A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

16
V Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade 17 a 19 de setembro de 2009, UFPA, Belém (PA) Grupo de Trabalho: [Acesso a justiça e direitos humanos] A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico Vanessa Rodrigues de Melo UNDB – Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

description

Este artigo tem por objetivo contribuir com a visualização dos diversos problemas observados e vivenciados, nas últimas 20 décadas, pelas comunidades quilombolas da cidade de Alcântara, do estado do Maranhão. Bem como, analisar o manejo que o Estado brasileiro e o Direito dispõem para a comunicação com a luta negra presente em Alcântara.

Transcript of A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

Page 1: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

V Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade

17 a 19 de setembro de 2009, UFPA, Belém (PA)

Grupo de Trabalho: [Acesso a justiça e direitos humanos]

A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma

jurídico

Vanessa Rodrigues de Melo

UNDB – Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

Page 2: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo contribuir com a visualização dos diversos

problemas observados e vivenciados, nas últimas 20 décadas, pelas comunidades

quilombolas da cidade de Alcântara, do estado do Maranhão. Bem como, analisar o

manejo que o Estado brasileiro e o Direito dispõem para a comunicação com a luta

negra presente em Alcântara.

Frisa-se que a apresentação desse artigo é singela e se exauri na reflexão

proposta aqui, pois, em vista do movimento de luta negra existem inúmeros

intelectuais bem mais capacitados para o debate exposto.

Nesse compasso, a observância mais apurada da trajetória da luta negra

alcantarense, desmonta uma narração das experiências que é preenchida pelo olhar

da evidência baseado pelas interpretações costumeiras,que são pautadas pelo critério

do senso comum e que interferem na criticidade de uma abordagem mais hábil.

Apontamos essa observação, a partir da colheita de informações que

própria da natureza do trabalho investigativo, demonstra como a realidade da vida de

Alcântara, em especial, da luta quilombola, é vista e disposta a manter o caráter da

evidência, não se desestruturando do pensamento aristocrático, que traduz um retrato

de uma era escravocrata. Nesse sentido, apuramos ser mais coerente traçarmos um

viés político da articulação negra em defesa de seus direitos, previstos pela lei maior,

e amarrados por toda a Experiência da experiência vivida pelos negros em seu

combate.

Assim, consideramos de primária importância, reconhecer que os conflitos

travados pelos negros em defesa de suas terras, no estado do Maranhão, nos

apontam para uma das maiores contribuições, no desempenho da construção do

estado brasileiro. Visto que, notoriamente negro, o estado tem urgência em resigna-se

pela infligências cometidas e buscar a eficiência na constituição da cidadania de seus

homens e mulheres.

Em virtude disso é que se pode destacar a experiência dos quilombos de

Alcântara, como uma estrutura que apresenta todos os tipos de oprimidos, já que sua

articulação orienta-se pela solidariedade e compartilhamento das terras, caráter basilar

na luta quilombola. Resulta, desse modo, observar-se o caso Alcântara, e verificar que

resultante de ato do ex-governador João Castelo, ao assinar o decreto de

Page 3: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

desapropriação nº 7820/20, com fins na implantação da base espacial, expropriou

forçosamente, dezesseis comunidades tradicionais e três mil e seiscentas famílias

desarticulando toda uma luta em busca da cidadania e de guarda da memória.

1. DA EXPERIÊNCIA DA MEMÓRIA QUILOMBOLA

As vivências sociais construída pelas comunidades quilombolas residentes

nas áreas de conflito representam o que de maior se pode observar ao apontar, pelo

prisma do confronto, o protagonismo agudo de suas experiências.

Ao se observar as características identitárias e étnicas dos povoados

centenários instalados na área de conflito revela-se a sua inserção no forte

enfrentamento representado, pela instalação do centro de lançamento de Alcântara.

Em certa medida, ao se acompanhar o histórico dos quilombolas se verifica que este

se traduz na personificação do rebaixamento moral das comunidades remanescentes

demonstrando que os moradores da área do conflito, externam o que de mais

vexatório teve a sua República, em hora que não se constituía.

