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A LITERATURA INFANTIL EM TRADUÇÃO: ESPECIFICIDADES DA TRADUÇÃO DE LIVROS DAS SÉRIES MR. MEN E LITTLE MISS, DE ROGER HARGREAVES, PARA O PORTUGUÊS DO BRASIL Clara Peron da Silva

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  • A LITERATURA INFANTIL EM TRADUO: ESPECIFICIDADES DA TRADUO DE LIVROS DAS SRIES MR. MEN E LITTLE MISS,

    DE ROGER HARGREAVES, PARA O PORTUGUS DO BRASIL

    Clara Peron da Silva

  • Clara Peron da Silva

    A LITERATURA INFANTIL EM TRADUO: ESPECIFICIDADES DA TRADUO DE LIVROS DAS SRIES MR. MEN E LITTLE MISS,

    DE ROGER HARGREAVES, PARA O PORTUGUS DO BRASIL

    Monografia submetida ao Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Juiz de Fora, como parte dos requisitos para a obteno do grau de Bacharel em Letras nfase em Traduo: Ingls, elaborada sob a orientao da Professora Dra. Maria Clara Castelles de Oliveira.

    JUIZ DE FORA FACULDADE DE LETRAS

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA NOVEMBRO DE 2009

  • BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________________________

    Prof. Dra. Maria Clara Castelles de Oliveira (Orientadora)

    _________________________________________________________________

    Prof. Dr. Edimilson de Almeida Pereira

    _________________________________________________________________

    Prof. Dra. Patrcia Fabiane Amaral da Cunha Lacerda

    Data da defesa: 30/11/2009

    Nota: _______________________

    JUIZ DE FORA FACULDADE DE LETRAS

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA NOVEMBRO DE 2009

  • DEDICATRIA

    A meus pais, Anglica e Joo, meus avs, Geraldo e Anna Maria, e meu irmo,

    Francisco, por terem me apoiado em toda a minha caminhada at aqui e suportado

    minha ausncia durante o perodo em que estava buscando a realizao dos meus

    sonhos, inclusive este que realizo agora, de me formar tradutora.

    A meu noivo e futuro esposo, Hugo, por ter sido meu companheiro e ter me apoiado

    durante esses anos. Agradeo pelo carinho e compreenso dispensados, pela pacincia

    nos momentos de nervosismo e pelo incentivo nos momentos em que pensei que no

    iria conseguir.

    famlia Ministrio Universidades Renovadas, por ter me mostrado que possvel unir

    a f e a razo, me ajudando a sonhar e a concretizar a civilizao do amor atravs da

    minha profisso.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, por ter guiado meus passos e ter preparado este momento para mim, desde o

    ventre de minha me. Obrigada pela realizao de mais este sonho.

    Professora Dra. Maria Clara Castelles de Oliveira, pelo cuidado, empenho e

    incentivo nas aulas ministradas durante o curso de Bacharelado em Letras nfase em

    Traduo: Ingls, e durante as orientaes.

    Banca Examinadora, por ter aceitado o convite prontamente.

    Aos amigos da turma 2007-2009 do curso de Bacharelado em Letras nfase em

    Traduo: Ingls, por terem permitido a utilizao de suas tradues como corpus de

    anlise desta monografia. Obrigada pelo apoio e pelos momentos de crescimento

    profissional compartilhados.

  • RESUMO

    Esta monografia de concluso do Bacharelado em Letras nfase em Traduo: Ingls, da Universidade Federal de Juiz de Fora, tem como objetivo discutir questes de ordem terica e prtica sobre algumas especificidades concernentes traduo de literatura infanto-juvenil. Aps apresentar um breve histrico da literatura infanto-juvenil no contexto britnico, situaremos Roger Hargreaves, autor das colees infantis Mr. Men e Little Miss, objeto de estudo deste trabalho, no tempo e espao, e mostraremos sua insero em uma tradio de literatura infanto-juvenil inglesa. Traaremos tambm um breve panorama da histria da literatura infanto-juvenil no Brasil, mencionando o papel de Monteiro Lobato e de suas tradues na ampliao do polissistema de literatura infanto-juvenil brasileira. Discutiremos as especificidades relacionadas a esse gnero literrio, tais como a traduo de nomes prprios, onomatopeias, referncias culturais, expresses idiomticas, ilustraes e jogos de palavras. Isso se dar atravs da anlise das tradues de livros infantis das colees Mr. Men e Little Miss, realizadas por alunos da turma 2007-2009 do referido curso de bacharelado. Finalmente, abordaremos uma questo recorrente no contexto da traduo em geral e crucial no da traduo de literatura infanto-juvenil, qual seja, a escolha entre procedimentos de domesticao e estrangeirizao em funo do pblico-alvo.

  • A traduo a arte da fuga de uma lngua outra, sem que a primeira se apague e sem que a segunda renuncie a se apresentar [...] Se, por um lado, verdade que a cada lngua que desaparece, desaparece uma parte do imaginrio humano, a cada lngua que traduzida, esse imaginrio se enriquece de maneira errante e fixa ao mesmo tempo. A traduo fuga, ou seja, uma bela renncia.

    EDOUARD GLISSANT SUMRIO

  • INTRODUO 9

    CAPTULO 1: ROGER HARGREAVES E A LITERATURA INFANTO-JUVENIL NA INGLATERRA 13

    1.1 O LUGAR DE ROGER HARGREAVES NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL INGLESA 14

    1.2 AS SRIES MR. MEN E LITTLE MISS 20

    CAPTULO 2: A TRADUO DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL E O CONTEXTO BRASILEIRO 23

    2.1 A IMPORTNCIA DA TRADUO NA DIVULGAO DO GNERO 24

    2.2 A LITERATURA INFANTO-JUVENIL E A AMPLIAO DO POLISSISTEMA DA LITERATURA BRASILEIRA 28

    CAPTULO 3: A TRADUO DE LIVROS DAS SRIES DE LITERATURA INFANTIL MR MEN E LITTLE MISS 33

    3.1 NOMES PRPRIOS 35

    3.2 ONOMATOPEIAS 38

    3.3 REFERNCIAS CULTURAIS 40

    3.4 EXPRESSES IDIOMTICAS 41

    3.5 ILUSTRAES 42

    3.6 JOGO DE PALAVRAS 44

    3.7 CONCLUSO 45

    CAPTULO 4: O EMBATE ENTRE A DOMESTICAO E A ESTRANGEIRIZAO 46

    CONSIDERAES FINAIS 56

    REFERNCIAS 61

  • INTRODUO

  • Desde os primeiros contatos com a literatura, respeitando as especificidades de

    cada faixa etria, a criana comea a formar opinies e a desenvolver uma conscincia

    crtica, pois, atravs do contato com o texto literrio, aprende-se que o mundo

    multitnico, multicultural, cheio de belezas e tambm de tribulaes.

    As tradues de histrias infanto-juvenis no contexto ocidental foram

    responsveis pela criao desse gnero literrio em pases como a Inglaterra e o Brasil.

    Apesar disso, o estudo da traduo desse gnero de literatura, embora esteja ganhando

    destaque, ainda pouco realizado, talvez porque se considere, incorretamente, tal

    produo literria como um gnero menor ou mais fcil. Por ser responsvel pelos

    primeiros contatos do indivduo com o mundo literrio, a literatura infanto-juvenil

    traduzida deve oferecer uma leitura prazerosa, sem deixar, contudo, de apresentar as

    diversidades culturais provenientes de outros mundos.

    Diante disso, esta monografia de concluso do Bacharelado em Letras nfase

    em Traduo: Ingls, da Universidade Federal de Juiz de Fora, tem por finalidade

    discutir questes de ordem terica e prtica vinculadas traduo de literatura infanto-

    juvenil, tomando como exemplo os textos literrios infantis das colees Mr. Men e

    Little Miss, escritos por Roger Hargreaves e traduzidos pelos alunos da turma 2007-

    2009 do referido curso de bacharelado.

    No primeiro captulo desta monografia, traaremos um breve panorama da

    literatura infanto-juvenil inglesa e seus principais autores, situando as colees Mr. Men

    e Little Miss, objetos de estudo deste trabalho, bem como seu autor, Roger Hargreaves,

    no tempo e espao. Utilizaremos informaes recolhidas na monografia de concluso de

    curso de Bacharelado em Letras nfase em Traduo: Ingls, intitulada A traduo e

    a crtica de poesia (2007), escrita por Vivian Almeida e no livro Literatura infantil,

    publicado por professores da PUC-RJ em 1980.

  • 11

    Tais colees foram selecionadas como corpus para o presente trabalho por

    terem despertado discusses a cerca da traduo de literatura infanto-juvenil durante

    apresentaes realizadas pelos alunos da turma 2007-2009 do curso de Bacharelado em

    Letras nfase em Traduo: Ingls.

    O captulo seguinte ser dedicado histria da formao de uma literatura

    infanto-juvenil brasileira e importncia da traduo na ampliao de tal gnero,

    partindo da teoria dos polissistemas, publicada por Itamar Even-Zohar em 1979 e

    fazendo referncia ao papel de Monteiro Lobato nesse contexto. Para tanto, usaremos

    informaes retiradas de textos escritos pelo prprio Even-Zohar (1979), Rita

    Ghesquiere (2006), e Giovana Cordeiro Campos (2004).

    O terceiro captulo tratar das especificidades concernentes especificamente

    traduo de literatura infantil, tomando como exemplo as tradues de livros das

    colees Mr. Men e Little Miss realizadas pelos alunos da turma 2007-2009 do curso de

    Bacharelado em Letras nfase em Traduo: Ingls. Nesse momento, sero feitas

    crticas sintomticas, nos moldes defendidos por Lawrence Venuti no livro The

    Translators Invisibility (1995). As especificidades mencionadas anteriormente sero

    analisadas considerando as teorias postuladas por diversos autores como Elvira Aguilera

    (2008), Peter Newmark (1982) e Jan van Coillie (2006) a respeito da traduo dos

    nomes prprios; Isabel Pascua-Febles (2006) com relao a onomatopeias; Renata

    Mundt (2008) no que diz respeito s referncias culturais; e Mundt (2008) e Adriana

    Vannuzini (2009), no que toca as ilustraes.

    No captulo final, discutiremos o embate entre a estrangeirizao e a domesticao,

    considerando a necessidade de construir um texto legvel e agradvel para a criana

    sem, contudo, apagar as marcas de uma cultura distinta, da traduo e do tradutor por

    detrs da histria.

  • 12

    importante ressaltar que o material pesquisado e os textos construdos no

    presente trabalho giram em torno da produo de literatura infanto-juvenil; contudo, o

    corpus analisado neste refere-se literatura infantil, mais especificamente, literatura

    destinada a pr-leitores, segundo classificao de Elvira Aguilera (2008).

