“A luta pelo direito” Engajamento militante e ... · iii “ ‘A luta pelo direito’....

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Museu Nacional. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Universidade Federal do Rio de Janeiro “A luta pelo direito” Engajamento militante e profissionalização dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina Virginia Vecchioli Tese de doutorado Orientador: Pfr. Federico Neiburg Rio de Janeiro 2006

Transcript of “A luta pelo direito” Engajamento militante e ... · iii “ ‘A luta pelo direito’....

  • Museu Nacional.

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    A luta pelo direito

    Engajamento militante e profissionalizao dos advogados

    na causa pelos direitos humanos na Argentina

    Virginia Vecchioli

    Tese de doutorado

    Orientador: Pfr. Federico Neiburg

    Rio de Janeiro

    2006

  • ii

    Virginia Vecchioli

    A luta pelo direito

    Engajamento militante

    e profissionalizao

    dos advogados na

    causa pelos direitos

    humanos na Argentina

    Museu Nacional / PPGAS

    2006

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    A luta pelo direito. Engajamento militante e profissionalizao

    dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina

    Virginia Vecchioli

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios a obteno do ttulo de Doutor em Antropologia Social. Orientador: Pfr. Federico Neiburg

    Rio de Janeiro Dezembro de 2006

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    Vecchioli, Virginia

    A luta pelo direito Engajamento militante e

    profissionalizao dos advogados na causa pelos

    direitos humanos na Argentina /Virginia Vecchioli

    Rio de Janeiro: UFRJ / Museu Nacional / PPGAS / 2006.

    xi, 370 pg.

    Tese de doutorado Universidade Federal do Rio de Janeiro,

    Museu Nacional, PPGAS.

    1. direitos humanos. 2. antropologia do direito. 3. profisses.

    4. engajamento militante. 5.Argentina. 6. Tese (doct. UFRJ.

    Museu Nacional). I. Ttulo

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    Agradecimentos

    Este trabalho se fez possvel graas contribuio de muitas pessoas e instituies.

    Para a realizao desta tese contei com o auxilio financeiro do Conselho Nacional de

    Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), da Fundao de Amparo Pesquisa do

    Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), do programa de subsdios a pesquisadores da

    Universidade de Buenos Aires (UBACyT) e de uma bolsa do Centro de Investigaciones

    Etnogrficas da Universidade Nacional de San Martn outorgada especialmente no ltimo ano

    para apoiar a escrita da tese. Aos responsveis destas agncias e instituies, meu eterno

    agradecimento.

    A minha principal dvida intelectual com os professores do Museu Nacional com os

    quais me formei nestes anos de doutorado: Moacir Palmeira, Luis de Castro Faria, Carlos

    Fausto, Joo Pacheco de Oliveira, Giralda Seyferth, Otvio Velho, Marcio Goldman, Antonio

    Carlos de Souza Lima. Devo agradecer a todos eles, especialmente a meu diretor de tese

    Federico Neiburg que tem sido um verdadeiro apoio por seu compromisso permanente para

    com meu trabalho. Em cada uma das instncias de reviso dos rascunhos originais de este

    texto colocou-se de manifesto as suas extraordinrias qualidades de leitor crtico e de mestre.

    Devo a sua valiosa generosidade intelectual posta em jogo ao longo destes anos de orientao,

    o fato de ter aprendido uma maneira de fazer e conceber a antropologia social. No menos

    importante o fato de ter me brindado contatos chaves com o universo dos meus nativos.

    Estou em dvida tambm como os professores Lygia Sigaud e Fernando Diaz Duarte pelos

    comentrios e sugestes colocadas a meu trabalho em diferentes momentos da sua elaborao,

    a procura sempre de sofisticar a formulao dos problemas e as apropriaes da literatura. O

    tempo passado junto aos meus colegas da turma tambm foi uma contribuio importante a

    minha formao. Entre eles quero salientar a Renata Menezes de Castro, Elisa Guaran de

    Castro e Roberta Ceva. A disposio dos funcionrios do PPGAS tambm tem sido uma

    contribuio importante na hora de resolver questes chaves para o avano do trabalho.

    Ofereo tambm a eles o meu agradecimento, especialmente a Tania Lcia Ferreira da Silva.

    Esta tese foi possvel tambm graas ao estgio realizado no Laboratoire de Sciences

    Sociales da cole Normale Superieure. A contribuio que vrios de seus integrantes

    realizaram ao meu trabalho foi muito significativa. Entre eles preciso destacar o professor

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    Michel Offerl quem, como o meu diretor de estudos, abriu meus horizontes intelectuais

    apresentando linhas de pesquisas que seriam chaves na articulao dos problemas

    desenvolvidos neste trabalho. O seu entusiasmo por me introduzir na literatura e por me fazer

    participar da comunidade local de pesquisadores ligados a questo do engajamento jurdico

    tem sido uma enorme fonte de inspirao. O seu compromisso com a minha tese fez deste

    perodo de formao uma instncia verdadeiramente privilegiada.

    Durante este estgio me beneficiei especialmente do contato com Yves Dezalay, Eric

    Agrikoliansky, Liora Israel, Daniela Cuadros Garland, Marina Franco, Carlos Herrera e

    Antoine Willemez. Todos eles contriburam fazendo sugestes significativas ao projeto mas

    tambm me facilitando conhecimentos prticos sobre os arquivos locais e contatos chaves

    com os profissionais do direito franceses engajados na causa dos direitos humanos na

    Argentina. Estas dicas resultaram extremadamente valiosas na hora de tirar o mximo

    proveito dos quatro meses de um estgio que combinou a participao em seminrios e

    encontros acadmicos com a pesquisa em arquivos e a realizao de entrevistas.

    Na Argentina recebi tambm o estimulo de vrios grupos de pesquisa localizados

    principalmente no Instituto de Desarrollo Econmico y Social (IDES). Em primeiro lugar,

    devo agradecer a Elizabeth Jelin, diretora do Ncleo de Estdios sobre Memria, a

    possibilidade de compartilhar as reunies de trabalho no perodo 2004-2006. Neste espao me

    beneficiei de importantes sugestes formuladas s verses preliminares dos captulos. Estas

    reunies foram um incentivo permanente pela diversidade de pesquisas e pesquisadores

    congregados neste espao. O que faz do Ncleo um verdadeiro foro de debate amplo e

    democrtico sobre o passado recente na Argentina. Sinto-me especialmente em dvida com

    Vera Carnovale, Claudia Feld e com Emilio Crenzel. Emilio sempre foi um suporte intelectual

    muito importante e com quem compartilhei algumas das emoes envolvidas na produo de

    nossas respectivas tese de doutorado.

    Aos colegas reunidos no Centro de Antropologia Social (IDES), Rosana Guber, Sergio

    Visacovsky e Mauricio Boivin devo-lhes agradecer pelo seu enorme e permanente apoio.

    Havendo iniciado com eles a minha formao de grado e compartilhando diversas instncias

    de encontro tanto acadmico como pessoal resulta-me difcil resumir a importncia das

    contribuies de todos eles. Na fase final da escrita da tese me sinto especialmente em dvida

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    com Rosana Guber quem, alm da sua permanente disposio para estimular o avano da tese,

    colocou a minha disposio a infra-estrutura chave para faze-la possvel.

    Em terceiro lugar, devo agradecer aos integrantes do Grupo de Estdios sobre

    Procesos de Politizacin en el Cono Sur (IDES) a discusso das verses preliminares dos

    captulos: Laura Zapata, Mariana Paladino, Horacio Svori, Laura Masson e Rolando Silla.

    Desde 2004, o grupo constituiu-se num espao privilegiado de reflexo sobre os assuntos

    colocados nesta tese, fato que me permitiu amadurecer as hipteses colocadas inicialmente

    nesta pesquisa. Agradeo a todos eles pela amizade e pelo entusiasmo demonstrado ao longo

    destes anos compartilhados de formao. Pela continua presena no IDES quero agradecer

    tambm a colaborao de todo o seu plantel de funcionrios, especialmente a Getlio

    Steinbach, Miguel, Irene, Carolina e Ren que com uma enorme disposio fazem que as

    atividades desenvolvidas no IDES sejam especialmente gratas.

    Verses preliminares dos captulos desta tese foram debatidas tambm no seminrio

    de pesquisa do Centro de Investigaciones Etnogrficas da Uiversidad Nacional de San Martn.

    Devo agradecer especialmente a seu diretor, Pablo Semn, pela sensibilidade com que

    acolheu os meus interesses de pesquisa, pela confiana depositada no valor dela e pela enorme

    disposio para tentar resolver as suas dificuldades, fatos todos que facilitaram enormemente

    a realizao desta tarefa e fizeram mais prazeroso o retorno Argentina.

    Dentro do prprio universo dos profissionais do direito o meu agradecimento maior

    para os defensores de presos polticos. Agradeo a eles pelo fato de ter dedicado tempo e

    esforo para que eu pudesse me adentrar nas complexidades do exerccio da defesa e do

    prprio perodo em que ela se desenvolveu, os agitados anos setenta. Com disposio

    extrema, na maior parte dos casos, estes profissionais compartilharam comigo lembranas

    emotivas e dolorosas. Mas tambm a paixo pela sua vocao militante, que ainda hoje os

    convoca. Uma face compartilhada tambm pelos juristas e magistrados contatados na Frana,

    que cederam o valiosssimo tempo que meia entre uma misso internacional e outra para que

    eu lhes pudesse entrevistar. Entre os advogados argentinos quero destacar especialmente a

    Hayde Birgin, quem oficiou de chave de ingresso a este espao de relaes. Este

    agradecimento extensivo tambm para os parentes dos advogados desaparecidos que

    colaboraram com a pesquisa, especialmente famlia Martins. Estas pginas encontraram

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    motivao em minha estima pela coragem e resoluo colocadas no exerccio da profisso e

    so um reconhecimento a este esforo militante.

