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MATERIAL DIDÁTICO DE HISTÓRIA LIVRO DE CONTOS A MALDIÇÃO DO COMENDADOR CURITIBA 2008

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MATERIAL DIDÁTICO DE HISTÓRIA

LIVRO DE CONTOS

A MALDIÇÃO DO COMENDADOR

CURITIBA 2008

SUMÁRIO

A MALDIÇÃO DO COMENDADOR...............................................1 - 5

A AULA DE HISTORIA......................................................................6 - 9

A LUTA DO SÉCULO........................................................................................10 -11

UM CASO DO OUTRO MUNDO....................................................................12 - 13

A ABDUÇÃO DE NARINHA............................................................................14 - 16

A COISA..............................................................................................................17 - 18

NETINHO O PRECOSE...................................................................................19 - 21

O COISA RUIM..................................................................................................22 -25

O VENDEDOR...................................................................................................26 - 28

O ANJO DA MORTE..........................................................................................29 -35

A M ALDIÇÃO DO CO M E NDADOR

Era só dar meia noite que o fantasma do Comendador Siqueira Campos apareciadiscursando. Vestido com um uniforme da Segunda Guerra Mundial falava horas seguidas tirando osossego de todo mundo. Geralmente subia no ponto mais alto do cemitério, ajeitava o botão dacamisa e discursava sem parar.

- Dom Pedro II, era filho de Dom Pedro I e de Dona Leopoldina. Ele nasceu no Rio deJaneiro em 1825 e morreu em Paris em 1891. Aos 15 anos de idade, após manobras política, ele foiconsiderado maior de idade e passou a governar o Brasil. Teve início então o II Reinado. Nessaépoca o café se tornou o principal produto de exportação. Em 1889 Dom Pedro foi deposto do cargoe o Brasil se transformou numa república.

No inicio, vinham fantasmas de todas as quadras e cantos do cemitério para ouvir asapresentações do Comendador. Muitos aplaudiam extasiados cada frase dita por ele. Outros nãoconseguiam conter a emoção e choravam feitos crianças. Não demorou muito para que a sua famase espalhasse e atraísse centenas de outros fantasmas de cemitérios vizinhos. Nem mesmo nos diade chuva a legião de admiradores do Comendador deixava de comparecer. Visivelmenteemocionado ele agradecia a todos e discursava sem parar.

- Com a proclamação da República brasileira, em 1889 o Marechal Deodoro se tornou oprimeiro presidente do Brasil...

Nem bem acabava de falar e a multidão aplaudia calorosamente pedindo bis. Todo aquelesucesso parecia não ter fim. Porém, com o passar dos anos, o número de fantasmas que assistiam as apresentações do Comendador foi diminuindo. Diminuiu a tal ponto que ninguém mais aparecia para ouvir os seusdiscursos. Nem assim o Comendador desistiu. Mesmo sem mais platéia para ouvi-lo, ele continuavafalando como se estivesse diante de uma enorme multidão.

O coveiro Antenor, era o único funcionário do cemitério que via fantasmas. Ele tambémcostumava assistir as apresentações do Comendador. Toda noite arranjava uma desculpa qualquerpara sair de casa. A sua esposa desconfiada chegou a segui-lo várias vezes. No dia em que elecontou sobre o Fantasma do Comendador ela teve um acesso de fúria. Começou a jogar panelas,pratos e xícaras, contra o marido.

- Mas que mentira mais sem-vergonha, Antenor. - gritou segurando uma chaleira em umadas mãos.

- Mas é verdade, mulher! Juro pela alma da minha mãe.- É mesmo? Pois amanhã eu vou falar com o padre Batista.- Mas ele é padre exorcista.- Não interessa. Fantasma é fantasma. Amanhã mesmo vou tirar essa história a limpo.Durante mais de um mês os dois mal se falaram. Antenor deixou de assistir aos discursos do

Comendador. Andava triste pela casa pensando no amigo. Aos poucos ele foi se reaproximando daesposa até conquistar novamente a sua afeição.

No cemitério a situação do Comendador não era das melhores. Ninguém mais agüentavaouvir os seus discursos. Um grupo de fantasmas revoltados resolveu se livrar dele.Tramaram um plano para acabar de vez com aquelas apresentações intermináveis. Tudo foiminuciosamente planejado. O comendador não tinha como escapar. Na noite em que o plano seriaexecutado o fantasma do açougueiro perguntou:

- E quanto a maldição do Comendador? - Maldição de quem? - repetiu surpreso o fantasma do padeiro.

- Então, vocês ainda não sabem? - retrucou o fantasma do açougueiro.- Não sabem o que? - perguntou impaciente o fantasma do dentista.- Sobre a maldição do Comendador. - repetiu o fantasma do açougueiro.- Mas que história é essa de maldição? - indagou o fantasma do padre. 1

O fantasma do açougueiro olhou bem ao redor para ter certeza que não havia mais ninguémentre eles. Até onde ele sabia o bisavô do Comendador era Galileu Galilei. Todos se entreolharamcom um ar de espanto. Apenas o fantasma do padeiro não fazia a mínima idéia de quem era GalileuGalilei.

- Mas quem é esse tal de Galileu Galinheiro?- Não é Galinheiro. É Galileu Galilei. - esbravejou o fantasma do açougueiro.- Está bem. Mas você ainda não disse que ele é.- Galileu Galilei foi matemático, astrônomo e físico. Nasceu em Florença em 1564 e foi um

dos maiores representantes científicos dos séculos XVI e XVII. Construiu a primeira lunetaastronômica em Veneza e com ele fez importantes observações astronômicas. Defendeu a TeoriaHeliocêntrica de que o sol era do centro o universo e que a terra girava ao seu redor.

O fantasma do padeiro ouvia aquilo tudo meio desconfiado. Até parecia o ComendadorSiqueira Campos fazendo um dos seus discursos. Os outros pareciam fascinados com os detalhesnarrado sobre a vida de Galileu Galilei. O fantasma do açougueiro ainda narrou a perseguiçãoimplacável que o grande cientista sofreu.

- Pois é senhores viver naquela época não era fácil. O pobre bisavô do Comendador SiqueiraCampos foi preso, julgado e condenado pela igreja por defender a Teoria Heliocêntrica. E ainda foiobrigado a negar as suas idéias para não ser morto na fogueira.

O fantasma do açougueiro nem bem acabou a frase e o fantasma do dentista disparou:- Eu sabia que o senhor estava metido nessa história. - apontando para o fantasma do padre.- Eu? O senhor está maluco?- Como não? A igreja perseguiu o coitado do homem e aposto que o senhor estava no meio.- Eu nem tinha nascido naquela época. - e acrescentando uma expressão dramática,

completou. - Estou me sentindo o próprio Galileu Galilei.Antes que a discussão se prolongasse o fantasma do padeiro interrompeu os dois.- E aonde é que entra a maldição do Comendador nessa história?O fantasma do açougueiro deu mais uma espiada para os lados, suspirou fundo e sussurou:- Apenas a Dona Cesariana sabe. - terminou frase e desapareceu.Os três se olharam desapontados com aquela partida repentina. O fantasma do padre se

sentiu um pouco culpado com a história do Galileu Galileie resolver não incomodar mais o Comendador. O fantasma do dentista ficou com medo de seramaldiçoado e ter que mudar de cemitério. Apenas o fantasma do padeiro desconfiou do próprioComendador. Por isso, resolver investigar toda a verdade sobre a Maldição do Comendador.

- O grande Michelangelo nasceu no ano 1475, em Capressi na Itália e morreu em Roma em1564. Foi pintor, escritor, escultor e arquiteto. Mais do que isso ele foi um verdadeiro gênio daHistória da Arte. No campo da escultura produziu obras espetaculares como Moises, Pietà e David.No campo da pintura criou afrescos históricos como Juízo Final pintado na parede do altar daCapela Sistina.

Era o velho Comendador discursando novamente. Não parecia preocupado com o fato denão haver ninguém para ouvi-lo. Falava calmo e pausadamente. Até o seu olhar parecia irradiar umbrilho diferente. De vez em quando se curva e agradecia como se tivesse diante de uma enormeplatéia.

- Já o famoso Leonardo da Vinci é considerado um dos maiores gênios da história dahumanidade. Nasceu no ano de 1452, em Vinci uma pequena cidade próxima a Florença. Foi pintor,escultor, inventor, engenheiro, cientista, músico, e muito mais. Dedicou-se ao estudo da anatomia,física geologia e matemática. Reservou parte de suas noites na dissecação de cadáveres. Pintouquadros que ficaram famosos como a Mona Lisa e a Santa Ceia. Ele sempre esteve a frente do seutempo revolucionando a época em que viveu.

O fantasma do padeiro estava intrigado. Escondido atrás de uma árvore espiava atentamentecada movimento do Comendador. No túmulo ao lado, uma pequena sombra chamou a sua atenção.Era o fantasma da manicura que parecia inconformada. Visivelmente irritada, andava curvada em 2

círculos, reclamando sem parar.- Eu não agüento mais isso! Eu vou enlouquecer.Comovido com a situação o fantasma do padeiro se aproximou para saber o que estava

acontecendo.- Eu posso ajudar?Os olhos da fantasma da manicura se encheram de lágrimas. Era a primeira vez em 10 anos

que alguém se importava com os seus sentimentos. Geralmente os fantasmas passavam, olhavam,mas nunca paravam para conversar.

- E então? Eu posso ajudar?O fantasma da manicura enxugou as lágrimas e procurou se tranqüilizar.- Faz 40 anos que eu não durmo. - não se conteve e voltou a chorar.- Procure se acalmar.- Mas eu vivo a base de calmantes.- Desculpe, eu só queria ajudar.-Toda a noite o maluco do Comendador começa com esse palavrório e só pára quando o dia

amanhece.- Por que até agora ninguém fez nada?- Por causa da Maldição do Comendador?De novo aquela história da Maldição do Comendador. Mas afinal de contas o que era a tal da

Maldição do Comendador? Todo mundo falava a mesma coisa mas ninguém sabia explicar o queera.

- Só a Dona Chica sabe o segredo.- Dona Chica? Mas o fantasma do açougueiro falou numa tal de Dona Cesária.- A Dona Chica é mãe da Dona Cesária. - cochichou o fantasma da manicura.O fantasma do padeiro não quis ouvir o resto. Percebeu que os fantasmas tinham medo mas

não sabiam exatamente do que. Era preciso fazer algo e com urgência, antes que aquele lugar setransformasse num cemitério fantasma.

Enquanto isso o Comendador continuava discursando noite após noite. A cada apresentaçãoprocurava melhorar o seu desempenho. Falava sobre a formação do Império Romano, sobre a Cartade Pero Vaz de Caminha, sobre a construção das pirâmides de Quéops, Quéfrem e Miquerinos e atésobre o Câncer de Próstata. Não satisfeito com isso o Comendador ainda achava tempo paracomentar a Lei da Gravitação Universal de Isaac Newton.

- De acordo com a Lei da Gravitação Universal elaborada pelo grande cientista, físico,químico e matemático inglês Isaac Newton: os corpos celestes se atraiam na razão direta de suasmassas e na razão inversa da soma da distância do quadrado que as separara.

Não há nada mais maçante que um fantasma metido a sabido. Por que o Comendador nãopodia ser igual aos outros fantasmas? Por que ele insistia em ser diferente? Por que não saia por aíassustando velhinhas desamparadas e crianças medrosas? E por que ninguém tinha coragem deenfrentá-lo? Eram muitas as perguntas, mas poucas as respostas.

Certa noite, em meio a um discurso sobre a Revolução Francesa, um ovo pobre acertou emcheio o rosto do Comendador. Ele olhou bem ao redor, limpou a sujeira e começou a berrar:

- Quem foi o infeliz que fez isso?- Fui eu, por quê? - respondeu uma voz rouca - To querendo dormir.A voz vinha na quadra 27 e o ovo pobre veio junto com o dono da voz.- Quer dormir? Procure outro lugar. Aqui quem manda sou eu.- E o senhor tem uma escritura dizendo que é o dono do cemitério?O Comendador perdeu o controle. Gritava tanto que chamou a atenção dos demais

fantasmas. Jamais alguém o havia enfrentado daquela maneira.- Afinal, quem é o senhor?O vulto foi se aproximando até ficar totalmente visível. Vestia uma túnica preta cumprida

com um enorme capuz e tinha o rosto envolvido por uma manta vermelha. O Comendador 3

estranhou, mas preferiu não dizer nada.- Eu sou advogado.- Que tipo de advogado?- Sindicalista.- Era só que me faltava um Fantasma Sindicalista.Os demais fantasmas foram se aproximando lentamente. Em poucos minutos o local estava

lotado. Ninguém queria perder nenhum detalhe daquela discussão. O fantasma do sindicalista erarecém chegado no cemitério. Ainda não conhecia as histórias do Comendador. Mas agora era tarde,pois confusão já estava formada.

- Caros Companheiros Fantasmas! - disse o fantasma do sindicalista em tom de oratória -Não somos massa de manobra do Comendador. Não podemos aceitar aparvalhado o dogmatismodos seus caprichos maquiavélicos e muito menos a opressão de suas idéias reacionárias. Precisamosnos unir e lutar contra a sua tirania imperialista.