  • CAPTULO 1 ROGER HARGREAVES E A LITERATURA

    INFANTO-JUVENIL NA INGLATERRA

  • No presente captulo, traaremos um breve panorama da literatura

    infanto-juvenil e seus principais autores, situando as colees Mr. Men e Little Miss,

    objetos de estudo deste trabalho, bem como seu autor, Roger Hargreaves, no tempo e

    espao.

    1.1 O LUGAR DE ROGER HARGREAVES NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL INGLESA

    Segundo Laura Constancia Sandroni, no artigo Retrospectiva da literatura

    infantil brasileira (1980), esse gnero literrio foi criado pelo escritor francs Franois

    de Salignac Fnelon (1651-1715), que em seu Trait de lducacition ds filles (Tratado

    sobre a educao de meninas) defendeu a ideia de dar s crianas outras literaturas alm

    das tradicionais, que na poca contavam a vida dos santos e a histria sagrada. Assim, a

    literatura infanto-juvenil passou a tratar de assuntos profanos, tais como a mitologia

    clssica e os temas da tradio popular, a despeito de manter o objetivo dos textos que

    at ento eram lidos pelas crianas, qual seja, o de instruir divertindo (SANDRONI,

    1980, p. 9).

    Charles Perrault foi o responsvel por introduzir e consagrar os contos de fadas,

    um dos gneros mais expressivos da literatura infantil, com seus Contes de fes ou

    Histories du Temps Pass avec Moralits: Contes de ma Mre lOye cuja traduo

    literal Contos de fadas ou histrias do tempo passado com moralidades contos da

    Mame Gansa (1677). A partir desse momento, houve o aparecimento de autores que

    passaram a escrever para crianas, entre eles os irmos Jacob Grimm (1785-1863) e

    Wilhelm Grimm (1786-1859), que so considerados alguns dos mais importantes

    autores do gnero (SANDRONI, 1980, p. 10).

  • 15

    O dinamarqus Hans Christian Andersen (1805-1875) considerado o patrono

    mundial do gnero. Segundo Sandroni misturando sua veia potica s razes folclricas

    de seu pas criou personagens eternos e universais, entre eles o Patinho Feio, a Dona

    Baratinha e o Soldadinho de Chumbo (1980, p. 11).

    De acordo com Vivian Gomes de Almeida (2007), em A traduo e a crtica de

    poesia, monografia de concluso de curso de Bacharelado em Letras nfase em

    Traduo: Ingls, na Inglaterra, a literatura infanto-juvenil se desenvolveu a partir do

    sculo XVIII, durante a Revoluo Industrial. Nessa poca, surgiram o livro infantil, os

    brinquedos e os ramos da cincia relacionados infncia, como a psicologia infantil e a

    pediatria. Segundo Rita Ghesquiere, em Why does children literature need

    translations? (2006), cuja traduo literal Por que a literatura infantil necessita de

    tradues?, nesse perodo, as convices filosficas de Jean-Jacques Rousseau

    fundamentavam a literatura infanto-juvenil do momento, que era escrita partindo do

    princpio de que a criana deveria aprender atravs de exemplos, com o objetivo de

    confrontar as crianas com histrias contendo exemplos teis e lies, a fim de

    melhorar a qualidade de vida (p. 22, minha traduo).1

    Como exemplo da literatura produzida nesse perodo, temos o livro Robinson

    Crusoe (Robinson Cruso), mais clebre romance de Daniel Defoe, escrito em 1719.

    Robinson Cruso trata do mito da solido, uma vez que, depois de um naufrgio do qual

    o personagem-ttulo o nico sobrevivente, o mesmo vive sozinho durante vinte e oito

    anos. O romance simboliza a luta do homem solitrio contra a natureza.2

    Nessa mesma poca, o filantropismo alemo, um movimento educacional

    progressista, estava presente na literatura infantil, com conceitos novos e conflitantes. A

    influncia do filantropismo foi importante na literatura infanto-juvenil alem, pois, 1 Texto original: they wanted to confront children with stories containing useful examples and

    lessons in order to improve the quality of life. 2 Informaes obtidas no site . Acesso em 15 out. 2009.

  • 16

    segundo Ghesquiere, alm de aumentar o nmero de publicaes, houve uma

    diversificao de modelos e melhora na qualidade das produes literrias. Os

    filantropistas alemes produziam literatura especificamente visando ao pblico infantil.

    Joachim Heirich Von Campe, publicou em 1779 o livro Robinson der Jngere, uma

    espcie de Robinson Cruso alemo, influenciado pelo livro de Defoe.

    No incio do sculo XIX, Charles e Mary Lamb adaptaram as peas dramticas

    de Shakespeare para o pblico infantil, publicando-as em prosa em 1807. De acordo

    com o prefcio das adaptaes, o objetivo era apresentar o estudo de Shakespeare aos

    jovens leitores, tornando as peas uma leitura fcil para as crianas (ALMEIDA, 2007).

    Ainda no sculo XIX, durante o romantismo, extinguiu-se o pensamento de que

    as crianas deveriam se tornar adultas rapidamente. Assim, elas passaram a ser tratadas

    de forma diferente, isoladas dos aspectos negativos da sociedade, quando possvel, e

    tendo a chance de desfrutarem da infncia por mais tempo. De acordo com Ghesquiere

    (2006), como resultado dessa nova viso pedaggica, o sentimentalismo e a

    imaginao passaram a dominar as histrias infantis. A criana no era mais encorajada

    a refletir, a mensagem nos livros infantis era apresentada de maneira objetiva (p. 23,

    minha traduo),3 e as histrias no continham temas inapropriados para esse tipo de

    pblico. Segundo Ghesquiere, nesse contexto, muitos clssicos da literatura infanto-

    juvenil foram publicados, alguns deles por autores at hoje lidos, como Lewis Carroll,

    que escreveu, entre outros, Alice in Wonderland (Alice no pas das maravilhas), obra

    que teve 14 tradues para o portugus do Brasil, estando entre elas as realizadas por

    Maria Luiza Borges e Rosaura Eichenberg, e James M. Barry, que criou a personagem

    Peter Pan.

    3 Texto original: As a result of the new pedagogical view of children, sentimentality and imagination

    dominated stories for young children. The child was no longer encouraged to reflect, the message in childrens books was presented in a straightforward manner.

  • 17

    Lewis Carroll comeou suas atividades como escritor em 1855, publicando

    poemas na revista Comic Times. Sua grande obra, Alice no pas das maravilhas (1862),

    traduzida diversas vezes para a lngua portuguesa do Brasil, alm de conter vrias

    metforas e jogos de lgica, no apresenta o tema de forma direta, conduzindo,

    portanto, a vrias possibilidades de leitura, indo de encontro ao tipo de produo

    literria infantil da poca sobre a qual Ghesquiere teceu comentrios, uma vez que

    necessita da interpretao e reflexo do pblico leitor. De acordo com Sandroni, Carroll

    introduziu novos elementos nos contos infantis com seu nonsense, seus jogos de

    palavras que fazem com que os adultos hoje se debrucem sobre ela, como obra prima

    que (p. 11). Outras obras traduzidas para o portugus brasileiro, do mesmo autor, so

    Through the looking glass (Alice atravs do espelho) e Sylvie and Bruno (Algumas

    aventuras de Silvia e Bruno).4

    Por sua vez, James Barrie, dramaturgo e escritor de livros infantis escocs,

    comeou a escrever em 1887 e, apesar de seus muitos romances e peas teatrais, foi a

    criao de Peter Pan, em 1896, que o fez alcanar a fama. Essa pea trata de temas

    complexos de maneira velada, estando entre eles a recusa em se tornar adulto. Segundo

    Almeida (2007), essa obra foi traduzida em vrios pases, inclusive no Brasil, por

    Monteiro Lobato, que, alm de traduzi-la, introduziu a personagem no Stio do Picapau

    Amarelo e deu o nome de p de pirlimpimpim ao p mgico de Peter Pan.5

    Kipling foi um dos escritores mais populares da Inglaterra, nos campos da prosa

    e da poesia, no final do sculo XIX e incio do sculo XX. Em 1907, ele foi

    condecorado com o prmio Nobel de Literatura, tornando-se o primeiro autor de lngua

    inglesa a receber esse prmio e, at hoje, o mais jovem a receb-lo. Seus livros para

    criana so clssicos da literatura infantil e tratam de temas como a crueldade da vida e 4 Informaes obtidas no site . Acesso em 30 set. 2009.

    5 Informaes obtidas no site . Acesso em 30 set.

    2009.

  • 18

    da natureza e os valores do homem civilizado. O mais conhecido deles Mowgli,

    (Mogli, o menino lobo), que foi adaptado por Monteiro Lobato em 1933.6

    Prximo do final da segunda metade do sculo XX, a falta de realismo nas

    histrias infanto-juvenis voltou a ser detectada. Michael Bond, que comeou a escrever

    em 1945, conhecido pela coleo de livros da srie Paddington Bear, que retrata a vida

    de um urso junto a famlia Brown, que o encontrou na Paddington Station, em Londres.

    Os livros dessa coleo foram publicados em aproximadamente vinte pases e

    inspiraram sries de televiso. Bond tambm escreveu os livros infantis Olga da Polga

    e a srie televisiva The Herbs. Em 1997, Bond recebeu o prmio da Ordem do Imprio

    Britnico por seus servios literatura infantil. Seus livros apresentam personagens

    alegricos, como o urso e a porca, apontando para a j mencionada falta de realismo nas

    histrias infantis da poca.7

    Outro autor de histrias no realistas foi o irlands Clive Lewis, que se destacou

    pela famosa srie de livros infanto-juvenis The Chronicles of Narnia (As crnicas de

    Nrnia), considerada um clssico da literatura infanto-juvenil, tendo vendido mais de

    120 milhes de cpias em 41 idiomas. As crnicas de Nrnia, escritas entre 1949 e

    1954, foram adaptadas diversas vezes, inteiramente ou parcialmente, para o rdio,

    televiso, teatro e cinema. Alm dos tradicionais temas cristos, a srie usa tpicos da

    mitologia grega e nrdica, bem como os tradicionais contos de fadas. No Brasil, a srie

    foi editada inicialmente pela ABU Editora e era praticamente desconhecida, at o

    lanamento do filme. Paulo Mendes Campos foi o tradutor de quase todas essas

    crnicas para o portugus.8

    6 Informaes obtidas no site . Acesso em 30 set. 2009.

    7 Informaes obtidas no site . Acesso em 30 set. 2009.

    8 Informaes obtidas no site . Acesso em 30 set.

    2009.