    No mundo mais amplo do direito, o Seminrio Permanente sobre la Histria de la

    Facultad de Derecho do Instituto de Investigaciones Jurdicas y Sociales Ambrosio Gioja da

    Facultad de Derecho da Universidade de Buenos Aires foi outro espao significativo de

    encontro com os especialistas. Sou especialmente grata pelo apoio recebido especialmente do

    coordenador do Seminrio, Dr. Tlio Ortiz. Freqentar este espao me permitiu entrar em

    contato com nomes consagrados na historia do direito na Argentina, como o Dr. Abelardo

    Levaggi quem me permitiu compartilhar as inquietaes da minha tese. Agradeo tambm a

    ele pelo interesse pessoal em debater comigo verses preliminares dos captulos. Os

    advogados integrantes da Fundao Carlos Snchez Viamonte contriburam tambm a esta

    tese facilitando material documental e, sobretudo, importantes dicas a respeito de como achar

    o material jurdico importante e como trabalhar-lho. Entre eles, agradeo especialmente a

    Aldo Galloti.

    Entre os profissionais do direito que merecem um lugar de destaque se encontra Laura

    Saldivia. Com imensa generosidade intelectual, ela colocou a minha disposio o corpus de

    entrevistas que ela fez aos defensores de presos polticos ativos nos anos sessenta e setenta.

    Este ato, por certo pouco comum entre pesquisadores, significou uma contribuio muito

    grande para o avano da minha pesquisa. Estas pginas so um reconhecimento a toda a

    dvida intelectual que tenho com ela. A Silvina Segundo, do arquivo oral da Asociacin

    Memria Abierta e a Damian do CEDINCI tambm meu agradecimento pela ajuda na procura

    dos materiais e pela enorme pacincia e cordialidade no atendimento aos pesquisadores.

    Todos estes esforos resultariam pesados demais sem a valiosa companhia das

    amizades. Na Argentina, as amigas de tantos anos, Sabina Frederic, ris Flichman, Gabriela

    Botello e Andra Roca, quem mesmo a distancia tem me sabido acompanhar com tanto afeto

    no dia a dia. No Brasil, as amigas com as quais compartilho tantas saudades, entre as quais

    destaco especialmente a Bianca Xavier. Os meus pais tambm tem sido uma base importante

    de apoio, especialmente durante o meu perodo na Frana. Gostaria muito poder compartilhar

    esta tese com o primeiro Doutor que conheci na minha vida, meu pai. Devo a ele o gosto pela

    vida acadmica. Por ltimo, as minhas palavras finais de agradecimento so para os trs

    homens que integram a minha famlia: Nicols, Julin e Gustavo. Os primeiros, com a sua

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    imensa compreenso para com os requerimentos da escrita, especialmente comovedora pela

    pequena trajetria de suas vidas. Sempre a espreita de qualquer oportunidade para jogar no

    computador (um elemento imprevisivelmente excludo da suas vidas), eles tem me

    estimulado de vrias formas, entre elas, a tranqilizadora contagem regressiva dos dias

    faltantes para a entrega do trabalho. O meu agradecimento imenso tambm para a

    generosidade sempre presente de Gustavo del Gobbo. Seu apoio e seu amor tem sido de um

    valor crtico nesta tarefa. Vo estas pginas dedicadas a eles trs.

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    RESUMO

    A luta pelo direito. Engajamento militante e profissionalizao dos advogados na

    causa pelos direitos humanos na Argentina.

    VECCHIOLI, Virginia.

    Orientador: Federico Neiburg. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006.

    Tese.

    Esta tese trata sobre a formao de um segmento da profisso jurdica diretamente associado promoo e defesa dos direitos humanos na Argentina. Os advogados aqui descritos evocam a figura do profissional do direito engajado e dedicado ao servio desta causa pblica. Trata-se de advogados que se constituem como tais por referencia a dos espaos simultneos de atuao: o engajamento militante e o exerccio profissional. Os captulos tracejam o itinerrio que vai da inveno da causa nas primeiras dcadas do sculo XX at a profissionalizao dos seus militantes na atualidade. Se os advogados descritos no primeiro captulo evocam a figura herica do profissional que se entrega desinteressadamente causa, o ltimo os apresenta na sua condio de peritos a partir da sua incorporao a um campo profissional transnacional ligado causa pelos direitos humanos.

    As aes descritas nesta tese expem a complexa e densa rede que liga os advogados de prisioneiros polticos s vtimas, aos parentes das vtimas e aos peritos nacionais e internacionais em direitos humanos. O propsito deste percurso fazer um retrato dos especialistas engajados na causa pelos direitos humanos, assim como descrever a prpria causa que faz com que eles existam.

    Interessa -me compreender os processos que conduziram a estes profissionais a um tipo especfico de engajamento, de maneira tal que cada fase do engajamento fazia possvel a seguinte. O ativismo no deriva ento, nem do acaso, nem de simples identificaes ideolgicas, mas sim da existncia de espaos de interao social comuns, a partir dos quais as afinidades ideolgicas, as redes e os princpios de distino so estruturados dentro do universo mais amplo da poltica e do direito. Nesse sentido, vale a pena salientar a polissemia do termo compromisso, envolvendo tanto o fato de se engajar na ao pblica, como vincular outros sujeitos atravs de uma srie de obrigaes inerentes a posio social que se ocupa (ou pretende-se ocupar). Assim, o compromisso prvio com a causa dos trabalhadores e suas organizaes sindicais orientou, mais tarde, a defesa desses mesmos indivduos na condio de prisioneiros polticos.

    Ao longo de todo o trabalho o que pretendo mostrar toda a fora do direito na configurao da causa pelos direitos humanos na Argentina e, ao mesmo tempo, apresentar toda a eficcia do engajamento militante na transformao do prprio ativismo profissional. Neste sentido, a tese coloca questes relativas forma em que este ativismo jurdico produz transformaes tanto nas formas de fazer e pensar a poltica quanto nas formas de fazer e pensar o direito.

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    Palavras-chave: direitos humanos, antropologia do direito, profisses, engajamento militante.

    Argentina.

    Rio de Janeiro

    Dezembro de 2006

  • xiii

    ABSTRACT

    The struggle for law. Militant engagement and the professionalization of lawyers in

    the cause of human rights in Argentina. VECCHIOLI, Virginia. Oriented by Federico

    Neiburg. Rio de Janeiro. UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006. tese.

    This thesis deals with the creation of a segment among the juridical profession, directly associated to promotion and defense of human rights in Argentina. Attorneys of law depicted here evoke the figure of a lawyer engaged and dedicated to this public cause. It concerns to lawyers that create themselves regarding to two simultaneous spaces of intervention: militant engagement and professional practice. Chapters travel across an itinerary that goes from human rights cause invention during the first decades of XX century till the professionalization of its militants in present days. If defenders described in the first chapter evoke the professional heroic figure that devotes himself to the cause, the last one present them as experts, based on their incorporation to a transnational professional field related to the human rights cause. Actions described in this thesis reveals the deep and complex network that link defenders lawyers of political prisoners to victims, victims relatives and national and international human rights experts.

    The purpose of this research is to make a portrait of attorneys of law engaged in human rights cause as well as to describe the very cause that allowed them to exists. Im interested in understanding the process that leads this professionals to this specific type of engagement. Activism is not the result of chance not even the result of purely ideological identification, but the result of the existence of common spaces of social interaction, in a way that each phase of engagement makes possible the next one. From this standpoint I show how ideological affinities, networks and principles of distinction are structured within the broader universe of politics and law. Throughout this work, I intend to show all the power of law in the configuration of the human rights cause in Argentina. At the same time, I try to illustrate all the efficiency of militant engagement in the transformation of professional activism itself. In this sense, this thesis catch the attention to problems related to the way juridical activism transforms the manner of making and thinking about politics as well the manner of making and thinking about law.

    Key words: human rights, anthropology of law, professions, activism, Argentina.

    Rio de Janeiro

    Dezembro de 2006

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    Listagem de Associaes

    Amnista Internacional. 1961. Asociacin de Abogados de Buenos Aires. 1934. Asociacin Gremial de Abogados de Buenos Aires, 1971. Agrupacin de Abogados de Crdoba (aos 70s). Asamblea Permanente por los Derechos Humanos. 1975. Asociacin Gremial de Abogados de Mar del Plata (aos 70s) Asociacin Gremial de Abogados de Baha Blanca (aos 70s) Asociacin Jurdica Argentina (primeras dcadas siglo XX) Asociacin Internacional de Juristas Democrticos Centro de Estudios Legales y Sociales. 1979. Comit de Dfense des Prisionniers Politiques Argentines. 1972. Comit de Ayuda Antifascista (aos 30s) Comit Pro-Amnista por los Exiliados y Presos Polticos de Amrica (aos 30s) Comit Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo (aos 30s). Comisin Argentina de Derechos Humanos (1976) Commission Argentine des Droits de lHomme Comisin Pro-Abolicin de las Torturas (aos 30s) Comisin de Familiares de Desaparecidos y Detenidos por razones polticas

    Comisin de Familiares de Presos Polticos y Gremiales. 1961. Comisin de Familiares de Presos Polticos, Estudiantiles y Gremiales (aos 70s) Comisin de Familiares de Patriotas Fusilados en Trelew. 1972. Comisin Interamericana de Derechos Humanos. 1960.

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    Comisin Internacional de Juristas Comisin Nacional de Desaparicin de Personas Comisin por la Vida y la Libertad de Martins y Centeno. 1971. Federacin Internacional de Derechos Humanos Frente Antiimperialista por el Socialismo (aos 70s) Foro de Buenos Aires por la Vigencia de los Derechos Humanos. 1971. Groupe dAbocats Argentins Exils en France (1977 aprox.) Liga Argentina por los Derechos del Hombre. 1937. Movimiento Nacional contra la Represin y la Tortura (aos 60s) Nuevos Derechos del Hombre (1990) Organizacin de Solidaridad con los Presos Polticos, Estudiantiles y Gremiales (aos 70s). Socorro Rojo Internacional (aos 30s)

  • xvi

    Listagem de Siglas AABA: Asociacin de Abogados de Buenos Aires AGA: la Asociacin Gremial de Abogados de Buenos Aires. APDH: Asamblea Permanente por los Derechos Humanos AIJD: Asociacin Internacional de Juristas Democrticos CELS: Centro de Estudios Legales y Sociales CGT: Confederacin General del Trabajo CGT A: Confederacin General del Trabajo de los Argentinos CADHU: Comisin Argentina de Derechos Humanos CIDH: Comisin Interamericana de Derechos Humanos CIJ: Comisin Internacional de Juristas

    COFADE: Comisin de Familiares de Presos Polticos y Gremiales

    COFAPEG: Comisin de Familiares de Presos Polticos, Estudiantiles y Gremiales CONADEP: Comisin Nacional de Desaparicin de Personas CSJ: Corte Suprema de Justicia ERP: Ejrcito Revolucionario del Pueblo. FAS. Frente Antiimperialista por el Socialismo FIDH: Federacin Internacional de Derechos Humanos FUA: Federacin Universitaria Argentina GAAEF: Groupe dAvocats Argentins Exils en France LADH: Liga Argentina por los Derechos del Hombre.

