A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma jurídico
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V Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e Diversidade
17 a 19 de setembro de 2009, UFPA, Belém (PA)
Grupo de Trabalho: [Acesso a justiça e direitos humanos]
A luta negra e a memória viva: a contribuição quilombola para um novo paradigma
jurídico
Vanessa Rodrigues de Melo
UNDB – Unidade de Ensino Superior Dom Bosco
INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo contribuir com a visualização dos diversos
problemas observados e vivenciados, nas últimas 20 décadas, pelas comunidades
quilombolas da cidade de Alcântara, do estado do Maranhão. Bem como, analisar o
manejo que o Estado brasileiro e o Direito dispõem para a comunicação com a luta
negra presente em Alcântara.
Frisa-se que a apresentação desse artigo é singela e se exauri na reflexão
proposta aqui, pois, em vista do movimento de luta negra existem inúmeros
intelectuais bem mais capacitados para o debate exposto.
Nesse compasso, a observância mais apurada da trajetória da luta negra
alcantarense, desmonta uma narração das experiências que é preenchida pelo olhar
da evidência baseado pelas interpretações costumeiras,que são pautadas pelo critério
do senso comum e que interferem na criticidade de uma abordagem mais hábil.
Apontamos essa observação, a partir da colheita de informações que
própria da natureza do trabalho investigativo, demonstra como a realidade da vida de
Alcântara, em especial, da luta quilombola, é vista e disposta a manter o caráter da
evidência, não se desestruturando do pensamento aristocrático, que traduz um retrato
de uma era escravocrata. Nesse sentido, apuramos ser mais coerente traçarmos um
viés político da articulação negra em defesa de seus direitos, previstos pela lei maior,
e amarrados por toda a Experiência da experiência vivida pelos negros em seu
combate.
Assim, consideramos de primária importância, reconhecer que os conflitos
travados pelos negros em defesa de suas terras, no estado do Maranhão, nos
apontam para uma das maiores contribuições, no desempenho da construção do
estado brasileiro. Visto que, notoriamente negro, o estado tem urgência em resigna-se
pela infligências cometidas e buscar a eficiência na constituição da cidadania de seus
homens e mulheres.
Em virtude disso é que se pode destacar a experiência dos quilombos de
Alcântara, como uma estrutura que apresenta todos os tipos de oprimidos, já que sua
articulação orienta-se pela solidariedade e compartilhamento das terras, caráter basilar
na luta quilombola. Resulta, desse modo, observar-se o caso Alcântara, e verificar que
resultante de ato do ex-governador João Castelo, ao assinar o decreto de
desapropriação nº 7820/20, com fins na implantação da base espacial, expropriou
forçosamente, dezesseis comunidades tradicionais e três mil e seiscentas famílias
desarticulando toda uma luta em busca da cidadania e de guarda da memória.
1. DA EXPERIÊNCIA DA MEMÓRIA QUILOMBOLA
As vivências sociais construída pelas comunidades quilombolas residentes
nas áreas de conflito representam o que de maior se pode observar ao apontar, pelo
prisma do confronto, o protagonismo agudo de suas experiências.
Ao se observar as características identitárias e étnicas dos povoados
centenários instalados na área de conflito revela-se a sua inserção no forte
enfrentamento representado, pela instalação do centro de lançamento de Alcântara.
Em certa medida, ao se acompanhar o histórico dos quilombolas se verifica que este
se traduz na personificação do rebaixamento moral das comunidades remanescentes
demonstrando que os moradores da área do conflito, externam o que de mais
vexatório teve a sua República, em hora que não se constituía.
O que se vislumbra, em virtude disso, é a capacidade de ânsia em romper
com os “tempos da escravidão”, frente à enorme indecisão do futuro. Nesse percurso,
a transição se faz necessária para a inversão dos fatores estigmatizantes dos
remanescentes quilombolas, que passam a ser vistos com capacidade político-
organizativa o que se nota ser fator resultante de uma batalha travada pela efetivação
de uma identidade coletiva alicerçada na ocorrência da autodefinição de seus
colaboradores.
