaidade e do fetiche, que insensivelmente ignora seu entorno. Há alguns anos temos acompanhado o despontar da mega arquitetura, onde edifícios cada vez mais gloriosos e heróicos parecem ser erguidos em homenagem aos seus próprios autores ou corporações - e até em nome de cidades - conforme Venturi (1966),

9 Fernando Dièz – arquiteto e catedrático, editor da revista de arquitetura ibero americana SUMMA +.

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mas é inegável que o projeto do Walt Disney Concert Hall invoca os limites da abstração, liquefação, segmentação e caminha para a imaterialidade: o grau zero da arquitetura. É preciso refletir sobre o significado do êxito sobre todas as coisas. A sobrecarga de vaidade e a indiferença parecem estar gerando uma sobrecarga excessiva à sociedade, que precisa trabalhar nos seus limites para arrecadar aceitação e reconhecimento, enquanto a energia depreendida poderia ser condicionada a necessidades mais centradas na melhoria da vida humana. 6 Do ponto de vista econômico

A sociedade contemporânea tem alimentado uma espécie de certificado de boa arquitetura que tomou força nos anos 80 com os chamados “star archittects” - arquitetos mundialmente consagrados pela força do marketing e da mídia e catapultados como âncoras em grandes investimentos econômicos públicos e privados ao redor do mundo – e também com os mega empreendimentos. A voracidade do mercado não tem interesse nem paciência para o processo arquitetônico, que é lento e burocrático. Ignora-se que tal processo necessite interlocuções prolongadas e amadurecimento de idéias e propostas para atender uma vasta gama de interesses da complexidade arquitetônica. Se os processos arquitetônicos são lentos e a sociedade requer respostas rápidas, instala-se um conflito entre os atores do processo. Do ponto de vista econômico a arquitetura é vista como um produto de consumo. Os atores econômicos tem se apropriado do conceito do êxito segundo critérios de mercado e isto pode ter sido um dos facilitadores para a formação de uma idéia equivocada da contribuição arquitetônica, ou seja, a invenção de um produto arquitetônico, tão desejado e especulado pelo mercado e pronto para ser consumido rapidamente, que se baseia apenas no processo de compra e venda e que, quase sempre, pasteuriza o processo do projetual, onde o arquiteto repassa seu mérito a um terceiro interlocutor do mercado ou fica subjugado à especulação lucrativa. Em inúmeros casos os empreendimentos comerciais tem se utilizado da arquitetura como meio para seduzir os seus consumidores e convencê-los quanto à qualidade de seus empreendimentos. Mas na verdade o que temos experimentado é uma reprodução seriada e em grande escala de moradias cujo interior é um “cubo mesquinho”, como cita Tom Wolfe (1990)10, e parece mais do que nunca representar o “galpão decorado” de Venturi nos dias atuais, só que desta vez evoluíram para uma versão mais compacta, minimizada e apenas financista.

10 Tom Wolfe – Da Bauhaus ao nosso caos. 1990, pág. 2.

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Estes acontecimentos significam muito mais do que o engessamento da ação dos arquitetos sobre os empreendimentos arquitetônicos, uma vez que estes vendem seu prestigio – leia-se prestígio da classe de arquitetos – quando assinam e certificam a alta qualidade dos empreendimentos, que muitas vezes não tem. Isto certamente pode implicar na deterioração das relações dos arquitetos com a sociedade. O que está em jogo neste critério de êxito pelo mercado é o filtro negativo e controverso, tendo como fim a mera exploração econômica subtraindo a confiança que os arquitetos conquistaram na trajetória da profissão. O mercado e o marketing trabalham para a mais valia, para o melhor custo benefício, o que é também uma característica positiva buscada pela arquitetura. O conflitante está no esvaziamento da essência da arquitetura que é o bem estar humano em primeiro plano no espectro projetual e neste caso a chamada economia rentista e a arquitetura financiaria, citada por Naomi Klein (2004)11 tem levado a arquitetura a esferas de valorização cada vez mais distantes das reais necessidades humanas. É necessário deixar claro que este artigo não faz uma apologia contra o mercado capital mas busca ampliar este debate entre os arquitetos deixando explícito a necessidade urgente de um novo olhar – principalmente do ponto de vista isntitucional - nas estratégias que tem sido utilizada, pois se sabe que a arquitetura não deve ficar subjugada ao mercado, tornar-se refém, nem mesmo ignorá-lo, sob a condição de perder sua aura e sua essência principal. Seria mais sábio aprender a interagir com ele. É sempre recomendável lembrar que uma arquitetura precisa sobreviver as agruras de um contexto complexo, em qualquer escala de valores que seja exigida, para poder beneficiar o maior número de pessoas possível.