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    OIT: Organizacin Internacional del Trabajo OEA: Organizacin de Estados Americanos ONU: Organizacin de Naciones Unidas OSPPEG: Organizacin de Solidaridad con los Presos Polticos, Estudiantiles y Gremiales PCA: Partido Comunista Argentino PEN: Poder Ejecutivo Nacional PS: Partido Socialista PRT: Partido Revolucionario de los Trabajadores UBA: Universidad de Buenos Aires UCR: Partido Unin Cvica Radical

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    Listagem de Documentos Anexos

    Anexo 1: Convocatria da LADH promovendo adeso a associao....... 111 Anexo 2: Reproduo da convocatria a um comcio .................................. 112 Anexo 3: Reproduo de uma listagem de presos polticos ............................ 113 Anexo 4: Cartaz de Rua do Comit contra o Racismo e o Anti-semitismo........ 114 Anexo 5: Reproduo da capa do peridico Socorro Rojo ............................. 117 Anexo 6: Anncios dos servios jurdicos oferecidos pelos advogados integrantes da LADH....................................................... 118 Anexo 7: Mobilizao dos advogados perante o seqestro de colega............... 211 Anexo 8: Reproduo do abaixo-assinado denunciando os procedimentos Judiciais no caso Sanchez .................................................................... 212 Anexo 9: Reproduo dos conselhos dos advogados de presos polticos aos Militantes ............................................................................................. 213 Anexo 10: Reproduo do abaixo-assinado realizado pela Comisso de Familiares ....................................................................... 214 Anexo 11: Convocatria de familiares a uma greve de fome ............................... 215 Anexo 12: Ocupao da Praa de Maio pelos familiares de advogado desaparecido....................................................................................... 216 Anexo 13: Reproduo da convocatria Terceira Reunio Nacional de Advogados ......................................................................................... 217 Anexo 14: Instituio do Prmio Nestor Martins da Faculdade de Direito Da Universidade de Buenos Aires aos melhores trabalhos Acadmicos.......................................................................................... 218 Anexo 15: Reproduo de um captulo do Manual do Oprimido ........................ 219 Anexo 16: Advogados ameaados ....................................................................... 220

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    Sumrio de Tabelas

    Tabela 1: Nmero de integrantes da LADH segundo filiao partidria ................ 40 Tabela 2: Simultaneidade de compromissos associativos ....................................... 80 Tabela 3: Listagem dos integrantes da APDH correspondente ao Primeiro ano de funcionamento ............................................................... 229 Tablea 4: Listagem dos advogados integrantes do servico jurdico da APDH ........ 231 Tabela 5: Perfil das associaes internacionais de juristas ...................................... 268 Tabela 6: Detalhe das misses internacionais de juristas .......................................... 270

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    SUMRIO

    Agradecimentos ................................................................................................. vi

    Resumo ............................................................................................................... xi

    Abstract .............................................................................................................. xiii

    Listagem de Associaes .................................................................................. xvii

    Listagem de siglas utilizadas ........................................................................... xix

    Listagem de anexos ........................................................................................... xviii

    Sumrio de Tabelas .......................................................................................... xix

    Sumrio .............................................................................................................. xx

    Introduo ........................................................................................................... 1

    1. Captulo 1: A inveno de uma causa. Um encontro entre notveis

    e recm chegados do direito e da poltica.......................................................... 28

    1.1. Introduo ......................................................................................... 29

    1. 2. A ameaa ........................................................................................... 32

    1. 3. O imperativo a atuar ....................................................................... 36

    1. 4. Defender a causa atravs do direito ................................................ 44

    1. 4. 1. Os servios de assistncia jurdica ...................................... 45

    1. 4. 2. A imprensa dos direitos do homem ..................................... 57

    1. 5. Militantes do direito .......................................................................... 61

    1. 5. 1. Formar-se em direito ........................................................... 61

    1. 5. 2. Exercer o direito .................................................................. 74

    1. 6. Uma causa internacional .................................................................. 82

    1. 7. Ser um advogado defensor de presos polticos ............................... 86

    1. 7. 1. A inteligncia e a ilustrao como armas de luta ................ 88

    1.7. 2. O culto ao desinteresse ......................................................... 91

  • xxi

    1.7. 3. O sacrifcio pela causa ......................................................... 94

    1. 7. 4. A qualidade herica ............................................................ 97

    1. 8. Pensar o direito ............................................................................... 98

    1. 9. Concluso ......................................................................................... 104

    1. 10. Eplogo ........................................................................................... 107

    1. 11. Anexos ............................................................................................ 110

    2. Captulo 2: O ativismo jurdico. Um mundo feito de rotinas e herosmo

    2. 1. Introduo ........................................................................................ 122

    2. 2. A represso judicial........................................................................ 127

    2. 3. As frentes de massas contra a represso...................................... 133

    2. 3. 1. Um mundo feito de rotinas ................................................. 141

    2. 3. 2. O tribunal da opinio pblica .............................................. 149

    2. 3. 2. 1. A defesa poltica................................................ 150

    2. 3. 2. 2. A imprensa anti-ditatorial .................................... 157

    2. 4. As associaes de parentes de presos polticos e sociais............... 162

    2. 5. A profisso de advogado e o compromisso militante ................... 164

    2. 5. 1. A opo pela qualificao profissional .............................. 164

    2. 5. 2. O exerccio da profisso ...................................................... 172

    2. 5. 3. Militar na Gremial ............................................................ 182

    2. 6. Ser um defensor de presos polticos .............................................. 188

    2. 6. 1. A qualidade herica ............................................................ 191

    2. 7. O mais alto militante era o guerrillero ..................................... 199

  • xxii

    2. 8. Advogados do caos e a delinqncia ......................................... 204

    2. 9. A luta pelo direito ....................................................................... 207

    2. 10. Uma causa internacional ............................................................. 211

    2. 11. Concluso ....................................................................................... 215

    2. 12. Eplogo ........................................................................................... 216

    2. 13. Anexos ........................................................................................... 217

    3. Captulo 3: A organizao transnacional da denuncia e a profissionalizao do

    compromisso militante

    3. 1. Introduo ........................................................................................ 243

    3. 2. O engajamento com a causa na Argentina .................................. 247

    3. 2. 1. Uma Assemblia pelos Direitos Humanos ...................... 248

    3. 2. 1. 1. O servio jurdico ................................................ 250

    3. 3. 1. 2. Os direitos humanos como vocao ................... 256

    3. 2. 2. Um Centro de Estudos Legais e Sociais .......................... 259

    3. 2. 2. 1. A trajetria de um fundador ............................... 265

    3. 2. 2. 2. Os direitos humanos como profisso ................. 273

    3. 3. A organizao transnacional da denuncia .................................. 283

    3. 3. 1. O engajamento com a causa no exlio ................................ 283

  • xxiii

    3. 3. 2. As misses internacionais de juristas ................................ 287

    3. 3. 3. As redes internacionais ....................................................... 294

    3. 3. 4. Peritos do internacional .................................................... 302

    3. 3. 5. Os advogados como vtimas do terrorismo do Estado ....

    3. 4. O exlio como uma grande escola poltica .................................. 312

    3. 4. 1. Os que jetonean no exlio ................................................ 317

    3. 4. 2. Os defensores como peritos em direitos humanos .......... 319

    3. 5. Concluso ..................................................................................... 325

    3. 6. Eplogo .......................................................................................... 332

    3. 7. Anexos ........................................................................................... 333

    4. Concluses ...................................................................................................... 343

    5. Referncias Bibliogrficas ............................................................................ 349

  • xxiv

    VECCHIOLI, Virginia. A luta pelo direito. Engajamento militante e

    profissionalizao dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina

    Orientador: Federico Neiburg. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006.

    Tese.

  • xxv

    VECCHIOLI, Virginia. A luta pelo direito. Engajamento militante e

    profissionalizao dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina

    Orientador: Federico Neiburg. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006.

    Tese.

  • Introduo

    Talvez atribui-se um demasiado valor memria

    mas no o suficiente reflexo1

    Esta tese trata da formao de um segmento da profisso jurdica diretamente

    associado promoo e defesa dos direitos humanos na Argentina. Todos os advogados

    tratados aqui evocam a figura do profissional do direito comprometido com o servio desta

    causa pblica. Trata-se de profissionais que se constituem como tais por terem como

    referencia dois espaos simultneos de atuao: o engajamento militante e o exerccio

    profissional do direito. Como apresentarei, as particularidades desta configurao ressaltaro

    princpios distintivos de recrutamento, de adeso e de representao deste ativismo que

    supem, por sua vez, formas especficas de fazer e pensar o direito e a poltica na Argentina

    contempornea.

    Atravs de um percurso por distintos momentos da histria da construo desta causa

    e de seus peritos, proponho mostrar as transformaes que ocorreram no perfil dos advogados

    que assumem publicamente um compromisso com a defesa dos direitos humanos. Os

    diferentes captulos da tese traam um itinerrio: desde a inveno da causa dos direitos do

    homem, em meados dos anos trinta, at a profissionalizao dos seus militantes na atualidade.