  • 19

    Charles Roger Hargreaves, autor e tambm ilustrador de livros infantis, inclusive

    das sries de livros que so alvo das consideraes deste trabalho, Mr. Men e Little

    Miss, insere-se nesse contexto. Ele escreveu vrias histrias, estando entre elas John

    Mouse, Roundy and Squary, e 25 outros livros da coleo Timbuctoo. No entanto, suas

    obras mais conhecidas foram as das colees Mr. Men e Little Miss, que fizeram dele o

    terceiro autor mais vendido na Gr-Bretanha, com a comercializao de mais de cem

    milhes de livros em quinze lnguas diferentes. Essas colees, escritas para um pblico

    de pr-leitores, comearam a ser divulgadas em 1971, com o nome de Mister. Foram

    publicados 48 livros da srie Mr. Men, sendo 46 deles em lngua inglesa, e 42 da srie

    Little Miss, destes, 33 foram escritos em ingls. Essas colees apresentam personagens

    fantasiosos e alegricos, redondos e coloridos, que representam uma caracterstica

    personificada marcante, que, ao final da histria, levar a uma lio de moral.9

    Posteriormente, segundo Ghesquiere (2006), com o crescimento da literatura

    infanto-juvenil a partir dos anos de 1970, houve uma mudana na seleo dos tpicos a

    serem abordados nos livros infantis, bem como um crescimento no status e na qualidade

    dos mesmos. Temas e gneros que eram considerados apropriados apenas para um

    pblico maduro comearam a serem abordados na literatura infanto-juvenil. As histrias

    passaram a questionar os valores sociais tradicionais, os esteretipos e as relaes de

    autoridade. A coleo Matilda (Matilda), de Roald Dahl, publicada em 1988, pode ser

    citada como exemplo desse perodo, pois conta a histria de uma menina muito

    9 As informaes contidas sobre esse autor e as colees Mr. Men e Litte Miss foram retiradas das

    seguintes pginas da Internet: . Acesso em 30 set. 2009; . Acesso em 30 set. 2009; . Acesso em 30 set. 2009; . Acesso em 30 set. 2009 .

  • 20

    inteligente e cheia de habilidades que no tem a ateno dos pais e incentivada pela

    professora que a educa.10

    J. K. Rowling, autora dos sete livros da famosa e premiada srie Harry Potter,

    comeou a escrever j no final do sculo XX, seguindo uma trilha prxima da aberta

    pelos escritores no realistas que a precederam. O primeiro volume dessa srie foi

    publicado em 1997. Seus livros deram origem a vrios filmes e foram traduzidos para

    64 lnguas, inclusive para o portugus do Brasil, por Lia Wyler.11

    1.2 AS SRIES MR. MEN E LITTLE MISS

    O primeiro livro das colees Mr. Men e Little Miss a ser publicado foi Mr.

    Tickle, escrito depois que o filho de Hargreaves, Adam, na poca com oito anos,

    perguntou-lhe: What does a tickle look like? (Com o que uma ccega se parece?), em

    resposta, Hargreaves desenhou uma figura com o corpo redondo e laranja e braos

    longos e elsticos, assim nasceu o Mr. Tickle.

    Em 1981, a coleo de livros Little Miss comeou a ser publicada, sendo o

    primeiro livro intitulado Little Miss Bossy. O livro Little Miss Twins foi escrito com

    inspirao nas filhas gmeas de Hargreaves, Sophie e Amelia.

    Cada livro da coleo apresenta uma personagem-ttulo diferente com uma

    caracterstica personificada dominante, tal como ser mal, alta ou esperta, expressando,

    ao fim, uma lio de moral. Essas personagens geralmente reaparecem em outras

    histrias cuja personagem-ttulo outra, e mantm um dilogo com esta, corroborando a

    moral da histria.

    10

    Informaes obtidas no site < http://simple.wikipedia.org/wiki/Matilda_(novel)>. Acesso em 15 out. 2009. 11

    Informaes obtidas no site . Acesso em 30 set. 2009.

  • 21

    No total, foram criadas quatro sries de televiso envolvendo as personagens

    dessas colees. A primeira foi produzida em 1975, com as personagens da coleo Mr.

    Men. A segunda, produzida em 1983, envolvia apenas as personagens da coleo Little

    Miss, ambas foram produzidas pela Flick Films. A terceira, chamada Mr. Men e Little

    Miss, ficou no ar entre os anos de 1995 e 1997. Em 2006, a Renegate Animation

    produziu o The Mister Men Show, uma srie de animao americana contendo 25

    personagens na primeira temporada, a maioria deles com nomes ou aparncias alteradas,

    que estreou em fevereiro de 2008 no Cartoon Network, nos Estados Unidos da Amrica,

    e no canal Milkshake!, no Reino Unido.

    Ao falecer, Hargreaves havia criado mais de 70 personagens dessas colees.

    Aps sua morte, seu filho Adam continuou a desenhar e escrever livros para as duas

    colees. Escreveu tambm histrias novas com personagens antigas, criadas pelo pai,

    que formavam a new story library (a biblioteca da nova histria). Em 2003, em uma

    tentativa de atualizar as personagens das colees, Adam Hargreaves criou as novas

    personagens Mr. Good, Mr. Cool, Mr. Rude, Little Miss Bad, Little Miss Scary e Little

    Miss Whoops.

    Em 2001, por ocasio da comemorao do trigsimo aniversrio da coleo Mr.

    Men, foi realizada uma competio pelo jornal Sunday Times para criar uma nova

    personagem, sendo a ganhadora Mr. Cheeky, criada por Gemma Almond, de oito anos,

    cuja histria foi publicada em edio limitada.

    Em 2006, para comemorar o aniversrio de 35 anos da coleo Mr. Men e 25

    anos da coleo Little Miss, os livros Mr. Birthday e Little Miss Birthday foram

    publicados. Houve tambm uma exibio na The Art Animation Gallery, em Londres.

    Nessa ocasio, Adam produziu a primeira personagem criada a partir de uma pessoa

    real, a Little Miss Stella, baseada em Stella McCartney, uma das mais expressivas

  • 22

    estilistas da atualidade, que usa apenas materiais ecologicamente corretos em suas

    criaes.

    Os livros das colees foram traduzidos para diversas lnguas e, nesse processo,

    algumas personagens foram criadas, tais como Madame Oui, na Frana. Outras foram

    renomeadas, como o Mr. Jelly, que passou a ser Mr. Nervous nos Estados Unidos da

    Amrica. No Brasil, a editora Brinque Book publicou apenas uma edio traduzida de

    um nmero reduzido de livros, em 1995, dando coleo o ttulo de Seu Fulando, Dona

    Beltrana. Em 2004, a viva de Roger Hargreaves vendeu os direitos autorais das

    colees para uma empresa de mdia de entretenimento britnica, a Chorion.

  • CAPTULO 2 A TRADUO DA

    LITERATURA INFANTO-JUVENIL E O CONTEXTO BRASILEIRO

  • Neste captulo, trataremos da importncia da traduo na divulgao da literatura

    infanto-juvenil no Brasil e na ampliao do polissistema da literatura nacional, alm da

    contribuio da mesma para a formao de leitores. Ser dado destaque ao papel de

    Monteiro Lobato nesse contexto.

    2.1 A IMPORTNCIA DA TRADUO NA DIVULGAO DO GNERO

    Como vimos no captulo anterior, antes da Revoluo Industrial, no havia livros

    especficos para o pblico infanto-juvenil. Aps esse momento, as crianas passaram a

    representar um papel importante na sociedade, pois precisavam ser preparadas para o

    futuro, atravs da educao. Foi esse o contexto no qual surgiram os livros

    infanto-juvenis como instrumentos pedaggicos, que contriburam para a formao de

    cidados. Segundo Tatiana Anflor, no texto Literatura infantil brasileira (2007),12 a

    literatura infantil um fenmeno quase to recente quanto a ideia de infncia que temos

    atualmente.

    Esse novo gnero literrio, a literatura infanto-juvenil, utilizava-se de textos j

    existentes adaptados, tais como lendas, mitos, cantigas, contos de fadas, entre outros,

    dos quais se destacam as histrias do dinamarqus Hans Christian Andersen (1805-

    1875). De acordo com Anflor, os contos de fadas caram na preferncia das crianas

    porque se distinguiam dos outros pela presena do elemento mgico.

    No Brasil colnia, o ensino estava totalmente nas mos dos estrangeiros, e esse,

    segundo Laura Constancia Sandroni, um fator importante no atraso da formao de

    uma literatura infantil prpria. Os educadores franceses, alemes e ingleses, em sua

    maioria, preferiam utilizar livros de literatura nas lnguas de origem (1980, p. 12).

    12

    Informaes obtidas no site . Acesso em 30 set. 2009.

  • 25

    Outros fatores que dificultaram o surgimento de uma literatura infantil nacional

    brasileira foram a falta de tipografia, a censura e um ensino que privilegiava as classes

    aristocrticas dominantes.

    O gnero comeou com as leituras escolares que tambm tinham como objetivo

    transmitir determinados valores ou padres a serem respeitados pela comunidade ou

    incorporados pelo comportamento de cada indivduo (COELHO apud ALMEIDA,

    2007, p. 15). Dessa maneira, essas obras se apresentavam no somente como um

    fenmeno literrio, mas como um veculo de ideias ou padres de comportamento

    (COELHO apud ALMEIDA, 2007, p. 15). Essa produo, segundo Sandroni (1980),

    esteve em um primeiro momento, voltada para as tradues.

    Esse quadro mudou com a chegada de Dom Joo VI, pois o mesmo deu ateno

    ao ensino pblico, incentivando o surgimento de novas escolas. Alm disso, houve um

    desenvolvimento urbano por causa da vinda da famlia real. A partir desse momento,

    surgiu a conscincia do ensino como um meio de ascenso social, e esse era, portanto,

    um momento prprio para o surgimento de um mercado leitor que justificasse a

    importao de livros numa primeira fase, seguida de uma produo nacional

    (SANDRONI, 1980, p. 12).

    No fim do sculo XIX, surgiram muitas tradues e adaptaes de obras infantis,

    como One Thousand and One Nights (Contos das mil e uma noites), de 1882; Robinson

    Crusoe (Robinson Cruso) de 1885, Gullivers Travels (Viagens de Gulliver), de1888 e

    Don Quijote de la Mancha (Dom Quixote de La Mancha), de 1901, traduzidas por

    Carlos Jansen, e os Contos da carochinha (1894), As histrias da avozinha (1896) e as

    Histrias da baratinha (1896), adaptaes dos contos de Grimm, Perrault e Andersen,

    feitas por Figueiredo Pimentel.

  • 26

    J no incio do sculo XX, houve uma reao nacionalista importncia dos

    livros destinados escola e os autores brasileiros comearam a ser includos no

    processo de produo dos mesmos. Entre esses autores podemos citar Olavo Bilac e

    Coelho Neto, autores de Contos ptrios (1931), e Manuel Bonfim e Olavo Bilac,

    autores de Atravs do Brasil (1948).

    Os autores de literatura infantil passaram a se preocupar com uma forma de

    expresso literria nacional, como Monteiro Lobato, que publicou em 1920 A menina

    do nariz arrebitado, livro no qual o autor utiliza personagens de contos de fadas j

    conhecidos e mostra, de maneira crtica, temas atuais sua poca. Com isso, Lobato

    inaugurou uma nova fase na literatura infantil brasileira, uma que, segundo Sandroni,

    podemos considerar realmente criadora (1980, p. 15).