O que se vislumbra, em virtude disso, é a capacidade de ânsia em romper

com os “tempos da escravidão”, frente à enorme indecisão do futuro. Nesse percurso,

a transição se faz necessária para a inversão dos fatores estigmatizantes dos

remanescentes quilombolas, que passam a ser vistos com capacidade político-

organizativa o que se nota ser fator resultante de uma batalha travada pela efetivação

de uma identidade coletiva alicerçada na ocorrência da autodefinição de seus

colaboradores.

“Em virtude disso é que se pode destacar previamente que o conflito social em Alcântara institui uma forma de presencialidade do passado, levando os procedimentos de trabalho de campo relativos ao laudo pericial a discutirem fatos de uma memória oculta e historicamente reprimida. Esse tipo de memória é provocada por uma situação limite que, ao colocar em jogo a sobrevivência do grupo, acaba tornando transparentes acontecimentos, representações e elementos identitários que tradicionalmente eram mantidos segundo uma invisibilidade social. O conflito social cria condições de possibilidade para que venha à tona o Ideal de conflito e de trabalho livre, por conta própria.” (Wagner, 2006)

Page 4: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

Nesse contexto, é que os deslocados para as agrovilas tiveram suas

rotinas turbadas e execradas do jogo de sobrevivência de seus grupos. Essas ações,

embora à ordem do crescimento do país, revelam práticas pertinentes a uma

administração neocolonial, onde o faturamento desenvolvimentista econômico

concomitante a justificativa de avanço tecnológico, buscam o reconhecimento nacional

e auxiliam no desmonte da identidade étnica dos atingidos.

Esses tipos de articulações imobilizam a resistência da memória coletiva, e

constrangem qualquer tipo de protagonismo, visto que, alteram forçosamente as

relações sociais que, em especial, eram anteriormente pautadas no comunitarismo,

bem como na compreensão acerca da sua tradição e de sua história.

Nesse sentido, vale ressaltar os aspectos caracterizantes das

comunidades remanescentes que foram deslocadas ao jugo do nosso nacionalismo. O

significado da memória para as organizações quilombolas é condição essencial para a

identificação de sua luta, assim como, para a interpretação de seu contexto histórico e

seu enquadramento político.

As comunidades Quilombolas se apresentam como agrupamentos de

negros, resultante do constante enfretamento, resistência e, principalmente, pela

organização na luta de seus direitos, de sua terra, da Liberdade e da Igualdade. Essa

compreensão abrange um olhar de autonomia que extirpa do seu convívio a

submissão e comercialização de suas batalhas contribuindo para o protagonismo de

sua identidade. Tradicionalmente localizados no meio rural, se auto-definem como

comunidades negras rurais ou terras de preto ou, ainda, quilombos ou mocambos,

assim como nomeações semelhantes.

A própria noção de quilombo traduz um repertório narrativo de seus

enfretamentos, de sua luta por direitos enquanto cidadãos. As narrativas de vida dos

antepassados são simultaneamente referidas na cronologia de resistência e convívio

social entre os negros. Na colheita de informações, encontrou-se o depoimento de um

quilombola de 63 anos da comunidade de Brito refletindo o passado e o presente da

vida do negro:

Page 5: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

“Eles vinham apanhá o sernambi de noite para levar para comer com a família no mato, que quando eles fugiram dos brancos, que branco era perverso, outro não era tão perverso assim como se dizia e por que eles fugiam e iam fazer moradias, hoje tem muito povoado, no município de Alcântara, porque eles fugiram e os outros iam fazer libertos os escravos, aí esse povo aí, cada um... ficaram independentes, ali de Canelatiua, antes do governo do governo chegar com a base...1”

Não importa a qualidade do tempo, se novo ou velho, a narrativa negra é

expressa a seguir pela temática do medo e da fuga, que sempre permeiam a trajetória

dos quilombolas de Alcântara. “A fuga é inerente à escravidão”, já nos aludia Perdigão

Malheiros quando mencionava na manutenção na memória dos negros, a

perversidade instaurada sobre eles. No decurso de sua história, os chamados pretos

resistiram de maneiras diversas a um manejo constante de ameaça e perigo que hoje

se reflete na possibilidade de retirada de suas terras.