7 Do ponto de vista do marketing e da propaganda

O início do século XXl foi marcado pela ascensão do capital no mundo, principalmente nos EUA. Também foi o tempo de ascensão das marcas no planeta e do surgimento do marketing e do branding como suporte de gestão e orientação destas marcas. Logo, um pequeno grupo de grandes fabricantes descobriu que “...construir e fortalecer suas imagens de marca, numa corrida pela ausência de “peso”, era a estratégia para alcançar um novo tipo de lucratividade.”, conforme cita Naomi Klein (2004). A mesma autora complementa que “Essa busca pela "transcendência corporativa" é um fenômeno relativamente recente...”. Para o mundo dos negócios, a lógica implica em procurar "fazer

11Klein Naomi. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 18

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crer que cada produto adquiria um estatuto superior ao de “coisa” ", como se tivesse uma "alma", um "núcleo espiritual" .

A estratégia estava dando certo, pois as empresas que investiam na capitalização de suas marcas passaram a inflar como balões e a valer no mercado várias vezes mais do que no papel — numa impressionante capitalização fictícia. Mesmo que seguissem produzindo (cada vez menos diretamente) mercadorias palpáveis, seus lucros se elevavam muito acima da média porque tinham se tornado verdadeiros "agentes produtores de significados", como se fizessem parte da indústria cultural. 12

Em seu artigo chamado Grau Zero da arquitetura na era financeira, Pedro Fiori Arantes comenta que a primeira grande tentativa de realizar uma fusão entre arquitetura e marketing deu-se no projeto do Walt Disney Concert Hall, no centro de Los Angeles, com Frank Gehry. O projeto de Gehry, datado de 1988, pretendia se destacar radicalmente de seu entorno, cercado por imensas torres de escritórios, como um grande enclave urbano e, segundo Arantes, “O projeto foi considerado inexeqüível pelas construtoras consultadas pela Disney, que suspendeu sua execução.” Pedro Fiori Arantes (2002). Quase 10 anos se passaram e em 1997 Frank Gehry inaugura o Museu de Bilbao, no norte da Espanha, com estrondoso sucesso. O empreendimento além de alavancar a economia turística do lugar também rendeu grande lucratividade e status internacional à cidade que empresta o próprio nome à obra. A partir deste precedente a arquitetura de autor ou assinada abre passagem e passa a ser reconhecida como um passaporte para um mundo de exclusividades, se transformando em símbolo de poder e riqueza que irão nortear futuros mega projetos arquitetônicos pelo mundo capaz de unir arquitetura e marketing com um desígnio de sucesso. As ferramentas de marketing talvez sejam as maiores responsáveis pelas mudanças dos paradigmas da arquitetura contemporânea, pois através delas estes empreendimentos são divulgados no mundo todo e passam a gozar de um status de superioridade – restrita, rica e inabalável. É um pressuposto que a origem do termo estratégia remonta ao grego, “strategía”, e era aplicada ao planejamento e execução de operações militares, com vista a alcançar determinados objetivos e assim fica mais compreensível que o marketing esteja munido de estratégia de guerra para combater os inimigos no mercado feroz e competitivo. O marketing encara a complexidade arquitetônica como o desdém de simples objeto a significar uma intenção visual em detrimento de questões tão relevantes como a própria materialidade ou seu inserção contextual. O marketing sempre está alcançando um novo zênite, quebrando o recorde mundial do último ano e planejando repetir a façanha no ano seguinte, com números cada vez maiores de peças publicitárias e novas e agressivas

12 Do livro: Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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fórmulas para atingir os consumidores e estes artifícios entram, muitas vezes, em confronto com o projeto arquitetônico. E neste embate certamente a arquitetura está em desvantagem:

David Lubars, executivo sênior de publicidade no Omnicom Group, explica o princípio norteador do setor com mais franqueza do que a maioria. Os consumidores, diz ele, "são como baratas; você os enche de inseticidas e eles ficam imunes após algum tempo". Assim, se os consumidores são como baratas, então os profissionais de marketing devem estar sempre imaginando novas fórmulas para um Raid de potência industrial.13

Contudo o marketing pode ser considerado uma grande invenção deste século para o mundo financeiro pois seus resultados aplicados nos negócios das empresas podem agora serem medidos, cronometrados, contabilizados e monitorados em números e com isso o conceito do êxito se torna irrefutável e cada vez mais aceito pelos conglomerados econômicos e, assim apresentado para a sociedade consumidora em geral.