    Ao mesmo tempo em que estava em contato direto com as fontes do pensamento

    brasileiro, Lobato tambm escolhia autores e obras estrangeiros para serem publicados

    em sua editora, provenientes, em sua grande maioria, da lngua inglesa, como The

    Jungle Book (O Livro da Jngal), de Rudyard Kipling, e Pollyanna (Pollyanna), de

    Eleonor H. Porter. Por seu intermdio, seja como tradutor ou como editor de livros,

    grandes nomes da literatura mundial, destinada a crianas e adultos, chegaram ao

    contexto brasileiro em lngua portuguesa.

    A entrada de autores e culturas estrangeiras se dava tambm por meio da

    insero, nas obras infantis escritas por Lobato, como O Stio do Pica-pau Amarelo, de

    personagens advindas desse contexto. Assim, Narizinho podia se encontrar com Peter

    Pan, ou outros personagens de outras culturas, como Dom Quixote e princesas de contos

    de fadas.

    Como podemos perceber, a traduo teve importncia fundamental na expanso

    do gnero literrio infanto-juvenil brasileiro, uma vez que as primeiras obras infantis

  • 27

    nacionais eram tradues de contos, mitos e histrias estrangeiras, que formavam o

    cnone literrio infanto-juvenil, e posteriormente, impulsionaram o surgimento de uma

    tradio de literatura infanto-juvenil nacional, forjada inicialmente nos modelos

    exteriores, mas apresentando temas e cores locais.

    A partir de ento, surgiram autores como Ceclia Meireles, que, na dcada de

    1930, fundou a primeira biblioteca infantil do Rio de Janeiro e publicou livros e poemas

    dedicados a esse pblico. Entre os primeiros, encontram-se: Ou isto ou aquilo, Janela

    mgica, O menino azul e Palavras voam, enquanto, entre os ltimos, destacamos:

    Leilo de jardim, O cavalinho branco, Colar de Carolina, O mosquito escreve e

    Sonhos de menina.

    Devem ser lembrados os nomes de outros escritores, que, dedicando-se poesia

    e/ou prosa, tiveram crianas como pblico-alvo. Henriqueta Lisboa, poetisa mineira

    considerada pela crtica um dos grandes nomes da lrica modernista, publicou duas

    coletneas de poesia infantil: O menino poeta (1943 e 1975) e Lrica (1958). Ruth

    Rocha, ganhadora do prmio Jabuti de literatura infantil, em 2002, publicou os livros

    Marcelo, marmelo, martelo (1976), o Reizinho mando (1978), entre outros. Lygia

    Bojunga escreveu Os colegas (1972), Anglica (1975), A casa da madrinha (1978),

    Corda bamba (1979), O sof estampado (1980) e A bolsa amarela (1981), pelos quais

    recebeu, em 1982, o Prmio Hans Christian Andersen, o mais importante prmio

    literrio infantil mundial. O nome de Ana Maria Machado, laureada com o mesmo

    prmio, e membro da Academia Brasileira de Letras, tambm deve ser mencionado.

    Entre suas obras encontram-se Raul da ferrugem azul (1979), Bisa Bia, Bisa Bel (1981),

    Menina bonita do lao de fita (1986) e Abrindo caminho (2003).

  • 28

    2.2 A LITERATURA INFANTO-JUVENIL E A AMPLIAO DO POLISSISTEMA DA LITERATURA BRASILEIRA

    A teoria dos polissistemas, postulada por Itamar Even-Zohar em 1970,

    fundamenta-se na concepo de sistema implantada pelo formalismo russo, que se

    caracterizava pela recusa do historicismo e das interpretaes extraliterrias, at ento,

    vigentes (MARTINS, 2002, p. 36). Even-Zohar baseou-se no conceito de sistema de

    Tynianov, que prope a existncia de diferentes sistemas literrios estruturados

    hierarquicamente e em permanente estado de transformao: Tynianov chama nossa

    ateno para as lutas entre as foras inovadoras e conservadoras, polticas, tipos e

    modelos dentro da estrutura da literatura como um todo (EVEN-ZOHAR, 1979, p.

    119, minha traduo).13

    Assim, Even-Zohar afirma que a cultura o grande polissistema composta

    por vrios polissistemas, tais como o religioso, o poltico e o econmico. Esses, por sua

    vez, so formados por vrios polissistemas que so, em si, outros polissistemas, que,

    como os demais, apresentam centros e periferias. A alterao dentro de um desses

    polissistemas pode determinar mudanas em vrios outros deles.

    De acordo com Even-Zohar (1979), h vrios centros e vrias periferias, bem

    como processos de transferncias da periferia para o centro, ou da periferia de um

    polissistema para a periferia do grande polissistema cultural e, posteriormente, para o

    centro de outro polissistema.

    A literatura um dos polissistemas que compem a cultura e que, desse modo,

    molda-se em funo de outros polissistemas. Esse polissistema composto de um

    agregado de sistemas formados a partir de vrios tipos de textos, autores, pblico etc,

    nesse sistema constitudo de sistemas heterogneos, os diversos componentes esto em 13

    Texto original: Tynianov draws our attention to the struggles between innovatory and conservatory forces, policies, types and models within the structure of literature as a whole.

  • 29

    constante disputa pela preferncia dos leitores, prestgio e poder, posicionando-se

    hierarquicamente, de modo que alguns ocupam uma posio mais central que outros. A

    formao de cnones se daria, portanto, nas relaes de poder intrassistmicas

    (MARTINS, 2002, p. 37).

    Dentro do polissistema literrio h o polissistema da literatura traduzida, que

    segundo Even-Zohar, pode ocupar a posio primria, promovendo inovao; a

    secundria, mantendo o cdigo j estabelecido em dado polissistema literrio; ou

    ambas, dependendo das circunstncias especficas do polissistema.

    A literatura traduzida ocupa a posio primria dentro do polissistema literrio,

    participando ativamente da modelagem do centro desse polissistema, segundo

    Even-Zohar, quando esse ainda no est cristalizado, perifrico ou fraco, ou quando h

    crises ou vcuos no polissistema literrio. Quando isso acontece, as tradues tornam-se

    meios de elaborar novos modelos literrios, pois atravs delas so introduzidos

    elementos que no existiam anteriormente, como novos modelos de linguagem potica,

    mtricas e tcnicas, enriquecendo o polissistema literrio nacional (EVEN-ZOHAR,

    1979, p. 121). Segundo Even-Zohar, dizer que a literatura traduzida mantm uma

    posio primria dizer que essa participa ativamente na modelao do centro do

    polissistema [...] no h distino clara entre original e escritos traduzidos, e

    frequentemente so os escritores principais (ou membros da vanguarda que esto prestes

    a se tornarem escritores principais) que produzem as tradues mais importantes

    (EVEN-ZOHAR, 1979, p. 120, minha traduo).14

    14

    Texto original: To say that translated literature maintains a primary position is to say that it participates actively in modeling the centre of the polysystem. [] no clear-cut distinction is then maintained between original and translated writings, and that often it is the leading writers (or members of the avant-garde who are about to become leading writers) who produce the most important translations.

  • 30

    J quando a literatura traduzida ocupa uma posio secundria, constituindo um

    sistema perifrico dentro do polissistema literrio, ela praticamente no exerce

    influncia sobre a literatura nacional, e apenas reproduz a esttica vigente, assumindo

    um papel reprodutor e conservador, dessa forma a literatura traduzida adere a normas

    que foram recentemente ou h muito rejeitadas pelo (novo) centro estabelecido

    (EVEN-ZOHAR, 1979, p. 122, minha traduo).15 Isso acontece quando no h grandes

    mudanas no polissistemas ou quando essas no so efetivas (EVEN-ZOHAR, 1979, p.

    123, minha traduo).

    Quando ocupa ambas as posies, uma parte da literatura traduzida pode assumir

    a posio primria e outra assumir a posio secundria. Isso acontece quando h uma

    interferncia intensa e a poro da literatura derivando da fonte literria principal

    que provavelmente assume a posio primria (EVEN-ZOHAR, 1979, p. 123, minha

    traduo).16 Segundo Mrcia Amaral Martins (2002), em artigo publicado no volume

    temtico da Gragoat, intitulado Lugares da traduo, a posio ocupada pela

    literatura traduzida afeta as convenes tradutrias, as preferncias literrias e a poltica

    editorial com relao ao material traduzido (p. 38). Even-Zohar afirma que no apenas

    o status scio-literrio da traduo depende da sua posio dentro do polissistema

    literrio, mas a prtica real da traduo fortemente subordinada a ela (Even-Zohar,

    1979, p. 125, minha traduo).17

    Como consequncia da aceitao da noo de polissistemas, a lngua padro no

    pode ser levada em conta sem as variantes no-padro; a literatura traduzida no

    desvinculada da literatura original; e a literatura infantil relacionada literatura para

    15

    Texto original: translated literature adheres to norms which have been either recently or long before rejected by the (newly) established centre. 16

    Texto original: When there is intense interference, it is that portion of translated literature deriving from a major source literature which is likely to assume a primary position. 17

    Texto original: Not only the socio-literary status of translation depended upon its position within the literary polysystem but the very practice of translation is strongly subordinated to it.

  • 31

    adultos. As noes de erros, imitaes ruins e enganos deixam de existir dentro

    dessa teoria e passam a ser vistas como produtos das relaes existentes entre os vrios

    sistemas, histrica e culturalmente condicionadas (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 292).

    Um dos principais autores que colaborou para a criao e ampliao de uma

    literatura infanto-juvenil nacional foi Monteiro Lobato, j mencionado anteriormente,

    que ajudou a renov-la pelo contato com as culturas estrangeiras. Apesar de ser muito

    conhecido como autor de livros da literatura infanto-juvenil, o mesmo desempenhou

    atividades tradutrias por aproximadamente nove anos. Alm de tradutor, Lobato foi

    adaptador de obras de destaque da literatura infantil mundial, como por exemplo,

    Pinocchio (Pinquio), do italiano Carlos Collodi, Robinson Crusoe (Robinson Cruso),

    do ingls Daniel Defoe, e Fairy Tales (Contos de Fadas), do francs Charles Perrault.

    importante ressaltar que, segundo Giovana Cordeiro Campos, em sua

    dissertao de mestrado, intitulada From Whom the Bell Tolls, de Ernest Hemingway, e

    suas tradues no contexto brasileiro (2004), o objetivo de Lobato no era o de

    substituir a cultura nacional pela estrangeira, mas o de fortalecer a primeira por meio

    das novidades provenientes da segunda.

    A atividade tradutria de Lobato teve grande impacto cultural no Brasil, pois

    novos temas, personagens e ideologias estrangeiras foram introduzidos no pas por meio

    de suas tradues. Dessa forma, as tradues feitas por Monteiro Lobato funcionaram

    como uma fora motriz inovadora que introduziu novos elementos e permitiu a

    ampliao do polissistema literrio brasileiro.