A multidão entusiasmada aplaudia sem parar. Há anos que todos esperavam por aquelemomento. Finalmente havia alguém com coragem suficiente para enfrentar o Comendador.

- E tem mais - dizia entusiasmado o fantasma do sindicalista - Fantasma Unido Jamais SeráVencido.

A euforia tomou conta dos presentes. De punhos cerrados repetiam as palavras de ordem dofantasma sindicalista. O Comendador tentava contornar a situação, mas ninguém lhe dava ouvidos.

No meio da confusão faixas de protesto contra o Comendador foram surgindo. O fantasma damanicura sugeriu que todos dessem as mãos e cantassem o Hino da Independência. Todos começaram a cantar numa só voz.

- “Ouviram do Ipiranga as margens plácidasDe um povo heróico o brado retumbante.E o sol da liberdade em raios fugidosBrilhou no céu da pátria... “- Espera aí. - interrompeu o fantasma do padre - Esse não é o Hino da Independência.- Como não? Então como é o nome desse Hino? - perguntou o fantasma da manicura.- Ah, isso eu não sei. - respondeu o fantasma do padre - Deve ser o Hino do Ipiranga.- Levante a mão quem sabe cantar o Hino da Independência - perguntou o fantasma do

sindicalista.Ninguém se mexeu.- Agora levante a mão quem sabe cantar o Hino do Ipiranga.- Todos levantaram as mãos.- Por unanimidade venceu o Hino do Ipiranga.E todos começaram a cantar.- Ouviram do Ipiranga...O comendador desesperado ainda fez uma última tentativa.- Aquele que ousar me desafiar será punido com a Maldição do Comendador Siqueira

Campos.Todos pararam de cantar repentinamente. O silêncio era completo.- E tem mais - prosseguiu o Comendador - Porque esse covarde não mostra o rosto?

Nesse ponto o Comendador tinha razão. Afinal, quem era aquele fantasma e por que ele nãomostrava rosto? O fantasma do sindicalista subiu no túmulo mais alto e tirou a manta que cobria asua face.

- Está me reconhecendo agora, Comendador?- Constantino? É mesmo você?O Comendador não conseguiu dizer mais nada. Simplesmente desapareceu deixando a

multidão de queixo caído. O fantasma do sindicalista tomou novamente a palavra.- Eu já fui amaldiçoado por ele. E a partir de hoje declaro extinta a Maldição do

Comendador. 4

Todos estavam prestes a comemorar quando o fantasma do açougueiro levantou a mão.- E quando o Comendador voltar?- Ele não pode mais voltar.- E por que não? - insistiu o fantasma do padeiro.- Por que de acordo com a Maldição o Comendador não pode viver junto no mesmo

cemitério com o fantasma que ele amaldiçoou.- Mas porque é que tem que ser ele a sair?- Por que o primeiro fantasma amaldiçoado pelo Comendador amaldiçoou ele com essa

maldição.O fantasma do padeiro percebeu que aquele era o grande momento de desvendar o mistério

da Maldição do Comendador.- Mas afinal de contas. O que é a maldição do Comendador?O fantasma do sindicalista chamou o fantasma de um menino que assistia a tudo encostado

no portão do cemitério. Apresentou o garoto como sendo o seu filho mais velho. Em seguida pediuque ele cumprimentasse a multidão.

- Caros Amigos Fantasmas. É uma honra muito grande estar aqui com vocês. E como diria ogrande filósofo e matemático francês Renes Descartes, em sua obra O Discurso do Método: Penso,logo existo ou em latim Cogito, Ergo Sum. Segundo Descartes o ser humano deve se guiar pelaracionalidade (razão) para construir o conhecimento...E passou o resto da noite discursando.

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A AULA DE HISTÓRIA

Carlinhos estava ansioso aguardando a chegada da professora. Andava impaciente de umlado a outra da sala de aula esfregando, as mãozinhas. A todo instante olhava no relógio penduradoa cima do quadro. Os minutos não passavam. Parecia até que os ponteiros não saiam do lugar. Aturma inteira já dava sinais de irritação com aquelas esquisitices de Carlinhos. Afinal, todos queriamsaber o que estava acontecendo.

O sinal para o início das aulas tocou. Todos correram sentar em seus lugares. Carlinhospermaneceu em pé, resmungando baixinho e olhando para o relógio. Repentinamente ouve-sepassos no corredor. O menino foi tomado por uma alegria incontrolável. Só poderia ser aprofessora, Terezinha. E se não fosse? Certamente a decepção seria muito grande. Pensou em espiarpela fresta da porta, mas o medo de não ser ela o impediu de sair do lugar. Quem sabe não era aorientadora cobrando as tarefas de matemática? Ou talvez fosse a inspetora pronta para dar umabroca. Netinho aquietou o coração, sentou e ficou esperando.

A essa altura a sala toda já estava em pé em frente a sua carteira exigindo uma explicação.Ele baixou a cabeça, não disse uma única palavra permanecendo assim até a chegada da professora.Passado algum tempo a porta foi se abrindo lentamente e finalmente a professora Terezinha chegou.Ninguém escondia a felicidade pela sua chegada. Ao ver toda tamanha agitação ela ficou parada naporta esperando silêncio da turma. Imediatamente todos correram sentar em seus lugares. A salainteira estava ansiosa aguardando o que Carlinhos tinha para contar. Ele ajeitou o cabelo, respiroufundo e levantou a mão. O silêncio era geral. Todos pareciam paralisados como se estivessemtomados por um encanto.

- Professora, Terezinha. - proferiu em tom solene - Foi mesmo Pedro Álvares Cabral quedescobriu o Brasil?

A vaia foi geral. Ninguém se conformava. Tanto suspense para uma pergunta tão idiota esem cabimento. Tinha aluno gritando no fundo da sala que ia pegá-lo na saída. Até a suanamoradinha dizia que estava tudo acabado entre eles. A professora contornou a situação, acalmou aturma e percebeu que era um ótimo momento para começar a aula.

- Não, Carlinhos! Quem descobriu o Brasil foram os índios. Eu já falei isso na aula deontem. Alias o Brasil não foi descoberto. Ele foi achado e conquistado pelos portugueses.

A resposta dada foi uma balde de água fria em seu entusiasmo. Ele espera ouvir qualquerexplicação, menos aquela. A professora foi ainda mais enfática. Olhou bem para a turma,posicionou-se no centro da sala e começou a falar:

- Alias, se vocês querem mesmo saber Portugal já sabia da nossa existência mesmo antes dachegada de Pedro Álvares Cabral, no Brasil em 1500. Ou alguém já esqueceu o Tratado deTordesilhas?

- Não, professora! – disse Gabriela, ex-namoradinha de Carlinhos - O Tratado deTordesilhas dividiu o continente americano entre Portugal e Espanha. Ele foi assinado na cidade deTordesilhas em 1496.

- Nossa! – exclamou a professora, surpresa - Como você lembra de tudo isso?- Ela está lendo no caderno, professora - delatou o colega que sentava ao seu lado.Carlinhos assistia a tudo sem mover um músculo sequer. Aquilo não podia ser verdade.

Alguém estava mentindo e verdade precisava ser restabelecida. Teve vontade de chorar, gritar,xingar, mas conseguiu se controlar. Tinha apenas 09 anos e aquela descoberta já tinha setransformado na maior decepção da sua vida. Por fim tomou coragem e retomou a conversa.

- Professora! Tem certeza mesmo que não foi Pedro Álvares Cabral que descobriu o Brasil?- Escuta, Carlinhos! Você não ouviu nada do eu disse?- Ouvi eu ouvi professora. Mas ainda acho que foi Pedro Álvares Cabral que descobriu o

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Brasil. - contestou enfático o moleque.- Carlinhos! Em história não se acha nada. A gente sempre procura ter certeza.- Então alguém está mentindo.Disse isso, fechou a cara e ficou emburrado no canto da sala. A professora não espera por

aquela atitude desafiadora de Carlinhos. Algo não estava certo. Ele sempre foi um ótimo aluno.Nunca deixou de cumprir as sua obrigações de estudante. Só que aquela conversa toda estava indolonge demais. Era preciso dar um basta em tudo àquilo para não tumultuar ainda mais a sala de aula.

De repente, a turma toda começou a tomar partido da professora.- Põe ele pra fora, professora.- Chama o diretor, professora.- Ele só quer confusão professora. Chama a Patrulha Escolar.- Deixa ele sem recreio, professora.Todos queriam ajudar, mas tudo o que conseguiram foi tumultuar ainda mais a situação A

professora a todo custo tentava encontrar uma saída e colocar um ponto final naquela história.Sabia que havia algo de errado, mas não estava conseguindo encontrar uma saída. Por sua vezCarlinhos permanecia emburrado no canto da sala sem falar com ninguém.

- Afinal de contas Carlinhos. De onde você tirou essa história de Pedro Álvares Cabral?Ele descruzou os braços, levantou a cabeça e num tom solene falou:- Foi a minha mãe que disse.- Ela se enganou Carlinhos. - foi tudo o que a professora conseguiu dizer.- Então quer dizer que ela mentiu?- Não foi isso que eu disse, menino.A professora não chegou a terminar a frase e o menino desabou a chorar. Todos se calaram

com pena de Carlinhos. Até Gabriela prometeu que voltariam a namorar. Mas nada disso adiantou.Ele chorava de soluçar. Foi até a sua carteira, jogou todo o material no chão e continuou aosprantos. Com muito jeito a professora se aproximou, passou a mão em sua cabeça e disse.

- Não é que ela mentiu. Foi assim que ela aprendeu na escola. - argumentou a professoranum tom consolador.

Ele levantou a cabeça, enxugou a lágrimas e por fim esboçou uma expressão de espanto.Agora era ele que não estava entendendo nada.- Mas professora a minha mãe não vai para a escola.- Eu quero dizer quando ela era criança.- E já existia escola naquela época?- É claro, menino. - gritou bastante irritada - Como você acha que a sua mãe aprendeu a ler

e escrever.- Nossa professora! Eu nem sabia que na época da minha mãe já existia escrita.- Deixa de ser bobo, menino.Carlinhos estava intrigado. Não conseguia imaginar a sua mãe sentada num banco escolar

estudando História do Brasil. Será que ela aprendeu que Cristóvão Colombo chegou na Américaachando que era as Índia? Será que ensinaram para ela que os escravos vieram do continenteafricano trabalhar no plantio da cana de açúcar? Será que ela sabia que o primeiro nome do Brasilfoi Ilha de Vera Cruz? Carlinhos não via a hora de voltar para casa.

- Professora! Quem inventou a escrita? - perguntou Gabriela demonstrando interesse pelaconversa.

- Foram os sumerianos.- E quem são eles professora? - indagou o monitor da sala.- Era um povo que vivia numa região chamada de Mesopotâmia. A palavra Mesopotâmia

que dizer Terra entre Rios. Ela não foi habitada por um único povo mas vários grupos humanos,com culturas diferentes habitaram a região. Um desses povos eram os sumerianos. Eles viviam daagricultura e do pastoreio.

Carlinhos estava inconformado. Como pode a sua mãe mentir daquele jeito? Pensou em 7

fugir de casa e nunca mais voltar. Mas até onde uma criança de nove anos pode ir? Lembrou do seuprimo Max que certa vez fugiu de casa e se escondeu no jardim, atrás de um pé de abacate. Revirouos bolsos a procura de dinheiro mas só encontrou uma metade de chicletes mastigado.

- Isso faz mais de vinte e oito anos professora? - interrompeu Carlinhos -- É claro que faz. Por que Carlinhos?- Por que vinte e oito anos é a idade da minha mãe.- Mas que implicância é essa com a sua mãe agora menino.Carlinhos ainda não estava totalmente convencido sobre a história de Pedro Álvares Cabral.

Ainda alimentava a esperança da professora estar enganada. Pegou o livro de História de baixo dacarteira e começou a folheá-lo. Procurava desesperadamente algum indício que confirmasse aspalavras de sua mãe. Por fim, desistiu baixou a cabeça e ficou em silêncio.

- E agora o que foi Carlinhos? - questionou a professora Terezinha.- Professora, o Cabral tinha mãe?- É claro que tinha.- E ela mentia para ele?- Eu já disse que a sua mãe não mentiu..Toda aquela História sobre Pedro Álvares Cabral estava começando a incomodar a

professora Terezinha. A turma também já havia perdido interesse pelo assunto. Ela postou-se nocentro da sala e começou a falar sobre a exploração do pau-brasil. Carlinhos ficou o tempo todo decara amarrado com a cabeça deitada sobre a carteira.

- Pois é turma. O pau-brasil foi a primeira riqueza explorada pelos portugueses em nossopaís. Ele era uma árvore de cor avermelhada que servia para tingir tecidos, fabricar móveis enavios...