A possibilidade de serem retirados de suas terras representa a destruição

de uma narrativa coletiva de luta por direitos, Liberdade e Igualdade. Nesse processo,

a negação da história oficial, ou mais pontualmente, o deslocamento das comunidades

quilombolas negras de Alcântara forçosamente para agrovilas ou para a capital,

elencam a ruína da tradição compartilhada pela comunidade.

“A memória funda as percepções sobre o mundo. Essas percepções podem ser construídas, mas também desconstruídas. Um nome de rua, de uma escola, de um teatro é também uma memória preservada.”(SOUSA,2005)

A importância de desconstruir essa tradição e, especialmente, a sua

transmissão é a tentativa de retirar da luta, a sua organização, e tornar deficiente a

sua mobilização por direitos enquanto cidadãos de uma Democracia. O principal

intento no desmonte da narrativa da memória negra é contribuir para o abandono da

identidade quilombola e facilitar o discurso da Nacionalidade.

1 Entrevista coletada por Alfredo Wagner Berno de Almeida.

Page 6: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

As razões desse diagnóstico perpassam pelo processo de entendimento

de identidade. Elisa Larkin (2003, p.31) pesquisadora de relações étnico-sociais e

cientista social, manifesta seu conceito sobre quilombo, como um grupo de

referenciais que orientam os mais diversos relacionamentos entre os integrantes de

uma dada sociedade ou como um agrupamento de referenciais que distinguem o

grupo e seus integrantes dos outros diversos, que mantém e compõem a estrutura da

sociedade analisada.

Nesse ditame, observa-se o grande número de comunidades

remanescentes e seu processo de formação.

No Maranhão existem hoje mais de 400 comunidades remanescentes de quilombos. No povoado de São Cristóvão, na cidade de Viana, 40 famílias vivem em terra comprada do patrão no período pós-abolição. É chamada de terra sem partilha, porque todos são proprietários por igual e resistem na preservação da cultura herdada dos antepassados. A história registra uma grande tradição do Maranhão na luta de quilombos. Os mais conhecidos são os da Lagoa Amarela (do negro Cosme, que foi um dos líderes da Balaiada), Turiaçu, Maracaçumé, São Benedito do Céu, Curupuru, Limoeiro (em Viana) e Frechal (em Mirinzal). Também foram muitas as lutas armadas. Uma luta conhecida é a “insurreição de escravos em Viana” (1867), quando negros quilombolas de São Benedito do Céu ocuparam diversas fazendas. (SOUSA, 2005)

Nessas inúmeras terras em que algumas são chamadas de terras de

índio, por terem sido doadas para o santo (São José de Cortes); ou ainda, terras da

santa como é o caso de Itamatatitua e vários povoados próximos; as também

denominadas terras de santíssimo (as agrupadas em torno de Santana dos Caboclos

e Samucangaua); ou as terras de caboclo (Peroba de Cima e povoados próximos) e

as conhecidas terras de preto são manifestações da memória de territorialidade de

sua identidade.

Ausentes dessa dimensão da memória territorial, o sentimento de

pertença, de percepção do social enquanto caracteres formadores de sua identidade,

que é constantemente construída por seus membros na resignificação do cotidiano, se

demonstra deficitário e dificilmente as comunidades quilombolas conseguem

compreender a sua totalidade e seus entrelaços uns com os outros.

Page 7: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

Tratamos aqui de comunidades remanescentes que são organizadas pelo

sistema de coletividade da terra, o “uso comum da terra”, onde o sistema do convívio

social é regido por valores nutridos pelos laços de consangüinidade, de compadrio e

de respeito geral pela luta dos antepassados. A presença da endogamia é recorrente

na busca de fortalecimento da família para que as mazelas sociais não caiam sobre o

indivíduo e enfraqueça a identidade social.