“Em virtude disso é que se pode destacar previamente que o conflito social em Alcântara institui uma forma de presencialidade do passado, levando os procedimentos de trabalho de campo relativos ao laudo pericial a discutirem fatos de uma memória oculta e historicamente reprimida. Esse tipo de memória é provocada por uma situação limite que, ao colocar em jogo a sobrevivência do grupo, acaba tornando transparentes acontecimentos, representações e elementos identitários que tradicionalmente eram mantidos segundo uma invisibilidade social. O conflito social cria condições de possibilidade para que venha à tona o Ideal de conflito e de trabalho livre, por conta própria.” (Wagner, 2006)
Nesse contexto, é que os deslocados para as agrovilas tiveram suas
rotinas turbadas e execradas do jogo de sobrevivência de seus grupos. Essas ações,
embora à ordem do crescimento do país, revelam práticas pertinentes a uma
administração neocolonial, onde o faturamento desenvolvimentista econômico
concomitante a justificativa de avanço tecnológico, buscam o reconhecimento nacional
e auxiliam no desmonte da identidade étnica dos atingidos.
Esses tipos de articulações imobilizam a resistência da memória coletiva, e
constrangem qualquer tipo de protagonismo, visto que, alteram forçosamente as
relações sociais que, em especial, eram anteriormente pautadas no comunitarismo,
bem como na compreensão acerca da sua tradição e de sua história.
Nesse sentido, vale ressaltar os aspectos caracterizantes das
comunidades remanescentes que foram deslocadas ao jugo do nosso nacionalismo. O
significado da memória para as organizações quilombolas é condição essencial para a
identificação de sua luta, assim como, para a interpretação de seu contexto histórico e
seu enquadramento político.
As comunidades Quilombolas se apresentam como agrupamentos de
negros, resultante do constante enfretamento, resistência e, principalmente, pela
organização na luta de seus direitos, de sua terra, da Liberdade e da Igualdade. Essa
compreensão abrange um olhar de autonomia que extirpa do seu convívio a
submissão e comercialização de suas batalhas contribuindo para o protagonismo de
sua identidade. Tradicionalmente localizados no meio rural, se auto-definem como
comunidades negras rurais ou terras de preto ou, ainda, quilombos ou mocambos,
assim como nomeações semelhantes.
A própria noção de quilombo traduz um repertório narrativo de seus
enfretamentos, de sua luta por direitos enquanto cidadãos. As narrativas de vida dos
antepassados são simultaneamente referidas na cronologia de resistência e convívio
social entre os negros. Na colheita de informações, encontrou-se o depoimento de um
quilombola de 63 anos da comunidade de Brito refletindo o passado e o presente da
vida do negro:
“Eles vinham apanhá o sernambi de noite para levar para comer com a família no mato, que quando eles fugiram dos brancos, que branco era perverso, outro não era tão perverso assim como se dizia e por que eles fugiam e iam fazer moradias, hoje tem muito povoado, no município de Alcântara, porque eles fugiram e os outros iam fazer libertos os escravos, aí esse povo aí, cada um... ficaram independentes, ali de Canelatiua, antes do governo do governo chegar com a base...1”
Não importa a qualidade do tempo, se novo ou velho, a narrativa negra é
expressa a seguir pela temática do medo e da fuga, que sempre permeiam a trajetória
dos quilombolas de Alcântara. “A fuga é inerente à escravidão”, já nos aludia Perdigão
Malheiros quando mencionava na manutenção na memória dos negros, a
perversidade instaurada sobre eles. No decurso de sua história, os chamados pretos
resistiram de maneiras diversas a um manejo constante de ameaça e perigo que hoje
se reflete na possibilidade de retirada de suas terras.