Carlinhos levantou a mão interrompendo a explicação da professora. Limpou o nariz com amanga da camiseta e por fim perguntou:

- Professora! A mãe do Pedro Álvares Cabral estudou?- Mas menino. Quer deixar a mãe do Cabral em paz.- A senhora não sabe?- Não, Carlinhos. Não sei.- Mas, como é que a senhora sabe que minha mãe estudou?A paciência da professora Terezinha estava no limite.Carlinhos parecia obesecado por aquela

história sobre Pedro Álvares Cabral. Tudo que ela dizia ele fazia questão associar a figura dopolêmico conquistador português.

- Bem crianças. Quem já ouviu falar nos Bandeirantes?A sala toda levantou as mãos, menos Carlinhos. Fez questão que todos soubesse que ele não

fazia idéia do que a professora estava falando.- Pois bem, turma. Os bandeirantes foram as primeiras pessoas a encontrarem ouro no

Brasil, na região das Minas Gerais. Eles também capturaram, aprisionaram e escravizaram osíndios.

- Mas eles descobriram ou encontraram, ouro professora?- Tanto faz Carlinhos.- Tanto faz não, senhora. Se o Pedro Álvares Cabral não descobriu o Brasil isso que dizer

que os Bandeirantes...- Chega, menino!Carlinhos foi interrompido por um grito histérico da professora. Aquilo era gota d’água. A

professora se aproximou da sua carteira e exigiu o mais absoluto silêncio. Ela estava preste aexplodir.

- Continuando crianças. O Bandeirante Fernão Dias Paes permaneceu durante anos no sertãobrasileiro. Ele descobriu umas pedrinhas verdes, chamadas de turmalina. O problema é que eleacreditou que fossem esmeralda. Porém...Carlinhos levantou a mão. A professora Terezinha fingiu que não viu. Ele permaneceu com a 8

mão levantada até ser chamado.- O que foi Carlinhos?- Será que esse homem conheceu o Pedro Álvares Cabral?- Mas uma vez que você falar no Cabral nessa aula eu te coloco para fora da sala.Carlinhos cruzou os braços, colou o queixo no peito e ficou olhando para o chão. O sinal

tocou anunciando o fim da primeira aula. A professora pegou seus materiais, despediu-se da turma efoi caminhando na direção da portas. Já no corredor ela ouviu Carlinhos gritar:- Ele pode não ter descoberto o Brasil. Mas que ele esteve aqui em1500 esteve.

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A LUTA DO SÉCULO

Eles estão tete a tete. Bill não escovou os dentes. Tem mal hálito. No almoço ele comeu bife com cebola. Ted protesta. Pede ao juiz providências. Ele interrompe o combate. Manda que Bill vá até o córner escovar os dentes. Bill se recusa. Exige a presença do seu advogado. Diz que tudo será feito legalmente. Ted pressiona o juíz. O técnico de Bill entra no ringue. O mesmo acontece com otécnico de Ted. A confusão está formada. Bill fala no Código de Hamurábi, na lenda de Rômulo eRemo, e até sobre a Guerra dos Farrapos. Ted não deixa por menos. Diz que o primeiro Triunviratofoi formado por Júlio César, Pompeu e Crasso e que o movimento renascentista teve origem naItália.O juiz não entende nada. O público não entende nada. Ninguém entende nada.

A discussão prossegue. Finalmente Bill aceita escovar os dentes. Ele vai até o córner e uma nova confusão inicia. Só tem pasta close-up. Bill só usa Colgate. A tia de Bill sobe ao ringue. Pede,calma. Fala que Bill foi um menino teimoso, mas sempre teve um grande coração. O juiz está impaciente. Ted está impaciente. O público está impaciente. Todos estão impacientes. O juiz oameaça com o cartão vermelho. Bill acaba cedendo. Ted exige que ele use fio dental. Bill diz quefio dental é invenção de homossexual. Ted se ofende, afinal ele também usa fio dental. Novaconfusão é formada. Serenado os ânimos o combate é reiniciado.

Eles estão tete a tete. Ted tem um jogo de pernas melhor. Chegou a ser convidado para pousar nu. Bill é muito rápido no contra-ataque. Ted baixa a guarda. Bill reclama. Diz que nunca bateu num homem de guarda baixa. Ted diz que o problema é dele. Enfurecido Bill lhe acerta um violento cruzado de direita. O pivô de Ted cai e com ele o molar da arcada superior. O combate éinterrompido. Bill pede desculpa. Ted não aceita. Diz que vai processá-lo por agressão. Depoismostra a língua e chama Bill de ozo tônico. Bill fica indignado mas não retruca a ofensa. Pelocontrário. Ele lhe dá o cartão do seu dentista. Ted chora emocionado. O juiz chora emocionado. Billchora emocionado. O público chora emocionado. Todos choram emocionados. O combate éreiniciado.

Eles estão tete a tete. O juiz olha o relógio a todo instante. Faz sinal que vai descontar. Ted acertam golpe a baixo da linha de cintura. O juiz lhe mostra o cartão amarelo. Diz que na próxima ele vai pra rua. Ted fica intrigado. Bill fica intrigado. O público fica intrigado. Todos ficam intrigados,menos o juiz.

O combate é interrompido. Ted vai até o seu técnico e pergunta quem é esse cara? Que cara,pergunta o técnico. Ted aponta para o juiz. O técnico procura explicar a situação. Abílio é juiz defutebol aposentado. Ele agora só apita jogos de times amadores. Ted fica indignado. Bill ficaindignado. O público fica indignado. Todos ficam indignados. O juiz fica gesticulando para o córnerde Ted e apitando o tempo todo. O organizador da luta pede desculpa a todos. Confessa que Abíliofoi o melhor que ele pode arranjar. Ted vaia. Bill vaia. O público vaia. Todos vaiam. O combate éreiniciado.

Eles estão tete a tete. Ted abusa do jogo de pernas. Bill estuda um meio de colocar os seus golpes. O juiz adverte Bill. Diz que ele está fazendo cera. Bill ignora a advertência e dá de ombros. O juiz puxa do bolso o cartão vermelho. Bill ofende a mãe do juiz. O pai do juiz e toda a sua família. Ele não dá a mínima importância pois já está acostumado. Ted interrompe e pede para ir ao banheiro. Ele está muito apertado. Quer fazer xixi. O juiz não deixa. Ted insiste. O Juiz manda ele calar aboca. Bill intercede. Fala nos Direitos Humanos,na abolição dos escravos, e até na Revolução Francesa. O juiz não entende nada. Ted não entende nada. O público não entende nada. Todos não entendem nada. Ted não agüenta e faz xixi no calção. O juiz o adverte verbalmente. Ted baixa a cabeça promete não fazer mais isso. O combate é reiniciado.

Eles estão tete a tete. Ficam girando no centro do ringue. Bill está com a sapatilhadesamarrada. O combate é interrompido. O juiz manda ele amarrar a sapatilha. Bill se recusa. Dizque não vai amarrar nada. Ted intercede. Diz que o problema é dele e que não é justo insistir. Billestá no seu córner chorando. Ted pergunta o que é que ouve. O juiz pergunta o que é que ouve. O 10

público pergunta o que é que ouve. Todos perguntam o que é que ouve. Bill chupa o nariz, enxugaas lágrimas e nada diz. Ted insiste. O juiz insiste, o público insiste. Todos insistem. Bill confessaenvergonhado que não sabe amarrar os sapatos. Sua mãe sempre fez isso para ele. Depois que casousó usava chinelo. Ted chora. O juiz chora. O público chora. Todos choram.A esposa de Bill entra no ringue. Eles se abraçam. Bill pede desculpa. Reconhece a sua culpa. Elediz que dali pra frente tudo vai ser diferente. Ela aceita as desculpas do marido. Diz que após a lutavai ensiná-lo a amarrar os sapatos. Bill não consegue dizer nada. Apenas beija a esposa. Tedaplaude. O juiz aplaude. O público aplaude. Todos aplaudem. O combate é reiniciado.

Eles estão tete a tete. Bill evita o confronto corpo a corpo. Ted transpira muito. O suor escorre por todo o seu corpo. Bill vai até o juiz. Pede que ele interrompa a luta. Assim como está não dá para continuar. O juiz fica sem ação. Não sabe como agir. Bill sugere que Ted tome um banho. O juiz descarta essa possibilidade. Bill pergunta se alguém tem um desodorante. Ted se sente ofendido. Não quer mais lutar. O combate é interrompido. Ted fala da importância das glândulas sudoríparas,da expedição de Martim Afonso de Souza e até sobre o Tratado de Tordesilhas. Bill não entende nada. O juiz não entende nada. O público não entende nada. Ninguém entende nada.A mãe de Ted sob ao ringue. Pede ao filho que continue. Ted faz beicinho e diz que vai pensar. Amãe insiste. O juiz insiste. Bill insiste. O público insiste. Todos insistem. Ted concorda. A mãeaplaude. Bill aplaude. O juiz aplaude. O público aplaude. Todos aplaudem. O combate é reiniciado.

Eles estão tete a tete. Bill vai a nocaute. O juiz começa a contagem. Já está no setecentos e noventa dois e ele ainda não se levantou. Ted protesta. Diz que só espera até o mil. Ele precisa fazer compras. Bill dorme feita uma criança, até ronca. Ted desconfia. O juiz desconfia. O públicodesconfia. Todos desconfiam. Bill acorda. Diz que não dormiu bem a noite. Pede desculpas. Tedaceita. O juiz aceita. O público aceita. Todos aceitam. O combate é reiniciado.

Eles estão tete a tete. O juiz recebe um telefonema. Sua mulher fugiu com um juiz daprimeira divisão. Ele fica indignado e diz que precisa ir embora. O público vai embora.Todos vão embora. Apenas Ted e Bill ficaram. O zelador do ginásio chega. Ele precisa fazer alimpeza. Bill olha para Ted. Ted olha para Bill. O zelador pergunta quem ganhou a luta. Bill diz quefoi ele. Ted diz que foi ele. Uma nova confusão inicia.

Eles estão tete a tete...

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U M CA S O DO OUTRO M U N DO

Toda a noite Ernesto ouvia ruidosos passos, correntes arrastando e risadas altas. Assustadopuxava as cobertas até a altura do nariz e ficava espreitando com o canto do olho. Certa madrugada,não agüentando mais aquela situação cutucou a esposa.

- Mulher. Tem gente ai.Helena virou para o lado e continuou a dormir. Ernesto desapontado ficou sem saber o que

fazer. Cobriu toda a cabeça e começou a rezar baixinho. Mas nem assim ele conseguia se acalmar.Na verdade o que ele realmente gostaria de dizer é que havia um fantasma perturbando o seu sono.Mas o que diria a sua esposa? O que ela pensaria a seu respeito? Qual seria a sua reação? Eramtantas as dúvidas que ele preferiu ficar calado esperando o dia amanhecer.

A discussão com a esposa na semana passada ainda o incomodava. Ernesto jurou pela almada madrinha Josefa, que havia visto José Bonifácio, jogando baralho numa praça da cidade. Helenaainda caiu na asneira de perguntar quem era o tal José Bonifácio.

- Como quem é José Bonifácio? - disse surpreso - Então você nunca ouviu falar no Patriarcada nossa Independência?

- Pai de quem, Ernesto?- Patriarca, Helena. - Ele teve um papel decisivo na preparação e consolidação da

Independência do Brasil.E aproveitando o momento resolveu impressionar a esposa.- Ele teve sempre teve uma participação ativa na vida política do nosso país. Durante os

primeiros anos de governo de D. Pedro I...- Ernesto, por favor! Agora não é hora de aula de História.Ernesto voltou a pensar no fantasma. Por alguns minutos ele havia conseguido esquecê-lo.

Mas agora o infeliz parecia ainda mais disposto a atormentá-lo. Os gritos aumentaram e os ruídospareciam ainda mais fortes.

Pensou em acordar a esposa e contar tudo o que estava acontecendo, porém não tevecoragem. Certamente ela diria que ele estava ficando louco e o aconselharia a procurar um médico.A vida é mesmo ingrata. As pessoas casam, constituem família, procuram dar conforto, amor esegurança para depois à esposa mandar o marido ao psiquiatra.

- Eu não vou em nenhum psiquiatra. - pulou da cama decididoHelena acordou assustada.- Ernesto, o que foi?- Eu já disse que não vou em nenhum psiquiatra.Helena não conseguia entender o que estava acontecendo. Em dezesseis anos de casamento

era a primeira vez que via o marido daquele jeito. Ernesto escancarou a janela do quarto e continuouberrando.

- Meu Deus, Ernesto! - acudiu a esposa aflita - O que é que está acontecendo?Ele não lhe dava ouvidos e continuava a gritar feito um possesso. Com muito custo Helena

conseguiu agarrá-lo pela cintura e jogá-lo sobre a cama. Finalmente Ernesto tomou ciência do papelridículo que representava. Aos poucos ele procurou se recompor. Foi até o banheiro, molhou o rostoe voltou para o quarto. Helena acompanhava atentamente todos os movimentos do marido.

- E então Ernesto. O que é que aconteceu? - perguntou a esposa calmamente.- Não foi nada. Eu apenas tive um pesadelo.Ernesto se sentiu um grande covarde. Não foi homem suficiente para dizer toda a verdade.