Assim, portanto, e mais diretamente, o pertencimento da comunidade

perpassa pela compreensão do movimento da etnicidade do grupo e do

reconhecimento da luta pelo direito a sua terra. O que implica na extensão da ação

política resignificada com capacidade de romper com a lógica capitalista-

desenvolvimentista do uso e apropriação a terra.

“As formas de uso da terra e dos recursos do território têm mostrado que o acesso a terra apresenta demandas históricas construídas nas quais as questões do trabalho e as estratégias de sobrevivências vêm se colocando como aspectos de crucial importância para a definição de um traço de lutas existentes no Brasil.”(CARRIL, 2006, p.158).

“A identidade com a terra, identidade com a luta, iguais e diferentes, caminhando para construir um sujeito coletivo. Avanços, recuos, discussões, enfrentamento das próprias contradições em meio às contradições das sociedades que os apóiam através de algum seguimento ou os condena através de outros. Identidade e oposição na construção da sua identidade de sujeito coletivo. (BORGES, 1997, p.168).

A identidade étnica dos quilombolas é sustentada pelas memórias das

experiências e lutas de seus antepassados, considerando isso, “marca de uma

conjuntura histórica e forma primeira do seu processo de construção social e de

diferenciação face aos outros, que estruturou de forma complexa, as resistências à

dominação no presente século”. (ACEVEDO e CASTRO, 1998, p.161).

Com isso, a terra quilombola é compreendida como objeto resultante de

conflitos étnicos, sociais e econômicos que se externam na construção de novas

relações sociais e na manutenção do contato com as experiências e ensinamentos

dos antepassados.

Page 8: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

Assim, o território ocupado pelas comunidades remanescentes em

Alcântara resultam do sentimento de pertença e identidade com o lugar em que a

posse coletiva e o desenvolvimeto da comunidade se instarurou durante séculos.

Nesse ditame, a busca pela manutenção do direito à terra e a sua memória trata de

ressignificar uma ancestralidade que lhes é comum e que permite a construção de

uma narrativa histórica compartilhada.

A memória da luta negra das comunidades de Alcântara, é elemento de

construção da identidade étnica e por isso, ligada a manutenção de suas terras. A

estrutura sócio-espacial é meio de sobrevivência, de reprodução da Vida e da luta

politica de afirmação de sua cidadania.

Há uma dimensão da matéria que é irredutível ao simbólico. Por mais que o capital financeiro, dito volátil, queira impor sua lógica simbólica matemática e abstrata ao mundo há uma materialidade que concerne à produção da vida que é irredutível à lógica financeira. (GONÇALVES, 2002, p.230)

Por isso, discutir o processo de definição da terra, como no caso do

Maranhão, em especial de Alcântara, é permitir o ultrapasse dos limites étnicos-

culturais das comunidades e permitir o aceite a uma reflexão que tange no discurso de

apropriação da Terra pelo Estado, e de como isso pode se solidificar com o auxílio de

um de seus contribuintes, o Direito.

2. DA ALTERAÇÃO DO PARADIGMA JURÍDICO

Em discussão sobre Povos Indígenas e Tribais, a convenção 169 da

Organização Internacional do Trabalho, OIT (1989), é destacada como um dos mais

significativos referenciais quanto à proteção do direito à terra dos povos mencionados.

A convenção atribui aos Estados2 competência para o reconhecimento e implantação

2 Artigo 2o: 1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade; 2. Essa ação deverá incluir medidas: a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população; b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e

Page 9: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

de medidas que ressaltem os direitos de propriedade e de posse sobre os territórios a

que tradicionalmente esses grupos se desenvolvem.

A referida convenção traz o fato de transmitir aos Estados a competência

de gerir para a manutenção de suas comunidades e, obedece ao critério da

autodeterminação e observância da identidade3, critérios determinantes para a análise

da aplicação dessas disposições nas comunidades elencadas.

A construção de uma identidade quilombola a partir da análise de luta pela

permanência na terra, onde construiu a sua memória coletiva, auto-declara um dado

momento histórico de maior reconhecimento da luta pelos direitos sagrados: à terra, a

memória e a cidadania.