    Segundo Campos, Lobato sentia que havia na literatura infantil nacional um

    vcuo, uma vez que as fbulas infantis que existiam no Brasil eram tradues das

    fbulas de La Fontaine (LOBATO apud CAMPOS, 2004 p. 144). Por isso, invs de as

    crianas entrarem em contato com elementos da cultura e do folclore nacionais, estavam

  • 32

    expostas a uma literatura que nada tinha a ver com a realidade delas. Lobato acreditava,

    segundo Campos, que o vcuo na literatura infantil nacional poderia ser preenchido por

    uma literatura infanto-juvenil brasileira com bichos daqui em vez de exticos [...]

    fbulas assim seriam o comeo de uma literatura que nos falta (LOBATO apud

    CAMPOS, 2004 p. 144).

    Lobato tambm almejava uma linguagem mais simples e brasileira nas edies

    infantis, como se percebe em carta a Godofredo Rangel, de 11 de janeiro de 1925: [...]

    Os cantos extrados das peas de Shakespeare vo para que escolhas alguns dos mais

    interessantes e os traduzas em linguagem bem singela; pretendo fazer de cada canto um

    livrinho para meninos (LOBATO, apud CAMPOS, 2004, p. 147).

    Lobato traduziu para a nossa lngua importantes ttulos da literatura inglesa e foi

    o primeiro escritor de renome a faz-lo de forma explcita, registrando seu nome em

    cada livro traduzido. Dessa forma, deu um novo prestgio traduo e aos tradutores.

    Muitos autores traduzidos por ele, embora possussem fama no cenrio internacional,

    no gozavam da mesma importncia e de status do autor em territrio brasileiro, nesse

    sentido, o nome de Lobato como tradutor da obra dava aval mesma.

    A histria do surgimento e da evoluo da literatura infanto-juvenil no Brasil

    corrobora a percepo de Ghesquiere (2006) de que a traduo elevou o status da

    literatura infantil e incentivou iniciativas novas, pois, uma vez que os autores so

    confrontados com a produo literria de outras culturas, os mesmos sentem-se

    estimulados a produzir na sua lngua nacional. Nas palavras de Ghesquiere, a traduo

    foi e continua um meio de compartilhar criatividade, novas ideias e modelos literrios

    (GHESQUIERE, 2007, p. 25, minha traduo).18

    18

    Texto original: Translation was and remains a means of sharing creativity, new ideas and literary models.

  • CAPTULO 3

    A TRADUO DE LIVROS DAS SRIES DE LITERATURA INFANTIL

    MR MEN E LITTLE MISS

  • Neste momento, iremos analisar especificidades relativas s tradues de textos

    infantis da srie Mr. Men e Little Miss, de Roger Hargreaves, realizadas, sob a

    superviso da professora Maria Clara Castelles de Oliveira, pelos alunos da disciplina

    Traduo II do curso de Bacharelado em Letras, nfase em Traduo: Ingls, da

    Universidade Federal de Juiz de Fora, turma 2007-2009, no primeiro semestre letivo de

    2009. So os seguintes os ttulos e os nomes dos alunos-tradutores: Little Miss Late

    (Aline Paiva); Little Miss Brainy (Clara Peron); Mr. Rude (Diogo Britto); Little Miss

    Wise (Felipe Noronha); Little Miss Chatterbox (Fernanda Faria); Mr. Fussy (Jlio Cezar

    Oliveira); Mr. Topsy-Turvy (Luy Braida); Little Miss Fickle (Raquel Lombardi).

    As tradues foram feitas em casa e apresentadas em sala de aula, por meio de

    transparncias. Nesse momento, elas foram enriquecidas com sugestes feitas pelos

    colegas e pela professora. Em seguida, cada aluno fez as modificaes discutidas em

    seu texto e, mais tarde, o enviou para um colega, para uma reviso do texto, levando em

    conta aspectos de ordem formal (transcrio de dilogos do texto, uso de maisculas

    etc.) e de contedo (ortografia e sintaxe). Tais atividades se mostraram muito

    proveitosas, pois geraram uma participao colaborativa, alm de proporcionarem

    debates acerca da traduo de livros infantis, e suscitaram o desenvolvimento da

    atividade de reviso de textos, fundamental para os tradutores.

    A seguir, faremos uma crtica sintomtica da traduo dos livros supracitados,

    nos moldes defendidos por Lawrence Venuti no livro The Translators Invisibility

    (1995). Tal crtica no apenas avalia o texto traduzido, como tambm leva em

    considerao o contexto, o prazo, o volume de trabalho, as condies da editora, as

    relaes mantidas entre as literaturas do original e da traduo, os lugares ocupados pelo

    autor e pelo tradutor em seus contextos e os demais fatores que condicionam as escolhas

    tradutrias. Assim, buscaremos contextualizar as opes de traduo de cada aluno-

  • 35

    tradutor, considerando o pblico-alvo das mesmas, nesse caso, pr-leitores, crianas de

    zero a seis anos, de acordo com a classificao de Elvira Aguilera no artigo The

    Translation of Proper Names in Childrens Literature (2008), cuja traduo literal A

    traduo dos nomes prprios na literatura infantil.19

    Levaremos em considerao as tradues de nomes prprios, as onomatopeias,

    as referncias culturais, as expresses idiomticas, as ilustraes e os jogos de palavras

    tomando como exemplo apenas as histrias que apresentam essas questes de maneira

    mais relevante. Tais implicaes tornam-se ainda mais considerveis no caso da

    traduo para um pblico de pr-leitores, e constituem um desafio ao tradutor,

    principalmente por se tratar de uma literatura cuja produo assimtrica: so adultos

    que escrevem, editam, traduzem, publicam, compram e at mesmo leem os livros para

    as crianas.

    3.1 NOMES PRPRIOS

    Como afirmado anteriormente, os livros das colees Mr. Men e Little Miss

    apresentam personagens com uma caracterstica dominante, que marca sua

    personalidade. Essa mesma caracterstica d nome personagem e permeia toda a

    histria, como, por exemplo, no livro Little Miss Late, no qual a personagem principal,

    que tem como caracterstica ser atrasada, chega tarde a todos os compromissos

    marcados e perde empregos e oportunidades por causa disso.

    Considerando tal especificidade da coleo e o pblico leitor da mesma, todos os

    alunos optaram por traduzir o significado subjacente ao nome prprio das personagens,

    19

    Informaes obtidas no site . Acesso em 02 jun. 2008.

  • 36

    entendendo que o significado dos mesmos era importante para a compreenso da moral

    da histria pela criana. Assim, temos as seguintes tradues:

    Nome prprio da personagem no texto-fonte:

    Nome prprio da personagem no texto-meta:

    Mr. Fussy Sr. Chato

    Mr. Rude Sr. Rude

    Mr. Topsy-Turvy Sr. s Avessas

    Little Miss Brainy Senhorita Brilhante

    Little Miss Chatterbox Senhorita Tagarelinha

    Little Miss Fickle Senhorita Inconstante

    Little Miss Late Senhorita Atrasada

    Little Miss Wise Senhorita Esperta

    A opo dos alunos vai ao encontro do que afirmado por Aguilera (2008), para

    quem um nome prprio em uma histria alegrica, isto , cujos personagens apresentam

    ideias ou conceitos abstratos, tende a ser traduzido, pois um nome significativo tem um

    papel na histria, e no traduzi-lo suprimir parte da funo para qual o mesmo foi

    criado (minha traduo).20

    No caso da traduo do nome da casa das personagens e das cidades nas quais

    elas moram, duas alunas-tradutoras optaram por no traduzir o nome e acrescentar uma

    explicao ao mesmo, para manter as questes culturais do texto-fonte e ao mesmo

    tempo torn-lo mais compreensvel criana. Tomemos como exemplo o seguinte

    trecho do livro Little Miss Fickle:

    20

    Texto original: a meaningful name play a role within the story and not translating it is suppressing part of the function it was created for.

  • 37

    Little Miss Fickle lived in Dandelion Cottage which was on the outskirts of Sunnytown. And she lived right next door to her best friend, Little Miss Neat, who lived in Twopin Cottage.

    O mesmo recebeu a seguinte traduo:

    A Senhorita Inconstante morava na Inglaterra em um chal que tem o nome de uma flor, Dandelion, que significa Dente-de-Leo nos arredores de Sunnytown, a cidade ensolarada. E morava pertinho de sua melhor amiga, A Senhorita Arrumadinha, que vivia em um chal chamado Twopin, com duas chamins que pareciam dois pinos. (meus grifos)

    Na traduo do livro Little Miss Late, h outro exemplo de tal escolha tradutria.

    Vejamos o texto-fonte:

    Do you know where she spent last Christmas? At home. Earlybird Cottage!

    Tal trecho recebeu a seguinte traduo:

    Voc sabe onde ela passou o Natal? Na casa dela, na Inglaterra No chal Earlybird, que em ingls significa pssaro madrugador! (meu grifo)

    Podemos perceber que ambas as alunas-tradutoras optaram por acrescentar a

    explicao diluda no corpo do texto, inserindo o pas de origem, para situar o leitor, e

    introduzindo uma explicao sobre o nome o qual mantiveram na lngua fonte. Essa

    opo de traduo permite, segundo Coillie afirma no artigo Character Names in

    Translations: A Functional Approach (2006), cuja a traduo literal Nomes prprios

    nas tradues: uma abordagem funcional que, o leitor do texto-meta aprenda mais

    explicitamente (o significado de uma palavra de outra lngua) (p. 126, minha

    traduo).21

    21

    Texto original: (...) the reader of the target text more explicitly learns something (the meaning of a word from another language).

  • 38

    Segundo Peter Newmark, no livro Approaches to Translation (1982), cuja

    traduo literal Abordagens traduo, quando a denotao do nome no

    conhecida ou obscura para o leitor, o tradutor geralmente adiciona o nome genrico

    apropriado: o rio Rehe, a cidade de Ratheim (p. 12, minha traduo). 22 Assim, a

    opo de traduo das alunas-tradutoras supracitadas tambm vai ao encontro do

    postulado por Newmark, e facilita a compreenso da criana, sem deixar de mostrar o

    elemento estrangeiro.

    Por se tratar de uma traduo para um pblico de pr-leitores, pensamos que a

    melhor opo , realmente, traduzir o significado equivalente ao nome do texto-fonte,

    optando pela domesticao do texto, uma vez que, como mencionado anteriormente,

    esses tm uma carga de significado importante na histria e, dessa forma, so

    necessrios compreenso da criana dos ensinamentos contidos nos livros, que podem

    ser coisas como: no devemos chegar atrasados aos nossos compromissos (Little Miss

    Late), precisamos procurar ser menos indecisos (Little Miss Fickle), no podemos achar

    que sabemos tudo (Little Miss Brainy) e no devemos ser rudes com as pessoas (Mr.

    Rude).

    3.2 ONOMATOPEIAS

    A literatura infantil, geralmente, rica em onomatopeias, palavras que

    reproduzem um som com um fonema ou palavra. Rudos, cantos de animais, sons da

    natureza, entre outros, fazem parte das onomatopeias.