Certamente Átila jamais agiria daquela maneira. Ele foi o principal líder dos Hunos e um dos maiores inimigos do império romano. Ficou conhecido como Flagelo e Deus devido ao seu grande poder de conquista. Seus inimigos fizeram correr pelo mundo a fama de que por onde ele passava a vegetação nunca mais crescia tamanha a força e o poder de destruição de seu exército. Mas o pobre do Ernesto tinha medo até de dormir com a luz apagada. Isso sem falar no tal fantasma que toda 12

noite vinha atormentá-lo. Enfim, Ernesto foi vencido pelo cansaço e adormeceu.No dia seguinte ele acordou como se nada tivesse acontecido. Cantarolando pela casa saiu

todo sorridente trabalhar. Helena não tocou no assunto da noite passada. Trocou de roupa e foi logotratando de organizar a casa. Durantes semanas tudo transcorreu na mais perfeita ordem. Ernestonão teve mais problemas com assombrações e passava a maior parte do tempo fazendo declaraçõesde amor à esposa.

Certa madrugada Ernesto acordou encharcado de suor. Fez menção de levantar quandoobservou uma enorme sombra se mexendo nos pés da cama. Examinou minuciosamente o quartopara ter certeza do que estava vendo. Não havia mais dúvidas: era o fantasma de volta a importuná-lo.

Ernesto não se conteve e armou um novo escândalo.- Helena, tem um fantasma dançando nos pés da cama.A esposa ainda sonolenta não deu muita atenção ao marido.- Ah, Ernesto. Pare de bobagem. Fantasmas não existem.- Como não existem? É claro existem.- Ah é? - disse demonstrando irritação - Então como é que era esse fantasma?

Ernesto não se conformava com a descrença da esposa. Procurou descrever detalhadamentea visão que tivera.

- Ele tinha uma barba enorme e os cabelos cumpridos. Usava uma camisola branca até ospés e tinha uma corda pendurada no pescoço.

- Mas esse aí é o Tiradentes, Ernesto.- Nossa! É mesmo. O que será que o Tiradentes quer?Helena levantou contrariada e reclamando muito. Olhou em baixo da cama, na mesinha de

cabeceira, dentro do guarda-roupa, no banheiro, na sala, na cozinha e não encontrou nada.- Satisfeito?Desapontado Ernesto cobriu a cabeça e ficou resmungando. Helena não quis saber de

conversa. Apagou as luzes e voltou para a cama.Na manhã seguinte Ernesto saiu cedo de casa. Visivelmente perturbado foi até uma loja de

ferragens e logo em seguida voltou carregado de embrulhos. Colocou tudo sobre a mesa e começoua abrir um por um. Helena quando viu do que se tratava soltou uma gargalhada.

- Afinal pra que tudo isso, Ernesto?- Hoje aquele fantasma miserável não me escapa.- Quantos fantasmas você já pegou usando ratoeira? - sorriu com ar de debocheErnesto ignorava as ironias da esposa. Espalhava cuidadosamente as dezenas de armadilhas

por todos os cantos da casa. Ele já não era a mesma pessoa. Só pensava naquele maldito fantasma.De repente ele parou que estava fazendo e perguntou para a esposa.- Sabe Helena eu estive pensando.- Isso faz bem Ernesto.- Quem sabe o fantasma não é o seu pai querendo os chinelos dele de volta?- Ernesto! Você é um caso perdido.Aquela noite transcorreu na maior tranqüilidade. Não houve passos ruidosos, correntes

arrastando e muito menos sombras dançando. Ernesto acordou bem humorado sequer tocou no assunto do fantasma. Helena desarmou as ratoeiras e foi preparar o café.

Com o passar dos dias a rotina do casal voltou ao normal. Ernesto não teve mais visões noturnas, nem crises nervosas. Tudo parecia estar se encaminhando perfeitamente bem. Até que numa noite de lua nova Helena acordou ofegante e transpirando muito.

Levantou-se apresada e foi ao banheiro. Tinha a nítida sensação de estar sendo espionada. Quando voltava para o quarto deu de cara com um vulto enorme se mexendo nos pés da cama. Helena não se conteve e armou o maior escândalo.

- Ernesto! O Tiradentes veio devolver a tua ratoeira.

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A ABDUÇÃO DE NARINHA

Narinha chegou a casa gritando que havia sido abduzida por D. Pedro I. Ela adorava fazeresse tipo de brincadeira com o pai. Ainda na semana passada, dizia que havia incorporado o espíritode Tiradentes. Andava pela casa, com uma corda no pescoço, jurando vingança contra o traidorJoaquim Silvério dos Reis. Gritava o tempo todo: “Libertas quae será tamem.” Quando a sua mãecontou que a frase era em latim o pai se desesperou. Dizia que a filha estava possuída e mandouchamar um padre. Com muito custo à mãe de Narinha convenceu o marido de que aquilo erapróprio da idade e com o tempo passava. A princípio ele ficou meio ressabiado, mas depois acabouesquecendo o assunto.

Quando Narinha percebeu que os seus pais ainda estavam almoçando procurou dissimular asituação. A sua mãe, sempre dizia que briga e confusão na hora do almoço acaba em indigestão. Seupai nunca entendia essas frases prontas por isso reagiu com indignação.

- O quê? - bradou Tonicão soltando farofa pelo canto da boca - O feirante da esquinabuzinou a minha filha?

- Não é buzinou. É abduziu. - corrigiu a esposa.- Não importa o nome. O que importa é o que o safado fez.Levantou-se furioso, passou a mão no rolo de macarrão e tomou a direção da porta. A filha,

percebendo a gravidade da situação, procurou tranqüilizar o pai. Mas ele não lhe dava ouvidos.Bradava em alto e bom som que o feirante tinha ido longe de mais. Na semana passada ele haviamexido com a mulher do vizinho e agora a vítima era a sua própria filha. Isso não podia ficarimpune.

- Essa é a primeira vez que ele tentou te buzinar minha filha? - perguntou Tonicão num tommelancólico, já girando a chave da porta. Narinha foi mais rápida e se prostrou na sua frente. Não sabia se chorava ou se ria. Seu pai sempre acreditava em tudo o que ela falava. Com muito custo conseguiu acalmá-lo. Em seguida fez com que ele se sentasse ao seu lado para ouvi-la.

- Pai! - foi falando calma e pausadamente - Abduzir não é o que o senhor está pensando.Abduzir é quando uma pessoa é seqüestrada por um alienígena. Um E.T. Entendeu?

- Como é que é? Então quer dizer que Pedrão além de safado ainda é um E.T?A mãe de Narinha, que até então assistia a tudo calada, não se conteve e entrecortou a

conversa. Ela tinha muito orgulho da sua formação acadêmica. Terminou o Ensino Médio, passouno vestibular e chegou a freqüentar o primeiro semestre do curso de sociologia. Mas com a gravidezinesperada da Narinha foi obrigada a abandonar tudo.

- Tonicão! Você ouviu o que a sua filha acabou de dizer?- Mas é claro, mulher. Eu não sou surdo. O Pedrão além de safado ainda é um E.T.Narinha, no canto da sala, observava atentamente tudo o que a sua mãe dizia. Contorcia-se

toda para não rir da credulidade do pai. Não era a primeira vez que ela zombava dele daquelamaneira. Lembrou do dia em jurou ter visto o fantasma da Princesa Isabel, sentada ao lado domarido, assinando a Lei Áurea. Nunca esqueceu da expressão de espanto do pai quando ela lhedisse que a Princesa era filha de D. Pedro II e que essa Lei acabou definitivamente com aescravidão no Brasil, em 1888.

A discussão naquele momento ganhava contornos dramáticos. Narinha recolheu o sorriso aoperceber que a situação estava fugindo do controle. Era preciso fazer alguma coisa. Tonicão, já deporta aberta, trocava os primeiros passos na calçada.

- Mas, Tonicão - ponderava a esposa - Larga de ser bobo, homem. Não está vendo que a tuafilha está brincando?

- Como brincando? - retrucou o marido. - O Pedro que ela está dizendo, não é o Pedrão, o feirante. É o Imperador. 14

- Mas que imperador?- D. Pedro I. Primeiro Imperador do Brasil. Aquele que proclamou a nossa independência

em 1822. Entendeu, agora?- Mas se ele é Imperador o que é que ele estava fazendo num disco voador, junto com o

Pedrão, buzinando a nossa filha?A esposa de Tonicão não agüentou e voou no pescoço do marido. Sacudia a sua cabeça

freneticamente e não parava de gritar. Narinha pensou em pedir socorro para a vizinha que assistiaa tudo pela janela. Mas logo mudou de idéia. A vizinha era uma octogenária que afirmava ter sidocasada com o Marechal Deodoro. Contava nos mínimos detalhes como ele havia Proclamado aRepública Brasileira em 1889 e como se tornou o Primeiro Presidente do Brasil. Todas as vezes queas duas se encontravam ela começava a contar Histórias compridas que pareciam não ter mais fim.

- Ela está falando daquele Dom Pedro do livro de História. - vociferava freneticamente aesposa agarrada ao pescoço do marido. - Aquele que outorgou a nossa primeira constituição em1824. Entendeu, agora?

- Outorgou? repetiu Tonicão? Mas que diabo é isso? Desde quando você fala inglês,mulher?

- Outorgou quer dizer impôs seu desmiolado. - a mãe de Narinha estava totalmentedescontrolada - A nossa primeira constituição foi imposta pelo imperador D. Pedro I. Ela estabelecia04 poderes: Legislativo, Executivo, Judiciário e Moderador. O poder moderador foi feitoexclusivamente para o imperador...

- Amélia. - balbuciou Tonicão.- O que é homem de Deus?- Posso te pedir uma coisa?- O que é? - resmungou a esposa.- Solta o meu pescoço.Narinha correu até a sala, pegou o telefone e ligou para o Tio Genivaldo. Ele era um homem

alto, de fala mansa que dizia receber o Espírito do Caboclo Roncador. Ninguém sabia quem era essetal de Caboclo Roncador. Mas o fato é que ninguém se atrevia a acordar o Tio Genivaldo antes domeio dia. Também ninguém sabia ao certo o que ele fazia. Todo mundo arriscava um palpite, masnão havia certeza de nada. Porém, sempre que alguém precisava de conselhos logo procurava o TioGenivaldo.

- Alô. Tio Genivaldo? É a Narinha. Filha do Tonicão.- Aconteceu alguma coisa, minha filha?Narinha não sabia o que dizer. Afinal toda aquela confusão era culpa sua. O próprio Tio

Genivaldo já havia sido alvo de suas brincadeiras. Numa noite chuvosa Narinha ligou para eledizendo que a alma do presidente Getúlio Vargas rondava a cabeceira da sua cama. Ela sussurravaem seu ouvido palavras desconexas que não dava para entender. Tio Genivaldo especialista emlinguagem do além se dispôs a ajudar a menina. Quando ele chegou ao portão da sua casa a meninase desesperou. Todo molhado, o coitado trazia um crucifixo, uma trança de alho e uma garrafa deágua benta. Narinha meio, sem jeito gritou da janela que já estava tudo resolvido. Getúlio Vargasestava apenas procurando a sua Carta-Testamento.

- Não aconteceu nada, tio Genivaldo. - dizia Narinha ao telefone meio sem jeito - Eu sóliguei para saber se está tudo bem.

Desligou o telefone e voltou para junto dos pais A essa altura Tonicão parecia mais calmo.Ele estava encostado no portão esfregando o pescoço todo arranhado. Narinha aproximou-se ,abraçou o pai e se desculpou.

- Pai. Vamos entrar. Não aconteceu nada do que o senhor está imaginado.A mãe de Narinha apenas olhava a filha sem dizer uma única palavra. De repente Tonicão

colocou a mão sobre o peito e começou a tremer. Tremia tanto que mal conseguia se manter em pé.Narinha assustada tentava segurar o pai. Lentamente ele foi se abaixando até que caiu estateladosobre o gramado. Ela ajoelhou-se ao seu lado e começou a chorar.

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- Pai. Vamos chamar um médico.- Eu já chamei minha filha.- Mas quem você chamou? - indagou Narinha confusa.- O doto Mota Maia.- E quem é ele pai?Tonicão levantou-se num sobressalto. Limpou a sujeira da calça, sorriu para a filha e disse:– É o médico do dão Pedro I.

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A COI S A

A coisa é uma coisa que define muitas coisas. Alguém já se deu ao trabalho de procurar nodicionário, o significado da palavra coisa e suas variantes? É curiosa a quantidade de coisasencontradas. Senão vejamos algumas coisas. Coisa: Ser Inanimado, Objeto, aquilo que se fala,Substâncias Heterogêneas, foram do comum, sem valor ou de pouco valor. Coisarada: o mesmo queCoisada. Coiseiro: Livro de Registros usados na Inquisição. Coisita: Coisa Miúda. Coiso: QualquerPessoa, fulano. Coisar: Refletir, Matutar, Cismar.