A possibilidade de serem retirados de suas terras representa a destruição
de uma narrativa coletiva de luta por direitos, Liberdade e Igualdade. Nesse processo,
a negação da história oficial, ou mais pontualmente, o deslocamento das comunidades
quilombolas negras de Alcântara forçosamente para agrovilas ou para a capital,
elencam a ruína da tradição compartilhada pela comunidade.
“A memória funda as percepções sobre o mundo. Essas percepções podem ser construídas, mas também desconstruídas. Um nome de rua, de uma escola, de um teatro é também uma memória preservada.”(SOUSA,2005)
A importância de desconstruir essa tradição e, especialmente, a sua
transmissão é a tentativa de retirar da luta, a sua organização, e tornar deficiente a
sua mobilização por direitos enquanto cidadãos de uma Democracia. O principal
intento no desmonte da narrativa da memória negra é contribuir para o abandono da
identidade quilombola e facilitar o discurso da Nacionalidade.
1 Entrevista coletada por Alfredo Wagner Berno de Almeida.
As razões desse diagnóstico perpassam pelo processo de entendimento
de identidade. Elisa Larkin (2003, p.31) pesquisadora de relações étnico-sociais e
cientista social, manifesta seu conceito sobre quilombo, como um grupo de
referenciais que orientam os mais diversos relacionamentos entre os integrantes de
uma dada sociedade ou como um agrupamento de referenciais que distinguem o
grupo e seus integrantes dos outros diversos, que mantém e compõem a estrutura da
sociedade analisada.
Nesse ditame, observa-se o grande número de comunidades
remanescentes e seu processo de formação.
No Maranhão existem hoje mais de 400 comunidades remanescentes de quilombos. No povoado de São Cristóvão, na cidade de Viana, 40 famílias vivem em terra comprada do patrão no período pós-abolição. É chamada de terra sem partilha, porque todos são proprietários por igual e resistem na preservação da cultura herdada dos antepassados. A história registra uma grande tradição do Maranhão na luta de quilombos. Os mais conhecidos são os da Lagoa Amarela (do negro Cosme, que foi um dos líderes da Balaiada), Turiaçu, Maracaçumé, São Benedito do Céu, Curupuru, Limoeiro (em Viana) e Frechal (em Mirinzal). Também foram muitas as lutas armadas. Uma luta conhecida é a “insurreição de escravos em Viana” (1867), quando negros quilombolas de São Benedito do Céu ocuparam diversas fazendas. (SOUSA, 2005)
Nessas inúmeras terras em que algumas são chamadas de terras de
índio, por terem sido doadas para o santo (São José de Cortes); ou ainda, terras da
santa como é o caso de Itamatatitua e vários povoados próximos; as também
denominadas terras de santíssimo (as agrupadas em torno de Santana dos Caboclos
e Samucangaua); ou as terras de caboclo (Peroba de Cima e povoados próximos) e
as conhecidas terras de preto são manifestações da memória de territorialidade de
sua identidade.
Ausentes dessa dimensão da memória territorial, o sentimento de
pertença, de percepção do social enquanto caracteres formadores de sua identidade,
que é constantemente construída por seus membros na resignificação do cotidiano, se
demonstra deficitário e dificilmente as comunidades quilombolas conseguem
compreender a sua totalidade e seus entrelaços uns com os outros.
Tratamos aqui de comunidades remanescentes que são organizadas pelo
sistema de coletividade da terra, o “uso comum da terra”, onde o sistema do convívio
social é regido por valores nutridos pelos laços de consangüinidade, de compadrio e
de respeito geral pela luta dos antepassados. A presença da endogamia é recorrente
na busca de fortalecimento da família para que as mazelas sociais não caiam sobre o
indivíduo e enfraqueça a identidade social.
Assim, portanto, e mais diretamente, o pertencimento da comunidade
perpassa pela compreensão do movimento da etnicidade do grupo e do
reconhecimento da luta pelo direito a sua terra. O que implica na extensão da ação
política resignificada com capacidade de romper com a lógica capitalista-
desenvolvimentista do uso e apropriação a terra.