    22

    Texto original: Where the denotation of the name is not known or obscure to the reader the translator often adds the appropriate generic name: the river Rehe, the town of Ratheim

  • 39

    No corpus estudado nesta monografia, os livros Little Miss Wise, Little Miss

    Chatterbox, Little Miss Brainy e Mr. Fussy apresentam onomatopeias. Todos os alunos

    optaram por traduzi-las, como podemos observar a seguir:

    Onomatopeia no texto-fonte: Onomatopeia no texto-meta:

    He was very fussy about what he ate He opened the marmalade pot. Ugh! He exclaimed. It got bits in it (Mr. Fussy) (meu grifo)

    O Sr. chato era bastante Chato sobre o que comia. Ele abriu o vidro de geleia. Eca! ele gritou Tem grozinhos dentro da geleia. (meu grifo)

    Phew! gasped the elephant! (Little Miss Brainy) (meu grifo)

    Ufa! Suspirou o elefante aliviado. (meu grifo)

    Little Miss Chatterbox took a deep breath. PIP PIP PIP At third stroke it will be six twenty five and twenty seconds! (Little Miss Chatterbox) (meu grifo)

    A Senhorita Tagarelinha deu um profundo suspiro e BIP! BIP! BIP! No terceiro BIP sero seis horas, vinte e cinco minutos e vinte segundos! (meu grifo)

    Little Miss Wise opened the parcel. Atishoo! she sneezed. (Little Miss Wise) (meu grifo)

    A Senhorita Esperta abriu o embrulho. Atchim! espirrou. (meu grifo)

    A escolha tradutria dos alunos-tradutores corrobora a afirmao de Isabel

    Pascua-Febles, no artigo Translating Cultural References: The Language of Young

    People in Literary Texts (2006), literalmente Traduzindo referncias culturais: a

    linguagem dos jovens nos textos literrios, segundo a qual quando consideramos

    como tratar os exemplos de onomatopeia no texto, argumentavelmente inapropriado

    manter as expresses estrangeiras. Para esses marcadores, os tradutores so mais

    susceptveis a seguir as normas de convenes textuais e lingusticas da cultura alvo

    (p. 117, minha traduo).23

    23

    Texto original: When considering how to address the examples of onomatopoeia in the text it is arguably not appropriate to retain foreign expressions. For these markers translators are more likely to follow the textual conventions and linguistic norms of the target culture.

  • 40

    No faria sentido traduzir o nome dos personagens e manter as onomatopeias na

    lngua-fonte, assim, a escolha dos alunos-tradutores foi coerente com seus projetos

    tradutrios.

    3.3 REFERNCIAS CULTURAIS

    Alguns dos livros das colees aqui estudadas apresentam questes culturais

    fortemente enraizadas na cultura-fonte, como estaes do ano e as atividades que so

    feitas na Inglaterra correlacionadas s mesmas, que, no Brasil, seriam realizadas em

    datas diferentes, uma vez que as estaes do ano no so correspondentes nos

    hemisfrios norte e sul.

    No livro Little Miss Late, a aluna-tradutora optou por traduzir os dados culturais

    e acrescentar uma explicao diluda no texto, para que as crianas no estranhassem

    muito a informao contida no mesmo, como podemos observar no exemplo a seguir do

    texto-fonte:

    Do you know when she went on her Summer holiday last year? In December! Six months late!

    Tal trecho recebeu a seguinte traduo:

    Voc sabe quando foi que ela fez a limpeza de primavera no chal Earlybird? Em dezembro, Quando j era inverno na Inglaterra! (meu grifo)

    Outro exemplo, no mesmo texto-fonte o seguinte:

    I think, remarked Little Miss Neat, looking at the grass, that you should have thought about that last April.

    O mesmo recebeu a traduo a seguir:

  • 41

    Acho que voc deveria ter pensado nisso em abril, quando ainda era primavera a Senhorita Caprichosa comentou, enquanto olhava para a grama. (meu grifo)

    Segundo Renata Mundt (2008), no artigo A adaptao da traduo de literatura

    infanto-juvenil: necessidade ou manipulao? 24, as questes culturais costumam sofrer

    adaptaes porque, algumas vezes, essas diferem da viso que os tradutores tm da

    cultura de partida ou porque esses pensam que as crianas no iro compreend-las.

    Apresentar esses dados, adequando-os cultura-meta, permite que a criana pr-

    leitora perceba as diferenas entre as estaes do ano na cultura-fonte e em sua cultura-

    meta, enriquecendo o seu conhecimento de mundo.

    3.4 EXPRESSES IDIOMTICAS

    As expresses idiomticas trazem muito do contedo de uma cultura, por isso,

    na grande maioria das vezes, constituem entrave traduo, pois apresentam uma carga

    de significado para a cultura-fonte que no equivalente na cultura-meta. Por esse

    motivo, as mesmas costumam ser substitudas por uma expresso equivalente na lngua-

    meta. Essas se estabelecem a partir de projees metafricas, apresentando linguagem

    figurativa. Por si s, isso justifica a impossibilidade da traduo literal das mesmas.

    No livro Little Miss Chatterbox, temos exemplos de expresses idiomticas, as

    quais a aluna-tradutora optou por utilizar uma expresso equivalente na lngua- meta,

    como podemos observar a seguir, no trecho do texto-fonte:

    Have you ever heard about somebody being able to talk the hind leg off a donkey? Well, Mr. Chatterbox could talk both hind legs off a donkey. And his sister could talk the hind leg off an elephant. (meus grifos)

    24

    Informaes obtidas em: . Acesso em 30 jun. 2009

  • 42

    Esse trecho foi traduzido da seguinte maneira:

    Voc j ouviu falar de algum que fala pelos cotovelos? Bem, o Sr. Tagarela podia falar pelos dois cotovelos. E sua irm podia falar pelos cotovelos e pelos joelhos. (meus grifos)

    Outro exemplo, retirado do mesmo texto-fonte, que tambm ilustra o tema dos

    jogos de palavras o seguinte:

    Little Miss Chatterbox managed to find herself a job that suited her down to the ground and up to the Sky! (meus grifos)

    O mesmo recebeu a seguinte traduo:

    A Senhorita Tagarelinha conseguiu encontrar um emprego que lhe caiu como uma luva, e de pelica. (meus grifos)

    A adaptao dessas expresses para a lngua-meta torna o texto mais claro para o

    leitor, que, certamente, no as compreenderia se fossem traduzidas literalmente:

    A Senhorita Tagarela conseguiu encontrar um emprego que lhe agradasse desde o cho at o alto do cu.

    3.5 ILUSTRAES

    Em um texto de literatura infanto-juvenil, as ilustraes compem uma parte

    importante da obra, pois no apenas a adornam, mas a complementam. Segundo Mundt

    (2008), as ilustraes no apenas enfeitam a obra infantil, mas facilitam sua leitura e

    so parte integrante da mesma. Algumas vezes espelham o contedo da obra, outras

    vezes, completam-no. Seu papel essencial nesse tipo de leitura e no pode ser

    ignorado pelo tradutor.

    Assim sendo, os tradutores devem observar se o seu texto condiz com o que est

    ilustrado na obra, pois o livro infantil promove o desenvolvimento de duas

    competncias leitoras: a do cdigo verbal e a do cdigo no verbal, como afirmou

  • 43

    Adriana Maximino Santos Vannuzini no artigo Texto, imagem e projeto grfico na

    traduo de literatura infanto-juvenil (2008).25

    Nos livros Little Miss Wise e Little Miss Late, assim como nos demais, porm de

    maneira mais relevante, temos momentos em que a ilustrao complementa o texto. No

    primeiro livro, o autor comenta que a Senhorita Esperta se recusou a jogar tnis com o

    Sr. Tolo, e diz no h nada de tolo quanto a isso, h? ao mesmo tempo em que

    aparece a figura do Sr. Tolo segurando uma raquete em formato de estrela e uma bola

    quadrada. A ilustrao justifica a afirmao da personagem, por isso tem extrema

    relevncia.

    Figura 1: O Sr. Tolo se preparando para jogar tnis. Fonte: HARGREAVES, Roger. Little Miss Wise (1990)

    No livro Little Miss Late, o autor conta que a Senhorita Atrasada comemorou o

    natal no dia 25 de janeiro e, na pgina ao lado desse texto, aparece a figura de uma casa

    coberta de neve. A aluna-tradutora, como vimos anteriormente na seo que trata das

    referncias culturais, optou por explicar a diferena nas estaes do ano entre os dois

    hemisfrios, inserindo uma explicao diluda no texto, afirmando que, na Inglaterra

    inverno no ms de janeiro.

    25

    Informaes obtidas em: . Acesso em 30 jun. 2009

  • 44

    Figura 2: A casa coberta de neve durante o ms de janeiro. Fonte: HARGREAVES, Roger. Little Miss Late (1981)

    3.6 JOGO DE PALAVRAS

    Segundo Mundt (2008) jogos de palavras com a lngua obrigam o tradutor a

    realizar adaptaes. Eles so inseridos no texto, quase sempre, para criarem uma

    atmosfera cmica, por isso, se forem explicados, perdem o humor intrnseco aos

    mesmos, pois, como afirma Coillie (2006), se, ao mesmo tempo, o tradutor explica um

    jogo de palavras, a funo humorstica muda tambm: uma vez explicado, o jogo no

    mais divertido (p. 126, minha traduo).26

    No livro Mr. Topsy-Turvy h vrios jogos de palavras, uma vez que a

    personagem age, se veste e at mesmo fala de trs para frente, s avessas. Assim, a

    aluna-tradutora optou por traduzir as palavras na mesma ordem do texto-fonte, a fim de

    manter o efeito cmico proporcionado pelo mesmo. Um dos trechos do texto-fonte que

    exemplifica tal afirmao o seguinte:

    Id room a like! The manager scratched his head. You mean youd like a room? He asked. Please yes. Replied Mr. Topsy Turvy.

    Esse trecho teve a seguinte traduo: 26

    Texto original: If at the same time the translator explains a play on words, the divertive function changes as well: once explained, the pun is often no longer funny.

  • 45

    Eu quartaria de um gosto! O gerente coou a cabea Voc quis dizer que gostaria de um quarto? perguntou _ Por favor, sim respondeu o Sr. As Avessas.

    Outro exemplo, retirado do mesmo texto-fonte o seguinte:

    Morning good people started saying to each other when they met, and do do you how? instead of how do you do?

    Tal trecho recebeu a seguinte traduo:

    Dia bom, as pessoas comeavam a dizer umas para as outras quando se encontravam, e vai voc como? em vez de como vai voc?