    Este itinerrio percorre algumas das instncias chaves de um trajeto que conduziu a uma

    profunda reconfigurao deste perfil profissional. Se os advogados descritos nos captulos

    iniciais evocam a figura herica do profissional que se entrega desinteressadamente causa, o

    ltimo apresenta-os na condio de peritos, a partir da sua incorporao a um campo

    profissional transnacional ligado causa dos direitos humanos.

    Esta transformao envolve reconfiguraes significativas, tanto do espao da

    militncia como do prprio campo profissional. Se a interveno destes profissionais incide

    na forma em que se processam e interpretam certos conflitos polticos, oferecendo um

    repertrio de prticas e valores e fazendo deste ativismo um assunto de competncia

    especializada, no menos verdadeiro que este engajamento militante tambm traz

    conseqncias profundas dentro do prprio universo do direito. A recente incorporao com

    1 Susan Sontang. Ante el dolor de los dems. Buenos Aires. Ed. Alfaguara. 2003. pg. 134.

  • 2

    status constitucional do direito internacional dos direitos humanos, a existncia de

    associaes civis especificamente voltadas para o tratamento judicial destas causas, a criao

    de cursos de ps-graduao, de estudos jurdicos privados dedicados a gerir a demanda de

    reparaes econmicas para as vtimas e seus parentes e a apresentar casos perante os

    tribunais internacionais, a apario de revistas e editoriais especializadas, a participao de

    advogados argentinos em misses e tribunais internacionais de direitos humanos e a

    multiplicao de agncias estatais dedicadas a delinear polticas relativas ao tema, todos eles

    so fatos que do conta tanto das mudanas ocorridas no espao do militantismo, quanto das

    transformaes ocorridas dentro do prprio campo do direito.

    O foco neste processo de transformao do perfil do profissional do direito engajado

    entre as primeiras dcadas do sculo XX e a atualidade levou-me a realizar uma pesquisa que

    combina dados que provem de fontes histricas com o uso de material etnogrfico. Sobre a

    base desta singularidade, esta tese poderia ser definida como de antropologia histrica. Se a

    institucionalizao desta causa o resultado de um longo e complexo processo, este trabalho

    pretende realar apenas alguns momentos chaves deste percurso, a fim de identificar certas

    configuraes constitutivas daquilo que na Argentina foi chamado de movimento pelos

    direitos humanos2

    A descrio de cada captulo apresenta com clareza que o propsito deste itinerrio

    histrico no o de reconstruir as inmeras situaes de violncia poltica ocorridas durante o

    sculo XX na Argentina. A perspectiva temporal adotada neste trabalho tem um outro

    propsito: ao invs de reconstruir busca compreender as condies que possibilitaram que a

    tumultuada histria poltica recente seja inscrita dentro de uma narrativa jurdica que supe,

    entre outras coisas, uma forma de nomear a quem foram os protagonistas desta histria (as

    vtimas), uma maneira de intervir no espao pblico (denunciar, demandar, litigar,

    2 Mesmo correndo o risco de esencializar, vale a pena salientar para o leitor no familiarizado com a histria argentina recente que, por movimento pelos direitos humanos entende-se o heterogneo conjunto de associaes que se formaram entre os anos 1975 e 1979 para exigir o reconhecimento da violncia exercida pelo Estado. Este movimento envolve dirigentes de distintas congregaes religiosas, como o caso do Movimento Ecumnico pelos Direitos Humanos, diversas organizaes de parentes das vtimas, como as Mes de Praa de Maio, e de profissionais do direito como o Centro de Estudos Legais e Sociais. Antes de avanar ainda mais neste texto introdutrio, conveniente explicitar alguns dos critrios utilizados para dar-lhe forma. A reproduo de fragmentos de relatos nativos indicada no texto pelo uso de aspas, j a incluso de uma nica categoria nativa dentro de um pargrafo de minha autoria indicada pelo uso de apstrofos. Nos dois casos procura-se distinguir as categorias nativas das utilizadas pelo pesquisador. Utilizo palavras em cursiva para dar nfase a estas ltimas. A respeito destas categorias de anlise vale a pena salientar, tambm, que profissional do direito ou especialista so utilizadas como categorias tericas, em quanto advogado, defensor ou perito referem-se a formas nativas de classificao.

  • 3

    investigar), de definir aos sujeitos dotados da capacidade para faz-lo (os advogados), de

    delimitar os espaos de compromisso militante (a causa pelos direitos humanos) e, em

    ultima instncia, uma forma de narrar a histria nacional (o Terrorismo de Estado).

    O que me interessa deste percurso histrico colocar em evidencia a configurao de

    matrizes de atuao pblica e profissional criadas em torno a esta causa. Por este motivo, a

    cronologia proposta deve ser entendida de maneira flexvel. Ao invs de se referirem a

    perodos histricos empiricamente diferenciados, os captulos desta tese devem ser

    compreendidos como referncias a horizontes temporais mais ou menos gerais dentro dos

    quais proponho identificar a permanncia e transformao de certas relaes significativas na

    institucionalizao desta causa. Os captulos no equivalem, ento, a perodos temporais fixos

    nem supem que os processos descritos em cada um deles tm seu incio e fim dentro de

    marcos temporais exclusivos e absolutos. A inteno em salientar certas configuraes chaves

    faz com que a opo de deixar deliberadamente de lado vrios perodos da histria recente

    no prejudique o propsito central que apresentar a participao do ativismo jurdico na

    conformao da causa pelos direitos humanos na Argentina.

    Para compreender a particular configurao de pessoas, relaes e representaes

    criadas em torno a esta causa e ao compromisso profissional e militante dos advogados,

    prope-se focar em cada captulo uma temtica especfica, uma vez que a intensidade

    dedicada aos diferentes assuntos varia ao longo da tese. Por exemplo, a articulao entre o

    universo local de profissionais do direito e a esfera internacional receber uma ateno

    privilegiada no ltimo captulo, ao tratar a participao dos advogados exilados em

    associaes internacionais de juristas nos anos setenta, sem que isto signifique que esta

    dimenso tambm no tenha sido constitutiva do campo nas primeiras dcadas do sculo XX.

    Como veremos no desenvolvimento do captulo 1, as associaes locais que se constituram

    em torno a esta causa so filiais de organizaes internacionais de luta contra o fascismo, e os

    que participam na construo do incipiente direito internacional dos direitos humanos so,

    principalmente, diplomatas. Apesar de todo o peso desta esfera transnacional, esta dimenso

    ser analisada em detalhe no captulo 3 pois justamente no marco das relaes criadas entre

    profissionais do direito argentinos e estrangeiros que se produz uma novidade: institui-se a

    categoria perito em direitos humanos.

  • 4

    Com a inteno de apresentar as distintas configuraes que possibilitaram

    construo da causa pelos direitos humanos na Argentina, compreender as dimenses

    significativas deste processo e suas diferentes modulaes ao longo do tempo, esta tese foi

    dividida em trs captulos:

    No captulo 1 proponho pr em evidencia as condies que tornaram possvel a

    inveno desta causa focando nas propriedades sociais de seus militantes. Para isso centrarei

    o captulo no momento germinal em que se criaram uma srie de associaes civis que

    reivindicaram a defesa das vtimas da ditadura logo aps do golpe de Estado de 1930,

    entre elas, a Liga Argentina por los Derechos del Hombre, a nica das associaes fundadas

    em aquela poca que continua ativa at hoje.

    Um dos argumentos centrais deste captulo relaciona-se com o processo que

    possibilitou o encontro entre notveis e recm-chegados ao direito e poltica na complexa

    rede de associaes dedicadas defesa desta causa. No desenvolvimento do captulo

    enfatizarei o processo que coloca disposio deste engajamento militante um conjunto de

    jovens profissionais desprovidos de um capital de relaes sociais herdadas num momento de

    forte incremento da matrcula universitria que tem como conseqncia a existncia de

    advogados sem causa. Estes jovens bacharis incorporar-se-a ao mundo profissional

    atravs da assessoria jurdica a grmios e sindicatos que ento comeam a se multiplicar luz

    das experincias anteriores trazidas para o pas pelos imigrantes europeus. Ao mesmo tempo,

    produz- se uma aproximao de alguns notveis a este universo habitado por trabalhadores e

    imigrantes. Proponho entender estes movimentos no contexto do mutvel espao poltico de

    incios do sculo XX, uma vez que, com a sano da lei de voto masculino secreto e

    obrigatrio, foram transformadas as condies de competio pela representao e as

    estratgias de acumulao de notoriedade pblica deixaram de estar vinculadas diretamente

    posse de riqueza. Contra este pano de fundo, introduzo algumas das qualidades que vo

    distinguir estes profissionais do direito na esfera pblica: o culto ao herosmo, ao desinteresse,

    ao sacrifcio, e examino as implicaes que isto produiz nas formas de fazer e pensar a

    poltica e o direito. Este ponto ser desenvolvido detalhadamente no seguinte captulo.

    No captulo 2 proponho dar conta do trabalho de definio e delimitao da categoria

    defensor de presos polticos atravs da criao de uma representao coletiva deste

    engajamento jurdico associada ao culto do herosmo e do desinteresse, qualidades estas que

  • 5

    os aproximam de seus defendidos. A nfase estar colocada em apresentar o valor destes

    critrios na hora de criar homogeneidade entre indivduos que tm origens e trajetrias

    profissionais heterogneas. Estes princpios de representao importam porque so eles os que

    fundam a legitimidade da sua posio dentro do mundo do direito e da poltica, em especial

    numa conjuntura na qual a sua clientela recrutada principalmente entre a militncia armada

    das organizaes da esquerda surgidas no pas no incio dos anos 60. Tambm porque foi

    atravs deles que adquiriram existncia como grupo de advogados defensores de presos

    polticos. Como veremos, as desqualificaes dos seus adversrios tambm contriburam para

    produzir essa homogeneidade, fazendo desta constelao de pessoas, um grupo.