“As formas de uso da terra e dos recursos do território têm mostrado que o acesso a terra apresenta demandas históricas construídas nas quais as questões do trabalho e as estratégias de sobrevivências vêm se colocando como aspectos de crucial importância para a definição de um traço de lutas existentes no Brasil.”(CARRIL, 2006, p.158).
“A identidade com a terra, identidade com a luta, iguais e diferentes, caminhando para construir um sujeito coletivo. Avanços, recuos, discussões, enfrentamento das próprias contradições em meio às contradições das sociedades que os apóiam através de algum seguimento ou os condena através de outros. Identidade e oposição na construção da sua identidade de sujeito coletivo. (BORGES, 1997, p.168).
A identidade étnica dos quilombolas é sustentada pelas memórias das
experiências e lutas de seus antepassados, considerando isso, “marca de uma
conjuntura histórica e forma primeira do seu processo de construção social e de
diferenciação face aos outros, que estruturou de forma complexa, as resistências à
dominação no presente século”. (ACEVEDO e CASTRO, 1998, p.161).
Com isso, a terra quilombola é compreendida como objeto resultante de
conflitos étnicos, sociais e econômicos que se externam na construção de novas
relações sociais e na manutenção do contato com as experiências e ensinamentos
dos antepassados.
Assim, o território ocupado pelas comunidades remanescentes em
Alcântara resultam do sentimento de pertença e identidade com o lugar em que a
posse coletiva e o desenvolvimeto da comunidade se instarurou durante séculos.
Nesse ditame, a busca pela manutenção do direito à terra e a sua memória trata de
ressignificar uma ancestralidade que lhes é comum e que permite a construção de
uma narrativa histórica compartilhada.
A memória da luta negra das comunidades de Alcântara, é elemento de
construção da identidade étnica e por isso, ligada a manutenção de suas terras. A
estrutura sócio-espacial é meio de sobrevivência, de reprodução da Vida e da luta
politica de afirmação de sua cidadania.
Há uma dimensão da matéria que é irredutível ao simbólico. Por mais que o capital financeiro, dito volátil, queira impor sua lógica simbólica matemática e abstrata ao mundo há uma materialidade que concerne à produção da vida que é irredutível à lógica financeira. (GONÇALVES, 2002, p.230)
Por isso, discutir o processo de definição da terra, como no caso do
Maranhão, em especial de Alcântara, é permitir o ultrapasse dos limites étnicos-
culturais das comunidades e permitir o aceite a uma reflexão que tange no discurso de
apropriação da Terra pelo Estado, e de como isso pode se solidificar com o auxílio de
um de seus contribuintes, o Direito.
2. DA ALTERAÇÃO DO PARADIGMA JURÍDICO
Em discussão sobre Povos Indígenas e Tribais, a convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho, OIT (1989), é destacada como um dos mais
significativos referenciais quanto à proteção do direito à terra dos povos mencionados.
A convenção atribui aos Estados2 competência para o reconhecimento e implantação
2 Artigo 2o: 1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade; 2. Essa ação deverá incluir medidas: a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população; b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e
de medidas que ressaltem os direitos de propriedade e de posse sobre os territórios a
que tradicionalmente esses grupos se desenvolvem.
A referida convenção traz o fato de transmitir aos Estados a competência
de gerir para a manutenção de suas comunidades e, obedece ao critério da
autodeterminação e observância da identidade3, critérios determinantes para a análise
da aplicação dessas disposições nas comunidades elencadas.
A construção de uma identidade quilombola a partir da análise de luta pela
permanência na terra, onde construiu a sua memória coletiva, auto-declara um dado
momento histórico de maior reconhecimento da luta pelos direitos sagrados: à terra, a
memória e a cidadania.