    3.7 CONCLUSO

    Essas so algumas das especificidades concernentes literatura infanto-juvenil

    que esto presentes nos livros das colees Mr. Men e Little Miss. Essas requerem do

    tradutor ateno e adequao ao pblico para que este, estimulado pelas histrias que l

    ou escuta, possa entusiasmar-se e se tornar um leitor vido. Nesse sentido, o tradutor

    deve ter cuidado para, no af de produzir um texto agradvel, no apagar as marcas da

    cultura-fonte, pois, partindo-se do princpio de que uma das funes da literatura

    infanto-juvenil a formao de leitores, importante que os mesmos tenham

    conscincia de que as histrias que ouvem provm de culturas distintas da sua. Alm

    disso, a noo de que os livros que leem ou cujas histrias escutam so obras traduzidas

    permite sensibilizar os leitores em formao para o fato de que a traduo passa por um

    processo de mediao que pode criar identidades para as lnguas e culturas do original,

    para seus autores e para seus personagens que no se coadunam com as percebidas pelos

    leitores dos textos em suas lnguas originais.

  • CAPTULO 4 O EMBATE ENTRE A DOMESTICAO

    E A ESTRANGEIRIZAO

  • No presente captulo, teceremos consideraes sobre a traduo de textos de

    literatura infantil, a partir das tradues dos livros de Roger Hargreaves que foram

    analisados no captulo anterior, valendo-nos dos conceitos de estrangeirizao e de

    domesticao.

    Rita Ghesquiere inicia o artigo Why does Children Literature Need

    Translations? (2006) com a seguinte pergunta: como seriam as nossas vidas e as vidas

    de nossas crianas sem a traduo de grandes obras da literatura, tais como a Bblia, os

    mitos gregos e nrdicos, e lendas a Ilada e a Odissia, as fbulas de Esopo e a

    Ramayana? (p. 19, minha traduo).27 Tal questo nos remete importncia da

    traduo da literatura infantil nas nossas vidas, para nos formar como leitores. Ronald

    Jobe, por sua vez, na International Companion Encyclopedia of Childrens Literature,

    em traduo literal Enciclopdia da Companhia Internacional de Literatura Infantil,

    aponta para o fato de que a traduo responsvel pela herana literria ocidental

    (JOBE, 1996 apud GHESQUIERE, 2006, p. 19), j que os grandes textos literrios

    seminais com os quais temos contato so tradues de textos da cultura oriental.

    Foi atravs das tradues de grandes obras que comeamos a ter contato com o

    mundo, descobrimos que existem outras culturas e povos, formamos nossas opinies e

    ideologias. Nesse sentido, a traduo de literatura infantil, que, como vimos, foi

    responsvel pela ampliao do polissistema de literatura infanto-juvenil brasileiro,

    desempenha um papel muito importante na formao de leitores.

    Assim, de acordo com Rita Oittinen, no texto No Innocent Act: On Ethics of

    Translating for Children (2006), cuja traduo literal Nenhum ato inocente: sobre a

    tica de traduzir para crianas, o propsito e a tica da traduo de livros infantis

    27

    Texto original: What would our lives and those of our children be like without translations of great pieces of literature such as the Bible, the Greek, Norse and Asian myths, and legends - the Iliad and Odyssey, the fables of Aesop, and the Ramayana?

  • 48

    devem ser ajudar a criana a desfrutar de seus potenciais humanos da forma mais

    completa possvel (p. 37, minha traduo).28

    Dessa maneira, os tradutores de literatura infantil devem ter em mente qual o

    pblico real de suas tradues, considerando a idade e a realidade cultural, a fim de

    adequ-las ao mesmo. A traduo de literatura infantil est estritamente ligada s

    imagens que fazemos das crianas, que so permeadas pela imagem pessoal que temos

    de nossa infncia e pela imagem coletiva, cultivada pela sociedade. Segundo Oittinen

    tudo que criamos para crianas reflete nossas vises sobre ser uma criana (2006, p.

    41, minha traduo).29

    Os tradutores devem estar, portanto, atentos ao que est sendo produzido na

    literatura da cultura na qual est inserido e s convenes textuais da mesma para no

    correr o risco de estereotipar o pblico infantil ou produzir textos baseados estritamente

    em suas crenas sobre esse pblico. Ao traduzir um texto literrio, segundo Isabel

    Pascua-Febles, no texto Translating Cultural References: The Language of Young

    People in Literary Texts (2006), o tradutor no deve apenas se concentrar na natureza

    do texto-fonte, como tambm em sua posio dentro da cultura-fonte, nas restries

    associadas aos outros leitores (os adultos, os professores, os editores) e nos valores

    compartilhados pelos jovens atualmente (p. 114, minha traduo).30

    No caso da literatura infantil, temos o tradutor como um mediador evidente, por

    isso, segundo Gillian Lathey, no texto The Translator Revealed, Didacticism, Cultural

    Mediation and Visions of the Child Reader in Translations Prefaces (2006),

    literalmente O tradutor revelado, didtica, mediao cultural e vises do leitor infantil 28

    Texto original: The purpose and ethics on translating childrens books: to help children to enjoy their human potentials to the fullest. 29

    Texto original: Anything we create for children reflects our views on being a child. 30

    Texto original: The translator should not only concentrate on the nature of the source text, but also on its position within the source culture, on the restrictions associated with the other readers (the adults, the teachers, the publishers) and on the values shared by young people today.

  • 49

    nos prefcios de tradues, o tradutor de livros infantis tem que entender seu pblico e

    travar um dilogo imaginrio com a criana para que sua traduo seja agradvel (p.

    15).

    A traduo de literatura infantil deve, no entanto, proporcionar aos leitores em

    formao uma percepo mais aguada de que a mesma provm de uma cultura

    diferente da sua. Posto isso, devemos nos perguntar: no caso da traduo de literatura

    infantil devemos domesticar o texto ou estrangeiriz-lo?

    Lawrence Venuti, no livro The Translators Invisibility (1995), apresentou os

    processos de traduo domesticantes e estrangeirizantes, baseando-se na leitura que fez

    de Ueber die verschiedenen Methoden des Uebersezens (traduzido para o portugus

    com o ttulo de Sobre os diferentes mtodos de traduo), de Friedrich

    Schleiermacher, publicado originalmente em 1813. Segundo Venuti, a domesticao

    um procedimento inerente maior parte dos textos traduzidos, pois se inicia no

    momento em que se escolhe a obra a ser traduzida e perpassa todas as escolhas

    tradutrias. Quando se pretende que o texto-fonte alcance a cultura-meta de maneira a

    facilitar a leitura do texto e a compreenso por parte de seus leitores, elementos

    pertinentes ao pblico-alvo so inscritos, reescritos, repensados e recriados de forma a

    refletir tal cultura. Nas palavras de Venuti:

    O objetivo da traduo trazer um outro cultural como o mesmo, o reconhecvel, at mesmo familiar; e esse objetivo sempre arrisca uma domesticao em grande escala do texto estrangeiro, geralmente, em projetos altamente autoconscientes, onde a traduo serve a uma apropriao das culturas para agendas domsticas, culturais, econmicas e polticas. A traduo pode ser considerada a comunicao de um texto estrangeiro, mas sempre uma comunicao limitada pelo endereo a um pblico leitor especfico (VENUTI, 1995, p. 18, minha traduo).31

    31

    Texto original: The aim of translation is to bring back a cultural other as the same, the recognizable, even familiar; and this aim always risks a wholesale domestication of the foreign text, often in highly self-conscious projects, where translation serves an appropriation of foreign cultures for domestic agendas, cultural, economic, political. Translation can be considered the communication of a foreign text, but it is always a communication limited by its address to a specific reading audience.

  • 50

    Assim, a traduo deixaria de ser janela para o outro e passaria a ser espelho

    de si mesmo, ou seja, no traria a cultura estrangeira, mas a adaptaria cultura-meta,

    podendo, at mesmo, criar esteretipos culturais. Dessa maneira, tambm contribuiria

    para a invisibilidade do tradutor, uma vez que, no percebendo que h culturas

    diferentes e, consequentemente, tradues de obras provenientes dessas culturas, no se

    percebe tambm o tradutor por trs do texto que se l.

    Venuti fala especificamente do contexto anglo-estadunidense, mas podemos

    citar exemplos de domesticao de textos literrios na cultura brasileira, tais como as

    tradues feitas por Monteiro Lobato, que tinham como objetivo fazer o texto traduzido

    parecer ter sido escrito originalmente na lngua-meta, como podemos perceber em carta

    enviada a Godofredo Rangel em 8 de maro de 1925: [...] Estou precisando de um D.

    Quixote para crianas, mais correntio e mais em lngua da terra que as edies do

    Garnier dos portugueses. Preciso do D. Quixote, do Gulliver, do Robinson [...] quanta

    coisa tenho vontade de fazer e no posso! (LOBATO apud CAMPOS, 2004, p. 147).

    Exemplos que ilustram o estilo tradutrio domesticante de Lobato so os

    retirados da tese de doutorado intitulada Foras motrizes de uma contstica pr-

    modernista: o papel da traduo na obra ficcional de Monteiro Lobato (2006), escrita

    por Elizamari Becker. Nesse trabalho, h trechos do livro The Jungle Book, de Rudyard

    Kipling, traduzido por Lobato com o ttulo de O livro da selva. Observemos um trecho

    do texto-fonte:

    Now you must be content to skip ten or eleven whole years, and only guess at all the wonderful life that Mowgli led among the wolves, because if it were written out it would fill ever so many books (KIPLING citado por BECKER, 2006, p. 139).

    A traduo literal do mesmo seria:

  • 51

    Agora voc deve estar contente em pular dez ou onze anos completos, e apenas supor, por fim, a vida maravilhosa que Mowgli levou entre os lobos porque se fosse escrita preencheria muitos livros (minha traduo).

    No entanto, Lobato o traduziu da seguinte maneira:

    Pulemos agora dez anos de descrio da vida de Mowgli entre os lobos, coisa que daria matria para todo um volume (KIPLING citado por BECKER, 2006, p. 139).

    As modificaes imprimidas por Lobato no texto de Kipling podem ser

    observadas ainda nos seguintes exemplos:

    [] meant just as much to him as the work of his office means to a business man (KIPLING citado por BECKER, 2006, p. 142).

    [...] I might remembered that children of kings are men from the beginning (KIPLING citado por BECKER, 2006, p. 145).

    Esses trechos poderiam ter sido literalmente traduzidos como:

    [...] significava tanto para ele quanto o trabalho do escritrio significa para um homem de negcios (minha traduo).

    [...] Eu deveria lembrar que filhos de reis so homens desde o incio (minha traduo).

    Lobato, no entanto, os traduziu assim:

    [] tudo significava muito para os animais da floresta. (KIPLING citado por BECKER, 2006, p. 143).

    No negam serem filhos de rei (KIPLING citado por BECKER, 2006, pgina da tese dela).

    Como podemos perceber, Lobato encurta os trechos traduzidos. No primeiro

    deles, apaga o endereamento do texto diretamente ao leitor. No segundo trecho, Lobato

    corta a comparao com a importncia do trabalho para um homem de negcios. No

    terceiro deles, Lobato retira a meno importante de que so homens desde o incio por

  • 52

    serem filhos do rei. Essas escolhas revelam a postura domesticante de Lobato, que

    acreditava que as tradues deveriam se adequar cultura-meta para tornarem a leitura

    mais agradvel, familiar e corrente.