    Este captulo pretende apresentar parte de todo o trabalho de re-agrupamento de

    sujeitos com trajetrias e propriedades objetivas diferentes em torno a esta forma de exercer o

    direito e a poltica. O sucesso relativo obtido na tarefa de unificao traduziu-se num nome

    coletivo (advogado defensor de presos polticos), em instncias de representao (associaes,

    publicaes), em emblemas (o desaparecimento do advogado Nestor Martins, o assassinato do

    advogado Rodolfo Ortega Pea) e em taxonomias (advogados do povo / advogados a servio

    do imperialismo). Todas estas instncias sero chaves na hora de dotar este grupo de agncia.

    Paradoxalmente, a legitimidade adquirida atravs do fato de colocar em risco a prpria vida

    foi construindo, ao mesmo tempo, a necessidade de organizar, planejar e conceber novas

    formas de trabalho em comum. Mostrar a rotinizao da tarefa do advogado defensor um

    dos objetivos deste captulo, uma vez que a formao de rotinas constitui uma instncia chave

    na homogeneizao dessa categoria social e na objetivao do grupo como tal.Como veremos,

    elas se organizavam em torno busca do detento nas delegacias policiais, apresentao de

    hbeas corpus, s visitas aos presos, aos pedidos de percias mdicas, ao acompanhamento

    dos processos nos tribunais, diviso do trabalho entres os advogados, partilha de

    processos, procura de antecedentes na jurisprudncia comparada, elaborao do alegado,

    publicao das denncias na imprensa, realizao de conferncias de imprensa, etc.

    No captulo 3 proponho descrever e analisar o processo de profissionalizao em

    direitos humanos, salientando especialmente a participao dos especialistas argentinos em

    redes internacionais de juristas e em instituies interestatais, como a Comisso de Direitos

    Humanos da ONU e a Comisso Interamericana de Direitos Humanos da OEA em meados

    dos anos setenta. Embora a importncia dessa dimenso internacional j tenha sido

    reconhecida para os ano trinta e sessenta, foi nesse momento quando se produziu uma

  • 6

    confluncia de interesses entre profissionais do direito norte-americanos, europeus e

    argentinos que resultar crtica o reconhecimento pblico de uns e outros como peritos em

    direitos humanos.

    Esta confluncia, que no exclui a existncia de interesses, valores e origens sociais e

    profissionais profundamente heterogneos, foi significativa na transformao do prprio

    campo associativo e estatal. Atravs da anlise das misses internacionais de juristas (1975-

    1979), da criao de associaes de denncia das violaes aos direitos humanos no exlio

    (1976) e da criao de novas associaes especializadas no litgio de causas vinculadas ao

    terrorismo de Estado como o Centro de Estdios Legales y Sociales (CELS), procuro mostrar

    que essa profissionalizao envolveu tanto a definio do lugar do profissional do direito em

    funo da posio de um conhecimento especializado quanto a transformao do universo de

    representaes associadas a este novo perfil profissional. Como veremos, essa

    profissionalizao trouxe consigo, tambm, uma inovao critica: a possibilidade de ocupar

    espaos de importncia dentro da prpria esfera do Estado, no como resultante do ativismo

    partidrio mas como perito.

    tambm nesse momento que irrompem no cenrio pblico as associaes de

    parentes exigindo o reconhecimento do que ocorreu com seus filhos em tanto vtimas do

    terrorismo de Estado. Ao mesmo tempo, so os mesmos parentes os que criaro associaes

    que se definem por fazer apelo ao direito como princpio de distino, como o caso do

    Centro de Estudios Legales y Sociales. A confluncia entre dois princpios de adeso: o

    sangue e o direito, tambm um dos temas tratados neste captulo.

    A ateno desigual dedicada aos diferentes temas em torno dos quais se articulam os

    captulos explica-se tambm pela maneira heterognea em que foi se configurando o corpus

    de dados que informam esta pesquisa. Os materiais selecionados e produzidos so de

    qualidades muito diversas. Para o captulo 1, por exemplo, s tive a oportunidade de fazer

    uma nica entrevista a uma ex-militante do Socorro Rojo Internacional nascida em 1911 e que

    ainda vive na Argentina, em quanto o captulo 2 est articulado principalmente a partir de um

    corpus importante de entrevistas realizadas a ex-integrantes da Asociacin Gremial de

    Abogados de Buenos Aires. Estas entrevistas permitiram que identificasse no s a dimenso

    herica do engajamento militante destes profissionais do direito, mas tambm a dimenso

    rotineira do seu trabalho, um elemento que no tinha conseguido capturar na leitura dos

  • 7

    documentos utilizados para o primeiro captulo. A oportunidade de realizar um perodo dos

    meus estudos de doutorado em Paris3 permitiu-me ter acesso a um grande arquivo sobre as

    misses internacionais de peritos nos anos sessenta e as associaes de advogados criadas no

    exlio naquela poca, documentos que no poderia ter acesso na Argentina. A impossibilidade

    de consultar os arquivos da Federao Internacional de Ligas dos Direitos do Homem em

    Paris, junto com a ausncia de arquivos equivalentes na Argentina, impossibilitou-me de

    registrar essas mesmas atividades para os perodos anteriores trabalhados nos captulos 1 e 2.

    Estas variaes da nfase falam tambm a respeito das transformaes acontecidas ao

    longo deste processo. Se, nos anos trinta, as mulheres dos dirigentes operrios deportados

    para a Europa se aglutinavam para protestar publicamente contra o Estado, a partir de sua

    condio de mulher, o centro da cena pblica estava ocupado por figuras do direito como

    Alfredo Palcios, Carlos Snchez Viamonte e Deodoro Roca nomes que ganharam

    notoriedade pblica como parlamentares e advogados engajados na defesa de presos polticos

    e sociais. Inversamente, nos anos oitenta, a defesa das vtimas do terrorismo de Estado ser

    protagonizada, de modo notvel, por seus parentes, especialmente por aqueles que, desde

    1977, se reuniram semanalmente na Praa de Maio, na frente da prpria sede do governo

    nacional. Estas diferenas na visibilidade pblica entre os que protagonizam a causa no

    supem que ambos os princpios de recrutamento (o sangue e o direito) no estivessem

    presentes ao longo de toda esta histria nem que os dois no tenham a mesma importncia

    crtica. Em sntese, as diferentes dimenses ressaltadas em cada um dos captulos devem-se,

    tambm, s mudanas ocorridas ao longo de todo o processo que vai desde a inveno da

    causa at sua atual institucionalizao.

    A adoo de uma perspectiva temporal que excede os marcos delimitados pelo golpe

    de Estado de 1976, para me referir constituio da causa pelos direitos humanos, parte de

    uma estratgia deliberada que visa desnaturalizar algumas perspectivas nativas sobre a

    configurao deste campo militante. Quando se fala na Argentina sobre o problema dos

    direitos humanos pressupe-se que se est referindo ao perodo que se estende de 1976 a

    1983. A primazia desta construo temporal se registra tanto nas declaraes pblicas dos

    dirigentes das associaes que integram o movimento como nas formas em que o Estado

    3 Bolsa Sanduche do CNPq. Entre os meses de maro e junho de 2004 realizei um estgio no Laboratoire de Sciences Sociales de la Ecole Normale Superieure em Paris. Nesse perodo contei com a orientao do professor Michel Offerl.

  • 8

    delimita as polticas pblicas destinadas a julgar os responsveis do terrorismo de Estado,

    reparar as vtimas e preservar a memria do passado, e tambm, na maneira em que os

    prprios intelectuais constroem campos disciplinares recortados sobre essas mesmas

    fronteiras temporais. Estas marcas temporais produzem e naturalizam, por sua vez, divises

    temticas e disciplinares, de forma que aquelas pesquisas centradas na militncia armada e

    nas mobilizaes pblicas contra os governos de fato anteriores a 1976 no integram o campo

    de estudos sobre os direitos humanos e so identificadas com outros temas, como os estudos

    sobre o peronismo ou a histria poltica em geral. A criao de associaes civis que

    recorrem linguagem dos direitos do homem anteriores a 1976 tambm costumam ser

    excluda do horizonte destes estudos.

    No entanto, categorias como vtimas, ditadura e direitos humanos no so

    criaes dos anos setenta ou oitenta. Tampouco, a conformao de associaes civis

    articuladas sobre esta retrica, o uso de estratgias de defesa judicial e pblica das vtimas, ou

    a participao dos advogados locais em redes transnacionais de denncia. Como veremos no

    captulo 1, a retrica e as prticas correspondentes ao discurso dos direitos humanos j

    estavam disponveis nas primeiras dcadas do sculo XX. Este reconhecimento permite-me

    sugerir que o fato de proclamar a inveno dessa causa a partir do golpe de Estado de 1976

    pressupe a adoo de um ponto de vista interessado dentro do universo militante. Identificar

    esta perspectiva como prpria de um ponto de vista nativo traz o desafio de compreender o

    sentido da proclamao desta novidade sobre o pano de fundo histrico delineado nesta tese,

    aonde ela deixa de ser auto-evidente.

    Montar este complexo retrato dos especialistas engajados na causa dos direitos

    humanos e da prpria causa que os faz existirem socialmente envolve, tambm, compreender

    as formas nativas de periodizao. Para atender importncia dessa dimenso, a tese no se

    inicia em 1976, ano em que ocorre o golpe de Estado que inaugura a ltima ditadura militar

    e que serve de divisor de guas para narrar a histria poltica recente, segundo a perspectiva

    consagrada pelas associaes de parentes das vtimas e, fundamentalmente, pelo Estado, mas

    se inicia nas primeiras dcadas do sculo XX. O captulo 1 trata, principalmente, da Liga

    Argentina por los Derechos del Hombre, criada em 1937 e reconhecida hoje como a

    primeira associao de defesa dos direitos humanos no pas. Os dois captulos que se seguem

    no supem uma diviso dicotmica entre um antes e um depois do retorno democracia em

    1973, nem um antes e um depois do golpe de Estado de 1976, visto que essas no so marcas

  • 9

    decisivas na forma de construir a temporalidade pelos profissionais do direito entrevistados

    para esse trabalho. Esses dois captulos esto organizados, ao contrrio, em base s

    experincias que tornam possvel esse tipo de militantismo perito e suas transformaes.