A mãe chega em casa e pergunta pela filha. O filho mais velho, sem despregar o olho datelevisão responde:

- A Coisita saiu com o coiso.- E onde eles foram?- Não sei. Tudo o que disseram é que iriam coisar.A coisa é o conectivo básico da comunicação hodierna. Tudo gravita ao seu redor. Seu valor

é inestimável. O homem moderno não vive sem a coisa.- Por que vocês brigaram?- Ela me disse uma coisa que eu não gostei.Notaram o poder de síntese da coisa? Em apenas uma palavra ela resumiu toda uma

situação. Nada se compara a ela. Sua utilização é ilimitada. A coisa freqüenta os mais diversoslugares, a começar por uma recepção qualquer:

- O que você quer beber?– Qualquer Coisa.

No velório.- Ainda ontem nós conversamos.-Pois é. Foi uma Coisa repentina.

Numa conversa informal.- Eu perdi todos os meus documentos.-Nossa. Que Coisa Chata.

Entre duas amigas.- Você soube que o Marcelo deu uma surra na mulher?– Eu sempre achei que ele não era boa coisa.–Na escola.- Você entendeu o que o professor de História falou?- Eu não. O professor não fala coisa com coisa.

A coisa está presente em todos os momentos de nossas vidas. Ela é uma espécie de ameaça externa contra o uso correto da Língua Padrão. A sociedade, sem sentir está se tornando refém do seu uso diário. Tudo parece estar ligado a ela. Coisa-Feita, Coisa Pequena, Coisa Grande, Coisa Demorada,Coisa Feia, Coisa Material, Coisa de Mulher, Coisa a toa, Coisa Bonita, Coisa Engraçada, Coisa Triste... Que coisa, não?

Mas a coisa não está sozinha. Ela tem um rival respeitável. Evidentemente, não tão usualquanto ela, mas o suficiente para figurar ao seu lado. Estamos falando do Treco. O tão Temido,Ousado e Irreverente Treco. Ele mantém uma ativa participação social.

- Ele teve um treco e caiu.Mas o que exatamente significa ter um treco? Será a mesma coisa que ter uma coisa? 17

Muitos acham que ter uma coisa é muito mais grave, do que ter um treco.- Fulano teve uma coisa e morreu.

Perceberam a diferença entre um e outro? O Treco derruba. A coisa mata. Na maioria dasvezes quem tem um Treco logo se recupera. Mas em via de regra, quem tem uma Coisa geralmentevai parar no hospital.

Em meio a toda essa situação podemos concluir que toda Coisa é um Treco. Agora, nem todo Treco é uma coisa. Vamos tomar uma cerimônia religiosa como exemplo.

Se alguém tiver, alguma Coisa a declarar que fale agora ou...O restante da frase todos já conhecem. No entanto ninguém ousaria colocar o Treco no lugar

da coisa. Além de não fazer sentido ainda soaria mal.- Se alguém tiver algum Treco a declarar que fale....Mas afinal o que é um Treco? Treco: gênero de insetos Coleópteros Carabíeos. Alguém

saberia me dizer o que é um inseto Coleoptero Carabídeo. Eu não faço a mínima idéia. Mas a julgarpelo nome grande Coisa não deve ser.

No confronto direto entre a Coisa e o Treco a Coisa sempre levou vantagem. Talvez pela suaamenidade sonora, Coisa soa muito melhor nos ouvidos do que Treco. Dependendo da situação eladesperta inclusive o calor da paixão.- Você é a Coisa mais importante da minha vida.

Perceberam a suavidade, e a leveza da Coisa? No entanto, alguém se atreveria trocar aCoisa pelo Treco num momento como esse?

- Você é o treco mais importante da minha vida.Sei perfeitamente que em determinadas situações o uso de um ou de outro é uma questão de

escolha. Mas há certos casos em que o Treco não se enquadra. O exemplos acima comprovamclaramente esse pensamento.

Finalmente não poderia deixar de mencionar um outro elemento vivo da ComunicaçãoModerna. Alguns o acham Cacofônico. Outros poucos usual. Muitos sequer ousam pronunciar o seunome. Entretanto, não podemos simplesmente ignorá-lo. Estamos falando do Polêmico,Controvertido e muitas vezes Contestado Troço.

- Foi um Troço engraçado.Algum já viu um Troço engraçado? Ao menos riu de um Troço engraçado? Minha tia só ria

de coisas engraçadas. Vez ou outra de um Treco engraçado, mas nunca ria de um Troço engraçado.Ela não via graça nenhuma no Troço.

No entanto, não seria justo simplesmente excluir o Troço do mundo da Comunicação. É bemverdade que a sua utilização não é tão usual como a Coisa ou o Treco. Mas isso não é motivo para asua exclusão social.

O Troço geralmente freqüenta lugares específicos. Talvez seja por isso, a sua grandedificuldade de popularização. Enquanto a Coisa e o Treco estão em toda parte o Troço tem o seulugar reservado.

A filha mais nova, chega em casa apertada e bate a porta do banheiro. O pai calmamenteresponde.

- Tem gente.Na certa ele não está fazendo um Treco e muita menos uma Coisa. Perceberam a diferença?O Troço freqüenta o submundo da comunicação. Geralmente as pessoas evitam a sua

utilização temendo algum tipo de represália.Todavia, precisamos tomar consciência de uma nova realidade. A sociedade está impregnada

de Coisas, Trecos e Troços. E o mais grave que em curto prazo não há nenhuma perspectiva demudança, pois o homem moderno não vive sem a Coisa, o Treco e o Troço.

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NETINHO, O PRECOSE.

Chegou e esparramou sobre a mesa aquele calhamaço de papéis. Eram ao todo duzentas etrinta e nove laudas formatadas e normalizadas rigorosamente, de acordo com as determinações daAssociação Brasileira de Normas Técnica. O pai levou um susto. Levantou-se rapidamente, numsobressalto. Porém, nada perguntou. Apenas observava a feição alterada do Filho remexendo aqueleamontoado de folhas. Por fim, foi vencido pela curiosidade.

- O que é isso Netinho? - perguntou timidamente.Netinho, não respondeu. Sequer olhou na direção do pai. Detestava ser interrompido quando

estava envolvido em seus afazeres escolares. Permaneceu calado, absorto entre os papéis. Apenascingiu as sobrancelhas numa clara demonstração de reprovação pela pergunta do pai. Ele sempre foidiferente dos demais meninos da sua idade. Detestava qualquer tipo de brincadeira ou interrupção eraramente saia de casa. Ficava a maior parte do tempo trancado em seu quarto lendo. O seu paisofria muito como fato do filho não ter amigos.

- É o seu trabalhinho de escola? - inquiriu novamente o pai.Netinho não se conteve. Encarou bruscamente o pai. Este recuou alguns passos e baixou a

cabeça. Ele conhecia aquele olhar intimidador do filho. O menino tinha apenas dez anos, mas a suaprecocidade incomodava a todos, principalmente os colegas de escola.

- Foi a tia Sandra, quem pediu. - insistiu o pai.Aquilo foi a gota d’água. Netinho perdeu o controle. Ele sempre fez questão de chamar a

professora de Dona Sandra. Ficava fora de si sempre que alguém a chamava de tia Sandra. E agoravinha o pai importuná-lo com aqueles disparates.

- É a minha produção de texto do final de semana. - respondeu secamente.-Você quer dizer a tua redação? – arriscou novamente o pai sem muita convicção.- Não! Eu falei produção de texto. Redação é pr’a aluno de 5º série. Eu sou um escritor

completo.- Mas você está na 5ª série.- Estou por uma mera imposição da Legislação Educacional Brasileira.Netinho sempre foi muito seguro em seus posicionamentos. O pai por sua vez, raramente

entendia o que o filho dizia. Por mais que se esforçasse nunca conseguia acompanhar o raciocíniodo menino

- Mais alguma pergunta? - disse ironicamente.O pai se segurou para não lhe dar um tapa. Não era a primeira vez que Netinho o provocava

daquela maneira. Por mais acostumado que tivesse com o temperamento do filho as discussõeseram inevitáveis.

- Olha o respeito menino. Eu ainda sou seu pai.- E daí? Eu sou seu filho.- Você me respeite senão quiser apanhar.- Como sempre tentando me intimidar pela força.As discussões nunca chegam ao fim. Geralmente Netinho dizia uma frase de efeito e o pai

ficava sem resposta.- Paus e pedras podem quebrar os meus ossos. Mas jamais calarão a força das minhas

palavras.O pai detestava esses momentos. Procurava uma frase, uma citação, algo diferente para

dizer, mas nunca conseguia sensibilizar o menino. Como sempre Netinho davam--lhe as costas esaia calmante.

Na verdade o relacionamento dos dois era muito conturbado. E piorava ainda mais quandojogavam xadrez. Netinho ficava irritado com a demora do pai em realizar uma jogada. Isso sem

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mencionar a dificuldade que ele tinha em mover as peças.- Não, pai. O bispo não se move lateralmente.- Eu sei filho.- Pai! Isso é a torre e não uma tacinha.- É claro, meu filho.- É a sua vez de jogar.- xeque-mate!- Mais pai. Você não pode dar xeque-mate num peão.Netinho ainda tentava coordenar as jogadas do pai. No entanto, ele não admitia a

interferência do filho. E o jogo se prolongava por horas seguidas.Na escola Netinho era um tormento. Vivia discutindo com os professores. Sempre estava

insatisfeito com as explicações que eram dadas. A primeira vez que foi suspenso o pai quase perdeua cabeça. Depois mais clamo tentou argumentar com o filho.

- Mas afinal de contas o que você tem contra a tia Dalva.- Eu não tenho nada contra a professora Dalva e sim contra a sua prática pedagógica.O pai até pensou em perguntar o que era prática pedagógica, mas logo mudou de idéia. Ele

não queria piorar a situação ainda mais. Temia por uma resposta malcriada do filho.- Tudo isso só porque a tia Dalva falou que nós somos um país emergente em franco

desenvolvimento?- Isso é um engodo barato das elites brasileiras.O pai pediu licença por alguns instantes e correu até o seu quarto. Em seguida pegou o

dicionário para tentar entender o que o filho estava dizendo. Lá estava: engodo o mesmo que iludir,lograr, tapear, enganar com promessas falsas. Agora só restava saber o qual o significado de elite.Folheava o dicionário apressadamente temendo ser descoberto. Quase no final da página encontrou:elite minoria dominante constituída de indivíduos poderosos. Ao voltar para a sala Netinho estavade cara amarrada impaciente com tanta demora.

- Por que tanta demora?- Eu estava pensando no que você disse.- E conseguiu chegar a alguma conclusão sozinho? - cutucou o menino.O pai respirou profundamente fazendo um esforço enorme para não esquecer nenhuma

palavra.- Você tem razão meu filho. Essa minoria dominante constituída de indivíduos poderosos

não pode iludir, lograr, tapear, enganar eternamente o povo brasileiro com falsas promessas.Netinho ficou pasmo diante da resposta do pai. Simplesmente ficou parado refletindo sobre

aquelas palavras. Ele todo orgulhos finalmente havia conseguido sensibilizar o filho. Talvez aquelafrase fosse o início de uma nova etapa na vida dos dois.

O olhar perdido do menino fez com que o pai lembrasse da primeira paixão de Netinho. Elemudou completamente o seu comportamento em casa. Andava gentil, sorridente, cantarolando otempo todo. Certa manhã Netinho resolveu contar o que estava acontecendo.

- Pai! Eu estou apaixonado!O pai não podia disfarçar o seu contentamento. Na certa era uma namoradinha da escola.

Abraçou o filho e aproveitou o momento para lembrar das suas namoradas da adolescência. Omenino realmente parecia interessado naquelas histórias. Finalmente o pai não agüentando mais decuriosidade e perguntou:

- Quem é a menina, filho?- Ela é arqueóloga. Leciona na Universidade Federal do Paraná.- Mas o que é que faz uma arqueóloga? - indagou já quase arrancando os cabelos.- Ela é uma pesquisadora especializada em arqueologia. É uma área do conhecimento que

estuda vestígios materiais deixados por povos antigos, como construções, peças de cerâmicas,ferramentas, túmulos etc. Entendeu, pai? 20

O pai entrou em pânico. Deveria saber que o mundo de Netinho era diferente das outrascrianças da sua idade. Afinal, o que uma criança de 10 anos faria com uma arqueóloga? Algoprecisava ser feito e com urgência.

- Quantos anos ela tem Netinho?- Trinta e cinco.- Trinta e cinco? – repetiu o pai apavorado - Mas ela poderia ser sua avó, meu filho!- Pai! O amor não tem idade.Netinho acabou o romance duas semanas depois. O pai nunca soube o motivo do

rompimento, mas deu-se por feliz.Já era tarde. Netinho colocou em ordem a sua redação, apanhou o restante do material e foi

para o quarto. Antes de sair deu boa noite e o um abraço apertado no pai.Com certeza aquele era o início de uma nova etapa na vida dos dois.

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O COISA RUIM.

Dona Antonieta chegou completamente transtornada na escola. Queria porque queria falarcom o responsável pela direção daquele estabelecimento. Gritava e esmurrava o balcão da secretariaexigindo a presença imediata do diretor. Alguns professores assustados foram se aproximando paraverificar o que estava acontecendo.