    A estrangeirizao, por outro lado, traz o texto ao leitor em vez de lev-lo ao

    texto, ou seja, traz a cultura-fonte ao pblico-alvo. Segundo Venuti (1995), a noo de

    estrangeirizao pode alterar a maneira como a traduo lida assim como produzida

    porque assume um conceito de subjetividade humana que muito diferente das

    suposies humanistas subjacentes domesticao (p. 24, minha traduo).32 Assim,

    valores culturais do texto-fonte so incorporados ao texto-meta e isso permite que o

    leitor perceba que o texto provm de outra cultura, de outra lngua, portanto, d maior

    visibilidade ao tradutor e amplia o conhecimento de mundo do leitor.

    A nova traduo brasileira do Livro das mil e uma noites (2005) pode ser citada

    como um exemplo de estrangeirizao do texto. O atual tradutor dessa obra, Mamede

    Mustafa Jarouche, professor de lngua e literatura rabe da Universidade de So Paulo,

    escreveu um prefcio ao livro, no qual faz uma sinopse da obra, traa sua origem

    histrica e comenta outras tradues do mesmo livro, assim como apresenta notas sobre

    aspectos lingusticos do alfabeto rabe.

    Essa a primeira traduo do referido livro feita diretamente do rabe para o

    portugus, realizada a partir do conjunto de trs volumes do manuscrito rabe 3609-

    3611 da Biblioteca Nacional de Paris. Segundo o tradutor: todas as intervenes de

    relevo operadas no texto manuscrito principal foram apontadas nas notas, que tambm

    serviram para expor ao leitor o quo problemtica, neste caso, a ideia de texto pronto e

    acabado. As notas explicam, ainda, aspectos lingusticos e histricos (JAROUCHE,

    32

    Texto fonte: The notion of foreignization can alter the ways translations are read as well as produced because it assumes a concept of human subjectivity that is very different from the humanist assumptions underlying domestication.

  • 53

    2004, p. 32). Tal opo de traduo d ao tradutor uma visibilidade maior. Uma vez que

    suas escolhas so apresentadas, ele tambm se faz presente na construo do texto.

    Ainda na nota editorial, Jarouche explica como difcil manter as rimas

    originais rabes, e que, por tal motivo, decidiu abrir mo da mtrica, em todos os

    poemas e das rimas, em alguns deles. O tradutor tambm optou por variar os verbos

    dicendi, pois, segundo o mesmo, os personagens so verdadeiras mquinas de dizer e

    a repetio ficaria demasiado montona (JAROUCHE, 2004, p. 32). Podemos perceber

    atravs das afirmaes do tradutor que, mesmo que tenha tido como preocupao

    principal a estrangeirizao, recuperando especificidades do original que h muito

    haviam sido esquecidas por conta de tradues idiomticas, ele se viu levado a se valer

    de procedimentos domesticantes de traduo, em funo da grande assimetria entre as

    lnguas e as culturas envolvidas no processo de traduo.

    Quanto questo dos nomes prprios, Jarouche se viu frente a um impasse:

    como transcrever os nomes rabes? Simplificar a transcrio facilitaria as coisas para o

    leitor ou seria um desrespeito a ele? Sabe-se que o idioma rabe possui sons que no

    existem em portugus nem em qualquer outro idioma indo-europeu. Se no existem, de

    que adianta usar um smbolo para graf-los? (2004, p. 32). Diante desse

    questionamento e depois de ponderar a respeito, o tradutor optou por utilizar o alfabeto

    internacional e exemplificar, no editorial, os sons que cada fonema tem. A nota 17 do

    editorial diz o seguinte: Para os nomes de cidade utilizou-se a forma convencional em

    portugus quando esta existe, como o caso de Bagd (em lugar de Badad), Basra (em

    lugar de Albara), Mossul (em lugar de Almawil), Damasco (em lugar de Dimaq) etc.

    Caso contrrio adotou-se a transcrio fontica (JAROUCHE, 2004, p. 35). Dessa

    maneira, o mesmo trouxe a cultura-fonte ao leitor, permitindo que o mesmo tenha um

    contato mais prximo com o mundo rabe, do qual o texto provm.

  • 54

    Nesse momento chegamos questo crucial da traduo de literatura infantil,

    pois como afirma Otinnen:

    Na traduo da literatura infantil, no entanto, a domesticao e a estrangeirizao so questes muito delicadas. Vrios estudiosos desaprovam a domesticao como um mtodo de desnaturalizar e pedagogizar a literatura infantil: a criana deveria ser capaz de descobrir o estrangeiro em textos traduzidos e aprender a tolerar as diferenas, a estranheza do estrangeiro [...]. Embora sempre haja leitores, tais como estudiosos, que podem no achar o texto estrangeirizante desagradvel, a criana leitora pode muito bem no estar disposta a ler o texto traduzido, achando-o muito estranho e como isso influenciar no hbito de leitura futuro da criana e qual, ento, o objetivo em traduzir a histria? (2006, p. 43, minha traduo).33

    Considerando as tradues realizadas pelos alunos da turma 2007-2009 do curso

    de Bacharelado em Letras nfase em Traduo: Ingls, analisadas no captulo

    anterior, percebemos que h uma linha tnue entre a domesticao e a estrangerizao

    de textos de literatura infantil, e que muito difcil optar apenas por procedimentos de

    traduo domesticantes ou estrangerizantes. Exemplos disso so as tradues dos livros

    Little Miss Fickle e Little Miss Late, realizadas pelas alunas Raquel Lombardi e Aline

    Paiva, respectivamente, nas quais as alunas-tradutoras optaram por manter o nome da

    casa das personagens em ingls e acrescentar uma explicao diluda no corpo do texto,

    utilizando uma das possveis estratgias para tornar o texto estrangeirizante, enquanto

    que, no que diz respeito aos nomes prprios, elas mesmas e todos os outros alunos-

    tradutores optaram por manter o nome prprio dos personagens na lngua-fonte,

    caracterizando uma opo domesticante.

    33

    Texto original: As for translating childrens literature, however, domestication and foreignization are very delicate issues. Several scholars disapprove of domestication as a method denaturalizing and pedagogizing childrens literature: children should be able to find the foreign in the translated texts and learn to tolerate the differences, the otherness, the foreign [] While there will always be readers , such as scholars, who might not find foreignized texts offputting, the child reader may very well be unwilling to read the translated text, finding it too strange - and how will this influence the childs future reading habits and what then is the whole point of translating the story?

  • 55

    Nas tradues dos livros Little Miss Wise e Little Miss Brainy, traduzidos

    respectivamente por Felipe Noronha e por mim, os alunos-tradutores optaram por

    substituir a onomatopeia em lngua inglesa para uma equivalentes na lngua-meta. No

    livro Little Miss Chatterbox, traduzido pela aluna-tradutora Fernanda Faria, constatamos

    a opo de substituir as expresses idiomticas em lngua inglesa por expresses

    equivalente na lngua-meta. Tais opes de traduo caracterizam uma escolha

    domesticante. No livro Little Miss Late, observamos a manuteno e a explicao,

    diluda no texto, das referncias culturais feitas s estaes do ano. No livro Mr. Topsy-

    Turvy, a aluna-tradutora, Luy Braida, optou por manter a estranheza dos jogos de

    palavras da lngua-fonte. Essas ltimas tradues so exemplos de opes

    estrangeirizantes.

    A meu ver, a estrangeirizao uma opo que deve ser considerada, pois na

    infncia que os leitores so formados e a partir da formao desses leitores que a

    conscincia individual e coletiva construda. A aplicao de procedimentos

    estrangeirizantes de traduo permite a formao de leitores conscientes de que h um

    mundo maior e distinto sua volta, e fornece maior visibilidade ao tradutor, pois

    quando os mesmos so postos em prtica fica claro que o texto lido ou ouvido no

    pertence cultura-meta, sendo, portanto, fruto de uma traduo. Contudo, necessrio

    ter equilbrio nas escolhas entre as opes domesticantes e as estrangeirizantes. H

    momentos em que um mesmo texto pode pedir uma e outra. No seria coerente afirmar

    que apenas uma das opes deva ser escolhida ou que uma traduo deva optar por

    apenas uma delas. necessrio que ponderemos quando uma das opes se faz

    realmente mais adequada do que a outra. No corpus analisado, o procedimento mais

    adotado foi o da domesticao.

  • CONSIDERAES FINAIS

  • Vimos que a literatura infanto-juvenil responsvel por formar leitores que se

    interessem pela leitura e tenham uma conscincia crtica, desenvolvendo valores

    culturais que formam parte de uma sociedade. Alm de entreter, a literatura infanto-

    juvenil traduzida incita o aprendizado e a reflexo sobre o mundo, construindo pontes

    sobre culturas distintas.

    No contexto ingls, vimos que vrias obras compem o cnone literrio infanto-

    juvenil nacional, com vrios autores que se consagraram ao se dedicarem a escrever

    para o pblico infanto-juvenil, entre eles Lewis Carroll autor de Alice no pas das

    maravilhas; James Barrie, criador da personagem Peter Pan; Rudyard Kipling, autor de

    Mogli, o menino lobo; e Clive Lewis, autor de As crnicas de Nrnia. Roger

    Hargreaves, autor das colees infantis Mr. Men e Little Miss, que formam o corpus

    estudado nesta monografia, portanto, faz parte de uma forte tradio de literatura

    infantil.

    No Brasil, a literatura infanto-juvenil nacional foi divulgada no final do sculo

    XIX e incio do sculo XX atravs de tradues e adaptaes dos contos de fadas de

    Perrault e dos irmos Grimm, realizadas por tradutores como Carlos Janssen e

    Figueiredo Pimentel. Monteiro Lobato, alm de escritor e editor, era tradutor e foi um

    dos grandes responsveis pela ampliao do gnero, atravs de adaptaes de obras

    como o ttulo supracitado de Kipling, no incio dos anos de 1920 em diante. As

    tradues e adaptaes de obras estrangeiras estimularam o surgimento de uma

    literatura infanto-juvenil nacional, que teve como destaque, alm de Lobato, Ceclia

    Meireles e Henriqueta Lisboa, e da qual hoje fazem parte Lygia Bojunga e Ana Maria

    Machado, entre outros.

    A anlise das especificidades concernentes traduo de literatura infanto-

    juvenil mostrou que o tradutor precisa estar atento e adequar as obras traduzidas ao

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    pblico para que este, estimulado pelas histrias que l ou escuta, possa entusiasmar-se

    e se tornar um leitor que sente prazer ao ler. O tradutor, porm, deve ter cuidado para

    no apagar todas as marcas da cultura-fonte, pois, como a literatura infanto-juvenil

    forma leitores, importante que os mesmos tenham conscincia de que as histrias que

    ouvem ou leem so provenientes de outras culturas e de que existem livros traduzidos