    Do ponto de vista dos profissionais do direito, o relato do seu engajamento militante

    funda-se em torno a marcas temporais que no so necessariamente as que organizam a

    experincia histrica tal como ela concebida pelas associaes de parentes das vtimas, o

    Estado e, inclusive, por alguns intelectuais para quem o golpe de Estado instaura uma

    diviso temporal crtica. Ao contrrio, no relato dos expertos em direito aparecem outras

    referncias temporais significativas como a deteno massiva de dirigentes sindicais e de

    advogados nos dias que seguintes ao Cordobazo (1969), a criao de um frum penal ad-hoc

    anti-subversivo (1971), o desaparecimento do defensor de presos polticos Nestor Martins

    (1971) durante o governo de fato de Lanusse, a anistia dos presos polticos outorgada aps o

    triunfo do peronismo nas eleies de 1973, o assassinato do advogado defensor Ortega Pea

    nas mos de organizaes parapoliciais depois da declarao do Estado de stio em 1974 e,

    finalmente, sua participao no desenho e implementao de polticas de Estado relativas s

    conseqncias do terrorismo de Estado a partir do retorno democracia em 1983. A

    importncia de manter esta distino nas formas de construir a temporalidade fica evidente

    nos rituais comemorativos dedicados memria dos advogados desaparecidos. Enquanto o

    Estado lembra dos profissionais do direito desaparecidos a partir de 1976, os mesmos

    funcionrios pblicos, mas na sua condio de integrantes de associaes profissionais,

    lembram de seus colegas e amigos desaparecidos e das experincias associativas em defesa

    dos presos polticos a partir de 1971. A organizao dos captulos tenta considerar a lgica

    destas formas nativas de periodizao.

    Visto que o objetivo ltimo da tese compreender alguns dos princpios constitutivos

    da causa dos direitos humanos atravs da anlise dos agentes sociais que lhe outorgam

    existncia, este trabalho funda-se sobre outro deslocamento crtico que tem como finalidade

    produzir uma segunda ruptura com o encantamento de alguns relatos nativos que se tornaram

    senso comum: ao invs de observar exclusivamente as associaes de vtimas e de seus

    parentes, busca examinar a atuao dos profissionais do direito. A literatura especializada em

    direitos humanos apresenta, invariavelmente, uma caracterstica comum: sua ateno est

    dirigida quase exclusivamente para o ativismo daquelas associaes com maior visibilidade

    pblica, como as constitudas por parentes das vtimas, tais como Abuelas e Madres de Plaza

  • 10

    de Mayo e Hijos por la Justicia, contra el Olvido y el Silencio (HIJOS). So muito escassos

    ou simplesmente inexistentes os trabalhos interessados em apresentar a atuao daquelas

    associaes que fazem do direito um princpio de reconhecimento pblico. No caso da Liga

    Argentina por los Derechos del Hombre (1973), apesar da extensa histria da entidade, o

    nico livro que trata da mesma de carter testemunhal4. Sobre associaes como a Asamblea

    Permanente por los Derechos Humanos (1975) ou o Centro de Estudios Legales y Sociales

    (1979) s se encontram referncias secundrias em diversos trabalhos dedicados s

    organizaes de parentes das vtimas5.

    A lgica com que se configura este corpus de trabalhos coincide com a que organiza

    os relatos nativos sobre esse ativismo. Os prprios parentes se apresentam a si mesmos e so

    reconhecidos, por sua vez, como os protagonistas desta militncia. Essa representao

    relaciona-se com o fato de que, dentro dessa comunidade moral, o compromisso dos parentes

    com a causa no precisa ser demonstrado, pois aparece como inerente ao vnculo de sangue

    com as vtimas. A inquestionabilidade dessa relao pretende ser a base inquestionabilidade

    de suas demandas e do lugar hierrquico que ocupam dentro deste movimento pelos direitos

    humanos. Mas, apesar de que ser portador desse tipo de vnculo uma propriedade construda

    e objetivada atravs do engajamento com a causa, a produo acadmica parece acompanhar

    o ponto de vista naturalizado dos prprios parentes ao identificar exclusivamente esse

    ativismo com as associaes que fazem do sangue um princpio de adeso pblica. De modo

    que essa literatura acaba se constituindo numa ferramenta central na objetivao desse relato e

    na naturalizao de uma maneira essencialista de narrar a histria nacional6.

    Meu interesse pelo universo dos profissionais do direito surge exatamente da surpresa

    que me provocou este reconhecimento durante a realizao da minha dissertao de mestrado.

    Nesse trabalho, propus apresentar a maneira com que consagrada a categoria vtima do

    terrorismo de Estado no contexto de uma srie de disputas para impor uma forma legtima de

    4 Alfredo Villalba Welsh, 1984. 5 Uma exceo constituem os trabalhos de Elizabeth Jelin, especialmente 1995, Ian Guest, 1990, Dezalay e Garth, 1998 e Saldivia, 2002. Existem apenas trs publicaes que consideram especificamente o universo jurdico. Duas delas abordam o mesmo fato: o julgamento contra os comandantes em chefe da Junta Militar de Governo que governou a Argentina entre 1976-1983. Ver Kaufman, Esther, 1991 e Landi, Oscar e Ins Gonzlez Bombal, 1995. A terceira reconstri o funcionamento do necrotrio judicial durante a ltima ditadura militar. Ver Maria Jos Sarrabayrouse, 2003. 6 Uma anlise do valor do sangue como princpio de adeso, distino e hierarquizao dentro do universo da militncia pelos direitos humanos j foi objeto de minha ateno na dissertao de mestrado. Ver Vecchioli, 2000.

  • 11

    nomear os que foram assassinados ou esto desaparecidos no contexto dos violentos conflitos

    polticos dos anos 70s. A despeito de que esta categoria adquiriu, recentemente, um status

    jurdico pleno, persistem as disputas sobre as formas de regulamentar as leis que a instituem e

    para conseguir a sano de novas leis que permitam expandir ou reduzir as suas fronteiras e,

    com isso, conseguir instituir novos agentes sociais como vtimas do terrorismo de Estado.

    Foi esse trabalho que deixou evidente para mim a importncia que tinha no s o esforo

    militante das vtimas e de seus parentes, mas o dos profissionais do direito que intervinham

    decisivamente ao longo de todo este processo, ora patrocinando aes legais a favor de seus

    prprios parentes desaparecidos ou de seus colegas desaparecidos, ora patrocinando outros

    parentes; ou ainda, como parlamentares integrantes do poder judicial ou como funcionrios de

    agncias estatais dedicadas a implementar polticas pblicas na rea dos direitos humanos.

    Ao colocar o foco nestes profissionais, procuro apresentar toda a fora do direito na

    configurao desta causa. Como assinala Pierre Bourdieu, o campo jurdico atua como

    princpio de construo da realidade, uma vez que as situaes ordinrias so redefinidas

    segundo sua definio jurdica7. Por sua vez, a mobilizao dos profissionais do direito

    alimenta os processo de converso destes conflitos particulares, localizados e inscritos na

    ordem do privado, em causas pblicas e coletivas. Estas duas propriedades fazem com que o

    direito se institua como um dos espaos centrais na criao do repertrio de valores e prticas

    que instituem causa pelos direitos humanos. Este o campo que fornece as categorias

    sociais apropriadas, os cenrios onde se interpretam e julgam os fatos e os meios atravs dos

    quais se aspira solucionar os conflitos. Seus profissionais aparecem como atores chaves na

    consagrao de uma maneira de intervir e interpretar o mundo social, e que supe o

    reconhecimento da legitimidade do direito como meio de interpretar os conflitos polticos, no

    s por seus especialistas, mas tambm pelas chamadas vitimas e, fundamentalmente, do

    Estado.

    O ponto de partida desse trabalho consiste em considerar que a mobilizao dos

    profissionais do direito no pode ser vista como um dado derivado direta e exclusivamente do

    fato objetivo e dramtico da represso de Estado. Prticas e conflitos formalmente

    semelhantes no so reivindicados como formando parte da agenda dos direitos humanos. Isto

    sugere que a sua reivindicao no depende exclusivamente do exerccio da violncia por

    7 Bourdieu, 1998.

  • 12

    parte do Estado, tampouco de razes voluntaristas baseadas na coragem de seus militantes ou

    nos vnculos de sangue com as vtimas. Uma ligao deste tipo parece depender da presena

    de outras foras e relaes sem as quais tal reivindicao no ganha reconhecimento pblico.

    Na sua anlise, Bourdieu aponta diretamente essa questo partindo do reconhecimento que:

    Nada menos natural do que a necessidade jurdica ou (...) o sentimento de

    injustia que pode levar a recorrer aos servios de um profissional (...) a passagem

    do agravo despercebido ao agravo percebido e nomeado, e sobretudo imputado,

    supe um trabalho de construo da realidade social que incumbe, em grande

    parte, aos profissionais (...) o poder especfico dos profissionais consiste na

    capacidade de revelar os direitos (...) so tambm os profissionais quem produz a

    necessidade dos seus prprios servios ao constiturem em problemas jurdicos,

    traduzindo-os na linguagem do direito, problemas que se exprimem na linguagem

    vulgar...8.

    com o propsito de demonstrar este trabalho de construo da realidade social que

    focalizarei a pesquisa no segmento dos profissionais do direito engajados nesta enorme tarefa

    de construo da causa pelos direitos humanos. Proponho explorar em detalhe este fragmento

    do universo profissional com a inteno de compreender as condies que tornaram possvel

    que alguns projetos militantes se articulassem com um tipo especfico de competncia

    especializada. O que supe considerar que estes usos militantes do direito tambm no se

    explicam por disposies essenciais presentes nos advogados dispostos a atuar na esfera

    pblica em beneficio dos outros, nem que o interesse pela causa pr-exista prpria ao

    reivindicativa. com o propsito de eludir essa armadilha que vou dar conta dessas

    disposies no contexto de configuraes scio-histricas especficas. So elas as que do

    sentido ao engajamento, pois existem potencialmente outras alternativas de adeso e outras

    formas de exercer a profisso.