"O negro faz parte de uma terra singular, uma terra que possui e da qual é possuído. Sua história nela se inscreve e ele próprio, enquanto negro, nela- a terra- encontra-se inscrito... sua relação com ela (terra) é centrada em ritos, mitos, lendas e fatos. Memórias que contam a sua saga, revelam a sua origem e desvendam, além da própria trajetória, a vida em seu movimento". (Gusmão, 1999, p.145)."É poder contar com uma terra para a qual sempre se volta, porque é aí seu lugar". (GUSMÃO, 1999, p.147).
Ao assumir essa identidade em decorrência da sua luta, os quilombolas
contribuíram para que suas demandas fossem acolhidas pelo mundo jurídico, e em
especial, pela carta magna, a Constituição. Em disposição da aplicabilidade do artigo
68 da Constituição Federal de 1988, as relações simbólicas e materiais ligadas ao
território ocupados pelos negros, passaram a vigorar nas discussões das salas de
poder e nas estruturas de manutenção. Reconhece-se, porém, que é através da
memória, que a narrativa das comunidades quilombolas serão “contadas” e assim,
acolhidas para discussão.
tradições, e as suas instituições; c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio - econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida.
3 Artigo 1o: 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.
Observa-se que segundo o Decreto 4.887, datado de 20 de novembro de
2003, numa espécie de informativo comemorativo do dia sua publicação, apresenta
em seu artigo 2º4, a conceituação dos que vem a ser remanescentes das comunidades
quilombolas apresentando-os como grupos étnicos – raciais, observados sobre
critérios de autonomia, com narrativa histórica particular, com forte entrelaçamento
com os territórios habitados, onde a ancestralidade negra contribui para a relação de
resistência à opressão infligida a sua comunidade. Nesse acolhida, as comunidades
quilombolas passam a ser reconhecidas por caracteres definidos pelo ordenamento
jurídico brasileiro.
Em atenção ao caso de Alcântara, vê-se necessário um breve histórico
sobre a instalação da base de lançamento, assim como uma reflexão sobre o manejo
que o estado, sustentado pelos instrumentos do direito e da política, construíram para
a constituição do momento histórico. Assim, em 1982, decidiu-se criar um Grupo para
Implantação do Centro de lançamentos de Alcântara, a conhecida GICLA, com o
objetivo de estudar o que no ano seguinte viria a ser a CLA, com fins de executar e
permitir atividades de lançamentos e rastreamentos de naves espaciais.
Nesse dado momento, foi publicado o decreto presidencial s/n, datado de
08 de agosto de 1991 que declarava ser de “utilidade pública, para fins de
desapropriação, áreas de terras e respectivas benfeitorias, na extensão de 62 mil
hectares (620 km2), necessárias à implantação, pelo Ministério da Aeronáutica,
do Centro de Lançamento De Alcântara.”, sem se preocupar com as comunidades
que ali estavam instaladas a séculos.
4 Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. § 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. § 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. § 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.
Á época, habitavam mais de 2000 famílias de negros remanescentes de
escravos, trabalhadores rurais de comunidades tradicionais. A área manifestada no
decreto foi subdividida em: com aproximadamente, 16 mil hectares e chamada de
“área de segurança”; a Área I e a área constitutiva do restante do demarcado para a
construção das casas dos oficiais e outras edificações, área II.
Com isso, diversos foram os instrumentos manipulados no trato da
instalação da base de lançamento para a conseqüente retirada das comunidades
remanescentes de quilombos. Após serem atingidas pela edição de inúmeros decretos
de desapropriação e serem remanejados para as agrovilas ou mesmo afastados pelas
escassas condições de convívio, ou ainda, serem “empurrados” para o ambiente
urbano, a óbice do atendimento aos quilombolas manteve-se instaurada.
O processo de desapropriação e instauração do Centro de Lançamento de
Alcântara (CLA), ainda hoje perdura na vida das comunidades. Com a justificativa de
avanço tecnológico, ordenado pela política espacial brasileira e intermediado pelos
acordos internacionais novos confrontos passam a ocorrer. A partir do momento que o
estado brasileiro permite a exploração comercial e o desenvolvimento de atividades
aeroespaciais em áreas ocupadas por remanescentes quilombolas há um total
descuido preceituado por acordos internacionais, sem mencionar a banalização do
interesse com as relações constituídas, historicamente, pelas mais diversas
comunidades.