- Eu só falo com o Diretor e mais ninguém. - berrava a senhora de meia idade.Funcionários e alunos se acotovelavam pelo corredor da secretaria na expectativa de ouvir o

que aquela senhora tinha de tão importante para dizer. Repentinamente Dona Antonietacomeçou a passar mal. Tremia tanto que mal conseguia se manter em pé. Recuou alguns passos eencostou-se à parede. O seu coração disparou e ela lentamente foi perdendo as forças.

O professor Leopoldo correu socorrê-la. Segurou-a tão forte que quase a sufocou. Commuita dificuldade ela foi levada até a sala da orientação. A orientadora Maria trouxe um copod’água e procurou acalmá-la. Dona Antonieta ainda trêmula permaneceu resmungando baixinho.

- Será que a professora Maria não pode ajudá-la? - sugeriu o professor Leopoldo.- Eu só falo com o diretor - foi tudo o que ela conseguiu dizer.O professor Leopoldo procurou acalmá-la mas teve que sair logo em seguida.O tumulto enfrente a secretaria era grande. Afinal o que teria acontecido com aquela pobre

senhora. Estudantes e funcionários formaram uma comissão e escolheram dois alunos da 5ª sériepara representá-los perante a Orientação da Escola.

- Eu não posso ir - reclamou Rafael.- Mas por quê? - perguntou Viviane a outra representante escolhida.- Eu já tenho 05 advertências. E além do mais a professora Maria não vai com a minha cara.Para o seu lugar foi nomeado Thiaguinho. Ele era o único dos meninos que ainda não havia

levado uma advertência. Apesar da timidez ele acabou aceitando a tarefa. Fizeram um circulo ecomeçaram a escrever uma pauta de reivindicações.

- Espere aí. - gritou a cozinheira. Isso não é reunião de sindicato.- É isso mesmo. - reforçou a bibliotecária. - Nós só queremos saber o que aconteceu com a

Dona Antonieta.- Você a conhece? - indagou a auxiliar de serviços gerais desconfiada.- Ela é minha vizinha.Nesse momento o Diretor chegou. O tumulto aumentou ainda mais. Praticamente toda a

escola toda estava postada em frente à secretaria esperando notícias de Dona Antonieta. Com muitadificuldade ele conseguiu passar pela multidão. Antes de chegar a sua sala foi puxado por um alunoda 7ª série.

- Diretor. É verdade que a Dona Antonieta morreu?O diretor levou um choque. Não fazia a mínima idéia do que estava acontecendo. Ensaiou

alguns passos, mas não conseguia sair do lugar. Estava completamente paralisado. Tentava a todocusto se movimentar, mas o seu esforço era em vão. Duas alunas da 6º série que espiavam pelajanela a sua agonia acenderem um maço de velas e começaram a rezar. No meio da confusão uma voz rouca embargada em lágrimas gritou.

- O diretor morreu.A histeria tomou conta dos presentes. Aquilo não podia ser verdade. Todos gritavam

palavras de ordem e exigiam ver o corpo do diretor. A professora Sonia lembrou que ficou devendo cinco reais ao defunto e não parava mais de chorar. Alguns funcionários inconformados culpavam a farofa da cozinheira Arlete pela tragédia.

Thiaguinho e Viviane a essa altura estavam debaixo da mesa da professoraMaria. Munidos de um celular e um caderno de anotações iniciaram as transmissões direto daorientação.

- Atenção! Atenção! Testando.22

- Fala logo e deixa de bobagem, Thiaguinho. - cochichou Viviane.- Bem, Amigos da Rede Escola. - iniciou todo pomposo a transmissão - O diretor e a Dona

Antonieta não morreram. Ambos passam bem e logo vão receber alta.- Deixe de ser burro Thiaguinho - corrigiu Viviane - Isso aqui é uma escola e não um

hospital.A multidão explodiu de felicidade. Todos se abraçaram e começaram a cantar o Hino

Nacional. Dona Arlete suspirou aliviada. Viviane aproveitou o momento para fornecer maioresdetalhes sobre a situação na orientação.

- O momento aqui é dramático. Estamos falando diretamente debaixo da mesa da professoraMaria. Ela ainda não viu a gente. O diretor ainda está com a mesma meia da semana passada...Thiaguinho ainda complementou as informações da colega.

- Ele está um pouco tonto, mas passa bem. A qualquer momento podemos ser descobertos,suspensos e encerrar as nossas transmissões.

Refeito do susto o diretor queria saber o que estava acontecendo. Aquela não era a primeiraconfusão causada pela Dona Antonieta. Ela sempre fazia um escândalo toda vez que ia a escola.Colocava defeito em todos os professores. Nunca estava satisfeita com nenhuma decisão tomadapela equipe escolar.

- Mas afinal de contas o eu está acontecendo? - ponderou o diretor.- A Dona Antonieta tem uma coisa muito grave pr’a dizer? - procurou mediar a professora

Maria.O Diretor já conhecia bem essas histórias. A última vez que a Dona Antonieta esteve na

escola foi para reclamar do professor de geografia. Alegava que ele passava muita lição de casa eque o seu filho não tinha nem tempo de ver televisão. A orientadora ainda tentou argumentar que alição é importante no aprendizado de qualquer aluno. Mas nem assim Dona Antonieta se convenceue ainda ameaçou denunciar o professor de geografia por abuso de tarefa.

- O que foi dessa vez Dona Antonieta?Ela abriu uma fresta da porta e olhou fixamente pelo corredor. Precisava ter certeza que não

havia ninguém espionando. Em seguida trancou a porta e fechou todas as cortinas da sala.Thiaguinho e Viviane se encolheram em baixo da mesa procurando não perder nenhum detalhe daconversa.

- Eu quero fazer uma denúncia contra o professor de História.- Outra vez?Dona Antonieta se aproximou do diretor e segredou algo em seu ouvido.- O quê? - explodiu o diretor - A senhora perdeu o juízo? Isso aqui é uma escola séria. Não

podemos perder tempo com bobagens.- Eu tenho provas do que eu estou dizendo. - disse enfaticamente.O diretor pediu para a professora Maria chamar o professor de História. Era preciso

esclarecer os fatos de uma vez por todas. A multidão impaciente aguardava notícias dos seusrepresentantes. Thiaguinho começou a reclamar que estava apertado e precisava ir ao banheiro fazerxixi. Viviane passou a mão no celular e contou que a missão estava em perigo. Não demorou muitopara que as primeiras mensagens de apoio começassem a chegar. O menino visivelmente emocionado agradeceu a todos e prometeu não decepcioná-los.

Quando o professor de História entrou na sala Dona Antonieta enfiou a mão na bolsa, sacouum crucifixo e apontou na sua direção. Em seguida baixou a cabeça e começou a rezar baixinho. Aprofessora Maria constrangida com a situação não sabia o que fazer. O professor Pompeu ficoupasmo tentado entender o que estava acontecendo.

- O senhor quer falar comigo, diretor - disse pausadamente receando a resposta.- Professor Pompeu o senhor conhece a Dona Antonieta?- Mas é claro. Quem não conhece a Dona Antonieta?

23

- Bem, professor...Não conseguiu dizer mais nada. Por mais que tentasse o diretor não sabia como iniciar

aquela conversa. Em quase trinta anos de profissão nunca havia passado por uma situação delicadacomo aquela. A professora Maria percebendo o seu embaraço procurou ajuda-lo.

- Quem sabe a Dona Antonieta não conta o que está acontecendo?- Pois muito bem! - falou decidida - Se ninguém tem coragem de dizer eu digo: O professor

Pompeu é adorador do Chifrudo.Aquela frase mexeu com os brios do professor Pompeu. Ele não conseguiu segurar a língua.

Falava alto e gesticulava o tempo todo. Em 15 anos de profissão nunca havia enfrentado umasituação tão absurda como aquela. Esmurrava a mesa da orientadora ameaçando processar todomundo. A multidão apreensiva ouvia os gritos histéricos do professor.

- Eu não sou pago para ouvir desaforo de gente maluca.- Então o senhor nega que é adorador do Coisa-Ruim? - perguntou Dona Antonieta em tom

desafio.Thiaguinho franziu a testa e sussurrou no ouvido de Viviane.- Quem será que deve ser esse tal de Coisa-Ruim?- Sei lá. Vai ver que é aquele professor baixinho que dá aula na 8ª série.A professora Maria procurava uma forma de acalmar a todos. Mas tudo o que tentava

parecia ser em vão. Ninguém lhe dava ouvidos. A discussão se encaminhava para agressõespessoais. Antes que a situação piorasse o diretor interveio.

- Professor! Por favor, se acalme. A senhora também Dona Antonieta. Assim nãochegaremos a lugar nenhum.

Um silêncio repentino tomou conta do ambiente. Dona Antonieta guardou o terço maspermaneceu em pé encostada junto à porta. O professor Pompeu, por sua vez, se sentou procurandorelaxar.

- Afinal de contas à senhora pode ser um pouco mais clara? - continuou o diretor.- Ela mandou fazer um trabalho sobre o Capeta.- Quem eu? - exclamou espantado o professor Pompeu - A senhora ficou maluca? De onde a

senhora tirou essa idéia absurda.Dona Antonieta puxou o caderno do filho de dentro da bolsa e jogou sobre a mesa do

diretor. Em seguida pediu que ele o abrisse na última página. O diretor leu, releu, balançou a cabeçae mostrou o caderno para a professora Maria. Ela leu, releu, balançou a cabeça e entregou o cadernoao professor Pompeu. Ele leu, releu, não entendeu nada e devolveu o caderno à Dona Antonieta.

- Está vendo Diretor como eu tinha razão? Contra fatos não há argumentos!O professor Pompeu não tinha mais dúvidas. Era um caso de internação. Aquela pobre

senhora precisa de ajuda. Repentinamente a raiva deu lugar à compaixão. A professora Maria notoua mudança no semblante do professor e aproveitou o momento para colocar um ponto final naquelahistória toda.

- Dona Antonieta. Porque a senhora não vai para casa e deixa que eu converso como oprofessor Pompeu?

- Eu não saio daqui sem uma boa explicação. - concluiu de forma enfática.- Mas Dona Antonieta o professor não pediu nenhum trabalho sobre o Capeta.- Como não? A senhora acabou de ler o caderno do meu filho!Ela puxou novamente o caderno a apontou com o dedo.- Está aqui professora Maria. Fazer uma pesquisa sobre Hugo Capeto.

Viviane se arrepiou por inteiro. No entanto permaneceu na dúvida. Nunca tinham ouvidofalar em Hugo Capeto. Sabia que coisa boa não era mas não tinham muita certeza de quem elefosse.

- Thiaguinho quem será esse tal de Hugo Capeto?- Acho que dever ser o filho do Capeta.

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- Nossa Thiaguinho! Eu nem sabia que o capeta era casado quanto mais que tinha um filho.Viviane pegou o celular e destampou a falar. Afirmou que o professor Pompeu fazia parte de uma seita pagã e que nas noites de lua cheia sacrificava crianças que colavam nas provas de História . A multidão enfurecida queria invadir a orientação. Thiaguinho solicitou calma a todos epediu que não fizessem nenhuma bobagem.

- Dona Antonieta! disse serenamente o professor Pompeu - Está havendo um engano.- Como engano professor?- Hugo Capeto não é quem a senhora está pensando.Dona Antonieta desconfiou da mudança repentina do professor. Ele falava calmo e

pausadamente. Nem parecia mais a mesma pessoa.- Dona Antonieta! repetiu novamente - Hugo Capeto foi um importante rei que conquistou o

poder na França em 987.E aproveitando o momento começou a falar como se estivesse numa sala de aula.- Com a ascensão de Hugo Capeto ao trono francês o reino Franco passou a ser administrado

pela Dinastia Capetígia. Essa família ficou no poder por mais de 800 anosEle foi um homem de grandes virtudes administrativas. Evidentemente que não conquistou o poderpor simpatia, mas sim por astúcia, sagacidade, força e é claro suborno. Era filho de Hugo, o Grandee em 987 tornou Páris a principal cidade do pais.

Viviane não agüentou e cutucou Thiaguinho.- Ta vendo seu burro. Hugo Capeto foi um rei. Ele não tem nada haver com o Capeta.- É mais foi você que disse que professor fazia parte de uma seita pagã.Na medida em que o professor Pompeu falava Dona Antonieta foi percebendo o tamanho da

asneira que fizera. Finalmente ela reconheceu o erro e pensou em se desculpar. Mas não sabia poronde começar. O diretor percebendo o constrangimento da mulher interrompeu o professor.

- Está tudo bem, Dona Antonieta? A senhora quer continuar a conversa uma outra hora?Ela balançou a cabeça afirmativamente, pediu desculpas e saiu cabisbaixa da sala. Todos se

entreolharam sem ter muito a dizer. O professor Pompeu e o diretor saíram logo em seguidaapresados. Já a professora Maria sentou-se no sofá, estendeu os braços para cima procurando aliviara tensão. Em seguida chamou Thiaguinho e Viviane que ainda estavam escondidos.