    Como veremos, as aes desenvolvidas pelos militantes da causa ganham sentido no

    s ao serem consideradas por sua relao com o Estado, mas pela relao com outros

    profissionais da poltica e do direito que se colocam em uma posio de maior proximidade

    com essa militncia. neste marco mais especfico de relaes onde o engajamento com este

    militantismo jurdico ganha sentido uma vez que supe tanto um posicionamento a respeito

    8 Bourdieu, 1988: 231-232. Grifos meus.

  • 13

    das formas apropriadas de exercer o direito, como dos interesses que devem ser reivindicados

    no espao pblico9.

    Para abordar as condies sociais, profissionais e polticas que possibilitam a

    vinculao entre o tratamento de um caso e a defesa militante de uma causa proponho colocar

    especial ateno em:

    a) o perfil profissional destes advogados, suas diferentes origens sociais, seus capitais

    culturais e familiares, a formao profissional, os modos de ingresso na profisso,

    o repertrio de estratgias judiciais e extra-judiciais utilizadas, as diferentes

    definies do trabalho jurdico, as competncias privilegiadas dentro deste

    universo, os significados desta opo profissional, suas diversas instncias de

    consagrao, os critrios que fundam sua credibilidade, os valores comprometidos

    nesta tarefa e as representaes que instituem este perfil profissional e militante.

    b) A conformao de associaes de defesa dos direitos humanos e a participao

    destes profissionais nas redes nacionais e transnacionais de peritos, a

    multiplicidade de espaos atravs dos quais se articula este militantismo (a

    universidade, o parlamento, os sindicatos, etc.), o repertrio de recursos

    mobilizados para converter um processo judicial numa causa pblica e coletiva (a

    imprensa, as manifestaes pblicas, etc.). Para esses profissionais do direito,

    advogar perante os tribunais era apenas uma parte de sua atuao profissional.

    c) As condies sociais e polticas mais abrangentes dentro das quais se situa esta

    forma de militantismo e que tornam possvel a adeso a esta causa, entre outras

    alternativas possveis. Estas condies no se limitam a assinalar a existncia

    objetiva do exerccio da violncia pelo Estado, mas supem considerar tambm os

    processos de mobilidade social, de imigrao ou de ampliao da base eleitoral.

    9 Esse , precisamente, o sentido do trabalho de Eric Agrikoliansky, quem, ao tentar dar conta das flutuaes na adeso Liga Francesa pelos Direitos do Homem e do Cidado depois do ps-guerra, inscreve este engajamento em relao s oportunidades abertas ao exerccio profissional da poltica para os militantes comunistas e socialistas, uma vez finalizada a luta contra o nazismo e contra o colonialismo, respectivamente. Agrikoliansky, Eric. 2002.

  • 14

    Este ativismo jurdico no tem nada de evidente ou natural se consideramos que a

    profisso de advogado est estruturada em torno reivindicao da independncia e de um

    modelo de excelncia que consagra o valor da neutralidade e da tcnica acima da adeso e da

    convico. Esse princpio tico de atuao profissional funda-se em analogia com o dos

    mdicos: o profissional do direito tem o dever de aceitar todos os casos, mesmo quando eles

    contradizem suas prprias convices pessoais. Ainda mais, faz-lo motivo de orgulho e

    demonstrao de responsabilidade profissional10. Os profissionais do direito engajados com a

    causa dos direitos humanos contrastam com este ideal j que aparecem como disponveis para

    a denncia do caso, no apenas na esfera judicial seno, e principalmente, na esfera pblica.

    Neste sentido, trata-se de um advogado que est situado nas antpodas da neutralidade.

    Os profissionais do direito descritos neste trabalho tampouco se encaixam exatamente

    na figura do especialista dedicado profissionalmente poltica e que abandona a prtica

    profissional. Essa esfera de atuao tem sido intensamente estudada na literatura especializada

    ao analisar o ingresso desses profissionais liberais na poltica no contexto da marginalizao

    das antigas classes dirigentes, aps o triunfo da repblica em pases como a Frana. Tambm

    tem recebido ateno as faculdades de direito como instncias chaves no recrutamento dos

    polticos profissionais e na formao de redes de profissionais da poltica11. Para o caso de

    Amrica latina, os trabalhos destacam a relevncia dos advogados e juristas no processo de

    nation-building ao longo do sculo XIX: os juristas tm elaborado as cartas constitucionais,

    os cdigos, a legislao, a criao de novas instituies jurdicas e a carreira de advocacia tem

    sido a via de recrutamento das elites polticas. Neste sentido, os advogados tm sido muito

    importantes no surgimento das formas embrionrias da esfera pblica12.

    Vale a pena comear a introduzir a perspectiva adotada neste trabalho, destacando o

    sentido com o qual utilizo o termo causa. Esse conceito remete tanto ao processo judicial,

    que se tramita nos tribunais, quanto ao conjunto de interesses a serem sustentado e a fazerem

    valer na esfera pblica13. Os profissionais do direito analisados neste trabalho se distinguem

    porque, ao mesmo tempo que assumem a defesa de um caso perante os tribunais,

    desenvolvem um trabalho extra destinado a transformar o caso particular em uma causa

    10 Em: Scheingold e Sarat, 2004. 11 Esses so os casos, notoriamente, dos estudos de Pilles Le Bguec e Lucien Karpik. L Bguec, G. 2003. Karpik, Lucien, 1995. 12 Em: Zimmermann, E. 1998. 13 Esta definio foi tomada do trabalho de Liora Isral e Brigitte Gatti. 2003.

  • 15

    pblica e coletiva. Neste sentido, as prprias associaes foram pensadas como tribunas de

    onde defender a causa pelos direitos humanos. O trabalho de Luc Boltanski a respeito das

    denncias publicadas na seo de cartas dos leitores dos jornais ilustrativo no que se refere

    s condies que permitiriam que um caso particular tornasse um assunto de interesse

    coletivo14. Segundo este autor, para transformar um caso em exemplar se requer que grupos

    autorizados estabeleam uma equivalncia entre o caso e outros considerados semelhantes.

    Neste sentido, os profissionais do direito que se reivindicam pela adeso uma causa parecem

    ser especialmente aptos para realizar esta transformao.

    A anlise do processo especfico atravs do qual um processo judicial sai deste espao

    profissional para se introduzir na esfera pblica tem sido objeto de exame no trabalho de

    Elisabeth Claverie a respeito da figura de Voltaire15. Este modelo da anlise, que coloca

    nfase no exame das distintas etapas na criao de affaires publiques, tem sido desenvolvido

    nos inmeros estudos dedicados especialmente em Frana ao clebre affaire Dreyfus. Sua

    importncia para a formulao dos problemas desta pesquisa tem sido mostrar que o vnculo

    entre a causa no sentido judicial e a causa no sentido poltico historicamente construdo e

    deve ser explicado. Na constituio deste vnculo entre o poltico e o jurdico, os profissionais

    do direito que participam destes processos desempenham um papel principal.

    A ateno a este tipo de advogado militante coloca a minha pesquisa na confluncia de

    vrias linhas da anlise desenvolvidas tanto nos EUA quanto na Europa. Entre os primeiros,

    encontram-se os trabalhos de Sarat Austin e Stuart Scheingold que tm recebido o nome de

    cause lawyering em razo do seu interesse em examinar os vnculos entre a prtica do direito

    e o engajamento militante. Suas anlises invertem a nfase sobre a publicitao dos processos

    judiciais, outorgando prioridade no tanto forma em que o direito condiciona a ao poltica,

    mas forma em que esta mobilizao muda o prprio campo do direito, isto , os modelos de

    organizao da profisso e suas formas de representao. Estes autores destacam o contraste

    entre o advogado convencional e o cause lawyers como uma oposio entre o exerccio do

    direito como uso de uma competncia tcnica disposio dos fins definidos pelo cliente e o

    14 Boltanski, 2000. 15 Claverie, 1994.

  • 16

    exerccio da profisso em funo de um compromisso moral e poltico disposio de uma

    causa pblica16.

    Segundo a perspectiva destes autores, o ativismo jurdico um fenmeno recente. Nos

    EUA, em particular, desenvolveu-se a partir dos anos 60. Esta delimitao temporal revela os

    supostos dos autores, pois se contrape ao advogado engajado, o advogado dedicado

    profissionalmente poltica. Neste modelo, enquanto o primeiro aparece associado ao

    reconhecimento da existncia de novos direitos e causas (feminismo, minorias sexuais, etc.),

    o segundo estaria ligado defesa dos direitos civis e polticos. Esta mesma diferenciao est

    presente no trabalho de Lucien Karpik e Terence Halliday, para quem a reconquista da

    cidadania em pases de Amrica latina que vivenciaram o terrorismo de Estado provocou o

    retorno do advogado poltico17.

    O ideal tpico do advogado engajado numa causa constri-se tendo como referncia as

    seguintes propriedades: trata-se de um especialista que adere plenamente causa de seus

    clientes, que se encontra disponvel para sustentar a denncia pblica de uma injustia, que

    ocupa uma posio marginal dentro da sua profisso, que corresponde marginalidade de sua

    clientela (excludos, imigrantes, etc.) e que marginal tambm em relao s formas

    dominantes da poltica partidria, dedicado s causas nobres e guiado por seus valores mesmo

    quando contra seu prprio interesse. O interesse destes autores reside em compreender os

    vnculos entre este tipo de prtica profissional e as possibilidades de reforar a democracia.

    De uma perspectiva menos normativa, Liora Isral e Brigitte Gatti colocam as

    condies ideais deste tipo de ativismo jurdico assinalando o fato de estar baseado em

    relaes de representao fortemente assimtricas com seus defendidos, de irromper em

    situaes de crise polticas e de convocar a grupos de recm chegados tanto poltica quanto

    ao direito18. Segundo estes autores, os estudos da cause lawyering tendem a cair em

    explicaes tautolgicas pelas quais a disposio dos advogados ao pblica reside nos

    valores e disposies que eles carregam como profissionais do direito.

    16 Segundo estes autores, cause lawyering is about using legal skills to pursue ende and ideals that trascend client service. Em: Scheingold and Sarat, 2004. 17 Halliday e Karpik, 1997. 18 Gatti e Israel. Op.cit.