Assim, na expectativa de diminuir os inúmeros embates com a luta negra,
em 28 de agosto de 2001, ao ser aberto na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos da OEA, os representantes que propuseram o recebimento do caso pela
comissão, em especial, das comunidades de Samucangaua, Iririzal, Ladeira, Só
Assim, Santa Maria, Canelatiua, Itapera e Mamuninha, o Centro de Cultura Negra do
Maranhão – CCN/MA, o Centro de Justiça Global, a SMDH, a ACONERUQ, a
FETAEMA e a Global Exchange viram iniciar uma nova onda de negociações que
buscava a elaboração de Projeto de Desenvolvimento Local e Integrado e Sustentável
de Alcântara, na expectativa de coleta informações sobre o impacto da base e as
conseqüências da remoção dos quilombolas.
Nesse mesmo período, foi organizada, no Fórum Social Mundial,
localizado em Porto Alegre, por integrantes das comunidades quilombolas de
Alcântara, a apresentação de uma denúncia contra o estado-governo brasileiro,
durante a execução da oficina de trabalho coordenada pelos Relatores (as) Nacionais
em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais.
Após visita ao município, pela Relatoria Nacional do Direito à Moradia
adequada, com o objetivo de averiguar a denúncia realizada no FSM de 2001, motivou
ao Ministério Público Federal a propor uma nova ação pública que obrigava a
Fundação Palmares e a União Federal a ambas realizarem o processo de titulação e
suspenderem os possíveis processos de remoção das comunidades rurais.
Caracterizado como território étnico, portanto, não poderia ser mais a área
atingida por possíveis excessos da força do Estado, assim como, da lógica do poder e
do capital internacional e nacional, machucando os preceitos constitucionais
fundamentados e aparados por instrumentos políticos legais. Sobretudo, a violação
dos direitos fundamentais das populações negras rurais de Alcântara permite que seja
acolhida uma reflexão profunda sobre a discriminação sócio-cultural, tal como o
desrespeito pela soberania nacional e sua população a jugo dos empreendimentos
econômicos.
Os “remanescentes das comunidades de quilombos”, que emerge com a constituição de 1988 é tributário não somente dos pleitos por títulos fundiários, mas de uma discussão mais ampla que foi travada nos movimentos negros e entre parlamentares envolvidos com a luta anti-racista. (LEITE, 2000, p. 339).
Não obstante, a partir de diversas manifestações da dimensão política da
luta de Alcântara, ficou revelada a desestruturação das relações com à terra e as
pautadas no viés étnico-cultural, visto que, desde 1982, a implantação da base de
lançamento provocou um infindável processo de violação dos direitos dos quilombolas.
Desprezando a valoração da ancestralidade local e a importância das
práticas e do manejo sustentável das comunidades quilombolas fica claro que a
instalação, e mais atualmente, a expansão do centro de lançamento é, estritamente,
um projeto comercial. Atendendo a orientações nacionais, mas fraquejando na sua
soberania, o centro de lançamento de Alcântara é como dizem, alguns quilombolas,
um “aluguel do nosso país”.
Ademais, a conjuntura da luta contra a expansão da base aumenta agora,
observado que a promessa de desenvolvimento da infra-estrutura local vê-se aliada,
ao obrigatório desenvolvimento da política espacial, para fins urgentes de soberania
nacional. Em contrapartida, quando os interesses da soberania nacional conflitam com
a proteção dos direitos das comunidades negras rurais, a ótica neoliberal do poder
governamental tende a sucumbir aos seus próprios desejos em detrimento daqueles
que deveriam ser protegidos.