"O negro faz parte de uma terra singular, uma terra que possui e da qual é possuído. Sua história nela se inscreve e ele próprio, enquanto negro, nela- a terra- encontra-se inscrito... sua relação com ela (terra) é centrada em ritos, mitos, lendas e fatos. Memórias que contam a sua saga, revelam a sua origem e desvendam, além da própria trajetória, a vida em seu movimento". (Gusmão, 1999, p.145)."É poder contar com uma terra para a qual sempre se volta, porque é aí seu lugar". (GUSMÃO, 1999, p.147).

Ao assumir essa identidade em decorrência da sua luta, os quilombolas

contribuíram para que suas demandas fossem acolhidas pelo mundo jurídico, e em

especial, pela carta magna, a Constituição. Em disposição da aplicabilidade do artigo

68 da Constituição Federal de 1988, as relações simbólicas e materiais ligadas ao

território ocupados pelos negros, passaram a vigorar nas discussões das salas de

poder e nas estruturas de manutenção. Reconhece-se, porém, que é através da

memória, que a narrativa das comunidades quilombolas serão “contadas” e assim,

acolhidas para discussão.

tradições, e as suas instituições; c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio - econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida.

3 Artigo 1o: 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.

Page 10: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

Observa-se que segundo o Decreto 4.887, datado de 20 de novembro de

2003, numa espécie de informativo comemorativo do dia sua publicação, apresenta

em seu artigo 2º4, a conceituação dos que vem a ser remanescentes das comunidades

quilombolas apresentando-os como grupos étnicos – raciais, observados sobre

critérios de autonomia, com narrativa histórica particular, com forte entrelaçamento

com os territórios habitados, onde a ancestralidade negra contribui para a relação de

resistência à opressão infligida a sua comunidade. Nesse acolhida, as comunidades

quilombolas passam a ser reconhecidas por caracteres definidos pelo ordenamento

jurídico brasileiro.

Em atenção ao caso de Alcântara, vê-se necessário um breve histórico

sobre a instalação da base de lançamento, assim como uma reflexão sobre o manejo

que o estado, sustentado pelos instrumentos do direito e da política, construíram para

a constituição do momento histórico. Assim, em 1982, decidiu-se criar um Grupo para

Implantação do Centro de lançamentos de Alcântara, a conhecida GICLA, com o

objetivo de estudar o que no ano seguinte viria a ser a CLA, com fins de executar e

permitir atividades de lançamentos e rastreamentos de naves espaciais.

Nesse dado momento, foi publicado o decreto presidencial s/n, datado de

08 de agosto de 1991 que declarava ser de “utilidade pública, para fins de

desapropriação, áreas de terras e respectivas benfeitorias, na extensão de 62 mil

hectares (620 km2), necessárias à implantação, pelo Ministério da Aeronáutica,

do Centro de Lançamento De Alcântara.”, sem se preocupar com as comunidades

que ali estavam instaladas a séculos.

4 Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. § 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. § 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. § 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.

Page 11: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

Á época, habitavam mais de 2000 famílias de negros remanescentes de

escravos, trabalhadores rurais de comunidades tradicionais. A área manifestada no

decreto foi subdividida em: com aproximadamente, 16 mil hectares e chamada de

“área de segurança”; a Área I e a área constitutiva do restante do demarcado para a

construção das casas dos oficiais e outras edificações, área II.

Com isso, diversos foram os instrumentos manipulados no trato da

instalação da base de lançamento para a conseqüente retirada das comunidades

remanescentes de quilombos. Após serem atingidas pela edição de inúmeros decretos

de desapropriação e serem remanejados para as agrovilas ou mesmo afastados pelas

escassas condições de convívio, ou ainda, serem “empurrados” para o ambiente

urbano, a óbice do atendimento aos quilombolas manteve-se instaurada.

O processo de desapropriação e instauração do Centro de Lançamento de

Alcântara (CLA), ainda hoje perdura na vida das comunidades. Com a justificativa de

avanço tecnológico, ordenado pela política espacial brasileira e intermediado pelos

acordos internacionais novos confrontos passam a ocorrer. A partir do momento que o

estado brasileiro permite a exploração comercial e o desenvolvimento de atividades

aeroespaciais em áreas ocupadas por remanescentes quilombolas há um total

descuido preceituado por acordos internacionais, sem mencionar a banalização do

interesse com as relações constituídas, historicamente, pelas mais diversas

comunidades.