8 Síntese e Conclusão

Toda arquitetura está inserida dentro de uma realidade construída. E se a realidade é construída existem atores construtores da cultura arquitetônica. O debate sobre o êxito na arquitetura levanta questões sobre o processo da cultural contemporâneo para identificar o lugar do arquiteto no contexto sócio cultural e econômico das cidades, pois o conceito de êxito e sucesso contemporâneo é fruto de um processo construído que envolve múltiplos fatores e atores como vimos nos capítulos anteriores. Também parece ser resultado da evolução de elementos mercadológicos, da cultura visual e do marketing que são direcionados à manutenção de um estado financista acordado com a comunicação. A arquitetura está diretamente atrelada a estes conceitos que são mercadológicos e culturais, ao mesmo tempo. Desta forma percebe-se que a arquitetura caminha sobre dois grandes eixos: o da arquitetura do espetáculo – amplamente difundida pela mídia – e o da arquitetura que serve ao ser humano e a cidade de forma direta e objetiva nas suas reais necessidades. O arquiteto precisa ter consciência realista sobre sua atuação, e uma vez consciente de que as decisões, que outrora passava pelo seu arbítrio, estão nas mãos de outros jogadores, do sistema político, do mercado e de seus agentes comunicadores. É importante entender e desmitificar o atual papel que cabe ao arquiteto nessa construção de 13 Do livro: Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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caminhos mais sólidos para sua profissão, reconhecendo que o isolamento fetichista e vaidoso em si mesmo, sempre em busca de um reconhecimento de sucesso a ser divulgado na páginas das revistas, TV e editoriais on line não significa uma verdade absoluta ou uma conquista verdadeira e participativa em benefício ao ser humano de um modo amplo e geral, mas pelo contrário, auxilia a construção de um mercado de arquitetura restrito, segmentado, precário e interesseiro. A arquitetura está profundamente interligada à economia, ao marketing comercial e a política e aos sistemas de comunicação – e ironicamente - é desta forma que se mantém fiel aos princípios de sua atuação. Porém, parece ter optado por ficar cada vez mais distante dos conflitos mundanos, quem sabe por vaidade ou orgulho, mais interessada na perfídia, pureza e beleza de seus objetos puramente estéticos do que no mundo ao seu redor. O verdadeiro êxito ainda se encontra na sinergia impura das ruas, nas reconstruções e readaptações, nos subúrbios desestruturados, na proposição profunda tendo o ser humano como cerne decisório, no saber e no ensinar... No outro e não na coisa.

Bibliografia e iconografia

1. ARANTES, Pedro Fiori. O grau zero da arquitetura na era financeira. Novos Estudos - CEBRAP, n. 80, p. 175-195, 2008.

2. DIEZ, Fernando. Crisis de autenticidade – Arquitetura argentina 1990 – 2002. 2005. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tese de Doutorado.

3. DOS SANTOS, Angelita Dias. A beleza do reflexo – Narciso por Caravaggio e recuperado por Vik Muniz. Universidade do Minho, Braga, Portugal. 2012. Artigo.

4. FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura. Globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo: Studio Nobel, 1997.

5. FORBES, Jorge. A diferença que se é (sobre a questão do êxito) . Portal Ciencia e Vida – Revista Psique - em 14/05/15 as 10:04 http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/60/a-diferenca-que-se-e-sucesso-exito-e-destaque-194199-1.asp

6. KLEIN, Naomi. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 18.

7. MONTANER, Josep Maria. Depois do Movimento Moderno. Arquitetura da segunda metade do século XX. Coleção Arquitetura ConTextos. Barcelona.

8. ROJAS, Enrique. El hombre light: uma vida sin valores. Madrid: Temas de Hoy, 1996. Pág. 46.

XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq

Centro Universitário Ritter dos Reis

XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016

9. VENTURI, Robert. Complexidade e contradição em arquitetura. Martins Fontes, 1995.

10. VENTURI, Robert; BROWN, Denise Scott; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas. Editora Cosac Naify, 2003.

11. WOLFE, Tom. Da Bauhaus ao nosso caos. Rocco, 1990.

12. IMAGEM 1: Narciso in Michelangelo Merisi da Caravaggio.1571-1610. https://pt.wikipedia.org/wiki/Narciso#/media/File:Michelangelo_Caravaggio_065.jpgI

13. MAGEM2: Walt Disney Concert Hall, no centro de Los Angeles. Frank Gehry (1988). Fonte: Revista Arquitetura Viva, nº 93. 2003.