Com isso, nos escassos casos de concessão de titularidade de terras às
comunidades quilombolas, a manifestação e resistência dos negros foi observada de
sobre maneira intensiva, haja visto, que quando há o concessão das terras visualiza-
se de modo instável e inseguro. Isto porque, alguns dos títulos concedidos no período
de 1998 a 2002, mediados pela Fundação Cultural Palmares, apresentam
instabilidades nas alegações que avaliaram os processos expropriatórios, ou ainda,
quando houve a titulação, os direitos básicos de proteção à terra e de manutenção não
foram obedecidos.
A discussão sobre a titulação de terras busca o atendimento constitucional
dos direitos assegurados às comunidades. Não apenas no intento de reparar injustiças
mas, a articulação negra quilombola se organiza na busca do respeito das suas
formas de organização, de sua forte relação com a terra, vide que a importância do
seu meio-ambiente, significa a manutenção das suas relações sociais como
contribuinte para a formação de sua identidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A investigação das mais diversas articulações da luta negra quilombola
manifesta a importância da manutenção das práticas ancestrais, presentes nas
comunidades quilombolas. A mais simples alteração do meio-ambiente local locomove
toda uma organização social e cultural das comunidades em tela. Quando se
locomove milhares de quilombolas de suas comunidades locais para agrovilas
desconhecidas e distanciadas de seus focos de sobrevivência, os recursos naturais
mantenedores da qualidade de vida, que anteriormente, era autônoma, sustentável e
comunitária revela a força e a ligação com a cultura, originalmente africana,
diminuindo significadamente, a formação étnico-social do Maranhão.
É claro o objetivo de proteger o interesse do latifúndio, como herança
colonial que hoje é maquiado em função do desenvolvimento econômico-espacial,
incidindo sobre o descumprimento da necessária proteção aos remanescentes
quilombolas. Afinal, o que é de maior interesse e justeza; mantermos a qualquer custo
o desenvolvimento da nossa base ou proteger as comunidades quilombolas que
contribuem para a constituição da identidade étnico-social do país e que são espíritos
das narrativas oralizadas da história nacional?
Por mais que a temática quilombola não esteja exposta com maior apreço
na nossa carta magna, a Constituição, o exame pela ótica da alteridade das
disposição constitucionais contribuem para descolonização do nosso conceito de
negro, tal como de quilombo. Trata-se, portanto, da releitura do desenvolvimento
agrário negro do nosso país, assim como, a ampliação da proteção do nosso
patrimônio negro por nossas disposições constitucionais.
Tal fato, evidência novos desafios na tentativa de estudar um
constitucionalismo multicultural, aprendendo a lidar com elementos étnico-raciais,
questionando o discurso colonialista e neoliberal mantido pelos órgãos do governo e
pela própria sociedade brasileira. O sucesso da articulação negra quilombola, dar-se-á
pela obediência aos “direitos consagrados” em tratados internacionais e pela
Constituição Brasileira, especialmente, criticando qualquer espécie de judicatura no
discurso público e identificando e eliminando toda e qualquer institucionalização de
discurso.
O negro pronto
está se fazendo sempre
ponto por ponto ...
(Sumo - Carlos Assunção)
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara. Brasília: MMA, 2006. CASTRO Edna, MARIN, Rosa Acevedo (1998). Negros do Trombeta guardiões de matas e rios. Ed. Cejup, Belém.
CARRIL, Lourdes Fátima Bezerra (2006). Quilombo, Território e Geografia. Agrária, São Paulo, N.3, pp156-171.
GONÇALVES, Carlos. Walter. Porto (2002). “Da geografia às geo-grafias: um mundo em busca de novas territorialidades” in Ceceña, A. E.; Sader, E. (Org.). La guerra infinita: hegemonía y terror mundial. (Buenos Aires: Clacso).
LUCINDA, Elisa, O Semelhante, 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1996
Quilombos no Brasil – Fundação Cultural Palmares, revista Palmares n. 5, ano 2000,
novembro.)
Souza, Ana Lúcia Silva [et al...]. De olho na cultura: pontos de vista afro-
brasileiros. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural
Palmares, 2005.