Assim, na expectativa de diminuir os inúmeros embates com a luta negra,

em 28 de agosto de 2001, ao ser aberto na Comissão Interamericana de Direitos

Humanos da OEA, os representantes que propuseram o recebimento do caso pela

comissão, em especial, das comunidades de Samucangaua, Iririzal, Ladeira, Só

Assim, Santa Maria, Canelatiua, Itapera e Mamuninha, o Centro de Cultura Negra do

Maranhão – CCN/MA, o Centro de Justiça Global, a SMDH, a ACONERUQ, a

FETAEMA e a Global Exchange viram iniciar uma nova onda de negociações que

buscava a elaboração de Projeto de Desenvolvimento Local e Integrado e Sustentável

de Alcântara, na expectativa de coleta informações sobre o impacto da base e as

conseqüências da remoção dos quilombolas.

Page 12: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

Nesse mesmo período, foi organizada, no Fórum Social Mundial,

localizado em Porto Alegre, por integrantes das comunidades quilombolas de

Alcântara, a apresentação de uma denúncia contra o estado-governo brasileiro,

durante a execução da oficina de trabalho coordenada pelos Relatores (as) Nacionais

em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais.

Após visita ao município, pela Relatoria Nacional do Direito à Moradia

adequada, com o objetivo de averiguar a denúncia realizada no FSM de 2001, motivou

ao Ministério Público Federal a propor uma nova ação pública que obrigava a

Fundação Palmares e a União Federal a ambas realizarem o processo de titulação e

suspenderem os possíveis processos de remoção das comunidades rurais.

Caracterizado como território étnico, portanto, não poderia ser mais a área

atingida por possíveis excessos da força do Estado, assim como, da lógica do poder e

do capital internacional e nacional, machucando os preceitos constitucionais

fundamentados e aparados por instrumentos políticos legais. Sobretudo, a violação

dos direitos fundamentais das populações negras rurais de Alcântara permite que seja

acolhida uma reflexão profunda sobre a discriminação sócio-cultural, tal como o

desrespeito pela soberania nacional e sua população a jugo dos empreendimentos

econômicos.

Os “remanescentes das comunidades de quilombos”, que emerge com a constituição de 1988 é tributário não somente dos pleitos por títulos fundiários, mas de uma discussão mais ampla que foi travada nos movimentos negros e entre parlamentares envolvidos com a luta anti-racista. (LEITE, 2000, p. 339).

Não obstante, a partir de diversas manifestações da dimensão política da

luta de Alcântara, ficou revelada a desestruturação das relações com à terra e as

pautadas no viés étnico-cultural, visto que, desde 1982, a implantação da base de

lançamento provocou um infindável processo de violação dos direitos dos quilombolas.

Page 13: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

Desprezando a valoração da ancestralidade local e a importância das

práticas e do manejo sustentável das comunidades quilombolas fica claro que a

instalação, e mais atualmente, a expansão do centro de lançamento é, estritamente,

um projeto comercial. Atendendo a orientações nacionais, mas fraquejando na sua

soberania, o centro de lançamento de Alcântara é como dizem, alguns quilombolas,

um “aluguel do nosso país”.

Ademais, a conjuntura da luta contra a expansão da base aumenta agora,

observado que a promessa de desenvolvimento da infra-estrutura local vê-se aliada,

ao obrigatório desenvolvimento da política espacial, para fins urgentes de soberania

nacional. Em contrapartida, quando os interesses da soberania nacional conflitam com

a proteção dos direitos das comunidades negras rurais, a ótica neoliberal do poder

governamental tende a sucumbir aos seus próprios desejos em detrimento daqueles

que deveriam ser protegidos.