  • 17

    Neste trabalho, explorarei empiricamente estes modelos (o norte-americano,

    representado pelos trabalhos de Austin e Scheingold, e o francs, representado pelos trabalhos

    de Isral e Gatti) e sua produtividade atravs da comparao de diferentes momentos na

    histria deste compromisso militante na Argentina. Esta dimenso temporal permite registrar

    a presena desta figura do advogado engajado nas primeiras dcadas do sculo XX. Assim, o

    compromisso dos especialistas com a causa dos deportados, exilados e asilados polticos nos

    anos trinta permite relativizar a novidade desta forma de exerccio militante e profissional do

    direito.

    Se inicialmente estes profissionais do direito fizeram sua entrada na profisso atravs

    da representao da causa dos operrios ao se inserirem em grmios e sindicatos, esta

    distncia social vai se modificar quando so os prprios companheiros de militncia e seus

    prprios colegas que se tornaram seus defendidos. Como veremos, as transformaes recentes

    no campo internacional do ativismo jurdico tm conduzido a uma profunda mudana neste

    perfil ideal do advogado engajado. As trajetrias aqui estudadas ilustram a maneira em que a

    entrega causa das vtimas do terrorismo de Estado torna-se uma forma bem sucedida de

    exerccio da profisso e de interveno dentro da prpria esfera do Estado e das grandes

    instituies internacionais.

    Uma perspectiva deste tipo tem sido desenvolvida nos trabalhos de Bryan Garth e

    Yves Dezalay para os casos de Brasil, Chile e Mxico19. Seus estudos sobre a rede

    transnacional de ativistas destacam a participao dos profissionais do direito com perfis

    muito heterogneos, o que inclui desde notveis do direito e da poltica at recm chegados.

    Um outro estmulo importante para as formulaes apresentadas nesta tese deriva da

    sociologia do engajamento militante. Particularmente, do estudo de Emmanuele Reynaud que

    prope caracterizar um tipo de compromisso que se desenvolve fora dos espaos clssicos de

    representao do interesse coletivo (os partidos polticos, os sindicatos), como o caso das

    associaes de defesa dos presos polticos e das vtimas da ditadura analisadas na presente

    tese. Reynaud caracteriza os movimentos sociais que surgiram nos anos setenta como formas

    de sociabilidade que se constituem no prprio processo de dar forma ao coletiva e que no

    supem uma adeso exclusiva20. Sua anlise torna-se particularmente relevante visto que

    19 Dezalay e Garth. 2002. 20 Reynaud, E. 1980.

  • 18

    reconhece que os participantes destes movimentos se definem pela multiplicidade dos seus

    engajamentos militantes, entre os quais se encontram, evidentemente, os partidos polticos.

    Trata-se de formas de ativismo que no se excluem, pois possvel registrar nas trajetrias

    destes militantes um movimento de entrada e sada entre uma esfera e a outra (as associaes

    e os partidos). Na perspectiva deste autor, a participao simultnea ou sucessiva nestas

    distintas esferas de ao alimenta o engajamento em ambas, de tal maneira que os vnculos

    criados em cada uma delas continuam, verificando-se um processo acumulativo de

    fortalecimento da vocao militante. Este processo resulta na configurao de redes de

    atuao que integram indivduos dispostos ao trabalho comum. Entre os princpios de

    agregao destas formas de engajamento, o autor destaca exatamente o exerccio de uma

    profisso liberal (advogado, mdico, professor). Sua nfase est orientada a sublinhar os

    valores que sustentam este tipo de engajamento e que garantem a sua perdurabilidade. Tais

    valores possibilitam nomear estas formas de ativismo como militantismo moral, porquanto

    estas cruzadas pela reforma dos valores estariam dirigidas por militantes que no so os

    beneficirios diretos das lutas nas quais esto comprometidos. A qualidade desinteressada da

    ao e a vocao ao universal deste compromisso jurdico recebero especial ateno no

    desenvolvimento desta pesquisa.

    Um dos princpios de agregao destes profissionais do direito o fato de se

    reconhecerem e serem reconhecidos como intelectuais. Trata-se de figuras que combinam

    tanto o perfil profissional do especialista como o do intelectual engajado. Ao faz-lo

    transpem os marcos da profisso para fazer da escrita sobre os problemas pblicos uma parte

    central de sua atividade. Atravs deste engajamento militante adquirem uma grande

    visibilidade pblica, o que se torna um recurso crtico na hora de realizarem as defesas e de

    somarem adeses causa de seus defendido. Para situar estas figuras no espao pblico,

    contei com a contribuio da literatura especializada sobre este universo especfico,

    especialmente, com os trabalhos de Louis Pinto e Gerard Leclerc dedicados anlise da figura

    do intelectual no espao europeu, principalmente francs21. Particularmente til na hora de

    pensar o lugar do intelectual e do perito foi o livro compilado por Federico Neiburg e Mariano

    Plotkin. Como veremos, a dimenso temporal adotada nesta tese permite identificar com

    clareza os deslocamentos e a circulao dos mesmos indivduos que se identificam segundo o

    contexto baseados em uma ou outra condio. Os que se reconhecem hoje como peritos em

    21 Pinto, 1984 e Leclerc, 2003.

  • 19

    direitos humanos so os mesmos que se identificaram com a figura do intelectual da esquerda

    nos anos sessenta. Sua incorporao esfera do Estado no exclui o fato de reivindicar, para

    eles prprios, uma posio de interveno pblica baseada no uso crtico da razo. Isto

    possvel porque ambas as figuras no constituem pontos extremos de uma linha, mas um

    espao de interseo22. A literatura especfica sobre a configurao do espao intelectual na

    Argentina tambm foi importante na hora de pensar as mediaes entre a insero profissional

    e o compromisso poltico, especialmente os trabalhos que exploram esta vinculao entre os

    intelectuais da esquerda entre os anos 40 e 7023.

    O livro de Luc Boltanski sobre o processo de formao da categoria cadre

    (executivo) tem sido uma referncia fundamental, tanto na hora de formular as perguntas

    desta pesquisa quanto ao pensar as estratgias possveis para resolv-las24. Suas indicaes a

    respeito das falcias contidas na sociologia dos grupos scio-profissionais tm sido

    especialmente produtivas na hora de pesquisar a respeito de um grupo profissional, tentando

    evitar a armadilha do essencialismo contido neste tipo de perspectiva terica. A nfase que o

    autor coloca na necessidade de examinar todo o trabalho social de definio e delimitao que

    acompanha a formao de um grupo tem sido uma referncia muito importante ao se fazer a

    anlise dos especialistas do direito. Nesta tese proponho uma primeira aproximao ...

    anlise dos mecanismos atravs dos quais, no jogo da vida social, os agentes se reagrupam, se

    identificam com representaes coletivas, se dotam de instituies e de porta-vozes

    autorizados a personific-los e engendram, desta forma, corpos sociais que tm toda a

    aparncia de pessoas coletivas25.

    Como veremos, e seguindo as indicaes de Boltanski, ao reconstruir alguns traos da

    histria da categoria defensor de presos polticos proponho apresentar todo o trabalho

    simblico de definio que acompanha a formao deste grupo. Desta perspectiva possvel

    compreender que a atual categoria perito em direitos humanos no mais do que o produto

    reificado de uma srie de lutas pela definio e redefinio de um grupo social.

    22 Neiburg e Plotking, 2004. 23 Entre a abundante literatura sobre os intelectuais da esquerda destaco o trabalho de Sigal, 1991, Sarlo 2001, Altamirano, 2001 e Tern, 1991. 24 Boltanski, Luc. 1982. 25 Boltanski, L. op.cit.

  • 20

    Se os interesses formulados em minha dissertao de mestrado a respeito do sentido

    do apelo aos vnculos de sangue com as vtimas na constituio do movimento pelos direitos

    humanos e na formao da categoria vtima do terrorismo de Estado possibilitaram que me

    mantivesse prxima tradio antropolgica relativa aos estudos sobre parentesco, famlia e

    formas de classificao social, o deslocamento para o universo dos advogados defensores

    colocou-me de vez perante um campo disciplinar completamente alheio: o direito. Ao tentar

    me familiarizar com este universo por meio da leitura de trabalhos acadmicos sobre a sua

    histria na Argentina, pude constatar, j nos incios desta pesquisa, a escassssima produo

    cientfica sobre este universo profissional. Para nenhum dos perodos examinados pude contar

    com literatura que abordasse grupos, relaes, tradies, exceto alguns ensaios e relatos

    testemunhais dos prprios advogados, professores de direito e juzes. A ateno da sociologia

    e da antropologia tem se concentrado quase exclusivamente no tratamento do delito e dos

    presdios como dispositivos de poder26. Mais prximos minha rea de interesse so as

    publicaes do historiador Mauricio Chama sobre a participao dos defensores de presos

    polticos nas mobilizaes da esquerda revolucionria dos anos setenta27 e os de Laura

    Saldivia e Roberto Sabba, ambos advogados interessados em compreender as condies de

    possibilidade de um direito de interesse pblico na Argentina28. A histria da formao em

    direito tambm tem sido monopolizada pelos relatos produzidos pelos prprios juristas29.

    Mesmo assim, ela apresenta vazios notveis visto que os autores comeam, invariavelmente,

    pelo direito indiano e finalizam em 1910, quando culmina o perodo de codificao do direito

    (sano do Cdigo Civil, Penal, etc.). No mximo, alguns destes trabalhos chegam at o

    chamado Movimento pela Reforma Universitria (1918). Estas histrias to s destacam de

    maneira abstrata a sucesso de correntes jurdicas e filosficas que orientaram a formao dos

    profissionais do direito no sculo XIX30. Em nenhum caso oferecem uma histria social da

    especialidade.

    26 Uma valiosa exceo a esta linha de pesquisa o trabalho do historiador Juan Manuel Palcio, orientado a reconstruir as prticas dos juizes de paz no interior do estado de Buenos Aires. Em: Palcio, 2004. Sobre as questes liga