- Vocês já podem sair debaixo da mesa. E agora vão lá fora dizer que tudo já foi esclarecido.Os dois saíram correndo sem dizer uma só palavra. Quando trocavam os primeiros passos

em frente à secretaria ouviram a professora Maria gritar:- E mais uma coisa. Vocês dois estão suspensos por três dias.

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O VENDEDOR

O vendedor bateu à porta de entrada do sobrado apresadamente. Era um sujeito mediano,magro, de pele enrugada. Ele não pediu licença. Simplesmente foi entrando e esparramando sobre amesa uma quantidade enorme de livros. A maioria era enciclopédias e dicionários que se adquire emqualquer sebo. Em seguida puxou um catálogo de preços e começou a descorrer sobre as vantagensde ser um homem bem informado. As palavras saiam redondas de sua boca. Seus argumentos eramfirmes e convincentes.

Jocelito estava totalmente envolvido pela retórica do vendedor. Sequer se deu conta, queestava diante de um completo estranho que havia invadido a sua casa. A medida em que ele falavaJocelito demonstrava um grande interesse por tudo aquilo que era dito.

- O senhor conhece Plutarco? - perguntou repentinamente o vendedor.E agora? Como é que ele iria dizer que não conhecia Plutarco? Na certa o vendedor o

tomaria por um completo idiota. Alias, Jocelito não tinha nem certeza se que Plutarco era o nome deuma pessoa. Pensou até se que tratava de uma nova marca de Papel Higiênico ( Plutarco é garantiade uma Boa Limpeza) ou quem sabe o nome de um grande compositor de música clássica ( TeatroGuiara Apresenta a Nona Sinfonia de Plutarco). Jocelito depois de muito refletir resolver arriscar.

- Mas é claro! Qualquer criança conhece Plutarco. - respondeu sem a mínima convicção.- O senhor tem certeza disso? - interpelou o vendedor espantado.Não! Evidentemente que Jocelito não sabia o que estava dizendo. A única certeza que tinha

era que estava falando uma grande disparate. Ele nunca ouvira falar no tal do Plutarco. O maispróximo de Plutarco que ele conhecia era o Plutão, mas com certeza o vendedor não estavainteressado em um corpo celeste rebaixo a categoria de Planeta Anão.

- Meu pai sempre falou muito em Plutarco. - foi tudo o que conseguiu dizer.-Meu pai nunca falou do Plutarco para mim. – confessou o vendedor visivelmente

desapontadoAquela frase soou como um alívio nos ouvidos de Jocelito. Era tudo o que ele precisava para

se livrar daquela situação incomoda. O vendedor permaneceu calado absorto entre as lembranças dainfância. Jocelito resolveu encerrar a conversa ali mesmo e retomar a sua rotina diária.

No entanto, foi tomado por uma curiosidade incontrolável. E se ele morresse subitamentede um ataque cardíaco fulminante? Como é que ele iria saber quem era ou o que era Plutarco?Como passaria a eternidade sem saber absolutamente nada de Plutarco? Na certa se transformarianum fantasma atormentado vagando noite após noite assombrando as bibliotecas da cidade, embusca de informações.

- O senhor pelo visto gosta muito de Plutarco? - indagou Jocelino demonstrado muitasegurança.

- Na minha casa todos gostam de Plutarco e na sua?- Na minha também. Até o meu cachorrinho Poodle gosta de Plutarco.- Como é que é? O senhor está zombando de mim?Jocelito percebeu o semblante alterado do vendedor. Ele começou a falar alto e gesticular

sem parar. Nem parecia mais aquela pobre alma, de instantes atrás, angustiada pelas lembranças deinfância. Era precisava fazer algo antes que a situação se agravasse.

- Calma eu só estava brincando.- Com Plutarco não se brinca - sustentou enfático o vendedor.Aquela frase calou fundo em Jocelito. Ele recuou alguns passos e ficou olhando fixamente

para o vendedor. E se ele fosse um serial Killer disposto a matá-lo a qualquerpreço? Jocelito pensou em gritar por socorro, mas certamente não seria ouvido.O momento eradelicado e, portanto urgia medidas tranqüilizadoras.

- O senhor tem toda razão. Eu até acho que toda a história deveria ser revista.- Como assim? 26

A medida em que Jocelito falava ele observava atentamente as alterações fisionômicas dovendedor.

- Dado a importância de Plutarco - arriscou finalmente - A história da humanidade deveriaser dividida em Antes de Plutarco e Depois de Plutarco.

O vendedor pareceu ter gostado da idéia. Até esboçou um sorriso e ficou imaginando porqueele não tinha pensado nisso antes. Jocelito não tirava os olhos de cima dele. Embora estivesse umpouco mais tranqüilo ainda assim desconfiava daquele homem de pele enrugada.

- O que o senhor realmente acha de Plutarco?O vendedor coçou a ponta do queixo, respirou fundo, e por fim disse.- Ele é a minha maior fonte de inspiração.Finalmente aquela resposta era o sinal que Jocelito tanto esperava. Certamente Plutarco era

o nome de um homem. Talvez um cientista, um pintor famoso ou até quem sabe um famosovendedor de coco gelado nas praias do Caribe. Mas isso agora não tinha muita importância. O fato éque Plutarco era o nome de um homem.

Jocelito precisa ter muito cuidado na forma de conduzir a conversa. Ele sabia perfeitamenteque não podia mais cometer nenhum tipo de falha. Só assim ele poderia descobrir a identidade dePlutarco.

- O que o senhor mais gosta nele?- A forma como ele escreve.Jocelito suspirou aliviado. Então o tal do Plutarco era um escritor. Mas que tipo de escritor?Aquela história parecia não mais fim. Era preciso agir com sagacidade para não despertar

desconfiança.- E o senhor o que mais gosta nele? - interpelou fulminante o vendedor.Jocelito sentiu o coração disparar. Apoio-se no canto da mesa para não cair. Ele ainda não

estava preparado para responder sobre Plutarco. Pensou numa forma de contornar a situação, masnão via saída. Mesmo assim ainda esboçou uma última tentativa.

- É difícil falar. Plutarco deixou tantas obras que não tem como dizer qual a melhor. Aliasmeu pai vivia dizendo: “Pode ser que exista alguém que escreva como Plutarco, mas melhor que elejamais”

Os olhos do vendedor marejaram Ele não conseguiu se conter e uma lágrima rolou pelocanto do olho esquerdo. Era só colocar o pai no meio da conversa para o vendedor mudar osemblante. Por alguns instantes Jocelito teve pena daquele homem mediano, magro, de peleenrugada. Ainda assim, a desconfiança era maior que o seu sedimento de piedade.

- Meu pai adorava Plutarco. Alias o dia que eu tiver um filho vou chamá-lo de Plutarco.O vendedor prorrompeu em prantos. Chorava copiosamente feita uma criança. Ele tinha

quatro filhos e nenhum deles se chamava Plutarco. O mais velho se chamava Plutônio mas isso nãolhe serviu de consolo. Aos poucos ele foi se refazendo e enxugando as lagrimas.

- O senhor me desculpe - disse sugando nariz - Mas eu não pude conter a emoção.Certamente o vendedor poderia ser qualquer coisa menos um Serial Killer. Jocelito

aproveitou a vulnerabilidade do vendedor para colocar um ponto final naquelaHistória. Ele só precisa saber um pouco mais sobre a vida de Plutarco. Pensou em comoFazer isso sem levantar suspeitas. Concluiu que raramente as pessoas resistem a uma bajulação.

- Eu estou impressionado com o seu conhecimento sobre Plutarco. Se meu pai você vivo eletambém iria gostar muito de conhecer o senhor.

Aquela frase sobre o seu pai saiu meio sem querer. Mas foi providencial para desarmar ovendedor. Ele agora estava em suas mãos. Bastava apenas fazer a pergunta certa e acabar de vezcom todo aquele suspense.

- Meu pai sempre me contava histórias sobre Plutarco antes de eu dormir.O vendedor sentiu uma sensação de arrepio por todo o corpo. Seu pai nunca leu nada para

ele sobre Plutarco. Durante anos foi obrigado a fazer análise para se livrar desse trauma de infância. 27

Até hoje ele não conseguiu perdoar o pai por isso.Jocelino pressentiu que aquele era o momento ideal para encerrar o assunto de uma vez por

todas.- Meu pai ficaria muito contente se o senhor falasse algo sobre Plutarco.O vendedor não tinha como dizer não. Como iria negar um pedido de um morto tão ilustre?- Mas o senhor já sabe tudo sobre ele? O que eu poderia lhe ensinar? - indagou

humildemente o vendedor.- Finja que eu não sei nada sobre ele.Jocelito foi tomado por uma satisfação incontrolável. Afinal tudo saiu como planejado.Agora era só aguardar o que o vendedor tinha para dizer.- Pois bem. Plutarco nasceu em Queronéia, na Grécia por volta do ano 45 Antes de Cristo.

Foi um grande filósofo e também Historiador. Escreveu sobre imperadores, reis, príncipes,oradores, generais e ainda há quem duvide de sua capacidade de Historiador.

A medida que ele falava seus olhos brilhavam de contentamento. Jocelito vez ou outrointerrompia a conversa e opinava como se tivesse um vasto conhecimento sobre o assunto.

- Isso é o maior absurdo que já ouvi. Plutarco tinha alma de historiador. Somente alguémque nunca leu as suas obras falaria uma bobagem como essa.

A cada intervenção de Jocelito o vendedor se sentia constrangido. Só mesmo um profundoconhecedor e admirador de Plutarco se sujeitaria a ouvir um vendedor de livros, falar sobre umassunto que ele dominava completamente.

- Ele escreveu mais de 200 livros. Foi o maior biógrafo da Antiguidade. Uma de suasmaiores obra foi Vidas Paralelas: um relato perfeito sobre figuras ilustres do mundo greco romano,como Júlio César, Alexandre, Teseu, Rômulo, Cícero, Demóstenes, entre outros.

- É inacreditável como existem pessoas que não conheçam Plutarco. - complementouJocelito.

- O senhor tem toda razão. Ele é um dos autores gregos mais lidos dos últimos tempos. Ecomo ele mesmo dizia: É preciso viver, não apenas existir.

Ao terminar essa última frase abraçou Jocelito em sinal de agradecimento e mais uma veznão se conteve e começou a chorar. Em seguida recuou alguns passos e procurou se recompor.

Jocelito ainda atônito, pela cena inesperada, não tinha mais nenhuma dúvida sobre o vendedor. Elenão passava de uma pobre alma atormentada a procura de atenção.

- Eu tenho inveja do senhor? - confidenciou o vendedor.- Por quê?- Por ter um pai como o seu.O vendedor se despediu de Jocelito e tomou a direção da porta. Já do lado de fora da casa

ele gritou:– O senhor conhece Tucídides?

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O ANJO DA MORTE

Passava da meia noite quando o telefone tocou na casa do Professor Diocleciano. Do outro lado da linha uma voz rouca e ameaçadora proferiu a sentença final.

- Você vai morrer a meia noite de hoje.

Diocleciano não deu muita importância ao fato e simplesmente desligou o telefone. Praticamente ele recebia aquele tipo de telefonema todos os dias. Certamente era algum aluno desesperado em estágio terminal de reprovação. Ainda na semana passada foi vítima de uma dessas brincadeiras.

- Alô, quem fala?

- É o professor Diocleciano.

- O senhor é professor de Geografia?

- Isso mesmo.

- O senhor sabe me dizer se o Mar Cáspio usa shampoo?

Diocleciano era uma pessoa serena e bem humorada. Nada parecia abalar a sua tranqüilidade. Sempre que recebia um trote, como este, nunca desligava bruscamente o telefone. Ao contrário, em algumas situações até procurava estender um pouco mais o assunto. A sua esposa sugeriu, por diversas vezes, que ele mudasse o número do telefone. Porém, ele nunca concordou. Alegava que as brincadeiras não eram maldosas e portanto não havia motivo para radicalismos.

- Alô. É o professor Diocleciano?

- Ele mesmo.

- Aqui é da escola. O senhor já foi avisado sobre a missa de sétimo dia?

- De quem?

- Do Mar Morto.

Por diversas vezes Diocleciano caia na gargalhada. Parecia até que estava conversando com alguém muito próximo do seu circulo de amizade. Mas desta feita, a situação era totalmente diferente. Havia algo de estranho naquele telefonema que ele não conseguia identificar. Talvez fosse a rouquidão da voz ou quem sabe forma como a frase foi dita. O fato é que Diocleciano ficou tenso e irritado.

Quando se preparava para dormir o telefone novamente tocou . O seu coração gelou. Sentiu um arrepio tomando conta do seu corpo. Procurou manter a tranqüilidade. Olhou no identificador de chamada mas não aparecia nenhum número. Permaneceu ali parado, olhando para o aparelho, sem coragem de atender. Sentiu um alivio regozijante quando aquele som estridente finalmente parou de soar.