Com isso, nos escassos casos de concessão de titularidade de terras às

comunidades quilombolas, a manifestação e resistência dos negros foi observada de

sobre maneira intensiva, haja visto, que quando há o concessão das terras visualiza-

se de modo instável e inseguro. Isto porque, alguns dos títulos concedidos no período

de 1998 a 2002, mediados pela Fundação Cultural Palmares, apresentam

instabilidades nas alegações que avaliaram os processos expropriatórios, ou ainda,

quando houve a titulação, os direitos básicos de proteção à terra e de manutenção não

foram obedecidos.

A discussão sobre a titulação de terras busca o atendimento constitucional

dos direitos assegurados às comunidades. Não apenas no intento de reparar injustiças

mas, a articulação negra quilombola se organiza na busca do respeito das suas

formas de organização, de sua forte relação com a terra, vide que a importância do

seu meio-ambiente, significa a manutenção das suas relações sociais como

contribuinte para a formação de sua identidade.

Page 14: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A investigação das mais diversas articulações da luta negra quilombola

manifesta a importância da manutenção das práticas ancestrais, presentes nas

comunidades quilombolas. A mais simples alteração do meio-ambiente local locomove

toda uma organização social e cultural das comunidades em tela. Quando se

locomove milhares de quilombolas de suas comunidades locais para agrovilas

desconhecidas e distanciadas de seus focos de sobrevivência, os recursos naturais

mantenedores da qualidade de vida, que anteriormente, era autônoma, sustentável e

comunitária revela a força e a ligação com a cultura, originalmente africana,

diminuindo significadamente, a formação étnico-social do Maranhão.

É claro o objetivo de proteger o interesse do latifúndio, como herança

colonial que hoje é maquiado em função do desenvolvimento econômico-espacial,

incidindo sobre o descumprimento da necessária proteção aos remanescentes

quilombolas. Afinal, o que é de maior interesse e justeza; mantermos a qualquer custo

o desenvolvimento da nossa base ou proteger as comunidades quilombolas que

contribuem para a constituição da identidade étnico-social do país e que são espíritos

das narrativas oralizadas da história nacional?

Por mais que a temática quilombola não esteja exposta com maior apreço

na nossa carta magna, a Constituição, o exame pela ótica da alteridade das

disposição constitucionais contribuem para descolonização do nosso conceito de

negro, tal como de quilombo. Trata-se, portanto, da releitura do desenvolvimento

agrário negro do nosso país, assim como, a ampliação da proteção do nosso

patrimônio negro por nossas disposições constitucionais.

Tal fato, evidência novos desafios na tentativa de estudar um

constitucionalismo multicultural, aprendendo a lidar com elementos étnico-raciais,

questionando o discurso colonialista e neoliberal mantido pelos órgãos do governo e

Page 15: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

pela própria sociedade brasileira. O sucesso da articulação negra quilombola, dar-se-á

pela obediência aos “direitos consagrados” em tratados internacionais e pela

Constituição Brasileira, especialmente, criticando qualquer espécie de judicatura no

discurso público e identificando e eliminando toda e qualquer institucionalização de

discurso.

O negro pronto

está se fazendo sempre

ponto por ponto ...

(Sumo - Carlos Assunção)

Page 16: A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara. Brasília: MMA, 2006. CASTRO Edna, MARIN, Rosa Acevedo (1998). Negros do Trombeta guardiões de matas e rios. Ed. Cejup, Belém.

CARRIL, Lourdes Fátima Bezerra (2006). Quilombo, Território e Geografia. Agrária, São Paulo, N.3, pp156-171.

GONÇALVES, Carlos. Walter. Porto (2002). “Da geografia às geo-grafias: um mundo em busca de novas territorialidades” in Ceceña, A. E.; Sader, E. (Org.). La guerra infinita: hegemonía y terror mundial. (Buenos Aires: Clacso).

LUCINDA, Elisa, O Semelhante, 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1996

Quilombos no Brasil – Fundação Cultural Palmares, revista Palmares n. 5, ano 2000,

novembro.)

Souza, Ana Lúcia Silva [et al...]. De olho na cultura: pontos de vista afro-

brasileiros. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural

Palmares, 2005.