Foi até a cozinha bebeu um copo de leite, comeu algumas bolachas e foi se deitar. Ainda estava escovando os dentes quando o telefone mais uma vez tocou. O susto foi tamanho que Diocleciano derrubou a escova de dentes no vaso sanitário. Sentiu seu corpo todo extremecer. Ele precisava tomar uma atitude. Não poderia passar o resto da noite naquele agonia.

- Alô.

- Você vai morrer a meia noite de hoje. - sentenciou enfática a voz do outro lado da linha.

– Quem está falando? - gaguejou Diocleciano.

29

- Eu sou o Anjo da Morte. Eu vim levar r a tua alma para o Juízo Final.

Diocleciano emudeceu. Não sabia o que dizer. Aquela voz soturna realmente o deixou perturbado. Ficou paralisado por alguns instantes pensando como que iria enfrentar aquela situação desesperadora. Olhou para o relógio pendurado ao lado da estante e permaneceu estático, observando o movimento circular do ponteiro dos segundos. Subitamente ele se deu conta que já passava da meia noite. Finalmente suspirou aliviado, pois agora tinha certeza que tudo não passava de uma brincadeira de mal gosto.

- A tua mãe não te ensinou a ver as horas? - inquiriu Diocleciano em tom de zombaria.

- Professor Diocleciano. Não se brinca com o desconhecido.

- E não se liga depois depois da meia noite na casa de um cidadão para pertubar o seu sossego – contestou rispidamente.

- O senhor acha que isso tudo é uma brincadeira?

Diocleciano não respondeu de imediato. Olhou mais uma vez para o relógio para se certificar das horas. Havia algo de estranho naquela voz que ele não conseguia compreender. A seriedade com que ela articulava as palavras o assustava. Pensou em desligar o telefone e acabar em definitivo com aquele tormento, mas não teve coragem. Até parecia que havia perdido a sua própria vontade e agora era controlado por aquela voz misteriosa.

- Escuta, Filho das Sombras.

- O senhor que dizer Anjo da Morte.

- Que seja. Já passava da meia noite quando você me ligou é agora é meia noite e meia. Portanto, ou você não aprendeu as ver as horas ou precisa comparar um relógio novo.

- O tempo é um fluir constante. Ele não pode ser adiantado nem atrasado.

- O que você quer dizer com isso?

- Eu não sigo o Horário de Verão. Ainda são onze e meia.

Diocleciano arremessou o telefone contra a parede espatifando-o em vários pedaços. A brincadeira havia perdido a graça e ele a paciência. Sentiu um suor gelado escorrendo pelo rosto. Com alguma dificuldade chegou até o seu quarto e permanecendo em silêncio. Deitou-se de lado arrependido pela agressividade da sua ação tempestiva.

Estava quase pegando no sono quando ouviu o som do telefone. Aquilo não podia estar realmente acontecendo. Certamente o seu desgaste emocional estava mexendo com a sua imaginação. Cobriu a cabeça com o travesseiro e ficou cantarolando baixinho. Mesmo assim, ainda podia ouvir o som do telefone. Levantou-se decidido a dar um basta em tudo aquilo. Foi até a sala e para sua surpresa o telefone estava mudo do mesmo jeito que ele havia deixado.

Sentou-se pensativo no sofá e ligou o rádio. Precisava de uma distração para aliviar a tensão. Uma música suave foi envolvendo o ambiente e tomando conta de Diocleciano. O som das Harpas e dos Sinos transmitiam um sensação de paz e leveza. Subitamente um feixe de luz amarela espargiu-se por toda a sala. Diocleciano levantou-se assustado temendo pelo pior.

- FM Celestial. A rádio número um dos Anjos.

Era a mesma voz do telefone. Só que desta feita vinha do rádio. Diocleciano mudou de estação e aquela voz continuava a persegui-lo. Só poderia estar enlouquecendo. Percorreu outras estações e para o seu desespero a voz continuava a mesma.

- Diocleciano você está pronto para conhecer o Além?

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Diocleciano hesitou alguns instante. Estava confuso sem saber exatamente o que responder.

- Quem disse que eu quero conhecer o Além? Alias eu não conheço direito nem o bairro onde moro quanto mais o além. - esbravejou Diocleciano.

- Não é uma questão de escolha. A tua hora chegou.

- Então prove que você é o Príncipe da Trevas.

- Você quer dizer Anjo da Morte.

- Seja lá o que for. Eu preciso de uma prova. - retrucou Diocleciano em tom de desafio.

- Você quer mais provas? Tudo o que aconteceu até agora não foi o suficiente?

De repente Diocleciano se deu conta que estava discutindo com o rádio. Se alguém o visse naquele estado na certa o tomaria por um desequilibrado. Precisava a qualquer custo recobrar a razão. Abriu as janelas da sala em busca de ar puro. O frescor da madrugada pareceu tranqüiliza-lo um pouco. Sabia perfeitamente que qualquer pessoa envolvida por um forte stresse emocional está sujeito a ouvir vozes.

- Você está pronto para partir?

Diocleciano não respondeu. Lembrou da grande heroína francesa Joana D’arc que segundo os historiadores também ouvia vozes. A jovem camponesa liderou os franceses em inúmeras batalhas na guerra dos Cem Anos em 1337. Suas vitórias reanimou o exército francês e despertou o sentimento nacionalista do seu povo. Infelizmente após a sua prisão foi acusada de bruxaria e morreu queimada. Talvez estivesse faltando para Dioclesiano um pouco da coragem de Joana D’arc para enfrentar a situação.

- Escuta Mensageiro do Além...

- Anjo da Morte, Diocleciano! Anjo da Morte! - repetiu bastante irritado.

- Está bem, Profeta das Trevas. Você não pode me dar mais alguns dias? Eu ainda nem corrigi as provas da 5ª série.

- Eu não tenho esse poder. Além do mais o teu julgamento está marcado para amanhã de manhã.

O Anjo da Morte não percebeu que já passava da meia noite. Quando foi conferir as horas o seu coração quase saltou pela boca. A sua missão corria sério risco de fracassar. Era preciso agir rápido para não por tudo a perder. Ele sabia perfeitamente que a penalidade pelo descumprimento de uma Missão Divina era se transformar em Alma Penada. Portanto, passaria a Eternidade vagando nos Jardins do Além.

- Como é que eu vou morrer? Eu não estou doente. Alias estou me sentido ótimo.

- Eu não sei. A minha missão é levar a tua alma para o Juízo Final. Agora vê se morre logo, que eu estou com pressa.

Diocleciano achou o comportamento Anjo da Morte muito estranho. Já não falava mais com tanta segurança. As frases proferidas por ele também já não eram tão intimidadoras como no início. Parecia estar muito preocupado e isso era um bom sinal. Diocleciano postou-se ao lado da estante e permaneceu caldo.

- Diocleciano, você já morreu?

- Você, não está vendo? - ironizou Diocleciano.

- É claro que não. Eu estou no rádio, esqueceu?

- Ainda não. Estou esperando a morte chegar.

31

- Mas já era para você ter morrido.

A medida que a conversa avançava Diocleciano parecia mais descontraído e confiante. Estava conseguindo desestabilizar a estrutura emocional do Anjo da Morte. Todo aquele pavor inicial havia desaparecido. Tudo o que ele precisava era ganhar tempo até o dia amanhecer.

- Talvez se eu soubesse como eu vou morrer ficasse mais fácil.

- Eu já disse que não sei.

- Mas você não faz nenhuma idéia?

O Anjo da Morte conferiu algumas anotações que trazia no bolso. Realizou alguns cálculos, consultou meia dúzia de rabiscos, olhou a posição das estrelas e por fim arriscou.

- Você vai morrer afogado.

- Onde?

- Ai você já está querendo demais.

- A hora que você descobrir é só entrar em contato novamente.

Diocleciano desligou o rádio e ficou pensativo tentado entender tudo o que estava acontecendo. E se tudo aquilo fosse realmente verdade? Será que finalmente havia chegado o seu fim? Talvez devesse se conformar com a sua sina e aguardar pelo Juízo Final. Todavia, não foi isso que ele fez. Diocleciano tinha por princípio nunca desistir sem antes tentar. Ficou esperando um novo contado do Filho das Trevas, digo Anjo da Morte.

Enquanto esperava Diocleciano ligou a televisão. Um sujeito barbudo, grandalhão, trajando uma pala preta e segurando um enorme berrante, pregava sobre o Juízo Final. Diocleciano levou um choque. Seria ele Anjo da Morte? Afinal, os anjos são donos de uma beleza delicada e de um brilho magnífico. Diocleciano ficou atento ouvindo cada frase que o pregador dizia.

- O dia Juízo Final é a hora de acertar as contas com o criador. Ainda há tempo de se arrepender de todos os pecados cometidos. Basta você reconhecer seus erros e pedir para ser levado pelo Anjo da Morte. Só assim você conquistara a paz Celestial e poderá pisar nos Jardins do Paraíso. Caso contrário, estará condenado a viver eternamente no calor medonho das profundezas.

Então, aquele era o Anjo da Morte. Mas quem já ouviu falar em Anjo Pantaneiro, tocando Berrante? Além do que as suas palavras soavam mais como um convite do que um chamado. Diocleciano estava intrigado com tudo aquilo. Até parecia que o Anjo da Morte havia perdido o seu poder de persuasão. Ele não se conteve e resolveu perguntar:

- E então, Anjo da Sombras. Já descobriu como eu vou morrer?

- Diocleciano? É você mesmo? Mas você ainda não morreu?

- Como dizem quem é vivo sempre aparece.

O Anjo da Morte não tinha mais como protelar aquela situação. Precisa esclarecer tudo o que estava acontecendo. Só não sabia ao certo como seria a reação de Diocleciano. Finalmente resolveu colocar um ponto final em todo aquele impasse.

- Eu não sou o Anjo da Morte. - confessou inconsolável o Mestre das Sombras, digo, o Anjo da Morte.

- Eu bem que desconfiava e quem é você.

- Eu sou o irmão dele. Ele não pôde vir e me pediu para ajudá-lo. Mas a minha missão fracassou pois o dia está quase amanhecendo e você ainda não morreu.

Diocleciano ficou tão comovido com aquela revelação que até sentiu pena do irmão Anjo da

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Morte. Mas logo em seguida foi tomado por uma euforia incontrolável. Começou a pular e cantar sem parar pela casa. Ele havia vencido a morte e finalmente teria um pouco de paz.

-Não vejo motivo para tanta alegria. - interrompeu secamente o irmão do Anjo da Morte.

- Como assim? - quedou-se subitamente Diocleciano.

- Eu não posso te levar mas meu pai, pode.

- E quem é o teu pai?

- Ele é o Mestre da Morte.

- Mas que família complicada essa tua Filho das Profundezas. E onde está o teu pai?

- Viajando com a Deusa da Morte.

- E quem é essa tal Deusa da Morte.

- É a minha mãe.

- Olha, Senhor da Escuridão. Você pelo jeito tá bem encrencado.

- Diocleciano. Tome muito cuidado. O dia ainda não amanheceu.

Diocleciano até pensou em continuar a conversa mas foi vencido pelo cansaço. Jamais passou pela sua cabeça que morrer desse tanto trabalho. Antes de dormir resolveu tomar um banho quente e perfumado. Encheu a banheira e procurou relaxar. Já estava totalmente emerso na água quando sentiu uma pontada do coração. Diocleciano levou a mão no peito e sentiu o coração disparar. Tentou por diversas vezes se levantar mas não conseguiu. Sentia uma força maior que ele empurrando seu corpo para o fundo da banheira. A medidas que o seu corpo afundava Diocleciano ouvia vozes que mais pareciam sussurros.

- Finalmente a tua hora chegou, Diocleciano.

- É você, Príncipe da Eternidade? - perguntou Diocleciano, confuso.

- Não. Eu sou o Mestre da Morte e essa é a minha Mulher a Deusa da Morte.

- E onde está o teu filho?

- Está a caminho dos Jardins do Além. Ele fracassou na missão e vai ter que pagar por isso. - concluiu consternado o Mestre da Morte.

- Mas não é culpa do pregador. Ele até que se esforçou. Quase me conveceu - O culpado de tudo foi o Anjo das Trevas.

Diocleciano procurava ganhar tempo. Talvez assim conseguisse encontrar numa saida e se livrar definitivamente daquela situação.

- Você quer dizer o Anjo da Morte - corrigiu a Deusa da Morte.

- Esse mesmo. Ele simplesmente mandou o irmão fazer o serviço dele.

- Chega dessa conversa - finalizou o Anjo das Sombras, digo o Mestre da Morte. -Você vai morrer agora mesmo.

Diocleciano começou a se debater na tentativa salvar a sua vida. Aos poucos foi desfalecendo, ficando pálido e perdendo a voz. Mesmo assim ainda conseguiu reunir as últimas forças que lhe restava para gritar.

- Pare, Príncipe do Além, eu não posso morrer. Deixe apenas eu pagar a última prestação do meu apertamento.

– E quando termina?

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- Daqui a vinte e cinco anos.

Diocleciano sentiu um impacto descontrolado sacudindo o o seu corpo.

- Diocleciano, Diocleciano, acorde. Você vai se atrasar para o trabalho.

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